XVI - HORAS DE AGONIA


Uma voz, por trás de Bond, disse serenamente: — O jantar está servido.

Bond voltou-se para trás. O anunciante fora o guarda-costas, que tinha a seu lado outro homem que bem poderia ser seu irmão gêmeo. Ali ficaram eles, duas barricas de musculatura, com as mãos mergulhadas nas mangas dos quimonos, olhando, por cima da cabeça de Bond, para o Dr. No.

— Ah, já nove horas. — O Dr. No levantou-se lentamente e disse: — Vamos. Podemos continuar a nossa conversação em ambiente mais íntimo. Foi muita bondade dos senhores terem ouvido a minha história com paciência tão exemplar. Espero que a modéstia de minha cozinha e de minha adega não representem mais uma imposição.

Portas duplas tinham sido conservadas abertas por trás dos dois homens de jaquetas brancas. Bond e a jovem atravessaram-nas seguindo o Dr. No, indo ter a uma sala octogonal, com as paredes recobertas de painéis de mogno, e ao centro um candelabro de prata, sob o qual estava posta uma mesa para três pessoas. O tapete simples, azul-escuro, era luxuosamente espesso. O Dr. No tomou a cadeira central, de espaldar alto, e indicou cortesmente, com uma inclinação, a cadeira à sua direita para a jovem. Sentaram-se e abriram guardanapos de seda branca.

A cerimônia vazia e a encantadora sala deixavam Bond louco. Ansiava por despedaçar tudo aquilo com as próprias mãos, por passar o seu guardanapo de seda à volta do pescoço do Dr. No e apertá-lo até que aquelas lentes de contato saltassem daqueles malditos olhos negros.

Os dois guardas usavam luvas de algodão branco. Serviram as iguarias com suave eficiência que era instigada por uma ocasional palavra chinesa proferida pelo Dr. No.

A princípio o Dr. No parecia preocupado. Lentamente, ingeriu três taças de diferentes sopas, utilizando-se de uma colher dotada de um cabo curto e que se adaptava perfeitamente entre as pinças de sua mão mecânica. Bond esforçou-se por esconder os seus temores da jovem. Sentou-se afetando uma atitude de relaxamento e comeu e bebeu com forçado apetite. Falou ainda animadamente com a jovem sobre Jamaica — sobre aves e animais, assim como fores, que constituíam fáceis assuntos de conversação para Honeychile. De vez em quando os seus pés tocavam nos dela, sob a mesa. Ela quase chegou a ficar alegre. Bond pensou que ambos estavam fazendo uma bela imitação de namorados comprometidos, que estivessem saboreando um jantar oferecido por um tio detestável.

Bond não tinha a mínima idéia sobre se o seu fraco blefe tinha surtido algum efeito. Assim, não deu grande importância às suas possibilidades. O Dr. No, assim como a sua história, eram perfeitamente impenetráveis. A incrível biografa parecia verdadeira. Nem uma só palavra daquele relato era impossível. Talvez houvesse outras pessoas no mundo com os seus reinos particulares — reinos afastados dos caminhos trilhados por homens comuns, sem testemunhas, onde pudessem fazer o que bem entendessem. E que estaria planejando fazer o Dr. No, depois que tivesse esmagado as moscas que tinham vindo incomodá-lo? E se eles fossem mortos — e quando o fossem — Londres conseguiria recolher os fios que ele, Bond, tinha recolhido? Provavelmente conseguiria. Lá estava Pleydell-Smith, e as provas das frutas envenenadas. Mas até onde a substituição de Bond iria afetar o Dr. No? Não muito. O Dr. No daria de ombros ao desaparecimento de Bond e Quarrel. Nunca teria ouvido falar deles. E não haveria qualquer elo com a jovem. Em Porto Morgan, todos pensariam que ela se tinha afogado em suas expedições. Era difícil saber o que poderia interferir com o Dr. No — com o segundo capítulo de sua vida, qualquer que ele fosse.

