V - FATOS E NÚMEROS


"Ele há de pegá-los... Ele há de pegá-los... Ele há de pegá-los, seus bastardos!"

Essas palavras tiniam ainda no cérebro de Bond, no dia seguinte, enquanto estava sentado no alpendre, comendo um delicioso desjejum e olhando, além dos luxuriantes jardins tropicais, para Kingston, a oito quilômetros de distância.

Estava convencido, agora, de que Strangways e a moça tinham sido mortos. Alguém tivera necessidade de não permitir que eles se metessem em seus negócios, de sorte que os matara e destruíra os arquivos atinentes àquilo que eles estavam a investigar. Essa mesma pessoa sabia, ou supunha, que o Serviço Secreto procuraria esclarecer o mistério do desaparecimento de Strangways. Soubera, fosse como fosse, que Bond tinha sido encarregado dessa tarefa. Quisera ter em mãos uma fotografia de Bond e saber onde ele estava hospedado. Deveria estar mantendo Bond sob vigilância, a fim de saber se ele tinha alguma pista que revelasse a morte de Strangways. Se Bond o conseguisse, ele também teria que ser eliminado. Haveria um encontro de carros, ou uma briga de rua, ou qualquer outra morte que não despertaria suspeitas. E — perguntava Bond a si mesmo — qual teria sido a reação daquela pessoa, ao saber do tratamento que ele e Quarrel tinham dispensado à moça Ching? Se era tão implacável quanto o supunha' Bond, aquilo seria o bastante. Talvez Strangways tivesse mandado um relatório preliminar a Londres, antes de sua morte. Talvez alguém tivesse cometido uma indiscrição. O inimigo seria louco em se arriscar. Se tivesse um pouco de bom senso, depois do incidente com a pequena Chung, ele procuraria sem delongas tomar conta de Bond e, talvez, também de Quarrel.

Bond acendeu o primeiro cigarro do dia — o primeiro "Royal Blend" que estava fumando depois de muitos anos ;— e deixou que a fumaça escapasse por entre os dentes com um assobio de satisfação. Esta era sua "apreciação do inimigo". Mas quem seria esse inimigo?

Ora, havia um só candidato, mas bastante importante, o Doutor No, Doutor Julius No, o sino-alemão que tinha adquirido Crab Key e tirava a sua fortuna do guano. Nada existia contra esse indivíduo nos arquivos da polícia, e um pedido de informações feito ao FBI dos Estados Unidos tinha-se revelado negativo. O caso das espátulas rosadas e as complicações com a Sociedade Audubon não tinham nenhuma significação precisa, salvo, como o dissera M, que um bando de gente que não tinha o que fazer ficara nervosa por causa de umas poucas cegonhas vermelhas. Contudo, quatro pessoas tinham morrido por causa daquelas cegonhas, e, o que era muito significativo para Bond, Quarrel tinha medo do Doutor No e de sua ilha. Isso era, realmente, muito estranho. Os pescadores das ilhas Cayman, e especialmente Quarrel, não se assustavam com facilidade. E por que tinha o Doutor No aquela mania de isolamento? Por que gastava ele tanto, e se dava a tanto trabalho, a fim de manter todos afastados de sua ilha de guano? Guano — excrementos de aves marinhas. Quem havia de querer esse material? Qual era o seu valor? Bond devia fazer uma visita ao Governador às dez horas. Satisfeitas as exigências do protocolo, ele procuraria o secretário para a Colônia e procuraria descobrir tudo sobre o guano e Crab Key, e, se fosse possível, sobre o Doutor No. Ouviu duas pancadas à porta. Bond levantou-se e abriu. Era Quarrel, com a face esquerda decorada com uma cruz de esparadrapo que bem poderia ter enfeitado o rosto de algum pirata.

— Bom-dia, chefe. O senhor tinha dito oito e meia.

— Sim, entre, Quarrel. Temos um dia cheio à nossa frente. Já comeu qualquer coisa?

— Já obrigado, chefe. Peixe salgado e um trago de rum.

— Arre! — disse Bond; — é coisa forte, logo assim de manhã!

— Refresca muito, — respondeu Quarrel, imperturbável.

Sentaram-se no alpendre. Bond ofereceu um cigarro a Quarrel, e também acendeu um.

