XVII - O PROLONGADO GRITO


Havia um homem no elevador, cujas portas estavam abertas, à espera. James Bond, com os braços ainda torcidos, junto aos flancos, foi impelido para dentro do elevador. Agora, a sala de jantar estava vazia. Quando voltariam os guardas para desembaraçar a mesa e então notar o desaparecimento dos objetos subtraídos? As portas fecharam-se e o cabineiro ficou diante dos botões, de modo que Bond não pôde ver qual deles teria sido apertado. Sabia apenas que estavam, subindo, e tentou fazer um cálculo da distância percorrida. O elevador parou, e Bond teve a impressão de que o tempo gasto naquele percurso fora menor do que quando descera juntamente com Honeychile. As portas abriram-se para um corredor sem tapete, com uma pintura cinzenta e rústica nas paredes de granito. Esse corredor ia numa linha reta até uma distância de vinte metros.

— Espere aí — disse o guarda de Bond para o cabineiro — voltarei logo.

Bond foi conduzido ao longo do corredor, passando diante de portas marcadas com letras do alfabeto. Ouvia-se um leve zunido de maquinaria no ar, e, por trás de uma porta, Bond teve a impressão de ouvir descargas estáticas de equipamento eletrônico. Aquilo parecia vir da sala de máquinas, no coração da montanha. Logo chegaram à porta da extremidade do corredor que estava marcada com um Q negro. Ela estava entreaberta, de modo que logo se escancarou quando Bond foi empurrado através dela. Por trás daquela porta estava uma cela pintada de cinzento, com cerca de quinze pés quadrados. Nela nada havia, a não ser uma cadeira de madeira, sobre a qual estavam, lavadas e cuidadosamente dobradas, as calças pretas de Bond e a sua camisa azul.

O guarda soltou os braços de Bond, que logo se voltou e olhou para o rosto amarelo, sob os cabelos ondeados. Havia um leve sinal de curiosidade e prazer nos olhos marrons e úmidos. O homem estava de pé, segurando a maçaneta da porta. — Bem, aqui estamos, rapaz. Você está no ponto de partida. Poderá ficar aí sentado, apodrecendo, ou procurar uma saída e iniciar a corrida. Felicidades para você.

Bond pensou que valeria a pena tentá-lo. Deu ainda uma olhadela para além do guarda, onde o cabineiro ainda se conservava ao lado de suas portas abertas, observando-os.

Então disse suavemente: — Você não gostaria de ganhar dez mil dólares, garantidos, e uma passagem para qualquer lugar do mundo que desejasse? — Dito isso, observou cuidadosamente as reações do homem. A boca se abriu numa ampla careta, mostrando dentes escurecidos, desigualmente gastos pelos anos de mascagem de cana-de-açúcar.

— Muito obrigado, senhor. Prefiro continuar vivendo. — O homem fez menção de fechar a porta e Bond ainda gritou ansiosamente: — Podemos sair juntos daqui.

Os grossos lábios fizeram uma careta de desprezo, e o homem apenas disse: “Vá em frente!” E logo a porta se fechou com um duro estalido.

Bond deu de ombros, mas logo passou a examinar a porta. Era feita de metal e não havia maçaneta do lado de dentro. Bond preferiu não experimentar o ombro de encontro àquela barreira. Aproximou-se da cadeira, sentou-se sobre a pilha de suas roupas limpas, e olhou à volta da cela. As paredes eram inteiramente nuas, com exceção de uma grade para ventilação, feita de arame grosso, num dos cantos, logo abaixo do teto. Aquela abertura era maior que os seus ombros. Era, evidentemente, a entrada para a pista dos obstáculos. A única abertura restante, naquele recinto, era uma espécie de vigia de espesso vidro, logo acima da porta, e que não seria maior do que a cabeça de Bond. A luz, vinda do corredor, atravessava aquela grade e penetrava na cela. Nada mais havia. Não seria inteligente perder tempo. Seriam dez e meia. Lá fora, em alguma parte da falda da montanha, a jovem já deveria estar deitada, estendida sobre o chão, à espera do matraquear das pinças no coral cinzento. Bond apertou os dentes ao pensamento daquele corpo frágil e indefeso sob as estrelas. Bruscamente, pôs-se de pé. Que diabo estava ele fazendo ali sentado? O que quer que existisse do outro lado da grade deveria ser imediatamente enfrentado.

