XX
O bar do acampamento animava-se com uns ruidosos clientes alemães que bebiam cerveja Klinskoe por entre animadas canções bávaras, mas o barulho dos foliões sempre era melhor do que o frio seco que se começava a sentir na praia. Os dois amigos recolheram, por isso, ao interior aquecido do bar e encomendaram um shashlyk para entreter o estômago; quando a espetada de carneiro chegou, acompanharam-na com pão de centeio e um frutado tinto georgiano de uva akbasheni.
"Achas então que foram os interesses do petróleo que provocaram a morte dos teus amigos cientistas", observou Tomás, reiniciando a conversa no ponto onde a tinham suspendido.
"Acho, não", corrigiu o amigo. "Sei."
"Como podes ter a certeza?"
165
"Não te esqueças, Casanova, de que conheço o mundo do petróleo como a palma das minhas mãos." Exibiu as mãos, como se ali estivesse a prova do que acabara de dizer. "As pessoas podem ter o aspecto mais civilizado do mundo, e no caso do petróleo há muitas que nem sequer têm esse aspecto, mas quando se trata de defender interesses desta envergadura, meu caro, não há ar civilizado que resista.
Tudo se torna primitivo, violento, básico. A preservação deste tipo de poder envolve os instintos mais primários e as acções mais brutais que se possa imaginar."
"Mas tens algumas provas de que os teus amigos tenham sido assassinados por interesses ligados ao petróleo?"
"Tenho as provas que me chegam."
"E quais são elas?"
"Olha, para começar, o que se passou comigo. Por um feliz acaso, na altura em que mataram o Howard e o Blanco eu estava no estrangeiro."
"Viena, não é?"
Filipe fez uma expressão interrogativa.
"Como sabes isso?"
"Ora, fiz o trabalho de casa."
"Pois, estava em Viena. Acontece que, nesse mesmo dia, a minha casa foi assaltada por desconhecidos. O que é estranho é que não levaram nada, o que indicia que não encontraram o que tinham ido lá buscar. Isto é, eu."
"Pode ser coincidência."
"Seria, se o mesmo não tivesse sucedido com o James. A casa dele em Oxford foi assaltada ao mesmo tempo que a minha, no mesmo dia em que o Howard e o Blanco foram assassinados. Felizmente o James tinha ido à Escócia ver uns materiais e também não se encontrava em casa. Ou seja, de uma só vez dois elementos do grupo foram mortos e as casas dos outros dois, que por acaso se tinham ausentado sem aviso, foram assaltadas. Tudo no mesmo dia."
"Vocês disseram isso à polícia?"
"O quê? Que assaltaram as nossas casas?"
"Sim. Isso e a coincidência de os assaltos terem ocorrido no mesmo dia da morte dos outros elementos do grupo."
"Casanova, a polícia não nos safava do que nos esperava. Tu pensas que a PSP ou a Scotland Yard ou a Interpol são algum empecilho para quem dispõe dos vastos recursos propiciados pelos lucros do negócio do petróleo?"
"Mas então qual é a alternativa?"
"Desaparecer do mapa."
166
Tomás ficou de olhos cravados no seu interlocutor.
"Que foi o que vocês fizeram", observou, entendendo enfim o problema.
"Mas nada disso prova que tenha sido o pessoal do petróleo a matar os teus amigos."
"Então quem foi?"
"Não sei. Se calhar foram os tipos do petróleo, não digo que não. Mas não tens provas."
"Os bilhetinhos são uma prova."
"Quais bilhetinhos?"
"Não foste tu que disseste que foram encontrados ao lado dos corpos do Howard e do Blanco uns bilhetinhos com um triplo seis?"
"Sim. Isso é prova de quê?"
"Isso é prova de que os assassínios se deviam às actividades do nosso grupo."
"Porque dizes isso?"
Filipe bateu com o dedo nas têmporas.
"O Casanova, pensa um pouco. O nosso grupo chamava-se «Os quatro cavaleiros do Apocalipse». Os bilhetinhos mostravam o triplo seis. Não consegues ver a relação entre as duas coisas?"
Tomás assentiu.
"O Apocalipse de João", observou.
"Nem mais", confirmou o amigo. "São duas referências simbólicas extraídas do último texto da Bíblia. Ao deixarem esses bilhetes ao lado das vítimas, os assassinos estavam implicitamente a relacionar as mortes do Howard e do Blanco com as actividades do grupo, tornando claro que se encontravam a par de tudo."
"Tens razão", reconheceu Tomás, balouçando afirmativamente a cabeça.
"Isso faz sentido."
"E essa relação é reforçada pelo verdadeiro sentido do triplo seis."
"Agora é que já não entendo. O que queres dizer com isso?"
"Ouve, Casanova. Tu, que és um perito em línguas antigas, diz-me: o que é o triplo seis?"
"É o número da Besta."
"Isso é o sentido simbólico, tal como vem mencionado no Apocalipse. Mas o que eu quero saber é outra coisa. Se pegarmos nesse número e o decifrarmos, o que dá o triplo seis?"
167
"Usando a guematria, o seis-seis-seis transpõe-se para Neron Kaisar, ou o césar Nero."
"E quem era Nero?"
Tomás ficou atrapalhado com a pergunta, tão óbvia lhe parecia a resposta.
"Bem, era o imperador de Roma que perseguiu os cristãos."
"Sim, mas qual o acontecimento que o celebrizou, a ele e à sua lira?"
"O incêndio de Roma?"
Filipe bateu com a palma da mão na mesa.
"Isso", exclamou. "O que significa que Nero é fogo." Soergueu a sobrancelha.
"E a quem é que Séneca comparou Nero?"
"Ao Sol?"
"Uh-uh", confirmou Filipe. "Séneca comparou Nero ao Sol quando escreveu:
«O próprio Sol é Nero e toda Roma.»"
"Eu conheço esse poema."
"Deixa agora ver se chegas ao jackpot: que astro tem um nome que, transposto em números pela guematria, apresenta um triplo seis como valor?"
"Teitan", rendeu-se Tomás.
"Certo, outra vez!" Apontou na direcção do clarão do crepúsculo, cujos derradeiros raios se extinguiam para lá da janela do bar. "Teitan, ou Titã. Um dos nomes do Sol."
"Mas o que significa isso?"
"Não é óbvio?", perguntou Filipe. "Nero é fogo e Nero é o Sol. O que geram o fogo e o Sol?"
"Calor?"
"Então foi essa a mensagem que os assassinos deixaram quando largaram esses bilhetes ao lado das vítimas. O triplo seis é uma mensagem que os criminosos conceberam para associar os homicídios ao grupo dos quatro cavaleiros do Apocalipse e para associar os homicídios ao trabalho do grupo: o combate ao aquecimento do planeta. Como é que se faz esse combate? Criando as condições para acabar com os combustíveis fósseis. E isso põe em causa que indústria?"
"A indústria do petróleo."
"Nem mais." Pegou no copo e observou o vinho a balouçar no interior. "A indústria do apocalipse." Mordeu o lábio. "Foi por isso que, quando tomámos conhecimento dos assassinatos e dos assaltos às nossas casas, e quando soubemos que o triplo seis foi deixado ao lado dos corpos dos nossos amigos, eu e o James 168
percebemos instantaneamente o que se passava e que só tínhamos uma coisa a fazer." Engoliu de uma vez um trago de tinto, como se quisesse que o álcool apagasse o instante em que haviam tomado a decisão. "Desaparecer da face da Terra."
Tomás ficou um longo momento calado, quase perplexo, imerso nos seus pensamentos, avaliando o que lhe fora dito e considerando explicações alternativas.
"Eu percebo tudo isso", observou, ao fim de alguns segundos. "Mas será que esses tipos chegavam ao ponto de... de matar só para parar uma pesquisa científica?
Isso não faz muito sentido..."
Filipe suspirou.
"Pelo contrário, faz todo o sentido."
"Mas como?"
"Ouve, Casanova. Já te disse que conheço a indústria do petróleo como ninguém e, por isso, acredita no que te digo: os interesses para manter o mundo dependente dos combustíveis fósseis são vastos e poderosos. Quase todos os agentes da economia mundial desejam a manutenção do status quo e consideram que qualquer mudança fundamental põe em causa os seus interesses. O que é verdade."
"Isso é muito vago."
"Não é, não. Tudo isto tem nomes e rostos."
"Então diz lá quem."
"Olha, vamos começar pelos países em desenvolvimento em África, na Ásia e na América Latina. Todas as suas opções de crescimento económico passam, como já te disse, pelo aumento do consumo de energia o mais barata possível, energia essa que tende a ser muito poluente e é produzida pelos componentes que mais aquecem a atmosfera. Estes países encaram as políticas de redução da emissão de dióxido de carbono como um ataque directo ao seu esforço para escapar da pobreza. E como eles dependem de energia barata, que é a mais poluente, para alcançarem o crescimento económico,
é evidente que se tornaram opositores naturais aos esforços para pôr termo à dependência mundial em relação aos combustíveis fósseis."
"Ah, sim", exclamou Tomás, recordando-se do que o amigo lhe contara meia hora antes na praia. "Foi por isso que Quioto falhou, não foi?"
"Essa foi uma das razões, sim", assentiu Filipe. "Mas o segundo grupo de suspeitos também teve muito a ver com esse falhanço."
"Quem?"
"Os produtores de combustíveis fósseis."
169
"As petrolíferas?"
"Sim, mas não só. Os países da OPEP e a indústria do carvão formam com a indústria petrolífera um implacável triângulo de resistência à mudança. A cabeça deste grupo estão as seis principais petrolíferas do globo: a Aramco saudita, a companhia iraniana do petróleo, a PEMEX mexicana, a PdVSA venezuelana e os dois gigantes ocidentais, ExxonMobil e Shell. Qualquer sugestão de que os combustíveis fósseis nos estão a conduzir à catástrofe constitui uma ameaça real ao negócio deste grupo. Consequentemente, os seus membros reagem de modo implacável a essa ameaça, utilizando gigantescos recursos financeiros, políticos e diplomáticos para silenciar tais sugestões."
Tomás arrancou um pedaço de carne da espetada, colocou-o sobre o pão e trincou.
"O que fizeram eles em concreto?", perguntou, enquanto mastigava.
"Muita coisa, mas sobretudo pressão sobre o terceiro grande travão à mudança, os Estados Unidos. A economia americana é o maior consumidor mundial de energia e qualquer tentativa para enfrentar os combustíveis fósseis é encarada como uma ameaça à estabilidade do país. Os legisladores e presidentes americanos têm, ao longo do tempo, adoptado políticas que defendem o status quo energético e as indústrias de combustíveis fósseis."
"Mas uma alteração do modelo energético é assim tão ameaçadora para a economia americana?"
Filipe esboçou uma careta hesitante.
"Se calhar não."
"Então qual é o problema?"
"Queres mesmo saber?"
"Claro."
"O problema são as eleições."
Tomás parou momentaneamente de mastigar.
"As eleições?"
"A indústria petrolífera contribui com centenas de milhões de dólares para as campanhas eleitorais dos candidatos ao Congresso ou à Casa Branca. E por isso que, sempre que se levantam questões ambientais, os governantes americanos defendem a indústria dos combustíveis fósseis. Não estão a fazer mais do que retribuir o favor das contribuições para as suas campanhas."
"Mas isso é mesmo assim?"
"É pior do que isso. Uma das maneiras de enfrentar o problema do aquecimento do planeta é taxar o consumo de energia. Se a gasolina for mais cara, o 170
consumidor queima menos."
"É lógico."
"Pois a coisa chegou ao ponto de o código fiscal americano subsidiar a indústria dos combustíveis fósseis." Fez uma pausa e repetiu a palavra-chave. "Eles subsidiam essa indústria. Como se o petróleo precisasse de subsídios."
"Não pode ser!"
"Não só pode ser, como é. Toda a indústria americana paga uma média de dezoito por cento de impostos. Sabes quanto paga a indústria petrolífera? Onze por cento. Isso representa para ela uma poupança de milhares de milhões de dólares por ano."
"Isso é incrível."
"Outra das formas de enfrentar o aquecimento do planeta é exigir que os fabricantes de automóveis inventem tecnologia que consuma combustível de um modo mais eficiente. Por exemplo, em vez de gastar dez litros aos cem, gastar cinco litros. Isso significaria cortar para metade a emissão de carbono para a atmosfera.
Sabes por que razão essa exigência não existe nos Estados Unidos?"
"Não."
"Porque os fabricantes de automóveis, que gastam centenas de milhões de dólares em contribuições eleitorais, se opuseram, receando que tal exigência beneficiasse os construtores europeus e japoneses, cujos carros são muito mais eficientes no consumo de combustível."