— Hoje — disse ele — vou passar a maior parte do dia em King's House e talvez no Instituto de Jamaica. Não precisarei de você até amanhã de manhã, mas precisaria que você fizesse umas coisas na cidade. Está bem?

— Às ordens, chefe, vá dizendo.

— Primeiro, este nosso carro está "manjado". Temos que nos livrar dele. Vá ao Motta, ou qualquer outra garagem de aluguel, e escolha o mais novo e o melhor dos carros, sem chofer, que possa encontrar. Um carro fechado. Alugue-o por um mês. Está certo? Depois, procure pelas imediações do porto dois homens que se pareçam conosco. Um deles deverá ser capaz de guiar um carro. Compre roupas para eles, semelhantes às nossas, pelo menos da cintura para cima. E o tipo de chapéus que nós poderíamos usar. Diga que nós precisamos que eles levem um carro a Montego amanhã de manhã, pela estrada de Ocho Rios e Spanish Town. Deverão deixá-lo na garagem "Levy". Telefone ao Levy e diga-lhe que o guarde para nós. Compreendeu?

Quarrel sorriu.

— O senhor está querendo tapear alguém...

— Acertou. Você dará dez libras a cada um daqueles homens. Diga que eu sou um ricaço americano e que quero o meu carro levado para Montego por gente respeitável. Dê a entender que sou um pouco pancada. Eles deverão estar aqui às seis e meia, amanhã cedo. Você já estará, então, com o outro carro. Dê um jeito de eles desempenharem bem o seu papel, e mande-os com o "Sunbean", de capota arriada. Ouviu?

— Está bem, chefe.

— Que foi feito daquela casa da Praia Norte em que estivemos da última vez, Beau Desert, no Porto Morgan? Você sabe se está alugada?

— Não saberia dizê-lo, chefe. Fica longe dos lugares freqüentados por turistas, e pedem muito por ela.

— Bem. Vá ao Escritório Granham e veja se pode alugá-la por um mês, ou qualquer outro bangalô na mesma zona. Não se preocupe com o preço. Diga que é para um ricaço americano, Mr. James. Apanhe as chaves, pague o aluguel e diga que eu escreverei para confirmar. Posso telefonar-lhes, se quiserem mais informações. — Bond remexeu no bolso de trás e tirou um grosso maço de notas. Deu metade a Quarrel. — Aqui estão duzentas libras. Creio que dá para tudo. Procure-me, se precisar mais. Você sabe onde me poderá encontrar.

— Obrigado, chefe — disse Quarrel, aturdido pela elevada quantia. Enfiou-a em sua camisa azul e abotoou-a até o pescoço.

— Mais alguma coisa?

— Nada, mas tome cuidado para que não o sigam. Deixe o carro em qualquer lugar, na cidade, e vá a pé a todos esses lugares. E tenha especial cuidado com qualquer chinês que se aproxime de você. — Bond levantou-se e foi até a porta. — Espero você às seis e meia, amanhã. Iremos para a Praia Norte. Pelo que posso imaginar, será essa a nossa base durante algum tempo.

Quarrel assentiu com a cabeça. Sua expressão era enigmática. Disse: "Está bem, chefe," e foi-se pelo corredor.

Meia hora mais tarde, Bond desceu e tomou um táxi até King's House. Não assinou o livro de visitas do Governador no fresco vestíbulo de entrada. Deixaram-no numa antecâmara durante quinze minutos, o tempo suficiente para provar-lhe que ele carecia de importância. Um ajudante de ordens veio então buscá-lo e levou-o ao escritório do Governador, no primeiro andar.

Era uma sala ampla e fresca recendendo a fumaça de charuto. O governador em exercício, num terno creme de tussor, colarinho duro e laço borboleta totalmente inadequados, estava sentado a uma grande escrivaninha de mogno, na qual nada mais havia senão o "Daily Gleaner", o "Times Weekly" e um vaso de botões de hibisco. Suas mãos estavam pousadas à frente. Era um homem de seus sessenta anos, fisionomia vermelha, bastante petulante e viva, e olhos azuis penetrantes. Não sorriu nem se levantou. Disse apenas:

— Bom-dia, senhor... hum!... Bond. Queira sentar-se.

Bond sentou-se na cadeira em frente do Governador e respondeu:

— Bom-dia, Excelência, — e esperou. Um amigo dele, funcionário do Ministério das Colônias, tinha-o avisado de que a recepção seria glacial.