Bond apanhou a faca e o isqueiro, e tirou o quimono. Em seguida vestiu as calças e a camisa, enfiando o isqueiro no bolso. Experimentou o corte da faca com o polegar, e verificou que a lamina era bastante afiada. Seria ainda melhor se pudesse fazer uma ponta naquela lâmina. Ajoelhou-se no chão e começou a esfregar a extremidade arredondada da faca na laje do pavimento. Depois de um precioso quarto de hora, deu-se por satisfeito. Não era um estilete, mas que tanto serviria para cortar como para espetar. Colocou-a então entre os dentes e arrastou a cadeira para baixo da abertura gradeada. A grade? Supondo que pudesse arrancá-la pela base, aquele arame bem poderia ser esticado, de modo a formar uma lança, facultando-lhe assim uma terceira arma. Bond esticou os braços, com os dedos encurvados.

A coisa imediata de que tomou consciência foi uma dor de queimadura ao longo do braço e o choque de sua cabeça, ao atingir o chão de pedra. Ficou durante algum tempo estendido no solo, apenas com a lembrança de uma faísca azulada e o estalido e o chiado seco de eletricidade.

Depois de algum tempo, Bond pôs-se de joelhos e assim ficou por um momento. Em seguida baixou a cabeça e sacudiu-a lentamente de um lado para outro, como um animal ferido. Sentiu um leve odor de carne queimada. Levantou a mão direita à altura dos olhos e viu a mancha vermelha de uma queimadura aberta ao longo da parte interna dos dedos. A visão daquele ferimento trouxe-lhe também a consciência da dor. Bond proferiu uma imprecação. Vagarosamente pôs-se de pé. Dessa vez, olhou de soslaio, cautelosamente, para a grade, como se ela fosse feri-lo novamente. Irritado, encostou a cadeira na parede, apanhou a faca e com ela cortou uma faixa do quimono, envolvendo-a firmemente nos dedos. Em seguida tornou a subir na cadeira e olhou para a grade. Esperava-se que ele a atravessasse, e aquele choque tinha sido calculado apenas para amolecê-lo: era uma amostra do que estaria por vir. Com certeza o curto-circuito causado por ele já tinha posto fora de combate aquela armadilha. Olhou para a grade apenas por um instante, e já os dedos de sua mão esquerda a atingiam e atravessavam. Do outro lado não havia nada. Seria mesmo só aquela grade? Puxou a armação e ela cedeu uma polegada. Fez novo esforço e a grade foi arrancada do lugar, ficando pendurada por dois fios de cobre que desapareciam no interior da parede. Bond soltou a grade das pontas daqueles fios e desceu da cadeira. Havia um ponto de junção no arame de ferro, naquela grade, e Bond pôs-se a retificá-la, usando a cadeira como martelo.

Depois de dez minutos tinha à sua disposição um chuço recurvado de cerca de um metro de comprimento. Uma des extremidades, que tinha sido originalmente cortada por alicates, apresentava-se lacerada. Não atravessaria as roupas de um homem, mas teria efeito devastador no pescoço ou no rosto. Lançando mão de toda sua força e servindo-se da fresta inferior da porta metálica, Bond conseguiu fazer ainda um gancho com a extremidade rombuda daquele arame de ferro. Em seguida mediu-o com a perna e achou que aquela nova arma era demasiado longa. Em conseqüência, dobrou-a em dois e enfiou-a numa das pernas da calça. Agora, o chuço ia de sua cintura, onde fora pendurado, até o joelho. Voltou então para a cadeira e tornou a subir até a boca do ventilador, agora desobstruída. Não experimentou mais choque. Ergueu o corpo e introduziu-o naquele tubo que tinha mais quatro polegadas que a largura de seus ombros. Durante algum tempo deixou-se ficar, de barriga para baixo, a olhar para o interior da abertura. O túnel era circular e de metal polido. Bond apanhou o isqueiro, abençoando a inspiração que o fizera roubá-lo, e acionou-o. Sim, aquilo era folha de zinco que parecia nova. O túnel continuava em linha reta, sem qualquer característica especial, a não ser as costuras de junção das várias seções tubulares. Bond tornou a meter o isqueiro no bolso e foi-se arrastando para a frente.