Tomás abanou a cabeça.
"Não dá para acreditar."
"Pois olha, não é mais do que o resultado da forma como o sistema está montado na América. As petrolíferas e a indústria automóvel pagam as campanhas eleitorais, os políticos devolvem o favor quando são eleitos. É assim que a coisa funciona. Se o mundo caminhar para o precipício por causa de tudo isso, azar."
"Portanto, e se bem entendo, o que estás a dizer é que todo o planeta se encontra refém do sistema eleitoral americano."
"No fundo, é isso", assentiu Filipe. "As políticas energéticas da administração Bush, por exemplo, mais não foram do que a defesa dos interesses da indústria petrolífera. Aliás, a família Bush vem do negócio do petróleo e foi a indústria do petróleo que contribuiu com a mais importante fatia dos seus fundos eleitorais.
Nessas condições, estávamos à espera de quê? Que ele tomasse medidas contra os interesses fundamentais da indústria que o alimentava, só para defender o planeta?"
"Mas o que fez ele concretamente?"
171
O amigo riu-se.
"O que a administração Bush fez para proteger a indústria do petróleo vai para além do imaginável. Olha, para começar, adulteração de documentos."
"Como?"
"Os tipos falsificaram relatórios com o único objectivo de salvaguardarem o negócio das indústrias fósseis.
"Como podes afirmar isso?"
"É verdade. Olha, no Verão de 2003, precisamente na mesma altura em que a Europa fervia sob uma vaga de calor nunca vista, que desencadeou incêndios inauditos por toda a parte, a principal agência ambiental americana, a Environmental Protection Agency, recebeu ordens da Casa Branca para apagar uma série de referências que constavam de um relatório sobre o ambiente no planeta." Adoptou um semblante irónico. "Sabes quais foram as partes cortadas?"
"Diz lá."
"Foram as referências a um estudo que mostrava como as temperaturas do planeta subiram mais entre 1990 e 2000 do que em qualquer outro período nos últimos mil anos. Mas a Casa Branca quis sobretudo que fosse eliminada a conclusão de que o aquecimento se deve à acção humana. Isto é, aos combustíveis fósseis: petróleo, carvão, gás."
"A sério?"
"Eles tiveram de eliminar isso, vê lá tu. E a Casa Branca mandou a agência acrescentar uma referência a um novo estudo que questionava a ligação entre os combustíveis fósseis e o aquecimento do planeta. E sabes quem financiou parcialmente esse novo estudo? O American Petroleum Institute."
"Isso é para rir."
"Mas a adulteração de relatórios foi apenas a coisa mais inocente que a administração Bush fez, sobretudo quando comparada com outros dos seus actos.
Eles chegaram ao ponto de declarar guerras, vê lá tu."
O rosto de Tomás contraiu-se num esgar incrédulo.
"Guerras? Estás a exagerar um bocadinho, não achas?"
"O que pensas que foi a invasão do Iraque em 2003? Uma guerra para instaurar a democracia em Bagdade? Uma guerra para eliminar as armas de destruição em massa que Saddam Hussein, aliás, não possuía? Uma guerra para enfrentar a Al Qaeda, a qual não estava no Iraque nem sequer tinha relações com o regime de Saddam?" Deixou as interrogações assentarem. "A invasão do Iraque foi uma guerra pelo petróleo. Ponto final. Nem mais, nem menos."
"Bem, mas ela só foi possível no contexto dos atentados do 11 de 172
Setembro..."
"Estás enganado", atalhou Filipe. "Há indicações de que o Iraque seria invadido mesmo sem o 11 de Setembro."
"Como sabes isso?"
"Por causa do que se passava na Casa Branca. Não era só o presidente que vinha do negócio do petróleo. As duas pessoas da sua maior confiança também. A conselheira de Segurança Nacional, Condoleeza Rice, desempenhou funções de chefia na Chevron Oil, e o vice-presidente, Dick Cheney, estava ligado a uma importante multinacional de exploração e produção petrolífera, uma empresa chamada Halliburton. Isto para não falar no secretário do Comércio, Donald Evans, que também dirigiu uma companhia de exploração de petróleo."
"E então?"
"Nada disto é coincidência, meu caro."
"Mas também não é nenhum crime."
"Não estamos a falar de crimes, Casanova'", disse o geólogo num tom de infinita paciência. "Embora, sob uma certa perspectiva, tudo isto sejam crimes. Mas do que estamos a falar é dos interesses instalados que ditam o perpetuar da nossa dependência em relação aos combustíveis fósseis. Olha, queres um exemplo?"
Inclinou-se na direcção de Tomás, como se lhe fosse contar um segredo. "Oito meses antes do 11 de Setembro, o vice-presidente Dick Cheney criou uma comissão de política energética cujos objectivos e trabalhos ficaram submetidos ao mais rigoroso sigilo. Alguns membros do Congresso quiseram conhecer os membros da comissão e o conteúdo dos trabalhos, mas Cheney recusou-se a revelar fosse o que fosse. Até que duas organizações privadas de interesse público levaram o assunto a tribunal e conseguiram obter uma ordem judicial para saber o que se passava nessa comissão secreta. Foram assim divulgados poucos documentos, mas entre eles estavam três mapas. Sabes quais?"
"Não faço ideia."
"Dois desses mapas eram da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos.
E o terceiro?"
"Do Kuwait?"
"Do Iraque." Arqueou as sobrancelhas. "Estás a perceber? O homem esteve debruçado sobre os mapas onde se localizam os campos petrolíferos iraquianos!
Tinha lá tudo: os jazigos, os oleodutos, as refinarias e a divisão em oito blocos da zona petrolífera iraquiana. Mais ainda, ele deu-se até ao trabalho de calcular quanto petróleo iraquiano poderia ser lançado rapidamente no mercado! Os documentos mostram que Cheney queria perfurar o maior número possível de poços no Iraque, 173
de modo a aumentar a produção para sete milhões de barris por dia."
"Isso foi logo a seguir ao 11 de Setembro?"
"Foi antes, Casanova''' , repetiu Filipe. "Antes do 11 de Setembro." Sublinhou a palavra antes. "Os mapas estão datados de Março de 2001, seis meses antes dos atentados e dois anos antes da invasão do Iraque!" Sorriu sem vontade. "As armas de destruição em massa, a democracia no Médio Oriente e todas essas balelas mais não foram do que pretextos para mascarar o verdadeiro objectivo estratégico da invasão do Iraque: controlar as segundas maiores reservas mundiais de petróleo e impor uma ordem americana na zona onde mais petróleo se produz no mundo. Tudo obedeceu a essa ideia fundamental. Não só o Iraque é o segundo país com mais petróleo como é o país onde é mais barato extraí-lo. E, ins-talando-se no Iraque, os Americanos ficavam em posição de fazer sentir a sua presença em toda a região. Percebes?"
"Sim."
"Na altura em que a ONU estava a discutir a bizantina questão das armas de destruição em massa do Iraque, Cheney chegou a afirmar em público que Saddam ameaçava os abastecimentos regionais de petróleo e apresentou esse argumento como razão suficiente para lançar o ataque." Sorriu. "O pessoal da Casa Branca entrou em pânico quando o ouviu falar tão abertamente do verdadeiro objectivo da guerra e, como é evidente, os estrategos mandaram-no calar. Uma guerra pelo petróleo era algo que nunca galvanizaria a opinião americana ou internacional nem legitimaria a acção militar. Por isso esse argumento passou a ser ocultado e a administração Bush chegou até a negar que a guerra tivesse alguma coisa a ver com o petróleo." Abriu as mãos. "Mas não é possível negar a evidência. Tu achas que, se o Iraque não produzisse petróleo, mas amendoins, os Americanos iriam gastar uma fortuna para invadir o país?"
Tomás riu-se.
"Claro que não."
"Os factos estão aí para quem os quiser ver. Ainda antes de a guerra começar, já a Halliburton de Cheney tinha um contrato de sete mil milhões de dólares assinado por causa do petróleo iraquiano. E quando as tropas avançaram a sua prioridade operacional foi proteger os gigantescos campos petrolíferos de Kirkuk.
Mal entraram em Bagdade, as forças americanas foram a correr selar o Ministério do Petróleo, ignorando o que se passava no resto da cidade, onde decorriam as pilhagens. Tudo podia ser pilhado, excepto o Ministério do Petróleo. Porque seria?"
"Pois, estou a perceber."
"Ao invadir o Iraque, os Estados Unidos mais não estavam a fazer do que a pôr em prática a agenda da indústria petrolífera. O plano era claro. Por um lado, enriquecer os financiadores da sua campanha eleitoral e todos os seus amigos do mundo do petróleo. Por outro, assegurar que aquele petróleo não iria cair nas mãos 174
da China e da Rússia. E, finalmente, impor uma visão geoestratégica que assegurasse a presença e a influência americanas em todo o Médio Oriente. Ao controlar o golfo Pérsico e o Médio Oriente, os Estados Unidos garantiam o acesso às maiores reservas mundiais de petróleo numa altura em que o petróleo não-OPEP
já ultrapassou o seu pico de produção e está a esgotar-se."
Acabaram o shasblyk e o vinho e recostaram-se nas cadeiras. Os alemães já se tinham calado, entorpecidos pela cerveja, e o ambiente do bar tornara-se pacato.
"Vamos andando?", sugeriu Tomás.
Filipe ergueu a mão e fez sinal ao empregado russo, desenhando no ar uma assinatura.
"Espera, vou pedir a conta."
O empregado pegou num lápis e num bloco e somou os valores. Tomás ficou a observá-lo, mas a mente voltou à situação em que o seu amigo se envolvera.
"Em toda esta história", comentou, "volto a dizer que há uma coisa que não faz sentido."
"Diz lá."
"Vocês eram quatro cientistas a estudar o problema do aquecimento global, certo?"
"Sim."
"Mas no mundo existem centenas ou milhares de outros cientistas a estudar o mesmo problema. Por que razão os interesses da indústria petrolífera queriam a vossa morte em concreto? O que tinham vocês de diferente em relação aos outros?"
O empregado entregou a conta e Filipe passou-lhe um punhado de rublos para a mão.
"Queres mesmo saber?", perguntou.
"Claro."
"E que nós descobrimos algo."
Tomás encarou-o interrogativamente.
"O quê?"
Filipe pôs-se de pé, vestiu o casaco e dirigiu-se para a porta do bar.
"Descobrimos uma coisa que marca o fim da indústria petrolífera", afirmou.
"Isso eles não podem tolerar."
E saiu.
175
XXI
Encontraram Nadezhda sentada num largo banco de madeira entre dois yurts, as pernas esticadas sobre um tronco cilíndrico, envolta num espesso e macio casaco de peles. Os yurts assemelhavam-se a pãezinhos alinhados lado a lado, a cinco metros uns dos outros e com um banco de jardim entre eles; atrás havia uma densa fileira de árvores a marcar o início da floresta, como se as tendas estivessem encostadas a uma parede de troncos e arbustos. A russa tinha um candeeiro de petróleo pousado no chão, ao lado do banco, e a luz bruxuleante projectava sombras fantasmagóricas em redor, pareciam espectros a dançar na noite.
"Então?", saudou-a Filipe ao aproximar-se da tenda com Tomás no encalço.
"Por onde andaste tu?"
"Por aí."
"Não me digas que foste ter com o Khamagan."
A russa emitiu um estalido irritado.
"Oh, não me chateies."
Filipe riu-se e voltou a cabeça para trás.
"A Nadia tem cá um amigo especial", disse. "E um velho xamane que lhe enche a cabeça de disparates."
"Não são disparates, Filhka", protestou ela. "Ele tem mesmo poderes sobrenaturais."
"Que poderes sobrenaturais? O velho é um trapaceiro!"
"Ele fala com os espíritos."
O geólogo português soltou uma gargalhada.
"Parece-me que fala mais com as bebidas espirituosas."
"Oh, lá estás tu."
Tomás acomodou-se sobre o tronco pousado no chão, junto aos pés de Nadezhda.
"Que história é essa de um xamane?"
"É um aldrabão que anda para aí a endrominar o pessoal", disse Filipe.
"Convenceu a Nadia de que é um mágico."
Nadezhda rolou os olhos, enfadada.
"Não ligues, Tomik", cortou ela. "O Filhka não sabe o que diz."
"Ah, não sei?"
"Não, não sabes."
176
"Então o que faz o velho? Hã? O que faz ele?"
"O Khamagan tem poderes místicos", argumentou a russa. "Tens de respeitar isso."
"Esses poderes não são místicos", contrapôs Filipe, um sorriso irónico no rosto. "São míticos."