Sob aquela conversa com a jovem, Bond foi-se preparando para o pior. Ao lado de seu prato havia algumas facas. Então chegaram as costeletas, perfeitamente cozidas, e Bond tocou em várias facas, hesitante, até que escolheu a do pão para cortá-las. Enquanto comia e conversava foi deslocando a grande lâmina de aço para perto do corpo. Um gesto largo da mão direita derrubou o seu copo de champanha e, numa fração de segundo, enquanto o copo se partia, sua mão esquerda enfiou a lâmina para dentro da manga do quimono. Em meio às suas desculpas, e à confusão que se seguiu, enquanto os guardas enxugavam a champanha derramada na mesa, Bond levantou o braço esquerdo e sentiu que a faca deslizava para baixo do braço e depois caía para dentro do quimono, ficando encostada às suas costelas. Quando acabou de comer as costeletas, apertou o cinto de seda, à volta da cintura, ao mesmo tempo que deslocava a faca para diante da barriga. A faca aninhou-se. confortàvelmente contra a sua pele e em pouco tempo o aço da lâmina foi-se tornando aquecido.

Por fim veio o café e a refeição foi dada por terminada. Os dois guardas se aproximaram e postaram-se por trás das cadeiras da jovem e de Bond. Tinham os braços cruzados sobre o peito, impassíveis, sem nenhum movimento, como carrascos.

O Dr. No pousou delicadamente a sua xícara no pires e descansou as duas pinças de aço sobre a mesa. Depois se endireitou um pouco na cadeira e virou o corpo, apenas uma polegada, em direção de Bond. Agora não havia o mínimo sinal de preocupação em seu rosto. Os olhos eram duros e diretos. A boca fina contraiu-se e abriu-se: — Apreciou o jantar, sr. Bond?

Bond apanhou um cigarro numa caixa de prata que estava à frente e acendeu-o. Depois, pôs-se a brincar com o isqueiro de prata que estava sobre a mesa. Sentia que más noticias iriam chegar. Pensou que deveria meter aquele isqueiro no bolso, de qualquer maneira. O fogo talvez viesse a ser mais uma arma. Respondeu com facilidade: — Sim, estava excelente. — Em seguida olhou para Honeychile. Curvou-se sobre a mesa e descansou os braços sobre ela, e logo cruzou-os, envolvendo o isqueiro com esta manobra. Sorriu para ela: — Espero ter pedido o que você gosta.

— Oh, sim, estava magnífico. — Para ela a recepção ainda estava continuando.

Bond fumava afanosamente, agitando mãos e braços, a fim de criar uma atmosfera de movimento. Voltou-se para o Dr. No, apagou o toco de seu cigarro e reclinou-se na cadeira. Cruzou os braços sobre o peito. O isqueiro já estava sob o seu sovaco esquerdo. Riu animadamente:

— E o que acontecerá agora, Dr. No?

— Podemos continuar com a nossa distração de após-jantar, sr. Bond. O leve sorriso contraiu-se e desapareceu.

— Examinei a sua proposta sob todos os aspectos. Não a aceito.

Bond deu de ombros e observou: — O senhor não é sensato.

— Não, sr. Bond. Receio que a sua proposta não passe de uma isca dourada. Em sua profissão não se atua como o senhor quer sugerir. Os agentes enviam relatórios rotineiros para o quartel-general. Mantêm seus chefes a par dos progressos das investigações que fazem. Conheço essas coisas. Os agentes secretos não se comportam como o senhor sugeriu ter agido. O senhor esteve lendo muitas novelas de aventuras, e o seu pequeno discurso mostrou com muita facilidade o papelão pintado. Não, sr. Bond, não aceito a sua história. Se ela for verdadeira, estou preparado para enfrentar as conseqüências. Tenho muita coisa em jogo para ser facilmente desviado de meu caminho. Que venham a polícia e os soldados. Onde estão o homem e a jovem? Que homem e que jovem? Não sei de nada. Por favor, retirem-se, os senhores estão prejudicando a minha guaneira. Onde estão as suas provas, o seu mandado de prisão? A lei inglesa é rigorosa, meus senhores. Voltem para casa e deixem-me em paz com os meus queridos corvos marinhos. Está vendo, sr. Bond? E digamos mesmo que o pior redunde em pior. Que um de meus agentes fale, o que é altamente improvável. (Bond lembrou-se da fortaleza da srta. Chung). Que tenho eu a perder? Mais duas mortes no libelo acusatório. Mas, sr. Bond, um homem só pode ser enforcado uma vez: — A elevada cabeça, em forma de pêra, agitava-se suavemente, de um lado para outro. — O senhor tem mais alguma coisa a dizer? Alguma pergunta? Ambos irão ter uma noite muito ocupada e o tempo de que dispõem está-se tornando escasso. Quanto a mim, devo ir dormir. O navio que chega mensalmente deverá atracar amanhã e eu terei que supervisionar o carregamento. Passarei todo o dia no cais. Certo, sr. Bond?