— Ele está quase em idade de se aposentar, — explicara-lhe o amigo. — É um cargo interino. Tínhamos que achar alguém que pudesse assumir as funções de Governador interino, dentro de um prazo muito curto, quando Sir Hugh Foot foi promovido. Foot era um tipo magnífico. Esse nem procura competir com ele. Sabe que tem o cargo por alguns meses, até acharmos quem substitua Foot. Foi preterido quando do preenchimento do cargo de governador-geral da Rodésia. A única coisa que ele quer agora é aposentar-se e arrumar algum cargo de diretor na City. O que ele menos deseja é que surja alguma encrenca em Jamaica. Obstina-se em querer dar por encerrado esse seu caso Strangways. Não vai gostar de ver você fuçando por lá.

O Governador pigarreou. Reconhecia que Bond não era nenhum tipo de homem servil.

— O senhor desejava ver-me?

— Apenas a fim de apresentar-me, Excelência — disse Bond calmamente. — Estou aqui para tratar do caso Strangways. Pensei que o senhor tivesse recebido uma comunicação do Secretário de Estado. — Isto era para lembrá-lo de que por trás de Bond havia gente poderosa. Bond não apreciava tentativas que visassem diminuir a ele ou ao seu Serviço.

— Lembro-me da comunicação. E que posso fazer pelo senhor? Para nós o caso está encerrado.

— De que maneira encerrado, sr. Governador? O Governador respondeu abruptamente:

— É evidente que Strangways fugiu com a moça. Era na maior parte do tempo um sujeito desequilibrado. Alguns de seus... hum!... colegas... não parecem ser capazes de deixar as mulheres em paz. — Era visível que o Governador incluía Bond entre esses. — Tive que pagar fiança pelo rapaz, diversas vezes, por outros escândalos, antes dessa ocasião. Isso não é nada bom para a fama da Colônia, sr. — hum!... Bond. Espero que seus chefes nos mandem gente melhor para preencher o cargo desse homem. Isto é — acrescentou ele secamente — se um funcionário de Controle Regional for realmente necessário. De minha parte, tenho toda a confiança em nossa polícia.

Bond sorriu com simpatia.

— Darei conhecimento do seu ponto de vista em meu relatório, sr. Governador. Penso que meu Chefe estará disposto a discuti-lo com o Ministro da Defesa e o Secretário de Estado. Naturalmente, se o senhor estiver disposto a assumir essas tarefas suplementares, isso representaria para o meu Serviço muita economia de pessoal. Tenho certeza de que a polícia jamaicana é extremamente eficaz.

O Governador olhou desconfiado para Bond. Talvez fosse melhor tratar esse sujeito com mais cuidado.

— Isso tudo não passa de uma troca de palavras sem caráter oficial, sr. Bond. Quando eu chegar a uma conclusão definitiva, comunicarei eu mesmo o meu ponto de vista ao Secretário de Estado. Entrementes, há alguém, dos meus subordinados, com quem o senhor desejaria avistar-se?

— Gostaria de falar com o Secretário para a Colônia, sr. Governador.

— Ah, deveras? E posso saber por quê?

— Tem havido complicações em Crab Key. Qualquer coisa a respeito de um santuário para aves. O caso foi passado ao meu Serviço pelo Ministério das Colônias. Meu Chefe pediu-me que fizesse uma investigação enquanto estiver por aqui.

O Governador demonstrou alívio.

— Pois não, pois não. Vou providenciar a fim de que o sr. Pleydell-Smith o atenda imediatamente. Então, o senhor pensa que nós podemos deixar que o caso Strangways se esclareça por si mesmo? Os responsáveis aparecerão dentro de menos tempo do que o senhor pensa, pode estar certo. I

Estendeu o braço e tocou a campainha. Um ajudante de ordens entrou.

— Este senhor deseja falar com o Secretário para a Colônia. Quer conduzi-lo, por favor? Vou telefonar ao sr. Pleydell-Smith e pedir-lhe que o atenda imediatamente.

Levantou-se e, adiantando-se até a frente da escrivaninha, estendeu a mão.

— Até a vista, então, sr. Bond. Folgo em ver que somos da mesma opinião. Crab Key, hein? Nunca estive lá, mas penso que uma visita deve valer a pena.