Sentindo-se desconfortável, Tomás remexeu-se sobre o tronco pousado no chão, junto aos pés de Nadezhda, em busca de uma melhor posição.
"O Nadia, explica-me lá isso."
Ela fez um gesto largo, englobando a noite que cercava o yurt.
"Lembras-te de eu te dizer, quando aqui chegámos, que esta ilha é mágica?"
"Sim."
"Olkhon é um dos principais pólos xamanes do mundo. Eu conheci o Khamagan quando andei aqui pela Sibéria a fazer aquelas medições meteorológicas para o Filhka. Vim a esta ilha porque ouvi dizer que a temperatura aqui é mais quente do que no resto da região, e foi então que me apresentaram o Khamagan.
Vim a descobrir que ele é um dos mais importantes xamanes que existem."
"Mas o que faz ele de especial?"
"Cura as pessoas."
"De quê?"
"Sei lá, dos males que tiverem."
"Assim como os feiticeiros tribais?"
A mão dela flutuou no ar, balouçando rapidamente.
"Mais ou menos", disse, não muito satisfeita com a comparação. "O xamane utiliza os seus poderes místicos para viajar por outras dimensões e comunicar com os espíritos, de modo a conseguir um equilíbrio entre os dois mundos, o físico e o espiritual."
"Ele é possuído pelos espíritos?"
"Não, não. O Khamagan controla os espíritos."
"E quem são eles?"
"Bem, são as almas dos mortos, mais os demónios e os espíritos da natureza."
Tomás fez uma careta.
"Isso parece um bocado fantasioso, não achas?"
"Admito que, assim postas as coisas, talvez pareça fantasioso, sim", reconheceu ela. "Mas a verdade é que funciona."
177
'Como sabes que funciona?"
"Sei porque vi."
"Viste o quê?"
"Vi o Khamagan curar pessoas por recurso ao transe."
O historiador franziu o sobrolho, céptico.
"Não poderá ter sido sugestão?"
"Talvez. Mas lá que elas ficaram curadas, isso ficaram."
Filipe agitou-se, impaciente. Já conhecia aquela conversa e não a queria alimentar. Esticou o corpo e flectiu os braços, para combater o frio que lhe entorpecia as articulações, e fez sinal na direcção do convidativo interior do yurt.
"Que tal um chá?"
O interruptor fez um clique, mas a tenda permaneceu às escuras, apenas iluminada pelo clarão do candeeiro de petróleo pendurado na mão de Nadezhda.
"Porra", praguejou Filipe. "O gerador deve estar outra vez em baixo. Que chatice!"
"O acampamento é iluminado a gerador?", admirou-se Tomás.
"Não é só o acampamento", explicou o amigo. "É a ilha toda."
"O quê? A ilha não tem rede eléctrica?"
"Não. É tudo movido a gerador."
Tomás riu-se.
"Mas onde é que eu me vim meter?"
"Olkhon é a natureza em estado puro, Casanova. Isto é tão selvagem que, no tempo da União Soviética, a ilha, apesar de ser muito bonita, foi integrada no sistema de gulags. Vieram muitos deportados, sobretudo lituanos, e grande parte morreu aqui."
"Mas isto é assim tão duro?"
"Não, o clima de Olkhon é até moderado quando comparado com o resto da Sibéria. O problema é que não existem infra-estruturas nenhumas. Por exemplo, não há ligações telefónicas nem rede de electricidade."
"E telemóveis?"
"Não apanham sinal aqui nesta zona."
"A sério? Então como faço se precisar de falar para o exterior?"
178
"Existem dois telefones por satélite. Um aqui no acampamento, o outro na pensão do Bencharov, em Khuzhir. Se precisares, diz. Custa cem rublos o minuto."
A iluminação dentro da tenda ficou a cargo do candeeiro a petróleo de Nadezhda. Nada ali funcionava, com excepção do samovar; era um velho cilindro aquecido a carvão, com aspecto de remontar ao tempo de Estaline, e extraíram da torneira a água a ferver de que precisavam para o chá. Sen-taram-se nas duas camas do yurt com as chávenas fumegantes nas mãos e engoliram um trago escaldante que lhes confortou as entranhas.
"Há bocado disseste-me uma coisa que me está a fazer confusão", observou Tomás em português, regressando à conversa do bar. "Disseste-me que vocês fizeram uma descoberta que põe em causa a indústria do petróleo."
"Sim."
"Que descoberta foi essa?"
Filipe focou os olhos no vapor que subia da chávena e soprou com suavidade sobre o chá, para o arrefecer.
"Não te posso dizer", murmurou.
"Porquê?"
"Por vários motivos. Um deles é que, se te contasse, também a tua vida correria perigo."
"Não te preocupes com a minha vida. Eu aqui represento a Interpol."
O geólogo riu-se.
"Havia de te valer de muito."
Tomás ignorou o sarcasmo.
"Mas não achas importante contar isso?"
"Acho", concordou. "No momento certo."
"E quando será o momento certo?"
O rosto de Filipe assumiu uma expressão ambígua.
"Em breve."
Nadezhda, enfadada de os ver a dialogar em português, cortou a conversa e disparou uma rajada de russo furioso que fez Filipe sorrir. O geólogo respondeu em russo e depois voltou-se para Tomás.
"A Nadia está a sentir-se excluída da conversa", explicou. "Como não falas russo e ela não percebe português, é melhor continuarmos em inglês."
"É melhor", assentiu a rapariga.
"Confesso que estou embasbacado com o teu russo", observou Tomás. "Onde 179
é que o aprendeste?"
"Aqui na Rússia, claro."
"Vives aqui há muito tempo?"
"Vivi aqui há muito tempo."
"Viveste?"
"Sim. Não te lembras de que os meus pais eram do Partido Comunista?"
"Então não me lembro?", sorriu Tomás. "Eles eram um escândalo em Castelo Branco. Votavam em candidatos com nomes estranhos, como Octávio Pato e outros do género."
"Por causa dos meus pais, quando terminei o liceu arranjei uma bolsa e fui tirar Geologia para a Universidade de Leninegrado. Foi no tempo da União Soviética, claro."
"Leninegrado? Sampetersburgo, queres tu dizer."
"Leninegrado era o nome que a cidade tinha na altura."
"E então? Gostaste?"
"A cidade é espectacular", disse. "Mas, como é bom de ver, ao fim de duas semanas eu já me tinha tornado um anticomunista primário."
"Foste-te logo embora."
"Não. Fiquei quatro anos."
"Quatro anos?"
Filipe encolheu os ombros.
"Foram as russas que me fizeram ficar", disse, uma expressão entre o impotente e o resignado. "O país era uma merda, as pessoas antipáticas, o sistema comunista não funcionava, fazia um frio incrível no Inverno, mas mesmo assim não consegui ir-me embora." Suspirou. "As miúdas aqui foram a minha perdição, não havia nada a fazer."
"O que têm elas assim de tão especial?"
O amigo olhou para Nadezhda como se exibisse a prova.
"Então não vês?"
Trocaram olhares embaraçados na hora de se irem deitar. O yurt só tinha duas camas e eles eram três. Tomás presumiu inicialmente que Filipe dispunha da sua própria tenda, onde passaria a noite, mas foi na altura em que decidiram deitar-se que percebeu que aquela era a tenda do amigo.
Na atrapalhação que se seguiu, vários pensamentos cruzaram a sua mente. O
primeiro, quase instintivo, foi o de que ele e Nadezhda iriam para uma cama e Filipe 180
para a outra. Parecia-lhe uma solução natural, tendo em conta a relação que desenvolvera com a russa nos últimos dias. Mas, momentos depois, reconsiderou.
Ficaria mal ir dormir com a rapariga na tenda do amigo. Se calhar a melhor opção, e a mais cavalheiresca, era eles deitarem-se na mesma cama e ela ir para a outra. Uma espécie de segregação sexual.
Ia fazer a proposta honrosa quando viu Filipe puxar Nadezhda pelo braço.
"Tu hoje dormes comigo, minha linda", disse ele.
Tomás nem queria acreditar. Teria ouvido bem? Mas o que se passou logo a seguir tirou-lhe quaisquer dúvidas. Nadezhda, para pasmo seu, não reagiu contrariada ao convite, antes riu-se e deixou-se levar, envolvida no abraço lúbrico de Filipe. Tombaram os dois numa das camas e, com risinhos que lhe pareceram imbecis, desapareceram por entre os lençóis e as mantas.
O historiador despiu-se devagar, os sentimentos entorpecidos. Sentia-se chocado com a forma leviana e descarada como Nadezhda o trocara por outro, mesmo ali diante do seu nariz. Vestiu o pijama e deitou-se na cama. Tinha-se habituado a ela, à sua familiaridade, a considerá-la sua, mas essa ilusão fora quebrada com violência, como um espelho que se parte e agora sim fala verdade, mostra a realidade não como a unidade perfeita que via antes, mas como o mosaico estilhaçado que na sua essência era.
Apagou o candeeiro a petróleo e o yurt mergulhou na escuridão completa.
Mas não no silêncio. Os risinhos de Nadezhda e as gargalhadas de Filipe transformaram-se noutra coisa; ela agora gemia e ele grunhia e arfava. O colchão agitava-se em solavancos, guinchando e chiando, abanando como um bote em águas tumultuosas. Tomás fechou os olhos e, em desespero, pôs a cabeça debaixo do cobertor, como se assim conseguisse evadir-se daquele pesadelo. Por instantes pareceu-lhe melhor, mas a sua curiosidade traiu-o e, concentrando a atenção, captou os sons da refrega tumultuosa que agitava a cama ao lado.
Uma puta, pensou. Sou mesmo estúpido. Só eu para me afeiçoar a uma puta.
Os gemidos e os grunhidos subiram de tom e explodiram numa apoteose de urros e vagidos, para logo tudo serenar, como uma bonança que se impõe abruptamente. Depois de um breve turturilhar, manso e repenicado, o silêncio instalou-se enfim no yurt e Tomás, esforçando-se por ignorar o que se passara, esvaziou a mente e deixou-se deslizar gradualmente para o sono.
Barulho.
Um barulho a meio do sono trouxe-o de volta à consciência, como se estivesse imerso em águas quietas e uma força desconhecida o puxasse bruscamente à tona. Sonhara com a mãe e ouvira o som do corpo dela tombar pelas escadas, cumprindo a ameaça que lhe fizera quando a deixara no lar. Seria um sonho 181
premonitório? Será que ela estava bem? Em boa verdade, teria mesmo sonhado?
Ainda entorpecido pelo sono, mas incomodado pela súbita inquietação, decidiu confirmar; era a melhor maneira de recuperar a tranquilidade e a paz de espírito.
Aguçou por isso os ouvidos e pôs-se à escuta.
Mais barulho.
Sentiu movimento lá fora. Não havia dúvidas, aquilo não fora sonho, a mãe não se atirara das escadas. O facto é que se aproximava alguém, ouvia-lhe os passos e a respiração arfada.
Soergueu-se na cama, já desperto, os cotovelos assentes no colchão, e tentou ver na escuridão.
"Filbka!", chamou um homem à porta do yurt, a voz transmitindo urgência.
"Filhka!"
"Cbto?" Era a voz estremunhada de Filipe. "Kto eto?"
"Eto ya, Borka."
"Chyo takoe, Borka?"
"Tam tebya rebyata icbut, u nikh stvoly."
Filipe saltou da cama, alarmado, e Tomás sentiu o coração disparar; não sabia o que se passava mas percebia que algo estava a acontecer.
"O que é? O que se passa?"
"Veste-te", ordenou Filipe. "Já! Já!"
"O que se passa?"
"Andam homens armados à nossa procura."
XXII
Esgueiraram-se pela porta do yurt e mergulharam apressadamente na escuridão, Tomás ainda a apertar o cinto das calças, Nadezhda a abotoar o casaco.
Seguiam o desconhecido que os alertara, um magricela chamado Boris que os levou às escuras ao longo do perímetro do acampamento e depois para além dele. Ouviram alguns gritos lá atrás e viraram a cabeça para tentar descortinar o que se passava, mas a sombra era opaca e nada conseguiram vislumbrar; dali vinham apenas sons de ordens e de corrida e de metais a tilintar.
Progrediam com os braços estendidos para a frente, às cegas, tacteando o caminho, enxergando apenas o vulto esquivo do companheiro da frente. Boris era o único que parecia saber exactamente para onde ia e por isso caminhava na dianteira, guiando-os pela floresta de tomilho e larícios; por vezes embatiam num tronco, tropeçavam num galho, chocavam com um arbusto ou arranhavam-se em cardos, 182
mas o medo impelia-os para a frente, empurrava-os para a fuga, as pernas leves, os sentidos atentos, o coração aos saltos, a dor anestesiada.