Bond olhou para Honeychile. Ela estava mortalmente pálida. Olhava com olhar esgazeado, esperando pelo milagre que ele deveria operar. Bond olhou para as próprias mãos e examinou cuidadosamente as unhas. Depois, disse, para ganhar tempo: — E então, após seu dia ocupado com o carregamento, o que virá em seu programa? Qual o novo capítulo que o senhor pensa escrever?

Bond não levantou o olhar. A profunda e serena voz autoritária caiu sobre ele como se tivesse vindo do céu escuro.

— Ah, sim, o senhor deve ter estado a pensar nisso.

O senhor tem o hábito da investigação. Os hábitos persistem até o fim, até as sombras. Admiro tais qualidades num homem que tem apenas algumas horas mais para viver. Por isso, dir-lhe-ei. Encetarei um novo capítulo, e isso o consolará. Há muito mais nesta ilha do que uma simples guaneira. O seu instinto não o enganou, sr. Bond.

O Dr. No fez uma pausa para dar mais ênfase ao que iria dizer e continuou: — Esta ilha, sr. Bond, está em vésperas de se transformar num dos mais valiosos centros de informação técnica do mundo.

— De fato? — Bond mantinha os olhos fixos em suas mãos.

— Sem dúvida que o senhor não ignora que Turks Island, a trezentas milhas, de distância daqui, através de Windward Passage, constitui o mais importante centro para a experimentação de projéteis teleguiados dos Estados Unidos?

— Sim, é um importante centro de experiências.

— Talvez o senhor tenha lido sobre os foguetes que recentemente se desviaram de sua rota? O “Snark” de múltiplas fases, por exemplo, que terminou o seu vôo nas florestas do Brasil, ao invés de ir perder-se nas profundezas do Atlântico Sul?

— Sim.

— O senhor se lembrará que ele se recusou a obedecer as instruções que lhe foram enviadas por rádio, no sentido de modificar a sua rota, e até mesmo de se destruir a si mesmo. Ele desenvolvera uma vontade própria.

— Lembro-me.

— Houve outras falhas, falhas decisivas, na longa lista dos protótipos — o Zuni, o Matador, o Petrel, o Regulus, o Bomarc — tantos nomes, outras tantas modificações, nem posso lembrar-me deles todos. Bem, sr. Bond, — o Dr. No mal podia esconder uma nota de orgulho em sua voz — talvez lhe interesse saber que a maioria desses fracassos foi causada de Crab Key.

— É verdade?