Bond apertou a mão estendida.

— É o que eu estava pensando. Até à vista, sr. Governador.

— Passe bem, passe bem.

O Governador olhou para as costas de Bond que transpunha a porta e voltou com ar satisfeito a sua escrivaninha. "Metido a sebo!" disse, para as quatro paredes. Sentou-se e disse umas poucas palavras ao Secretário para a Colônia, por telefone. Em seguida, apanhou o "Times Weekly" e passou a analisar as cotações do mercado de títulos.

O Secretário para a Colônia era um homem ainda jovem, com o cabelo em desalinho e olhos brilhantes de menino. Era desses fumantes de cachimbo nervosos, que vivem a apalpar os bolsos em busca de fósforos, sacodem a caixa para ver quantos há nela, ou batem o cachimbo para fazer cair os restos de tabaco. Depois de tê-lo visto executar essas manobras rotineiras por três ou quatro vezes no decorrer dos primeiros dez minutos de sua palestra, Bond perguntou a si mesmo se ele algum dia teria realmente aspirado fumaça de seu cachimbo.

Tendo dado ao braço de Bond sacudidelas suficientes para acionar uma bomba de poço, e tendo-lhe indicado uma cadeira com um gesto vago, Pleydell-Smith pôs-se a andar de um lado para outro, cocando a testa com o cano do cachimbo.

— Bond. Bond. Bond. Esse nome está a evocar qualquer coisa. Deixe-me ver. Já sei! O senhor é o sujeito que esteve metido naquela história de tesouro. Diabo, é isso mesmo! Há quatro ou cinco anos. Encontrei isso no arquivo por aí faz poucos dias. Magnífico! Que coisa estupenda! Ouça, gostaria que o senhor ateasse fogo a outra fogueira dessas. Para animar um pouco o ambiente. Atualmente, a única coisa em que pensam é na Federação e a sua danada importância autônoma. Autodeterminação, meu caro! Não são capazes nem sequer de administrar uma empresa de ônibus! E o preconceito de cor! Meu caro amigo, há muito maior número de problemas de cor entre os jamaicanos de cabelos lisos e os jamaicanos de carapinha, do que entre mim e minha cozinheira preta. Todavia — Pleydell-Smith parou perto da escrivaninha, sentou-se em frente de Bond, passou uma perna por cima do braço da poltrona, pegou num pote para fumo que trazia o brasão de King's College, em Cambridge, e pôs-se a encher o cachimbo, — o que quero dizer é que não desejo aborrecê-lo com esses pormenores. O senhor é que me deve aborrecer com suas perguntas. Qual é o seu problema? Terei prazer em ajudá-lo. Garanto que há-de ser mais interessante que esse ramerrão. — E apontou para a pilha de documentos que enchia a bandeja dos papéis a despachar.

Bond sorriu para ele. Era o que ele queria. Encontrara um aliado e, o que era mais, um aliado inteligente.

— Pois bem — disse ele, muito sério — estou aqui para investigar o caso Strangways. Mas, antes de mais nada, quero fazer-lhe uma pergunta que talvez lhe pareça estranha. Pode dizer-me exatamente como foi que o senhor veio a saber daquele outro caso em que estive metido? O senhor disse-me que encontrou a pasta "por aí". Como foi? Alguém tinha pedido para consultá-la? Não quero ser indiscreto. Portanto, não responda, se o senhor julga que não deve fazê-lo. Estou apenas sendo curioso.

Pleydell-Smith arqueou uma sobrancelha. — Suponho que isso faça parte do seu ofício. Refletiu olhando para cima.

— Bem, agora que o senhor me faz pensar nisso, lembro-me de que a vi na escrivaninha de minha secretária. É uma funcionária nova. Disse-me que estava querendo pôr-se a par dos arquivos. Note bem — o Secretário para a Colônia apressou-se em isentar a moça de qualquer suspeita, — havia muitas outras pastas em sua escrivaninha. Foi apenas esta que me chamou a atenção.

—Ah, compreendo! — disse Bond. — Então, foi assim.

Ele sorriu, desculpando-se:

— Sinto tê-lo importunado, mas é que diversas pessoas parecem estar bastante curiosas com a minha presença aqui. Mas o que eu desejava, realmente, era que o senhor me desse informações sobre Crab Key. Qualquer coisa que o senhor saiba sobre essa propriedade. E sobre aquele chinês, o Doutor No, que a comprou. E qualquer coisa ainda que me possa contar a respeito desse negócio de exploração de guano. Estou pedindo muito, bem o sei, mas qualquer fragmento de informação me ajudará.