Calcorrearam a taiga durante umas dezenas de minutos, por vezes atingindo becos de vegetação que os obrigavam a recuar, até que a floresta se abriu bruscamente numa clareira e deram consigo diante de um pequeno povoado.
"Kharantsy", anunciou Boris.
"Estamos na aldeia de Kharantsy", explicou Filipe num sopro, sem se atrever a levantar a voz. "O Borka conhece bem isto."
"Quem é o Borka?"
O amigo apontou para o russo.
"É o Boris. Tratamo-lo por Borka."
Boris fez-lhes sinal de que esperassem e sumiu-se na noite, deixando os três parados à entrada da aldeia, tremendo de frio e de medo, sem saberem o que fazer.
"Onde foi ele?"
"Foi arranjar maneira de nos tirar daqui. Vamos esperar."
Ficaram calados um longo minuto, quase de respiração suspensa para ouvirem melhor; aguçaram a atenção de modo a tentarem identificar qualquer ruído suspeito, qualquer som fora do normal, mas tudo permanecia tranquilo e apenas escutavam o seu próprio arfar reprimido.
"Quem são os gajos armados?"
"Não sei."
"Então porque estamos a fugir?"
"Porque não é normal haver gente a entrar com armas a meio da noite no acampamento." Filipe sentia-se a arquejar. "Quando o Howard e o Blanco morreram, vim esconder-me aqui em Olkhon, que conhecia dos meus tempos de estudante em Leninegrado." Fez uma pausa para recuperar o fôlego. "Andei todo este tempo à espera que uma coisa destas acontecesse e foi por isso que montei um sistema de alerta com uns rapazes a quem pago uma mensalidade." Fez um gesto na direcção da escuridão que engolira Boris. "O Borka é um deles."
Calaram-se de novo, procurando ruídos suspeitos. Nada. Apenas escutavam as suas respirações ainda arquejantes e o vigoroso farfalhar das árvores que murmuravam ao vento.
"Os homens armados", disse Tomás. "Como é que eles descobriram o teu paradeiro?"
"Boa pergunta."
"Achas que nos seguiram, a mim e à Nadia?"
183
"É o mais provável."
"Desde Moscovo?"
"É o mais provável."
"Porra", murmurou o historiador, desalentado. "Não me apercebi de nada."
Filipe suspirou.
"A culpa é minha", disse. "Nunca devia ter respondido ao teu e-mail."
"Mas como terão eles sabido?"
O amigo considerou esta pergunta.
"Tu não foste a Viena?"
"Fui. Dei um salto à OPEP para tentar perceber o que andavas tu a investigar no dia em que mataram o americano e o espanhol."
"Então foi aí. Os gajos toparam-te e puseram alguém atrás de ti para ver onde os levavas."
Tomás abanou a cabeça, agastado.
"Sou mesmo estúpido."
"A culpa é minha", repetiu Filipe. "Eu é que devia ter sido mais esperto."
Escutaram passos e calaram-se, os três muito alarmados, tentando identificar a ameaça. Um vulto materializou-se ao pé do grupo, fazendo-os estremecer de susto.
Era Boris, que voltara da sombra. O russo sussurrou algumas palavras e levou-os pelas ruas adormecidas da aldeia para um edifício que lhes pareceu um estábulo.
"O Borka quer saber se estás em forma", disse Filipe.
"Eu? Sim, acho que estou", devolveu Tomás. "Porquê?"
Boris acendeu uma lanterna e voltou-a para a parede do estábulo. Os focos dançaram pela madeira até localizarem o que procuravam.
"Porque vamos ter de as usar."
Eram bicicletas.
Pedalaram por um trilho, os faróis acesos, e foram dar a uma estrada de terra batida, onde pararam. Os três da frente puseram-se a discutir em russo e a apontar em várias direcções; visivelmente havia desacordo no grupo.
"O que se passa?", quis saber Tomás, interrompendo a algaraviada eslava.
"Estamos a decidir para onde vamos", explicou Filipe, falando em inglês para manter os russos a par da conversa. "O Borka quer levar-nos para Khuzhir, mas eu acho arriscado. Os tipos armados de certeza que vão para lá."
"Então qual a alternativa?"
184
"Pois, é esse o problema", observou o amigo. "Não sei."
"Eu tenho uma solução", disse Nadezhda.
"Diz lá."
"O velho Khamagan."
"Não digas disparates."
"Escuta-me, Filhka", implorou. "Eu fui hoje visitá-lo na Shamanka. O
Khamagan tem maneira de nos tirar daqui se formos ter com ele."
"À Shamanka?"
"Sim."
Fez-se silêncio enquanto Filipe considerava a opção. Questionou Boris em russo e, depois de ouvir a sua opinião, pôs o pé no pedal e fez que sim com a cabeça.
"Vamos lá."
Meteram pela estrada e pedalaram para oeste. O lago estava próximo e vislumbraram um ténue clarão mais à frente, eram as escassas luzes de Khuzhir a lampejar na noite. Decidiram arriscar e atravessar a vila, mas, quando se aproximavam das primeiras casas, progredindo com mil cautelas, escutaram o som de motores atrás deles. Boris fez um sinal e saíram da estrada, deitando-se na berma.
O ruminar dos motores cresceu, a estrada ficou de repente iluminada por faróis e viram dois jipes passar com grande fragor. Tomás esticou o pescoço e observou o interior das duas viaturas; os jipes iam cheios de homens.
"São eles", murmurou Filipe. "Andam à nossa procura."
Os jipes pararam alguns metros à frente e deixaram-se ficar, os faróis acesos, como se estivessem a avaliar a situação; pareciam felinos à espreita da presa.
Permaneceram assim alguns segundos, até que se acenderam as luzes traseiras de marcha atrás do carro da frente e, acto contínuo, as do que se encontrava atrás.
"Eles vêm para aqui!", assustou-se Tomás.
Igualmente alarmado com a possibilidade de os jipes voltarem a passar junto ao local onde estavam escondidos, Boris sussurrou algo em russo e Filipe fez sinal a Tomás de que o seguisse.
"Isto está mesmo muito perigoso", disse. "O Borka vai levar-nos por um atalho."
Deslizaram pela berma e ziguezaguearam às escuras pela estepe. O solo apresentava-se coberto de ervas e plantas aromáticas que exalavam uma fragrância forte e agradável. Algumas centenas de metros mais à frente apanharam um novo trilho, montaram nas bicicletas, contornaram Khuzhir muito devagar, progredindo 185
com extremo cuidado, os faróis apagados e o caminho feito às cegas, e pedalaram até as pernas lhes pesarem como chumbo.
"Shamanka."
A voz de Boris anunciou o seu destino. Tinham chegado. Os olhos de Tomás já se haviam habituado à escuridão, mas a primeira coisa que notou ao alcançar o local não foi uma imagem nem um cheiro, mas um som.
O marulhar tranquilo das águas.
A enseada tinha uma pequena praia de areia, curvada como um U largo, e um vulto escuro erguia-se na ponta esquerda do U, parecia um castelo gótico mergulhado na noite. Os quatro desmontaram das bicicletas e desceram até à praia, caminhando na direcção do maciço sombrio.
"O que é aquilo?", perguntou Tomás, apontando para o vulto que lhe dava a impressão de vigiar o lago.
"É a Pedra Xamane", disse Filipe. "Chamam-lhe Shamanka."
"Uma pedra xamane?"
"Não é uma pedra xamane", corrigiu o amigo. "É a Pedra Xamane."
Sublinhou o a pedra. "Este rochedo é um dos nove locais mais sagrados da Ásia."
Tomás analisou com atenção a sombra para a qual caminhavam.
"O que tem este sítio assim de tão especial?"
"Conta-lhe, Nadia."
A russa, que caminhava em silêncio na dianteira, abrandou o passo e deixou-se apanhar por Tomás.
"Foi aqui na Shamanka que nasceu o primeiro xamane", explicou ela. "Diz a tradição que esse xamane era um homem e que, ao fim de algum tempo, começou a sentir-se muito só. Foi então que criou a primeira mulher xamane."
A sombra cresceu diante do grupo, enorme, ameaçadora, tão próxima que Tomás já lhe podia destrinçar as formas. Era um rochedo escarpado com dois picos e apresentava uma superfície agreste, coberta de ângulos cortantes como um ouriço; dava a impressão de que a praia fazia um esforço para se esticar, estirando-se até tocar neste monstro de pedra, parecia uma fera de costas voltadas para a terra, uma sentinela de guarda às águas do Baikal. Havia algo de irreal na sua essência, como se fosse um pedaço da Lua atirado para o lago, um corpo estranho tombado na praia, uma escultura bizarra extraída de uma outra dimensão.
Uma luz amarela e vermelha cintilou na encosta do rochedo, ténue e bamboleante.
186
"O que é aquilo?"
"É o Khamagan", descansou-o Nadezhda. "Acendeu uma fogueira."
Atingiram a base do rochedo e escalaram a encosta alcantilada na direcção das chamas que tremelicavam a um canto. Tomás percebeu que a pedra era uma espécie de mármore cristalizado, coberto por líquenes vermelhos. Tudo ali era natural, primitivo, com excepção de uma placa com letras esculpidas na pedra, pareceu-lhe que em sânscrito.
Nadezhda chamou Khamagan em voz alta. O nome ecoou pela pequena enseada e ouviram uma voz fraca responder. Deram com o velho xamane envolto em cobertores e deitado numa gruta rasgada na pedra, a fogueira acesa mesmo à entrada. Era um homem de rosto largo e trigueiro, os olhos negros amendoados e os malares salientes, como a face dos mongóis, os cabelos alvos a descaírem do gorro azul como farrapos de palha gasta.
Seguiu-se uma conversa em russo entre os recém-chegados e o xamane, com Boris e Filipe a gesticularem imenso, como se essa fosse a única forma de enfatizarem a urgência do que tinham para dizer. Mas Khamagan parecia resistir, nada impressionado com o que lhe era relatado pelos recém-chegados, e Nadezhda interveio. A russa começou a falar calma e pausadamente com o velho xamane.
Khamagan escutou-a em silêncio, absorvendo tudo o que ela lhe dizia; era evidente que a respeitava.
"O que faz ela?", perguntou Tomás num sussurro.
"A Nadia está a explicar-lhe que somos perseguidos por homens que ameaçam o tegsh."
"O que é isso?"
"O tegsh? É um conceito xamane."
"Mas o que significa?"
"Equilíbrio", traduziu Filipe. "Os xamanes veneram o ar, a água e a terra e consideram que é importante manter o equilíbrio no mundo. Segundo eles, o planeta não é um sítio morto, mas cada coisa e cada lugar vibra com a presença viva de espíritos. Tudo tem uma alma, incluindo os animais e as plantas. A ética xamane preconiza o respeito pela natureza e a defesa das coisas naturais e é a essa ética que a Nadia está a apelar."
Nadezhda calou-se e foi a vez de o ancião começar a falar.
"O que diz ele?"
"A Mãe Terra e o Pai Céu criaram-nos e alimentaram-nos durante milhões de anos e merecem o nosso respeito", murmurou Filipe, traduzindo em simultâneo as palavras de Khamagan. "Os homens acham que o mundo é inerte e está aqui para ser explorado. Não é e não está. O problema dos homens é que perderam o respeito pela 187
Mãe Terra e isso condena-nos a todos. Precisamos de respeitar o lago e a montanha, a taiga e a estepe, a águia e o peixe, ou então perderemos tudo. Precisamos de tenger medne. Cada um de nós é responsável pelo que faz e tenger vê tudo o que é feito e é o derradeiro juiz e o fazedor de destinos."
"Precisamos de quê?", perguntou Tomás, interrompendo a tradução em simultâneo.
"Tenger medne", repetiu Filipe. "E a responsabilidade pessoal, a relação que temos com o universo. Os xamanes acham que a relação dos seres humanos com o universo é directa, sem nada que se interponha, nem livros sagrados, nem padres, nem mesmo xamanes. Apenas tenger medne."
Khamagan calou-se nesse instante e a russa voltou a falar, desta vez mais agitada, apontando sucessivamente para a praia, para o interior da gruta e para o lago. Filipe ficou tão absorto no que ela dizia que deixou de traduzir, mas depressa isso se tornou irrelevante. O velho xamane escutou-a em silêncio, balançou a cabeça quando ela por fim se calou e pronunciou então uma única palavra.
"Da."
Aquele sim impulsionou-os à acção. Entraram na gruta e inclinaram-se na sombra, pegando num objecto cujas formas Tomás não conseguia distinguir.