Aquele deslizamento não foi difícil, e até mesmo uma brisa fresca, proveniente do sistema de ventilação, afagava o rosto de Bond. O ar não trazia nenhum cheiro de mar, sendo o seu odor o mesmo que caracteriza o ar de uma instalação de condicionamento de temperatura. O Dr. No devia ter lançado mão de um dos tubos do sistema para as suas experiências. Mas que armadilhas teria introduzido naquele tubo, a fim de pôr à prova as suas vítimas? Deviam ser engenhosas e dolorosíssimas — imaginadas para reduzir a resistência de suas vítimas. No final dos obstáculos, com certeza, a vítima seria surpreendida com o golpe de misericórdia — se é que lograsse chegar ao fim. Com efeito, haveria ali algo que não admitisse escapatória, pois nessa corrida não haveria prêmios, mas apenas padecimentos. A não ser, naturalmente, que o Dr. No tivesse subestimado a vontade de sobrevivência de seu desafeto. Essa, pensou Bond, era a sua única esperança — tentar vencer todos os obstáculos que se lhe deparassem, rompendo pelo menos até a última estacada.

Havia uma pálida luminosidade à sua frente. Bond foi-se arrastando cautelosamente, com todos os seus sentidos atuando como antenas. Aquela luminosidade foi-se tornando mais clara. Era o reflexo da luz que incidia sobre um dos lados da extremidade do tubo. Continuou avançando até que sua cabeça tocou naquela extremidade. Aí, Bond se torceu sobre as costas e olhou para cima. Sobre sua cabeça estava uma chaminé de cerca de cinqüenta metros de altura, em cujo topo havia uma claridade estável. Era como se alguém olhasse através de um comprido cano de canhão. Bond enfiou a cabeça por aquela chaminé e pôs-se de pé. Então, esperava-se que ele galgasse aquele tubo liso, sem qualquer apoio para os pés! Seria possível? Bond expandiu os ombros. Sim, eles lhe proporcionariam uma boa adesão às paredes laterais. Seus pés também o ajudariam na empreitada, embora escorregassem terrivelmente, a não ser nas orlas em que se soldavam os tubos. Bond deu de ombros e tirou os sapatos. Não adiantava monologar. Teria apenas que tentar.

Seis polegadas de cada vez, e o corpo de Bond começou a deslizar pela chaminé acima. A operação consistia em expandir os ombros para se fixar à chaminé, depois levantar os pés, unir os joelhos fortemente, e forçar os pés para fora, em direções opostas, contra o metal, e rapidamente contrair e expandir os ombros novamente, ao mesmo tempo que os pés escorregavam para baixo, deixando, entretanto, como saldo uma pequena progressão de algumas polegadas. E continuar repetindo, repetindo e repetindo a operação, até que os seus olhos fossem banhados pela luz que vira no topo da chaminé. De quando em quando pararia na saliência da solda dos tubos, a fim de descansar um pouco, recuperar o fôlego e medir o próximo avanço. E não havia que olhar para cima; apenas concentrar-se nas polegadas de metal que deveriam ser vencidas, uma a uma. Nada de preocupações com a luminosidade que pareceria nunca aumentar ou se aproximar. Também não deveria preocupar-se com a possibilidade de afrouxar a pressão dos ombros contra as paredes metálicas, indo esmagar os tornozelos no fundo da chaminé. E nenhuma preocupação com cãibras, com o inchaço dos ombros ou com as esfoladuras dos pés. Apenas ataque às polegadas prateadas, conquistando-as uma a uma.

Mas logo os pés começaram a suar e escorregar de modo desesperador. Por duas vezes Bond perdeu um metro, em virtude do escorregamento de seus ombros, que ficaram terrivelmente escalavrados com o atrito, antes de poder conseguir a freagem. Em certa altura teve mesmo que se deter durante algum tempo para esperar que o suor secasse com a corrente de ar que descia pela chaminé. Essa pausa durou dez minutos, durante os quais ele se viu apagadamente refletido na superfície metálica, com o rosto dividido ao meio pela faca que segurava entre os dentes. Ainda assim recusou-se a olhar para cima, a fim de ver quantos metros teria que vencer. Aquela derradeira seção poderia ser muito longa. Cuidadosamente Bond esfregou cada pé num cano de calça e recomeçou a batalha.