Pleydell-Smith deu uma risadinha através do cano do cachimbo. Arrancou-o da boca e falou, enquanto calcava o fumo com a caixa de fósforos.

— Acontece que sei mais do que lhe possa interessar em matéria de guano. Poderia discursar durante horas sobre este assunto. Eu tinha entrado na carreira diplomática, antes de me transferir para o Ministério das Colônias. Meu primeiro posto de cônsul foi no Peru. Tive muitas relações com os que administram todo esse negócio — Companhia Administradora del Guano. Gente direita.

O cachimbo estava em funcionamento, agora, e Pleydell-Smith atirou a caixa de fósforos na mesa.

— Quanto ao resto, é só mandar vir a pasta com os papéis sobre o assunto.

Tocou a campainha e poucos instantes depois abriu-se a porta que ficava atrás de Bond.

— Senhorita Taro, a pasta sobre Crab Key, por favor. Aquela onde estão arquivados os documentos sobre a venda das terras, e também aquela relativa ao guarda que veio de lá, pouco antes do Natal. A senhorita Longfellow sabe onde estão.

— Sim, senhor — respondeu uma voz macia, e Bond ouviu fechar-se a porta.

— Agora, quanto ao guano... — Pleydell-Smith inclinou a cadeira para trás. Bond preparou-se para ouvir uma preleção maçante.

— Como o senhor sabe, são excrementos de aves. O guano é produzido por dois pássaros, o andorinhão e o guanai, conhecido também por corvo-marinho verde, que é a mesma ave que existe na, Inglaterra. No tocante a Crab Key, o que se encontra é o corvo-marinho. É uma verdadeira máquina para transformar peixe em guano. Essas aves comem principalmente anchovas. Para o senhor ter uma idéia de quantos peixes podem comer, saiba que já foram encontradas até setenta anchovas no estômago de uma ave! — Pleydell-Smith tirou o cachimbo da boca e apontou-o com autoridade para Bond. — A população inteira do Peru consome quatro mil toneladas de peixes por ano. As aves marinhas desse país comem quinhentas mil toneladas!

Bond assobiou para demonstrar o seu assombro.

— Deveras?

— Pois bem — prosseguiu o Secretário para a Colônia — todos os dias, cada um desses milhares de corvos-marinhos come mais ou menos meio-quilo de peixe e deposita umas trinta gramas de guano na guaneira, isto é na ilha de guano.

— Por que não fazem isso no mar? — interrompeu Bond.

— Não sei. — Pleydell-Smith como que agarrou a pergunta e a virou e revirou em sua mente. — Nunca me lembrei de investigar. O fato é que não o fazem. Fazem-no no solo, e assim tem sido desde o começo do mundo. Isso representa um despropósito de estéreo de aves — milhões de toneladas. Ora, alguém descobriu, por volta de 1850, que o guano era o melhor adubo natural do mundo — cheio de nitratos e fosfatos, e tudo mais quanto se queira. E os navios e os homens chegaram aos depósitos de guano e saquearam-nos, literalmente, durante vinte anos ou mais. É uma época chamada "Saturnalia" no Peru. Foi como o Klondyke para o ouro. Travaram-se combates sobre aqueles monturos, atacavam-se os navios dos concorrentes, atirava-se nos trabalhadores, venderam-se pretensos mapas de ilhas secretas de guano — fez-se de tudo. E muitos enriqueceram com esse material.

— Que lugar ocupava Crab Key nesse quadro? — Bond queria fatos concretos.