Levantaram o objecto e ar-rastaram-no para fora da pequena caverna.
"O que é isso?"
"É um caiaque, não vês?"
Era, de facto, uma embarcação de madeira, estreita e longa, com capacidade para duas pessoas. Desceram o declive, depositaram o caiaque na água e voltaram à gruta para ir buscar a segunda canoa. Tomás foi com eles e desta vez ajudou a transportar a embarcação. Quando franqueou a porta da gruta com o caiaque nos braços tropeçou numa pedra e quase caiu, mas conseguiu recuperar o equilíbrio a tempo. Foi nesse instante que ouviu a voz de Nadezhda.
"Eles estão a chegar."
Contorceu a cabeça, ergueu o caiaque mais alto e espreitou, tentando perceber o que se passava. Por cima da praia, entre uma nuvem de pó, viu dois pares de faróis a aproxima-rem-se.
Eram os jipes.
"Depressa! Depressa!"
Os três homens quase correram pela encosta com o caiaque aos ombros.
Atiraram a canoa para a água e Filipe apontou para Tomás.
"Tu vais com a Nadia neste caiaque." Indicou a embarcação mais próxima.
"Eu vou com o Borka no outro."
188
Nadezhda equilibrou-se na canoa e esperou que Tomás se acomodasse. O
historiador olhou de relance para o local onde vira os jipes e constatou que eles se tinham imobilizado; as portas abriam-se e os ocupantes saltavam cá para fora. Não precisava de ver mais; tomou o seu lugar e pegou no remo.
"Depressa!"
Filipe praguejou em português enquanto entrava no segundo caiaque.
"Mas como é que estes cabrões sabem onde nós estamos?"
"Será que alguém nos denunciou?", alvitrou Tomás.
"Mas quem? Só há bocado é que decidimos vir aqui para a Shamanka..."
"Se calhar andam a vasculhar toda a ilha."
Ouviram vozes ao fundo. Eram os homens dos jipes que já os tinham identificado e gritavam ordens.
Os remos dos dois caiaques tocaram na água e as embarcações começaram a afastar-se do rochedo.
"Para onde vamos?", perguntou Tomás, que deixara de ver a outra canoa.
Foi a escuridão que lhe respondeu.
"Vamos separar-nos", disse a voz de Filipe. "Tu vais com a Nadia."
"Encontramo-nos onde?"
"Não sei. Eu depois contacto-te."
Os desconhecidos corriam pela praia e atingiram num ápice a Pedra Xamane.
Remando furiosamente, Tomás conseguiu ganhar alguma distância antes de se atrever a espreitar para trás. Viu a silhueta dos homens recortada no promontório pela fogueira de Khamagan e algo lhes cintilava nos braços.
Zzzzzzmm, zzzzzzmm, zzzzzzmm.
Um zumbido cortou o ar em redor do caiaque, seguido por um estrelejar de estampidos. A água fez plocs sucessivos mais adiante, eram projécteis que tombavam no lago.
"Eles estão a disparar contra nós", exclamou Tomás, quase em pânico.
A sua mente pareceu dividir-se nesse instante. Uma parte foi invadida pelo medo e pelo impulso de se escapar, de sair dali, de se escapulir a qualquer preço, mas uma outra, a racional, contemplava a situação com um alheamento bizarro; tinha a impressão de não passar de um mero espectador a apreciar a cena com distanciamento, como se nada daquilo lhe dissesse respeito. Essa metade racional espantou-se com a forma como tudo sucedia, nunca esperara que ser alvejado fosse 189
assim. Sempre imaginara que primeiro se ouviam os estampidos e só depois o soprar das balas, como nos filmes, mas afinal era ao contrário; as balas voavam mais depressa do que o som, os zumbidos chegavam antes dos estampidos.
"Chiu", soprou Nadezhda. "Não faças barulho."
"Mas eles estão a disparar contra nós!"
"Abriram fogo às cegas", explicou ela. "Não nos vêem." Os estampidos depressa se silenciaram e não houve mais zumbidos em torno da canoa. Nadezhda tinha razão. Os desconhecidos não viam os caiaques. Apenas enxergavam o manto negro do Baikal a fundir-se com a noite siberiana.
XXIII
A canoa cortava a água com silenciosa rapidez, os remos dançando alternadamente a bombordo e a estibordo, os remadores ofegantes com o esforço de manterem o ritmo; um-dois, um-dois, força, força, um-dois, sempre em frente, força, mais um bocado, um-dois, um-dois.
Dez minutos consecutivos a remar tiveram, porém, o seu preço. Tomás sentiu os músculos dos ombros e do pescoço pesarem como pedras e os braços quase adormecerem de entorpecimento. Esvaindo-se de energia e os pulmões arquejando por ar, o combustível do medo esgotado pelo esforço desesperado da fuga, acabaram ambos por abrandar a cadência com que puxavam a água com os remos; o caiaque, deslizando agora mais devagar, deixou de ser um projéctil disparado pelo lago e tornou-se uma frágil e delicada casca de noz, de repente infinitamente sensível ao ondular tenro do Maloye Morye, o estreito entre a ilha e o continente.
"Onde estão eles?", murmurou Tomás por entre duas golfadas de ar, o coração num batuque de cansaço.
"Quem? O Filhka e o Borka?"
"Sim."
"Não sei. Andam por aí."
Recuperando o fôlego, o historiador olhou em redor e tentou descortinar movimento, mas a escuridão em torno da canoa era opaca; apenas conseguia distinguir alguns pontos luminosos diante de si, provavelmente casas isoladas no meio da estepe ou da taiga. Ao longe, as luzes de Khuzhir e a chama vacilante da fogueira de Khamagan, sinalizando a Shamanka, mostravam-lhes que a costa de Olkhon continuava perigosamente próxima. A água parecia petróleo de tão impenetravel-mente negra; reflectia apenas as poucas luzes que rodeavam o lago, 190
archotes trémulos que ondulavam ao sabor nervoso das vagas.
Ao fim de alguns minutos de descanso recomeçaram a remar, mas já sem o vigor frenético que os impulsionara minutos antes. Na mente de ambos repetia-se incessantemente o som arrepiante que haviam escutado depois de abandonarem a Shamanka, o sibilar sinistro e baixo das balas a ceifarem o ar em seu redor, como adagas invisíveis que dissecavam o vento, lembrando-lhes que os maiores perigos nunca se fazem anunciar com pompa, antes aparecem pela calada, com insidiosa brusquidão, invisíveis e traiçoeiros.
Perderam a conta ao tempo que passaram a remar. Vista da praia do acampamento yurt, à luz acolhedora do entardecer, a costa que se erguia do outro lado do Maloye Morye parecia ao alcance de um braço, tão tentadoramente próxima; mas agora ali, cegos pela noite e esfaimados pela ânsia de devorarem o caminho, as costas doridas e o medo a ruminar-lhes no estômago, a extensão tornava-se insuportável. Estariam perto? Estariam longe? Contemplando as luzes, a distância parecia permanecer sempre igual; ou talvez não, vendo bem, a fogueira do Khamagan não passava de um quase insignificante tremelicar, era uma estrela que cintilava no horizonte, indício seguro de que a Shamanka já ficara bem para trás.
O caiaque embateu de repente em algo invisível e os dois tiveram um sobressalto. Teriam encalhado? Teriam chocado com uma rocha? Nadezhda inclinou-se e apalpou a madeira às cegas, procurando verificar se havia água, se o embate tinha rasgado a base da canoa.
"O que foi?", sussurrou Tomás, ansioso.
A mão de Nadezhda percorreu toda a madeira, mas o interior do caiaque permanecia seco, o que a fez suspirar de alívio.
"Está tudo bem", assegurou.
"Então o que aconteceu?"
A pergunta era boa, sobretudo porque o caiaque continuava imobilizado. A russa ergueu-se com cuidado e inclinou-se para a frente, de modo a apalpar o exterior da canoa. Mergulhou a mão na água fria, à proa, e percorreu-a de um lado para o outro, sem perceber ainda o que tinha acontecido. Como nada detectou, inclinou-se um pouco mais e afundou o braço na água, meio a medo, até que os dedos tocaram numa superfície suave e granulosa.
"Areia", exclamou ela. "Embatemos num banco de areia."
"Oh, não. E agora?"
"Blin! Temos de sair daqui."
Tomás equilibrou-se na canoa e, com o remo, experimentou o fundo. De facto, havia ali areia e tudo indicava que a proa tinha encalhado, uma vez que a ré flutuava mas a parte dianteira parecia encravada em alguma coisa.
191
"Achas que chegámos à praia?", arriscou ele.
"É possível. Consegues ver alguma coisa?"
Abriram ambos muito os olhos, tentando vislumbrar sinais da costa. Já se haviam habituado à escuridão, mas era difícil, sem referências de luz, lobrigar algo para além das trevas densas diante deles. Era como se estivessem rodeados pelo abismo, incapazes de destrinçar um dedo à frente do nariz, totalmente perdidos naquela sombra cerrada. E, no entanto, era imperativo que percebessem onde se encontravam. Tomás voltou a experimentar o solo com o remo, mas desta feita tocou na parte situada diante da canoa; a areia parecia aqui muito mais próxima do que na ré. Sentindo-se mais confiante, descalçou os sapatos e as meias, arregaçou as calças acima dos joelhos e, em preparos de verdadeiro saloio, aproximou-se da proa.
"Deixa-me passar", pediu.
"Tem cuidado, Tomik."
Meteu o pé na água, muito a medo, e o frio percorreu-lhe o corpo e fez-lhe doer os ouvidos. Mergulhou a perna com cuidado e pisou a areia ainda antes de a água lhe tocar no joelho. Depois pousou o outro pé e, com imensa cautela, separou-se da canoa e avançou, passo ante passo, até que a água lhe cobriu apenas os pés e depois já nem isso.
"É a praia", constatou com alívio. "Chegámos ao outro lado."
Voltou para trás e ajudou Nadezhda a abandonar o caiaque. Caminharam os dois de mãos dadas até à praia, como cegos a explorar sem bengalas um caminho desconhecido, e só pararam quando deixaram a areia e sentiram a erva da estepe siberiana arranhar-lhes as plantas dos pés.
"Onde vamos agora?", perguntou Tomás, calçando as meias e os sapatos.
"Acho que é melhor irmos até Sakhyurta."
"A pé?"
Nadezhda emitiu um estalido irritado com a língua. "Vês por aqui alguma carreira de autocarro?" "Não."
"Então porque fazes essa pergunta idiota, Tomik? Claro que temos de ir a pé."
Tomás levantou-se, impaciente.
"Muito bem", disse. "Vamos?"
A russa deixou-se ficar sentada na erva.
"Olha lá, tu consegues ver alguma coisa na escuridão?"
192
"Eu não."
"Então senta-te e cala-te."
Dormitavam agarrados um ao outro, unidos num abraço quente que os protegia do frio agreste da noite na estepe, quando se aperceberam do clarão azulado que aos poucos ia pintando o céu. O primeiro a entreabrir os olhos foi Tomás, e o seu movimento despertou Nadezhda.
Amanhecia no Baikal e os primeiros raios da aurora despontavam do outro lado de Olkhon, recortando a sombra negra e longa da ilha no anil escuro do firmamento. Olharam em redor e viram pela primeira vez o cenário da costa onde tinham ido encalhar; rodeava-os a estepe, com a taiga e as montanhas a crescerem lá adiante, a costa rasgada em sucessivas enseadas, baías e cabos, aqui línguas de praia, ali penhascos escarpados. Procuraram sinais dos companheiros em terra e na água, mas apenas vislumbraram a sombra do caiaque abandonado a balouçar diante da praia, como um tronco perdido, oscilando ao ritmo cadenciado das ondas que se desfaziam e refaziam na areia.
"Ê melhor irmos andando", sugeriu Tomás.
Desta vez Nadezhda concordou com a sugestão e levantou-se. A luz do alvorecer era ainda ténue, mas suficiente para destrinçarem o caminho. Sentiam frio e fome e urgia que se pusessem em marcha. Calcorrearam a erva baixa da estepe e seguiram para sudoeste, acompanhando a linha da costa quando possível, procurando caminhos interiores sempre que necessário.
"O sítio para onde vamos ainda é longe?"
"Sakhyurta? São uns quarenta quilómetros."
Tomás rolou os olhos.
"Poça! Isso é uma maratona." Perscrutou o horizonte. "Não há nada antes disso?"
"Que eu saiba não."
"Essa terriola não é aquele sítio onde apanhámos o ferry para Olkhon?"
"É essa mesma. Podemos apanhar lá um autocarro e ir para Irkutsk."