Agora, parte de sua mente sonhava, enquanto a outra se empenhava na luta. Nem mesmo estava consciente de que a luminosidade se ia acentuando lentamente e que a brisa se tornava mais forte. Via-se apenas como uma lagarta ferida, arrastando-se por um cano de descarga em direção a um ralo de banheira. O que veria quando atravessasse o ralo? Uma jovem nua se enxugando? Um homem fazendo a barba? A luz do sol filtrando-se para dentro de um banheiro Vazio?

A cabeça de Bond bateu de encontro a alguma coisa. O ralo estava obstruindo o orifício! O choque do desapontamento fez que escorregasse uma polegada, antes que seus ombros pudessem retê-lo firmemente. Então compreendeu que tinha chegado ao topo da chaminé! Agora notava a luz forte e o vento impetuoso. Ansiosamente, ele se alçou novamente até que a cabeça tocou em algo. O vento soprava contra sua orelha esquerda. Cautelosamente, voltou a cabeça para essa direção. Era outro tubo lateral. Acima de sua cabeça a luz se escoava através de uma espessa vigia. Tudo o que tinha a fazer era contornar aquela derivação, agarrando-se à orla do novo tubo, e, de qualquer maneira, encontrar forças para se introduzir naquele túnel lateral. Então poderia descansar um pouco, deitado.

Com redobrada cautela, nascida do pânico de que algo agora podia acontecer, de que poderia cometer um erro e ser precipitado no fundo da chaminé, Bond empreendeu a manobra, com suas últimas reservas de forças, e introduzindo-se na nova caverna caiu estirado com o rosto para baixo.

Mais tarde — quanto tempo mais tarde? — os olhos de Bond se abriram e seu corpo estremeceu. O frio o tinha despertado da total inconsciência em que o seu corpo o teria lançado. Penosamente, virou-se de costas, com pés e ombros doendo terrivelmente, e procurou reunir todas as forças mentais e físicas. Não tinha a mínima idéia da hora ou do lugar em que estaria no interior da montanha. Levantou a cabeça e olhou para trás, em direção à vigia, sobre o tubo vertical, do qual escapara. A luz era amarelada e o vidro parecia muito grosso. Lembrou-se da vigia existente na sala Q. Aquela vigia era absolutamente inquebrável, e esta também o seria, pensou ele.

Subitamente, por trás daquele vidro, distinguiu movimento. Enquanto observava, um par de olhos se materializaram, por trás de lâmpadas elétricas. Aqueles olhos pararam e fitaram-no, com o farolete parecendo um nariz entre aqueles dois olhos. Fixaram-no negligentemente e depois desapareceram. Os lábios de Bond explodiram numa imprecação. Então o seu progresso estava sendo observado para ser levado ao conhecimento do Dr. No.

Bond disse em voz alta: “Para o diabo com todos eles!”,, e voltou-se colérico sobre o ventre. Levantou a cabeça e olhou para a frente. O túnel desaparecia na escuridão. Para a frente! Não adianta nada perder tempo aqui. Apanhou a faca, colocou-a entre os dentes e foi abrindo caminho.

Em breve já não havia mais nenhuma luminosidade. Bond detinha-se de quando em quando para acender o isqueiro mas nada encontrava a não ser trevas. O ar começou a se tornar mais cálido, dentro do túnel, e, depois de uns cinqüenta metros talvez, decididamente quente. Havia mesmo cheiro de calor no ar, de calor metálico. Bond começou a suar.. Dentro de alguns minutos seu corpo estava completamente encharcado e ele tinha que parar para limpar os olhos. Deu uma volta à direita, no tubo, e, na nova seção, sentiu o metal bastante quente contra a sua pele. O cheiro de calor metálico era agora bem acentuado. Assim que enfiou a cabeça no novo túnel, tirou o isqueiro do bolso, acendeu-o e rapidamente recuou. Amargamente, considerou a nova dificuldade, medindo-a e amaldiçoando-a. A chama de seu isqueiro tinha iluminado uma seção de tubos de zinco descolorido. A nova dificuldade seria o calor!