— Era o único depósito de guano comercialmente explorável em latitude tão setentrional. Também foi explorado, só Deus sabe por quem. Mas aí, o guano tinha baixo teor de nitratos. As águas, por aqui, não são tão ricas quanto nas proximidades da corrente de Humboldt. Por isso, os peixes são mais pobres em elementos químicos. Em conseqüência, o guano também é mais pobre. Crab Key foi explorado esporadicamente, quando os preços eram altos, mas toda a indústria foi à glória, juntamente com Crab Key e demais depósitos menos ricos, quando os alemães inventaram fertilizantes sintéticos. Foi então que o governo peruano compreendeu que tinha sido dilapidado capital fantástico, e começou a reorganizar os remanescentes daquela indústria e a proteger os depósitos. O Peru nacionalizou a extração do guano e protegeu as aves, e devagar, bem devagar, as reservas começaram a crescer novamente. Descobriu-se então que o produto sintético tinha seus inconvenientes, que empobrecia o solo, o que não acontece com o guano, e o preço do material pôs-se a subir gradativamente, e a indústria extrativa reergueu-se aos poucos. Agora, está florescente, mas o Peru guarda a maior parte do guano para a sua agricultura. E é nesse ponto que Crab Key entra outra vez em cena.

— Ah!

— Pois é, — disse Pleydell-Smith, apalpando os bolsos em busca de fósforos. No começo da guerra, esse chinês, que deve ser um diabo inteligente, achou que poderia obter bons resultados com o antigo depósito de Crab Key. O preço era de cerca de cinqüenta dólares por tonelada, deste lado do Atlântico, e ele nos comprou a ilha por mais ou menos dez mil libras esterlinas, se estou bem lembrado; trouxe operários e pôs-se a trabalhar. A exploração tem prosseguido desde aquela época. Ele deve ter feito fortuna. Embarca diretamente para a Europa, para Antuérpia. Mandam-lhe um cargueiro uma vez por mês. Ele instalou os mais modernos moinhos e separadores. Explora os seus operários, segundo dizem. Não pode fazer de outra forma, se quiser ter lucro satisfatório. Mormente agora. Ouvi dizer, no ano passado, que ele estava recebendo apenas de trinta e oito a quarenta dólares por tonelada. Só Deus sabe o quanto ele está pagando aos operários, para ter lucros com tão baixo preço. Nunca pude descobri-lo. Ele administra essa propriedade como se fosse uma praça de guerra — uma espécie de campo de trabalhos forçados. Ninguém sai de lá. Correram boatos estranhos, mas nunca vieram dar queixa. A ilha é dele, afinal, e ele pode fazer nela o que bem entender.

Bond começou a procurar pistas.

— Essa propriedade tem realmente muito valor? Quanto pensa o senhor que possa valer?

— O corvo-marinho — disse Pleydell-Smith, — é a ave mais valiosa do mundo. Cada casal produz cerca de dois dólares de guano por ano, sem despesa alguma para o proprietário. Cada fêmea põe em média três ovos e cria dois filhotes. Pode-se calcular em quinze dólares o valor de cada casal, e em cem mil o número das aves de Crab Key, o que é uma estimativa razoável, baseada em dados antigos. Seus pássaros representariam nessas condições um milhão e meio de dólares. É, portanto, uma propriedade bastante valiosa. Acrescentemos o valor das instalações, ou seja, digamos, mais um milhão de dólares, e o senhor terá uma boa fortunazinha nesse lugar horroroso. Isso me faz lembrar... — Pleydell-Smith tocou a campainha — que diabo foi feito daquelas pastas? O senhor encontrará nelas todas as informações necessárias.

Abriu-se a porta atrás de Bond.

Pleydell-Smith perguntou, irritado:

— Francamente, senhorita Taro! Que fim levaram as pastas?

— Sinto muito — respondeu a voz macia — mas não conseguimos encontrá-las em parte alguma.

— O que significa "não conseguimos encontrá-las"? Quem as teve em mãos por último?

— O comandante Strangways.

— Ora, mas eu me lembro muito bem quando ele as devolveu, nesta sala. Que aconteceu, desde então?

— Não saberia dizê-lo, sr. Secretário. — A voz não traía a menor emoção. — As capas estão no lugar, mas não há nada dentro.

Bond voltou-se para trás. Lançou um rápido olhar para a moça e tornou a acomodar-se na poltrona. Sorriu amargamente. Sabia onde tinham ido parar as pastas. Sabia também porque a velha pasta relativa à sua atuação passada tinha estado na escrivaninha da secretária de Pleydell-Smith. Compreendia como a significação verdadeira de "James Bond, Importador e Exportador" parecia ter transpirado de King's House, o único lugar onde era conhecida.

Assim como o Doutor No, assim como Annabel Chung, a secretariazinha de óculos de aro de chifre, de aparência séria e eficiente, era chinesa.


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