"Mas não é perigoso? Os tipos que andam atrás de nós podem estar a vigiar aquela passagem..."
"E qual é a alternativa, Tomik?"
"Não sei. Diz-me tu."
Nadezhda apontou para as montanhas a noroeste.
"Podemos ir naquela direcção até chegarmos a Manzurka", sugeriu. "Mas são uns oitenta quilómetros."
193
"E se subirmos a costa?"
"E ainda pior. A próxima povoação é Baikalskoe, aí a uns trezentos quilómetros."
Tomás dobrou os lábios.
"Bem, então é melhor arriscarmos a terriola do ferry", resignou-se. "Pode até ser que consigamos apanhar uma boleia antes de lá chegarmos, quem sabe?"
A estepe não era lisa, mas ondulada, obrigando-os a escalar elevações e a descer declives. Pequenos arbustos apareciam dispostos a espaços regulares, como se tivessem sido cultivados; viam-se cardos e salvas e um toque de amarelo dos girassóis emprestava cor à paisagem acastanhada e seca.
"Não vive aqui ninguém?", exasperou-se Tomás ao fim de uma mera meia hora de marcha.
"Niet", confirmou Nadezhda, sem tirar os olhos do chão. "O solo é muito pobre, não vês? A estepe tem pouca água. Como isto é quase um deserto, ninguém quer vir para aqui."
Pequenos montes barravam-lhes por vezes o caminho, obri-gando-os a contornar os obstáculos para poderem seguir em frente. A conversa entre ambos era esporádica, feita aos repelões; tinham fome e sentiam-se cansados, queriam sair dali o mais depressa possível, mas viam-se forçados a conformar-se com a situação.
Tomás alimentava, todavia, um ressentimento que até esse momento decidira calar, mas agora, com tanto para andar e sem nada para dizer, sentia-se tentado a expulsar aquele ardor que o martirizava a lume brando.
"Tu gostas do Filipe?", arriscou.
Nadezhda encolheu os ombros.
"Não me queixo", disse. "Sempre cumpriu o combinado. Além disso, está a fazer uma coisa importante, não achas?"
"Claro", concordou Tomás. "Mas o que eu quero saber é se gostas mesmo dele."
"Oh, isso."
Caminhou calada.
"Então?"
"Homens são homens. Vocês gostam de sexo, eu gosto de sexo. Qual é o mal?"
"Mas gostas do Filipe?"
"Eu gosto de todos os homens com quem ando. Desde que Paguem, está tudo bem."
194
Tomás ficou um instante a remoer esta última afirmação.
"Não gostavas de sair dessa vida?"
"Qual vida? A de profissional do sexo?"
"Sim."
"Blin!", praguejou. "Mas qual é o teu problema?"
"Nenhum. Tenho apenas curiosidade, só isso." Olhou-a com intensidade. "És obrigada a essa vida?"
Nadezhda riu-se.
"Queres salvar-me, é?"
"Sim, porque não?"
A russa permaneceu uns instantes calada, analisando o chão que pisava.
"És um querido, Tomik. Mas eu não preciso de ser salva."
"Achas que não?"
"Sei que não. Ninguém me obriga a levar a vida que levo. Faço-o porque gosto do dinheiro e porque me dá prazer. Se eu quisesse acabar já hoje, acabava."
Fitou-o com jovialidade. "Sabes o que quer dizer o meu nome?"
"Nadia quer dizer alguma coisa?"
"Não, tolo. Nadezhda. Sabes o que quer dizer?"
Tomás contraiu o rosto numa expressão de ignorância.
"Não faço a mínima ideia."
"Nadezhda significa esperança." Sorriu com alegria. "Esperança. Percebes, Tomik? Eu tenho esperança." Fixou o horizonte com olhar sonhador. "Quando terminar a faculdade, no próximo ano, sabes o que vou fazer? Vou arranjar um Ivan qualquer e vou viver com ele para a Crimeia." Sacudiu o cabelo ruivo, num gesto despreocupado. "Não te preocupes comigo."
"E a máfia deixa-te?"
"Mas qual máfia? Levo a vida que quero levar e deixá-la-ei quando quiser deixá-la. Aqui não há máfias a mandar em mim. Faço o que quero com o meu corpo e quem o quiser tem de pagar." Apontou para Tomás. "E tu, com essa conversa de padre, ficas já a saber que se acabaram as borlas, ouviste? A partir de agora, queres brincadeira, pagas. Não és mais que os outros."
XXIV
195
Uma nuvem de poeira assinalou o que parecia ser a aproximação a uma estrada de terra batida. Os ponteiros do relógio de pulso de Tomás acercavam-se já do meio-dia e os dois fugitivos arrastavam-se em silêncio pela estepe, demasiado cansados e esfaimados para conseguirem falar. A floresta descia as montanhas e aproximava-se da pequena faixa de pradaria, mas ambos preferiram manter-se no descampado, onde a progressão era mais fácil.
A poeira levantada ao longe teve o condão de os despertar da letargia em que haviam mergulhado, animando-os como um balão vazio quando recebe um sopro de ar.
"Vem aí gente", exclamou Nadezhda, subitamente espevitada. "Até que enfim!"
"Mas vêm para cá", observou Tomás. "Precisávamos era de alguém que fosse para lá."
"Não faz mal. Se vem ali um carro, é porque há aqui uma zona de passagem.
Isso é óptimo."
Tentaram prever o percurso do automóvel que erguia toda aquela poeira, mas depressa perceberam que só havia um itinerário possível: o que os conduzia a eles.
A estepe não passava ali de uma estreita faixa apertada entre a taiga e o lago, pelo que as alternativas não abundavam. Como era evidente que nenhum carro podia cruzar a floresta densa e não viram qualquer outra nuvem de poeira que assinalasse mais trânsito numa eventual estrada pela floresta vizinha, tornou-se claro que o percurso da viatura que se aproximava teria inevitavelmente de ser feito pela orla, onde os dois se encontravam. Subiram a uma elevação e ficaram ali em pé, aguardando com expectativa que a viatura viesse ter com eles.
A nuvem cresceu e o motor do automóvel tornou-se audível; parecia um urro em crescendo. O carro emergiu de repente de uma lomba e ficou à vista de ambos.
Era um jipe. Logo atrás apareceu um outro e Tomás sentiu um baque no peito ao reconhecê-los da noite anterior.
"São eles!", gritou.
Puxou Nadezhda pelo braço e correu encosta abaixo, galgando desenfreadamente pela estepe. Não tinha a certeza de que haviam sido avistados, mas isso parecia-lhe possível, provável até. O medo aligeirou-lhe o passo e o cansaço eva-porou-se, substituído por uma injecção de energia que supunha já não possuir. Correram os dois pelo descampado, medindo a aproximação dos jipes com os ouvidos e o canto dos olhos, e num instante cruzaram a linha das árvores e embrenharam-se na taiga.
Cercados pelos pinheiros e pelos arbustos, a progressão tornou-se mais lenta, tão lenta que puderam aperceber-se do silenciar dos motores e do barulho de portas a 196
bater. Tinham sido localizados e os desconhecidos davam-lhes caça. Ouviram gritos de homens e, como uma descarga de adrenalina, esses sons da perseguição deram-lhes novas forças, impelin-do-os para a frente numa cegueira de fuga; correram o mais que puderam por entre as árvores, embatendo em ramos, as roupas e a pele a serem rasgadas por cardos e flores silvestres. Nada, porém, os travava; corriam como lebres pela verdura, esgueirando-se por entre os pinheiros, procurando a todo o custo ganhar distância em relação aos seus perseguidores.
As ordens continuavam a ser berradas algures lá atrás, ora mais próximas, ora mais distantes. Havia alturas em que tinham a nítida impressão de que iam ser aniquilados a todo o momento, mas logo a seguir ficavam com a convicção de que se distanciavam dos desconhecidos. Sentiam os pulmões rebentar e achavam que o fragor da sua respiração era tão alto que inevitavelmente os denunciaria, mas prosseguiram a corrida, avançando sempre mais e mais, internando-se pro-fundamente no coração da floresta.
Um "ai" gemido fez Tomás olhar para trás. Viu Nadezhda caída junto a um arbusto.
"Anda", disse, voltando para trás e dando-lhe a mão. "Depressa."
A russa tentou erguer-se, mas logo esboçou um esgar de dor.
"Não consigo", soluçou. "Torci o pé."
Tomás puxou com mais força.
"Anda. Não podemos parar."
A rapariga levantou-se e deu alguns passos, mas eram mais saltos ao pé-
coxinho do que corrida; tornava-se evidente que não tinha condições para continuar.
"Não consigo", queixou-se ela. "Dói-me."
Tomás olhou para trás. Os perseguidores ainda não tinham aparecido, embora lhe parecesse claro que, se permanecessem ali, depressa seriam apanhados. Olhou em redor, desesperado, à procura de soluções rápidas, mas só uma ideia lhe martelava a mente.
"Temos de sair daqui."
"Foge tu", disse ela. "Tu podes correr, eu não. Foge, Tomik."
O historiador olhou-a, tentado. O que Nadezhda estava a dizer fazia todo o sentido. Se ficasse com ela seriam apanhados os dois; se fugisse, talvez conseguisse escapar. Para todos os efeitos, ela estava perdida. O mais sensato era, sem dúvida, fugir.
Quase aceitou a sugestão, mas no último instante fraquejou. Não a podia deixar ali. Lembrou-se do que tinha acontecido aos dois cientistas abatidos anos 197
antes por aqueles mesmos homens ou outros semelhantes e soube que deixá-la para trás seria condená-la a uma morte certa. Não, não era capaz de o fazer. Se o fizesse, sabia que não poderia viver com isso. Mas o problema é que permanecer naquele lugar era um verdadeiro suicídio. O que decidir? Deveria fugir ou seria melhor ficar?
Voltou a procurar sinais dos perseguidores. Ainda não tinham aparecido, mas já ouvia as vozes a aproximarem-se. Não podiam permanecer os dois ali mais tempo, tinham de se mexer. Os segundos esgotavam-se e precisava a todo o custo de sair do impasse e encontrar uma solução.
"Apoia-te aqui", disse, oferecendo-lhe o ombro e seguran-do-a no braço, que enlaçou à volta do pescoço. "Vamos."
Arrastou-a pela floresta no passo mais rápido de que foi capaz, ela a coxear apoiada nele, Tomás arrastando-a com esforço, mas depressa percebeu que assim não iriam a lado nenhum. Começava a sentir-se exausto e, progredindo a tanto custo, era óbvio que a qualquer instante seriam alcançados.
Na aflição do momento vislumbrou um arbusto entre dois pinheiros e correu para ali. Ajudou Nadezhda a refugiar-se atrás dos ramos e seguiu-lhe o exemplo, procurando ocultar-se por entre a folhagem. Respiravam os dois pesadamente, os peitos arfantes, e Tomás fez sinal de que teriam de controlar aquele arquejar sôfrego e respeitar absoluto silêncio.
Silêncio.
O pipilar das aves enchia a taiga de uma melodia serena, mas o que antes seria considerado um simples concerto da natureza afigurava-se-lhes agora como uma sinistra entrega às forças primitivas da floresta. O chilrear dos pássaros lembrava-lhes que aquele não era o mundo dos homens, que as leis ali eram diferentes, que qualquer caçador se podia tornar caça de alguém. Esperaram em silêncio, a atenção focada noutro tipo de som, e não tiveram de aguardar muito. Ouviram vozes de homens e a vegetação a ser remexida. Não havia dúvidas, os perseguidores encontravam-se por perto. Deixa-ram-se ficar muito quietos, a respiração quase suspensa, os olhos a dançarem em todas as direcções, gotas de suor a brotarem do topo da testa, rezando para que o arbusto os conseguisse de facto ocultar.
Entregue à angústia da espera, Tomás começou a questionar a eficácia do esconderijo. Momentos antes, na aflição da fuga, na vertigem do desespero, aquele arbusto parecera-lhe uma excelente solução. Mas agora não tinha tanta certeza.
Imaginou os perseguidores ali ao pé, os olhos perscrutantes, a atenção redobrada, e percebeu que ele e Nadezhda se encontravam expostos, quase nus, como crianças que se escondem por detrás de uma cortina e com os pés denunciam a sua presença.
Impossível não serem vistos, concluiu, o coração aos saltos de medo e de exaustão.
Impossível. Que disparate terem ido para ali, martirizou-se. Mas já não havia nada a 198
fazer, esconderam-se ali e não dispunham agora de alternativa. Só lhes restava permanecerem quietos, imóveis como estátuas, e rezarem para que os desconhecidos não os lobrigassem. Essa era a única possibilidade de...