— Não me acredita? Não tem importância. Outros acreditam-no. Outros que viram o abandono de toda uma série, o Mastodonte, em virtude de seus freqüentes erros de navegação, sua incapacidade de obedecer às ordens enviadas pelo rádio, de Turks Island. Esses outros são os russos. Os russos são meus sócios nesta empreitada. Treinaram seis dos meus homens, sr. Bond. Exatamente neste momento tenho dois desses homens observando, estudando as freqüências de rádio, as faixas nas quais trabalham esses engenhos. Há um milhão de dólares de instalações, nas galerias rochosas, acima de nossas cabeças, sr. Bond, enviando sinais para a camada de Heavyside, aguardando os sinais, perturbando-os, contrabalançando faixas com outras faixas. E, de vez em quando, um foguete sobe em seu itinerário e aprofunda-se cem, quinhentas milhas, pelo Atlântico, enquanto nós anotamos cuidadosamente a sua trajetória, com a mesma perfeição com que isto é feito na Sala de Operações de Turks Island. Em seguida, subitamente, as nossas pulsações são enviadas ao foguete, o seu cérebro é perturbado, ele enlouquece e mergulha no mar, destruindo-se. Foi mais uma experiência que fracassou. Os operários levam a culpa, assim como os projetistas e os fabricantes. Há pânico no Pentágono. Outra coisa deve ser tentada, freqüências diversas, metais diversos, um cérebro eletrônico diferente. Naturalmente que também temos as nossas dificuldades. Assim é que assinalamos muitos disparos experimentais sem sermos capazes de chegar até o cérebro do novo engenho. Então, comunicamo-nos urgentemente com Moscou. Com efeito, eles deram-nos até uma máquina de cifras com as nossas freqüências e rotinas. E os russos continuam pensando, fazem sugestões, e nós as experimentamos. Por fim, sr. Bond, um belo dia, é como se atraíssemos a atenção de um homem perdido numa multidão. Lá no alto, na estratosfera, o foguete reconhece o nosso sinal. Somos reconhecidos e podemos falar com ele e modificar os seus pensamentos. — O Dr. No fez uma pausa e depois continuou: — O senhor não acha isso interessante, esta variante de meus negócios com o guano? Asseguro-lhe que é um negócio muito lucrativo, e podia sê-lo ainda mais. Talvez a China comunista venha a pagar mais pelos meus serviços. Quem sabe? Já tenho os meus agentes em campo, para sondagens.

Bond ergueu os olhos, olhando pensativamente para o Dr. No. Então ele tinha tido razão. Havia mesmo mais alguma coisa, muito mais, em tudo aquilo que os seus olhos tinham visto. Aquilo era uma grande partida, uma partida que explicava tudo, uma partida que no mercado internacional da espionagem bem valia a pena ser jogada. Bem, bem! Agora, as peças do quebra-cabeças tinham caído corretamente em seus lugares. Para isso tinha valido a pena, certamente, assustar alguns pássaros e eliminar algumas pessoas. Isolamento? Naturalmente que o Dr. No teria que matar a ele e à jovem. Poder? Sim, isso era poder. O Dr. No se tinha realmente lançado nos negócios.

Bond fixou os dois orifícios negros com um novo respeito, e observou: — O senhor terá que matar muito mais gente para manter isto em suas mãos, Dr. No. Isto vale muito dinheiro. O senhor tem aqui uma bela propriedade, superior ao que eu pensava, e as pessoas hão-de querer um pedaço deste bolo. Penso em quem será o primeiro a chegar até o senhor e matá-lo. Serão aqueles homens que estão lá em cima, treinados por Moscou? — e ele fez um gesto apontando para o teto. Depois continuou: — Eles são os técnicos. Eu me pergunto: o que Moscou estará lhes ordenando que façam? O senhor não poderia estar a par disso, poderia?

O Dr. No respondeu: — Vejo que continua subestimando meu valor, sr. Bond. O senhor é um homem obstinado e mais estúpido do que pensava. É claro que estou consciente dessas possibilidades. Separei um desses homens e transformei-o numa espécie de vigilante particular. Ele tem uma duplicata das cifras e da máquina. Vive em outra parte da montanha. Os outros pensam que ele morreu, mas ele está bem vivo a fiscalizar a cronometragem de rotina, e entrega-me diariamente uma cópia do tráfego que é registrado. Até agora os sinais emitidos por Moscou têm sido inocentes e não indicam qualquer conspiração. Penso em tudo isso constantemente, sr. Bond. Tomo precauções e ainda as multiplicarei para o futuro. Como disse, o senhor me tem subestimado.

— Não o subestimo, Dr. No. O senhor é um homem muito prudente, mas já há muitas pastas sobre o senhor. Em minha linha de atividades, a mesma coisa se aplica a mim, mas as suas pastas são muito perigosas. A chinesa, por exemplo. Não gostaria de ter uma com essa gente. A da FBI deve ser a menos penosa — roubo e falsa identidade. Mas o senhor conhece os russos tão bem quanto eu? Por enquanto o senhor é “o melhor amigo” deles. Mas os russos não têm sócios. Hão-de querer comprá-lo... — comprá-lo com um balaço. Depois vem a pasta que o senhor abriu com o meu serviço. O senhor quererá mesmo fazê-la mais volumosa? Eu não o faria se estivesse em seu lugar, Dr. No. O pessoal do meu serviço é muito obstinado. Se alguma coisa me acontecer e à jovem, o senhor verificará que Crab Key é uma ilha muito pequena e insignificante.