Bond resmungou alto. Como a sua carne já esfolada poderia resistir àquilo? Como poderia proteger a pele contra o metal? Mas não havia solução satisfatória. Ou voltaria, ou continuaria ali parado ou, afinal, avançaria. Não havia outra decisão a tomar. Aliás, Bond começava a encontrar algum consolo em suas reflexões. Com efeito, não seria o calor que haveria de matá-lo, mas alguma mutilação. O metal aquecido não seria o seu campo de sacrifício — apenas mais uma prova para medir-lhe a resistência.

Bond pensou na jovem e no que ela estaria sofrendo. Oh, sim, para a frente com aquilo. Agora, vejamos...

Bond apanhou a faca e cortou toda a parte da frente da camisa, fazendo com ela várias faixas. A única esperança estaria em dar alguma proteção às partes de seu corpo que mais sofreriam a ação do calor, isto é, os pés e as mãos. Seus joelhos e cotovelos teriam de resistir apenas com a proteção normal da fina camada de roupa. E, assim, dispôs-se à luta, amaldiçoando-a.

Agora estava pronto. Um, dois, três...

Bond dobrou o ângulo do túnel e lançou-se contra o foco de calor.

Mantenha a barriga nua distante do chão! Contraia os ombros! Mãos, joelhos, pés; mãos. joelhos, pés. Mais depressa! Mais depressa! Sempre mais depressa, de modo que cada toque contra o chão seja rapidamente seguido por outro.

Os joelhos é que mais estavam sofrendo, agüentando a maior parte do peso do corpo. Agora, as mãos envoltas em panos estavam começando a chamuscar. Acendeu-se uma fagulha, e logo outra, e em seguida surgiram chamas, quando as fagulhas começaram a se deslocar. A fumaça que saía daquele envoltório de pano de suas mãos fazia que os seus olhos ardessem penosamente. Por Deus, ele não agüentaria mais! Não havia mais ar. Seus pulmões estavam a ponto de estourar. Agora as suas duas mãos estavam lançando fagulhas para os lados. O tecido devia estar quase acabado; então a carne começaria a queimar. Bond deu um guinada e seu ombro ferido tocou no metal. Um grito de dor ecoou no túnel, logo seguido de outros gritos proferidos regularmente, quando suas mãos, pés ou joelhos tocavam no metal escaldante. Agora ele estava liquidado. Era o fim. Mais alguns segundos e iria cair de borco, morrendo literalmente queimado. Não! Devia opor um supremo esforço de reação, ainda que aos berros, até que toda a carne tivesse sido queimada até os ossos. A pele dos joelhos já devia ter sido completamente destruída. Mais um pouco e as palmas de suas mãos estariam tocando no metal. Apenas o suor que corria de seus braços poderia manter úmido o pano de suas mãos. Grite, grite, grite! Isto aliviará a dor.” Isto dirá que você está vivo. Continue! Continue! Não pode durar muito mais. Não é aqui que você deverá morrer. Não fraqueje! Você não pode!

A mão direita de Bond tocou em alguma coisa que cedeu. Logo sentiu uma corrente de ar frio. A outra mão bateu então em sua cabeça. Ouviu-se um débil ruído. Bond sentiu a orla inferior de um anteparo de amianto, articulado na parte superior do tubo, e que agora se arrastava em suas costas. Tinha vencido aquela prova. Ouviu o barulho daquele anteparo fechando-se novamente, depois de ter dado passagem a todo o seu corpo. Suas mãos estavam agora encostadas numa sólida parede. Com os dedos, apalpou à direita e à esquerda. Era um desvio em ângulo reto. Seu corpo seguiu cegamente volta do desvio e o ar frio parecia penetrar em seus pulmões como lâminas de aço geladas. Prudentemente, encostou os dedos no metal. Estava frio! Com um gemido Bond caiu sobre o rosto e ficou quieto.