Um homem.
Viram um galho remexer e um homem apareceu de repente diante do esconderijo, caminhando com cautela, furtivo, atento aos sons, com a pose felina de um caçador. Vinha de jeans e casaco de couro, mas foi o objecto que trazia nas mãos que mais terror inspirou a Tomás. Sem nunca a ter visto a não ser em filmes e fotografias de jornais, o historiador reconheceu a AK-47. O homem avançava pela taiga com uma kalashnikov nas mãos e não havia dúvida de que eram eles a caça.
Tomás e Nadezhda congelaram de terror, as batidas cardíacas tão violentas que temeram pudessem ser escutadas a mais de cem metros de distância; era como se a morte rondasse por ali, farejando-lhes o medo, sentindo-lhes o rasto quente.
Ouviram uma outra voz, parecia ecoar do outro lado, mas mais ninguém apareceu. O
homem da kalashnikov imobili-zou-se por momentos na clareira diante do arbusto, disse qualquer coisa em russo para alguém que ali não viam e retomou a marcha, desaparecendo por entre a folhagem.
Os dois fugitivos permaneceram paralisados, o credo na boca, receando que surgissem mais desconhecidos. Escutaram novas vozes, agora à direita; era como se a linha de caçadores acabasse de passar por eles sem que tivessem sido avistados. As palavras trocadas entre os desconhecidos pareciam agora afastar-se e Tomás suspirou de alívio.
"Estão a ir-se embora", sussurrou, tão baixo que ele próprio teve dificuldade em ouvir-se.
"Sim", devolveu ela no mesmo tom.
"Percebeste o que diziam?"
"Andam à nossa procura."
"Mas já nos perderam. Se calhar é melhor aproveitarmos para fugirmos na outra direcção."
"Fica quieto. Eles sabem que estamos escondidos."
"Sabem?"
"Sim. Estão a falar nisso."
"Então o que fazemos?"
"Temos de ficar quietos. Se nos mexermos ou fizermos barulho, eles dão connosco."
199
Calaram-se e deixaram-se ficar, muito quietos e tensos, com tanto pânico que ansiavam por sair dali a correr, com tanto medo que não eram capazes de se mexer.
Novas vozes confirmaram que os homens permaneciam no sector e o som de vegetação a ser remexida enchia a taiga, como se os desconhecidos estivessem a vasculhar em cada canto da floresta. Os sons pararam e os homens puseram-se por instantes a dialogar.
"Eles vão voltar para trás", soprou Nadezhda, que acompanhava a conversa.
Acto contínuo, as vozes tornaram-se, de facto, mais altas e os dois fugitivos suspenderam de novo a respiração. Sentiram a presença a aproximar-se e ambos paralisaram, sem saber muito bem como os seus corações iriam resistir a uma segunda ameaçadora passagem dos estranhos. Ouviram o barulho de mais galhos a serem revirados e, de repente, deram com as pernas de um homem diante deles, a meio metro do arbusto, a kalasbnikov voltada para baixo. O desconhecido também vestia jeans, mas era mais encorpado que o anterior. O homem ficou um instante parado, tão próximo que só lhe viam as pernas e a barriga, e desejaram intensamente que ele se afastasse o mais depressa possível.
Mas o desconhecido permaneceu parado. Um segundo homem veio ter com ele e ficaram os dois a olhar para um lado e para o outro, como se estivessem desconcertados. De repente, o segundo acocorou-se e espreitou para o arbusto.
Viram-se.
"Vot oni!n, gritou o russo.
Aterrorizado, Tomás quase saltou do arbusto a correr, mas as pernas estavam demasiado bambas, pareciam esparguete cozido, de modo que nem força teve para esboçar uma reacção.
Um inferno foi desencadeado em torno do arbusto. Os dois desconhecidos na clareira voltaram as kalashnikov para o esconderijo e logo se sentiu um movimento caótico em redor. Apareceram mais canos de armas vindas não se percebia bem de onde, algumas intrometendo-se por entre a folhagem, e uma voz rugiu.
"Vykhodíte ottuda", ordenou. "Bystro."
Nadezhda tremia de pavor.
"Eles querem que saiamos daqui", traduziu.
Como um sonâmbulo, os sentidos entorpecidos, Tomás afastou os ramos e ajudou a russa a sair. Logo que se endireitou, levou um soco no estômago e dobrou-se em dois, batendo com a testa no chão.
"Eto ti gueólog?", ladrou uma voz, ameaçadora.
Sentiu um cano colar-se-lhe à nuca e levou alguns segundos a recuperar a 200
respiração.
"Não entendo russo", disse em inglês, a boca a comer terra.
Ouviu uma pancada e um gemido de fêmea, era Nadezhda que tinha sido espancada. Seguiram-se novas perguntas em russo, a que a rapariga foi respondendo por entre soluços.
É o fim da linha, pensou Tomás.
Os russos gritavam com ela e ela respondia num pranto. Depois voltaram-se para ele, puxaram-lhe o cabelo para trás e um homem colou a boca ao seu ouvido e gritou mais alguma coisa em russo. O desconhecido apalpou-lhe o corpo, localizou-lhe os bolsos, revistou-os e retirou o que encontrou. Depois largou-lhe a cabeça e Tomás sentiu o cano voltar à nuca. Escutou vozes a conversar e, instantes volvidos, os restantes homens afastaram-se dois passos, como se quisessem evitar ser apanhados pelo que iria acontecer a seguir.
Vou ser fuzilado, compreendeu com terror.
Nadezhda soluçava. Pelo canto do olho, Tomás percebeu que ela estava igualmente deitada no chão, com uma kalashnikov colada à nuca. Fez-se silêncio na clareira.
Crack.
Um estrondo brutal soou ao lado de Tomás, ensurdecendo-lhe o ouvido direito. Virou o rosto e constatou, horrorizado, que Nadezhda tinha a cabeça desfeita. O sangue e a massa encefálica espalhavam-se pelo chão à mistura com os cabelos cor de cobre.
O cano que se encontrava colado à nuca de Tomás empur-rou-o para a frente, fazendo com que a suA cabeça embatesse no chão. Nesse instante pensou que tudo acabara. Iam disparar. A pressão sobre a nuca desapareceu e, sem compreender bem o que se passava, sentiu o corpo de um homem inclinar-se sobre as suas costas e colar de novo a boca ao seu ouvido.
"Vai-te embora, português", disse o desconhecido, agora em inglês. "Vai-te embora e nunca mais voltes."
Os homens começaram a mexer-se e, em poucos segundos, a clareira ficou deserta. Tremendo de nervos, a consciência Possuída por um sentimento de irrealidade, sem saber se aquilo nao passava de um sonho, Tomás ergueu-se devagar e sentou-se no chão. Os homens tinham mesmo desaparecido, deixan-do-lhe a carteira e o passaporte deitados aos pés.
Os seus olhos incrédulos pousaram então no corpo inerte e ensanguentado de Nadezhda, estendido no solo húmido como uma boneca partida, e foi nessa altura que chorou.
201
XXV
A vivenda exibia o mesmo aspecto tranquilo de sempre, talvez um pouco mais risonho do que das outras vezes que ali fora; afinal a Primavera sempre ia adiantada e os canteiros do jardim já floresciam com exuberância. As rosas comuns cintilavam ao sol, vermelhas e amarelas, intensas de vida, competindo com o laranja dos hipericões, as folhas translúcidas em contraluz; mas era o azul-celeste das nigelas, com as suas pétalas abertas como estrelas, que emprestava o tom exótico à verdura.
Tomás entrou na casa e foi como se estivesse à porta de outro mundo. Até esse instante vivera obcecado com a assustadora experiência que acabara de passar na Sibéria. Não conseguia apagar da memória o som da detonação da kalasbnikov que destruíra a cabeça de Nadezhda nem a imagem da rapariga deitada no chão da taiga, o cérebro espalhado pela clareira onde fora executada. O som e a imagem assombravam Tomás em permanência e fora com essa recordação a martelar a mente que fizera toda a viagem de regresso, desde as margens do Baikal até ao alpendre do lar, em Coimbra.
No instante em que atravessou a porta de entrada, porém, o repisar ininterrupto cessou abruptamente, parecia que a mente lhe concedera uma trégua piedosa. Era como se o subconsciente soubesse que, para lidar com o novo problema, não podia trazer para ali o anterior; tudo tinha o seu tempo e só podia ocupar-se de uma coisa de cada vez. Foi por isso com a cabeça inesperadamente limpa que seguiu direito ao gabinete da directora, a meio do corredor, e só parou quando viu o nome de Maria Flor assinalado numa pequena tabuleta pregada à madeira da porta.
"Posso?", perguntou, espreitando depois de bater.
A directora, sentada à secretária a consultar papéis, aco-lheu-o com um sorriso encantador.
"Faça o favor, professor." Fez um gesto para que ele se sentasse na cadeira diante da secretária. "Estava a ver que o senhor se tinha sumido da face da Terra."
Tomás acomodou-se no assento.
"Pouco faltou", comentou, estremecendo. "Estive ausente do país, onde vivi uma situação muito complicada, e só regressei hoje. Logo que saí do avião, em Lisboa, fui buscar o carro e vim direito aqui a Coimbra. Acabei de chegar."
"Eu reparei que o senhor não tem andado por cá."
O cliente encolheu-se na cadeira e baixou os olhos, ligeiramente envergonhado com o que se poderia pensar da sua ausência depois de ter deixado ali a mãe.
202
"Peço desculpa, mas foram obrigações profissionais", jus-tificou-se de novo.
Ergueu a cabeça, como se assinalasse que bastava de auto-recriminações. "A minha mãe? Como vai ela?"
"Fugiu."
Tomás arregalou os olhos. A informação atingira-o com a violência de uma bofetada.
"Como?"
"A sua mãe fugiu."
"Fugiu como?"
"É muito simples. Pegou nas coisas dela e saiu porta fora."
"Mas... mas vocês deixaram?"
A directora suspirou.
"O professor, o que poderíamos nós fazer? Não se esqueça de que tudo isto é novo para ela. A sua mãe estava habituada a uma determinada rotina e ao seu modo de vida, que lhe era muito familiar, e de repente viu-se transportada para um meio totalmente estranho, ainda por cima contra a sua vontade. Como era de esperar, reagiu mal."
Sentado na cadeira, Tomás começou a sentir a fúria cres-cer-lhe no peito como um vulcão prestes a irromper.
"Mas vocês deixaram-na sair?"
"Que eu saiba, professor, a sua mãe é adulta e mantém todos os seus direitos, incluindo a liberdade de movimentos. Se ela pegou nas suas coisas e saiu, o que podíamos nós fazer? Ela não é nenhuma prisioneira, pois não? Não foi condenada por nenhum tribunal, pois não?"
"Mas ela não pode andar por aí à solta, é um perigo para si própria. Onde está a minha mãe agora?"
Maria apontou para a porta.
"Está aqui."
"Perdão?"
"Está aqui no lar."
O cliente olhou para a directora, desconcertado.
"Desculpe, não estou a perceber. Não tinha dito que ela fugiu?"
"Disse e é verdade. Fugiu ao terceiro dia."
203
"E agora está aqui?"
"Sim, conseguimos trazê-la de volta, graças a Deus."
Tomás bufou de alívio.
"Ufa!"
"Tentámos falar consigo na altura, mas o seu telemóvel não se encontrava acessível. Nem imagina as vezes que lhe ligámos. Como sabíamos que a sua mãe era paciente do doutor Gouveia, lembrámo-nos de contactar o hospital e acabámos por falar com ele. Foi o doutor Gouveia que a localizou e a trouxe de volta."
"E como se sente ela agora?"
"Vai-se adaptando, felizmente. Quer ir vê-la?"
"Claro que sim", disse, erguendo-se de imediato. "Mas ela está bem, não está?"
"Está bem, tendo em conta os condicionalismos da situação e da idade, claro", respondeu a directora, mantendo-se sentada. "Era importante que o senhor cá tivesse estado para a acompanhar nos primeiros dias de integração aqui no lar."
"Sim, eu sei, mas acredite que me foi de todo impossível."
Tomás permaneceu um instante indeciso, sem saber se deveria sair ou sentar-se de novo. A postura da responsável do lar indicava-lhe que a conversa não estava terminada e talvez fosse melhor voltar para o seu lugar.
"Estas coisas são um pouco complicadas para nós, como deve compreender", disse Maria, determinada a fazer com que aquele cliente percebesse as suas responsabilidades. "Gerir um lar não é fácil e estamos sempre a defrontar-nos com situações novas. Ontem, por exemplo, houve uma octogenária que passou parte da noite a deambular pela casa, à procura da cozinha. Desorientou-se a voltar ao quarto e sem querer foi parar à cama de três residentes diferentes."