— Não se pode jogar grandes partidas sem assumir riscos, senhor Bond. Aceito os perigos e, até onde posso, procuro defender-me deles. Como vê — e a sua voz tinha um acento de cupidez — estou em vésperas de coisas muito maiores. O capítulo dois, ao qual já me referi, encerra promessa de prêmios que ninguém, a não ser um tolo, jogaria fora por ter medo. Já lhe disse que posso desviar os raios magnéticos por onde viajam os foguetes. Posso fazer com que estes mudem de rota e não obedeçam ao controle eletrônico. Que diria o senhor, se eu fosse ainda mais longe? Se eu os fizesse cair nesta ilha, a fim de recolher todos os segredos de sua construção? Atualmente, destróieres norte-americanos, nos confins do Atlântico Sul, recolhem esses foguetes quando eles esgotam o seu combustível e caem de pára-quedas sobre o mar. Algumas vezes os pára-quedas deixam de se abrir, e algumas vezes as instalações de autodestruição deixam de operar.

Ninguém em Turks Island se sentiria surpreendido se de vez em quando o protótipo de uma nova série saísse de sua trajetória e caísse perto de Crab Key. Antes de mais nada, isto seria atribuído a falhas mecânicas. Mais tarde talvez descobrissem que outros sinais, que não os seus, tinham estado a guiar os seus foguetes. Teria início, então uma guerra de freqüência. Tentariam e conseguiriam localizar a origem dos sinais falsos, mas assim que eu verificasse que eles estavam à minha caça, teria uma derradeira cartada. Os seus foguetes enlouqueceriam. Cairiam em Havana, em Kingston; dariam uma volta e despencariam sobre Miami. Mesmo sem as cargas detonantes, Sr. Bond, cinco toneladas de metal, chocando-se a mil milhas por hora, podem causar terríveis danos numa cidade super-povoada. E depois? Haveria pânico, haveria um clamor público. As experiências teriam de ser interrompidas. A base de Turks Island teria que fechar. E quanto não pagariam os russos para que isso acontecesse, sr. Bond? E quanto por protótipo que eu capturasse para eles? Digamos dez milhões de dólares por toda a operação? Vinte milhões? Seria uma vitória sem preço na corrida dos armamentos. Posso fazer o meu preço, não concorda, sr. Bond? E não concorda também que essas considerações tornam os seus argumentos e ameaças engraçadíssimos?

Bond não respondeu. Nada havia a dizer. Subitamente se viu em pensamento naquela sala tranqüila de Regents Park. Podia ouvir a chuva batendo suavemente contra a janela e a voz de M, impaciente e sarcástica, dizendo: “Oh, algum maldito negócio em torno de aves... umas férias ao sol lhe farão bem... investigações rotineiras.” E ele, Bond, tinha apanhado uma canoa, um caniço e um farnel de piquenique e partira — há quantos dias, há quantas semanas? — “para dar uma espiada”. Bem, ele tinha dado uma espiada na caixa de Pandora. E tinha tido as respostas, conhecera os segredos — e agora? Agora iriam mostrar-lhe polidamente o caminho para a sepultura, para onde ele levaria consigo o seus segredos arrancados e arrastados por ele em sua lunática aventura. Toda a amargura que lhe ia no íntimo aforou à boca, de modo que por um momento pensou que ia vomitar. Apanhou o copo e esvaziou todo o resto de champanha que nele havia. Depois disse asperamente: — Muito bem, Dr. No. Agora vamos ao cabaré. Qual é o programa — faca, bala, veneno, corda? Mas proceda rapidamente, já o vi bastante.

Os lábios do Dr. No se apertaram numa fina linha arroxeada. Os olhos eram duros como ônix, sob a bola de bilhar de sua fronte e crânio. A máscara de polidez tinha desaparecido. O Grande Inquisidor sentava-se na cadeira de alto espaldar. Tinha soado a hora para a “peine forte et dure”.