Algum tempo depois, a dor tornou a reavivá-lo. Bond voltou-se dolentemente, de costas. Vagamente notou uma vigia de vidro acima de sua cabeça, e vagamente percebeu aquele mesmo par de olhos a fitá-lo. Depois, deixou novamente que as ondas de trevas o submergissem.

Aos poucos, na escuridão, as bolhas feitas em toda a pele e os pés e ombros queimados começaram a endurecer. O suor tinha-se secado no corpo e nos farrapos da roupa, enquanto o ar penetrara nos pulmões superaquecidos, começando o seu insidioso trabalho. Mas o coração continuava batendo, forte e regularmente, por dentro da torturada carcaça, e os poderes mágicos do oxigênio levaram nova vida para dentro das artérias e veias, recarregando os nervos.

Depois de um tempo que lhe pareceu infinito, Bond despertou. Estremeceu, e, ao encontrarem-se os seus olhos com o outro par que o espreitava, por trás do vidro, a dor se apoderou dele e sacudiu-o como se fosse um rato. Esperou que aquela descarga de dor o matasse. Tentou novamente, e novamente, até que conseguiu aquilatar toda a força do adversário. Em seguida, para esconder-se da testemunha, voltou-se sobre o estômago e resistiu a toda a dor que vinha de dentro de si próprio. Continuou em expectativa, explorando o corpo para verificar-lhe as reações, pondo à prova a força de decisão que ainda tivesse restado nas baterias. Quanto mais poderia ainda agüentar? Os lábios de Bond desprenderam-se dos dentes e ele rosnou na escuridão. Era um som animal. Tinha chegado ao fim de suas reações humanas à dor e à adversidade. O Dr. No o tinha encurralado. Mas ainda restavam reservas de desespero animal e, num animal forte, essas reservas são consideráveis.

Lentamente, em verdadeira agonia, Bond deslizou mais alguns metros para fora do campo visual daqueles olhos e procurou o seu isqueiro, acendendo-o. À sua frente via apenas uma lua cheia negra, a boca circular que o levaria ao estômago da morte. Bond guardou o isqueiro, respirou profundamente e pôs-se sobre os joelhos e mãos. A dor não foi maior, apenas diferente. Lentamente, com movimentos duramente articulados, avançou.

O tecido de algodão de seus joelhos e de seus cotovelos tinha sido completamente queimado. Entorpecidamente, seu cérebro foi registrando a umidade à medida que suas bolhas se abriam contra o metal frio. Enquanto se movia, ia simultaneamente flexionando os dedos e os pés, sentindo-lhes a dor. Lentamente foi sabendo o que poderia fazer, o que doeria menos. Esta dor é suportável, refletiu ele consigo mesmo. Se eu tivesse sofrido um desastre de avião, eles diagnosticariam apenas contusões e queimaduras superficiais. Teria alta do hospital dentro de alguns dias. Não há nada de sério comigo. Sou um sobrevivente de desastre. Dói, mas não é nada. Pense nos pedaços de carnes dos outros passageiros. Dê-se por feliz. Tire isso de sua cabeça. Mas, por trás de todas essa reflexões, estava o pensamento de que, em verdade, ele ainda não experimentara o desastre, — que ainda estava a caminho dele, com sua resistência e sua capacidade muito reduzidas. Quando chegaria ele? Que caráter teria? E quanto mais ainda seria ele amolecido antes de chegar à arena do sacrifício?

à frente, na escuridão, aqueles pequeninos pontos vermelhos bem poderiam ser uma alucinação, manchas rubras diante de seus olhos, causadas pela exaustão. Bond parou e apertou os olhos. Balançou a cabeça. Não, aqueles pontinhos vermelhos ainda estavam lá. Vagarosamente, arrastou-se para mais perto deles. Agora não havia dúvida de que eles se estavam movendo. Bond deteve-se novamente. Alem das batidas de seu coração, ouvia uma espécie de murmúrio suave e delicado. Aqueles pontinhos do tamanho de uma cabeça de alfinete tinham aumentado. Agora haveria vinte ou trinta, deslocando-se para a frente e para trás, alguns rapidamente, outros mais vagarosamente, em todo o círculo negro que o esperava à frente. Susteve o fôlego, assim que conseguiu acender o isqueiro. Os pontinhos vermelhos tinham desaparecido. Substituindo-os, ele viu a um metro de distância, à sua frente, uma tela muito fina, quase da finura de musselina, bloqueando o túnel.