O Dr. No proferiu uma palavra e os dois guardas avançaram um passo e agarraram as suas vitimas pelos braços, acima dos cotovelos, mantendo-as imobilizadas para trás, apoiadas nos lados das cadeiras. Não houve resistência. Bond concentrou-se em manter o isqueiro sob o sovaco. As luvas brancas em seus bíceps pareciam faixas de aço. Sorriu para a jovem. — Desculpe-me por isso, Honey, — disse. — Receio que afinal de contas não possamos mais brincar juntos.

Os olhos da jovem, em seu rosto pálido, tinham ficado azul-escuros, pelo medo. Seus lábios tremiam, e ela perguntou: — Doerá muito?

— Silencio! — A voz do Dr. No soou como o estalar de um chicote. — Chega de tolices. Naturalmente que doerá. Estou interessado na dor. E estou igualmente interessado em descobrir quanto de dor o corpo humano pode suportar. De vez em quando faço experiências com os meus subordinados que devem ser punidos, e em intrusos como os senhores. Acarretaram-me os senhores grandes dificuldades. Em troca, pretendo causar-lhes uma grande soma de dor. Registrarei os níveis de suas resistências. Os fatos serão anotados, e um dia as minhas pesquisas serão relatadas ao mundo. As suas mortes terão servido à Ciência. Nunca desperdiço material humano. As experiências feitas pelos alemães com seres humanos vivos, durante a guerra, foram de grande proveito para a Ciência. Faz um ano que pus uma mulher para morrer da maneira que escolhi para a senhora. Ela era uma negra e durou três horas, mas morreu de terror. Queria agora fazer a experiência com uma mulher branca, para poder estabelecer uma comparação. Não me surpreendi quando a sua chegada me foi comunicada. Consigo sempre o que quero. — O Dr. No reclinou-se para trás na cadeira. Seus olhos estavam agora fixos na jovem, estudando-lhe as reações. Honeychile correspondia ao olhar, como que meio hipnotizada, como um rato do mato diante de uma cascavel.

Bond apertou os dentes.

— A senhora é uma jamaicana, por isso saberá o que quero dizer. Esta ilha chama-se Crab Key. Recebeu este nome porque está infestada de caranguejos — o que chamam em Jamaica “caranguejos negros”. A senhora os conhece. Pesam meio quilo, cada um, e têm o tamanho de um pires. Nesta época do ano eles saem aos milhares de seus esconderijos, próximos à costa, e sobem em direção à montanha. Lá, nos planaltos de coral, eles se alojam novamente em buracos da rocha, onde desovam. Avançam em exércitos de centenas, de cada vez. Atravessam tudo e sobre tudo. Em Jamaica eles invadem as casas e não se desviam de seu caminho. São como certos roedores da Noruega. É uma migração irresistível. — O Dr. No fez uma pausa. Em seguida acrescentou suavemente: — Mas há uma diferença. Os caranguejos devoram o que encontram em seu caminho. E agora, minha senhora, eles já estão em marcha. Estão galgando as faldas da montanha, às dezenas de milhares, em ondas negras e vermelho-laranja. Estão, neste momento, se apressando e se empurrando e arranhando a rocha acima de nós. E esta noite, no meio do seu caminho, eles vão encontrar o corpo nu de uma mulher sòlidamente preso — um banquete preparado para eles — e vão apalpar o corpo morno com suas pinças, e um deles dará o primeiro corte com suas garras de combate e então... e então...

A moça gemeu. Sua cabeça caiu para a frente sobre o peito. Desmaiara. O corpo de Bond inteiriçou-se na cadeira. Uma torrente de palavras obscenas escapou por entre seus dentes cerrados. As manoplas dos guardas pareciam-lhe ferro à volta dos braços. Nem sequer podia fazer deslizar os pés da cadeira no chão. Depois de um momento de luta, desistiu. Esperou que sua voz se acalmasse, e disse então, com todo o veneno que podia instilar nas palavras:

— Seu bastardo! Você há-de frigir no inferno se fizer isso!

O Dr. No sorriu fracamente.