Bond continuou deslocando-se por centímetros, para diante, com o isqueiro aceso à frente. Aquilo era uma espécie de gaiola, com pequeninos animais no seu interior. Podia ouvir aqueles diminutos seres fugindo à luz. A um pé apenas da tela apagou a luz e esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Enquanto esperava, escutando, pôde ouvir novamente os pequeninos animais aproximarem-se dele, e, gradualmente, aquela floresta de pequeninos pontinhos vermelhos começou a se juntar, fitando-o através da tela.

Que seria aquilo? Bond ouviu seu coração bater com força. Serpentes? Escorpiões? Centopéias?

Cuidadosamente, foi aproximando os olhos daquela floresta de pontos luminosos. Aproximou o isqueiro bem junto da tela e acendeu-o bruscamente. Pôde apreender, num relance, a visão de pequeninas patas que atravessavam a tela e de dezenas de pés cabeludos e de ventres igualmente cabeludos com a forma de sacos, tendo em determinado ponto grandes cabeças de insetos que pareciam cobertas de olhos. Os animais fugiam em precipitada corrida, abandonando a tela da frente para irem refugiar-se na extremidade oposta da gaiola, formando uma só massa cinza-marrom.

Bond olhou através da tela, movendo o isqueiro para a frente e para trás. Depois apagou-o para economizar gasolina, e deixou que a respiração saísse por entre os dentes, num tranqüilo suspiro.

Eram aranhas, gigantescas tarântulas, de três ou quatro polegadas de comprimento. Haveria umas vinte delas dentro daquela gaiola. E, de qualquer maneira, ele teria que passar por perto delas.

Bond ficou parado, descansando e pensando, enquanto os olhos vermelhos se iam reunindo outra vez diante de seu rosto.

Qual seria o grau de letalidade daqueles animais? Quanto das lendas em torno delas seria mito? Certamente que podiam matar animais, mas em que medida seriam mortais para o homem aquelas gigantescas aranhas? Bond deu de ombros. Lembrou-se da centopéia. O toque das tarântulas seria muito mais suave. Seriam como o toque das patas de ursinhos de brinquedo contra a pele humana — até que mordessem e esvaziassem os seus folículos venenosos no organismo da pessoa.

Mas, ainda aqui, seria esta a arena do sacrifício derradeira, montada pelo Dr. No? Uma mordida ou duas, talvez, para mandar uma pessoa para um delírio de dor. O horror de ter que atravessar a tela no escuro — o Dr. No não teria pensado no isqueiro de Bond — varando aquela floresta de olhos, esmagando alguns corpos moles mas sentindo as picadas de outros. E depois mais picadas das que tivessem ficado presas à roupa. Em seguida, a lenta agonia do veneno. Este deveria ter sido o caminho percorrido pela imaginação do Dr. No — para que a vítima prosseguisse aos gritos pelo seu caminho. Para quê? Para a barreira final?

Mas Bond tinha o isqueiro, a faca e o chuço de arame. Tudo o que iria precisar era nervos e uma precisão infinita.

Delicadamente abriu a tampa do isqueiro e, com o polegar e indicador, fez sair o pavio uma polegada. Acendeu-o, e quando as aranhas recuaram, furou a tela com a faca. Fez um buraco na armadura e cortou para os lados. Depois, apanhou a aba da tela, que assim se desprendera, e arrancou-a da armadura. A tarefa não foi difícil, pois a aba fendeu-se numa só peça, com um tecido de algodão. Tornou a colocar a faca entre os dentes e atravessou a abertura. As aranhas recuaram diante da chama e amontoaram-se umas sobre as outras. Bond retirou o chuço de arame de dentro das calças e bateu com o arame dobrado sobre aqueles corpos moles. Bateu e tornou a bater ferozmente, reduzindo os aracnídeos a uma pasta informe. Quando algumas das aranhas tentaram escapar em sua direção, ele acenou-lhes com a chama e esmagou as fugitivas, uma a uma. Agora, as aranhas vivas estavam atacando as mortas, e tudo quanto Bond tinha a fazer era terminar o massacre.

Lentamente todos aqueles movimentos convulsivos foram declinando até cessarem completamente. Estariam todas mortas? Estariam algumas simulando morte? A chama do isqueiro estava começando a morrer. Teria que enfrentar o risco. Avançou mais um pouco e atirou aquela massa escura e pegajosa para um lado. Depois tirou a faca de entre os dentes e abriu a segunda cortina, puxando a aba cortada para cima da pasta feita com os corpos das tarântulas. A chama bruxuleou e tornou-se apenas um revérbero vermelho. Bond reuniu suas forças, atirou o corpo sobre a massa encoberta e atravessou a segunda tela.

Não sabia se teria posto os joelhos e cotovelos sobre limalhas metálicas ou sobre as aranhas. Tudo o que sabia é que tinha atravessado aquela barreira. Arrastou-se ainda por alguns metros para a frente, no interior do túnel, e depois parou para descansar e reunir coragem.

Sobre a sua cabeça veio uma pálida luz. Bond torceu-se para um lado, ficando de costas, para ver o que já esperava. Os olhos amarelos e amendoados fixavam-no com profundo interesse. Lentamente, por trás do farolete, a cabeça moveu-se de um lado para outro. As pálpebras caíram numa piedade fingida. Um punho cerrado, com o polegar apontando para baixo, à guisa de despedida e aniquilamento, interpôs-se entre o farolete e o vidro. Em seguida foi retirado e a luz apagou-se. Bond voltou o rosto para baixo e descansou a testa no chão metálico e frio. Aquele gesto dizia-lhe que ele estava chegando ao obstáculo final, que os seus algozes tinham dado por encerradas as observações até virem recolher os seus restos. Bond sentiu ainda que naquele rosto não houvera um único indício de louvor pelo fato de ter logrado sobreviver até aquela etapa. Aqueles chineses negros odiavam-no. Apenas queriam que ele morresse, e tão miseravelmente quanto possível.

Os dentes de Bond bateram suavemente. Ele pensara na jovem e este pensamento dera-lhe forças. Ainda não estava morto. Que diabo! Ele não iria morrer! Não enquanto o coração não lhe fosse arrancado do corpo.

Bond retesou os músculos. Era tempo de continuar, a investida. Com redobrado cuidado, recolocou as armas em seus lugares, e penosamente recomeçou a avançar pela escuridão.

O túnel começava a inclinar-se ligeiramente para baixo, o que tornava a progressão mais fácil. Logo a inclinação tornou-se tão acentuada que Bond podia deslocar-se apenas em virtude de seu peso. Era uma bênção não ter que fazer aquele esforço derradeiro com os músculos. Vislumbrou um clarão acinzentado à sua frente, pouco mais que uma redução das trevas completas, mas aquilo prenunciava uma mudança, pois a qualidade do ar parecia diferente. Havia nele um odor novo. O que seria? O mar?

Súbito, Bond compreendeu que estava escorregando para baixo, ao longo do túnel. Expandiu os ombros e abriu os pés, procurando impedir a queda. Aquele esforço causou-lhe terríveis dores e o efeito foi mínimo. Agora o túnel começava a alargar-se e ele já não poderia mais diminuir o impulso da queda! Seu deslizamento tornava-se mais e mais acelerado. Agora via uma curva à frente — e era uma curva dirigida para baixo.

O corpo de Bond logo chegou. àquela curva e contornou-a. Deus do céu, ele estava mergulhando de cabeça para baixo! Desesperadamente, abriu os braços e pernas. O metal esfolou sua pele. Agora tinha perdido completamente o controle da situação e estava mergulhando para baixo, sempre pára baixo, no interior de um cano de canhão. Muito abaixo havia um circulo de luz cinzenta. Seria o ar livre? O mar? A luz subia vertiginosamente para ele! Lutou para recuperar o fôlego. Continue vivo, idiota! Continue vivo!

Primeiro a cabeça, e logo depois o corpo de Bond precipitaram-se pelo espaço, vencendo aceleradamente a distância de mais de cem pés que o separava da superfície do mar.


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