— Senhor Bond, não acredito na existência do inferno. Procure consolar-se. Talvez eles comecem pela garganta ou pelo coração. O bater do pulso ainda os poderá atrair. Depois disso, tudo acabará depressa.

Proferiu então uma sentença em chinês. O guarda que estava atrás da cadeira da moça inclinou-se para a frente, levantou-a da cadeira como se fora uma criança e atirou-a por cima do ombro. Os belos cabelos caíam qual cascata de ouro entre os braços inertes. O guarda foi à porta, abriu-a e saiu, formando a fechá-la sem ruído.

Por um momento, reinou, silêncio na sala. Bond pensava somente na faca encostada ao seu ventre e no isqueiro debaixo da axila. Qual a extensão dos estragos que ele poderia causar com aqueles dois pedaços de metal? Poderia, de algum modo, aproximar-se do Dr. No?

O Dr. No continuou serenamente: — O senhor disse que o poder era uma ilusão, sr. Bond. Não modifica a sua opinião? O meu poder de escolher a morte que quiser para essa jovem certamente que não é uma ilusão. Todavia, passemos ao método de sua morte. Isso também encerra aspectos novos. Saiba, sr. Bond, que estou interessado na anatomia da coragem — do poder de resistência do corpo humano. Mas como medir a resistência humana? Como traçar um gráfico da vontade de sobrevivência, da tolerância à dor, da conquista do medo? Pensei muito nesse problema e acredito tê-lo solucionado. Trata-se, por enquanto, de um método incompleto e grosseiro, mas que será aperfeiçoado na medida em que as experiências se forem multiplicando. Preparei o senhor para essa experiência. Dei-lhe um sedativo, de modo que o seu corpo esteja descansado, e alimentei-o bem, de modo que possa estar no gozo completo de suas forças. Os futuros — como os chamarei — pacientes, terão as mesmas vantagens. Todos começarão nas mesmas condições. Depois disso, o restante será uma questão de coragem e do poder de resistência individuais.

O Dr. No fez uma pausa, enquanto observava o rosto de Bond. Depois prosseguiu: — Saiba ainda, sr. Bond, que justamente agora acabo de construir uma espécie de pista de obstáculos, uma espécie de pista de corrida contra a morte. Não direi mais sobre isso porque o elemento surpresa é um dos que aparecem na formação do medo. Os perigos desconhecidos são os piores, os que mais pressionam as reservas de coragem. E me alegro com a idéia de que a corrida de obstáculos que o senhor enfrentará contém um rico sortimento de coisas inesperadas. Será particularmente interessante sr. Bond, que um homem com as suas qualidades físicas seja o meu primeiro competidor. Será interessantíssimo ver até onde o senhor conseguirá alcançar, na pista que idealizei. Não há dúvida de que o senhor estabelecerá uma marca invejável para os futuros corredores. Tenho grandes esperanças no senhor. O senhor deverá ir muito longe, mas quando tombar, inevitavelmente, diante de um obstáculo, seu corpo será recolhido e eu examinarei meticulosamente os seus restos. Os dados assim colhidos serão registrados e o senhor representará o primeiro ponto de um gráfico. Algo honroso, não é, senhor Bond?

Bond nada respondeu. Que diabo significaria tudo aquilo? Em que poderia consistir aquela prova? Seria possível escapar dela com vida? Poderia escapar disso e salvar Honeychile antes que fosse demasiado tarde, ainda que para matá-la e assim salvá-la da tortura? Silenciosamente, Bond ia reunindo suas reservas de coragem, retemperando a mente contra o temor do desconhecido que já começava a envolver a sua garganta, e focalizando a sua vontade no alvo da sobrevivência. Acima de tudo, deveria apegar-se às suas armas.

O Dr. No levantou-se e afastou-se da cadeira. Caminhou vagarosamente até a porta e voltou-se. Seus olhos negros e ameaçadores fixavam Bond, pouco abaixo da armação da porta. A cabeça estava ligeiramente inclinada e os lábios finos tornaram a se mexer: — Faça uma boa corrida para mim, sr. Bond. Meus pensamentos, como se costuma dizer, o acompanharão.

O Dr. No afastou-se e a porta fechou-se suavemente por trás de seus costados amarelos.


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