"A sério?", espantou-se Tomás, de regresso à cadeira. "Ena pá, quando eu for velhinho quero vir para aqui."
"Não brinque."
"Desculpe, mas já viu isto? Estou muito bem deitado no meu quarto e, a meio da noite, vem uma mulher meter-se na minha cama. Isso é o sonho de qualquer homem!"
Maria riu-se.
"Mesmo sendo uma idosa?"
"Com essa idade acho que não podemos ser picuinhas, não é? Em tempo de guerra, até ratos se comem."
204
Soltaram ambos uma gargalhada, mas a directora depressa se recompôs. Não lhe pareceu de bom tom estar a divertir-se à custa daquele tema.
"Oiça, o senhor está a brincar, mas isto é sério."
O sorriso evaporou-se do rosto de Tomás, que assentiu com a cabeça.
"Eu sei."
"Temos clientes que são uns amores. São muito educados e até pedem desculpa se não conseguem comer sozinhos ou se sujam a cama durante a noite."
Ergueu os olhos para o tecto, como em desespero. "Mas há outros..."
Deixou a frase suspensa no ar.
"Então? O que fazem os outros?"
"Tudo e mais alguma coisa. Uns não se controlam e deixam excrementos por todo o quarto, é uma coisa terrível. Eu sei que eles não têm culpa, mas mesmo assim custa entrar ali e limpar tudo, não é? Às vezes até tenho pena das empregadas."
"Esses devem ser os piores."
"Não. Os piores são os mal-humorados, aqueles que nos agridem verbalmente desde que acordam. Ou o pequeno-almoço é demasiado cedo ou é demasiado tarde, ou a cama está demasiado perto da janela ou demasiado afastada, ou somos todos uns filhos da mãe ou deixámos um pêlo por limpar na banheira, ou lhes tirámos dinheiro da carteira ou os maltratámos, ou a comida está demasiado salgada ou demasiado insonsa, enfim, está sempre tudo mal. E depois criam conflitos com os outros, trocam acusações, é uma tourada." Abanou a cabeça. "Oiça, há pessoas que fazem da nossa vida um verdadeiro inferno."
"Com a idade, os defeitos acentuam-se, não é?" "E de que maneira", concordou Maria. "Mas o que se passa é que muitos se sentem revoltados e, à falta de melhor, descarregam em nós. Essa é que é a raiz do problema e temos de compreender isso."
"Não me diga que a minha mãe está nesse grupo." "Não, coitada. A dona Graça é uma querida. Ela teve dificuldades na adaptação, é verdade, mas nota-se que é uma pessoa de nível, incapaz de maltratar quem quer que seja." "Sim, muito me admiraria ouvi-la insultar alguém." A directora ergueu-se enfim da cadeira, assinalando desse modo que a conversa se aproximava do fim.
"Há ainda os chatos, claro. Coitados, não têm culpa, mas atrapalham imenso o serviço. Uns passam o dia a gritar, outros seguem-nos por toda a parte, e há dois ou três que perguntam a mesma coisa ou contam a mesma história cinquenta vezes ao dia. Precisam muito de apoio, mas as exigências do serviço impedem-nos a nós de alimentar as conversas. Como pode uma empregada ficar meia hora à conversa com um residente quando tem dez quartos para limpar durante a manhã?"
"Realmente..."
205
Maria Flor acompanhou Tomás até à porta do gabinete e saíram para o corredor. Uma idosa cruzou-se com ambos, quase a arrastar as chinelas; usava um robe branco com folhos
rendilhados e tinha os cabelos brancos apanhados num rabo-de-cavalo.
"Está a ver esta senhora?", sussurrou a directora quando a idosa se afastou.
"Sim."
"Passa a vida a andar pelos corredores. Sentamo-la à mesa à hora das refeições, mas basta distrairmo-nos um minuto e, quando damos por ela, está de novo a passear pelos corredores. É exasperante."
"Se calhar era melhor estas pessoas ficarem todas em casa, não?"
"E quem é que cuidava delas? Hoje em dia as pessoas não têm vida para ficar em casa a limpar o rabo aos pais e a aturar-lhes as manias. Essa é que é a verdade.
As pessoas hoje vivem mais tempo e o estilo de vida das famílias não permite lidar com tanta população envelhecida. Antigamente pouca gente chegava a velha e, para esses poucos que atingiam idades avançadas, havia toda uma estrutura familiar a servir de apoio. Repare que as mulheres naquele tempo não iam trabalhar, ficavam em casa a tratar dos seus. Ora hoje já não é assim. Graças aos avanços da medicina, há muito mais velhos do que no passado e, com a entrada em força das mulheres no mercado de trabalho, deixou de haver estrutura familiar montada para lidar com os idosos, está a perceber?"
"Pois, o perfil demográfico da sociedade mudou."
"Ai mudou, mudou", concordou ela, enfática. "No pé em que as coisas estão, a ajuda profissional fornecida pelos lares, desde que tenham qualidade, é fundamental, não tenha dúvidas." Apontou para o chão, indicando o lar. "Mas é preciso perceber o que é a velhice para entender o que se passa aqui dentro. Há quem diga que um lar tem de ser como a casa do residente, mas isso não passa de uma ilusão que as pessoas de fora alimentam para não se sentirem perturbadas com a realidade incómoda." Fez um gesto em redor. "A verdade é que um lar é como um hospital, já viu? Os residentes válidos e autónomos contam-se pelos dedos. A maior parte precisa de ajuda para as tarefas mais simples. Não se conseguem lavar sozinhos, não conseguem comer sozinhos, alguns nem sequer andam, outros têm enorme dificuldade em urinar, muitos já não estão na posse de todas as suas faculdades mentais, enfim, o que temos aqui são mais pacientes do que clientes."
"Isto é complicado."
Maria apontou para Tomás.
"E depois ainda temos de vos aturar, não é?"
"A mim?"
206
"Sim, a vocês. Os familiares."
"O que fazemos nós?"
"Você não fez nada... o que, aliás, não abona muito a seu favor."
"Não me vai dar uma reprimenda, pois não?"
"Oiça, eu não tenho nada a ver com isso, mas gostaria que percebesse que a presença dos familiares é crucial para ajudar os idosos nesta fase difícil da vida.
Muitos dos velhos parecem já não entender nada de nada, é verdade, mas isso não quer dizer que se tenham tornado insensíveis. Pelo contrário, são muito sensíveis à atenção que a família lhes presta."
"Eu sei que estive ausente, mas acredite que não podia mesmo vir", desculpou-se de novo. "Tive compromissos inadiáveis."
"O senhor é que sabe, eu não me meto nisso", repetiu ela. "Mas, sem lhe querer dar uma lição de moral, acho que é importante que saiba que a sua presença pode fazer a diferença na adaptação da sua mãe à vida no lar. As pessoas não devem meter os idosos num lar e depois esperar que o lar resolva todos os problemas, como por artes mágicas, porque isso não vai acontecer. O nosso trabalho é manter as pessoas asseadas, medicadas, aquecidas e alimentadas. Damos as condições materiais que a família compreensivelmente já não pode dar. Mas, no plano emocional, e por mais simpáticos e meigos que sejamos com o residente, nada substitui o contacto com a família. Por favor, venha visitar a sua mãe com frequência, não a faça sentir-se rejeitada e abandonada."
Tomás baixou a cabeça e mordeu o lábio. Sabia que era uma mensagem direitinha para si.
"Tem razão."
Estacaram diante da sala. A directora passeou os olhos da esquerda para a direita e fixou-se na figura sentada à janela.
"A sua mãe está ali", disse. "Antes que vá ter com ela, deixe-me lembrar-lhe uma coisa: nesta idade, estamos sempre a perder algo. "
"O que quer dizer com isso?"
"Os neurónios vão-se apagando, umas vezes mais depressa, outras mais lentamente. É a lei da vida. O que eu quero que você perceba é que, de cada vez que cá vier, pode encontrá-la diferente. E raramente será para melhor."
O sol acariciava as rugas que o tempo sulcara no rosto de dona Graça quando Tomás se inclinou e a beijou na face.
"Olá, mãe, está boa?"
Dona Graça ergueu os olhos verdes límpidos e prendeu-os no filho, que a observava com nervosa expectativa.
207
"Pai", exclamou, abrindo os braços. "Pai."
Tomás olhou-a, embasbacado.
"Mãe, sou eu. O Tomás."
Ela pareceu admirada. Ficou um instante suspensa a olhar para o recém-chegado, quase indecisa, até que caiu em si.
"Ai, desculpa", disse, abanando a cabeça como se quisesse sacudir qualquer coisa. "Estou a ficar confusa. Parecias-me o meu pai." Acariciou-lhe o rosto. "És bonito como ele."
"Pois, herdei-lhe os genes."
"Ainda noutro dia o meu pai e a minha mãe me disseram que parecias um anjo."
O filho acomodou-se na cadeira vazia diante de dona Graça. Não havia dúvidas de que estava confusa, falava como se os pais ainda estivessem vivos.
"Então como se tem estado a dar por aqui?", perguntou, desviando a conversa.
"Tenho saudades de casa. Já disse ao teu pai que quero voltar."
As recordações misturavam-se todas. Na sua vivência, o marido permanecia vivo, provavelmente mais novo ainda.
"A mãe dorme bem?"
"Nem por isso. Entram-me no quarto umas pessoas estranhas, é uma maçada."
"São as empregadas, para ver se está tudo bem."
"Prefiro a Alzira, já estou habituada a ela." Era a empregada doméstica do tempo em que Tomás estudava no liceu. "Além do mais, cozinha melhor. As empregadas aqui deviam tirar um curso de culinária, como aqueles na televisão, sabes? Aquele do programa da... da Maria de Lurdes Modesto. Esses aí."
Tomás olhou em redor, observando os idosos sentados no salão. Uns dormitavam, outros tinham o olhar perdido no infinito, uma tricotava e três jogavam às cartas.
"A mãe ainda não arranjou amigas?"
"Claro que sim", disse ela. "Sabes quem é que encontrei aqui?"
"Não."
"A Deolinda. Lembras-te dela?"
"Não faço ideia de quem seja."
208
"Claro que fazes! Conhecemo-la quando andávamos no liceu."
"O mãe, eu nunca andei no liceu consigo. Quando a mãe andava no liceu eu nem sequer tinha nascido."
Dona Graça reflectiu, tentando reordenar a memória.
"Tens razão, ando mesmo despassarada. Eu e o teu pai é que a conhecemos no liceu." Encolheu os ombros. "Pois olha, vim agora encontrá-la aqui."
"E como está ela?"
A mãe riu-se.
"Uma depravada", murmurou. "Aquela rapariga sempre foi uma Maria maluca e pelos vistos não se emendou. Aquilo está-lhe na massa do sangue, não há nada a fazer."
"Ah, sim? Porque diz isso?"
"Tu não imaginas as fitas que ela faz todos os dias. Valha-me Deus!"
"Diga lá."
Dona Graça inclinou-se e baixou a voz, como se estivesse a contar um segredo.
"Olha, anda a ver se catrapisca o enfermeiro."
"Qual enfermeiro?"
"Um rapaz novo que trabalha aqui. A Deolinda passa a vida a exigir que o enfermeiro lhe ponha creme no ânus, mas o médico já a viu e concluiu que não há problema nenhum com o ânus dela." Um risinho. "E a marota insiste. Diz que já não se fazem homens como antigamente, que são todos uns rabichos e exige que lhe ponham a pomada no ânus."
"Diabo da velha", sorriu Tomás.
Dona Graça olhou para o lado e estremeceu.
"Chiu", disse. "Ela vem aí."
O filho voltou a cabeça para a porta e viu uma idosa aproximar-se em passo ligeiro com uma chávena de chá na mão. Trazia um vestido cinza, a saia a arrastar-se pelo soalho.
"Mas quem é este belo rapaz que aqui está?", perguntou a recém-chegada, acercando-se da mesa.
Dona Graça afinou a voz.
"O Deolinda, deixa-te de disparates." Pousou a mão no braço do filho. "Este é o meu Tomás."
209
Deolinda olhou-o dos pés à cabeça.
"Hmm... nada mau", disse, a voz insinuante. "Olha lá, rapaz, tu sabes pôr pomada numa senhora?"
XXVI
A tabuleta à saída da auto-estrada assinalava a familiar portagem de Alverca quando Tomás, uma mão no volante e a outra a ultimar os preparativos para a chamada, ajeitou o auricular e digitou os números.
O telemóvel tocou no outro lado da linha.
"Olá, professor", saudou a voz que atendeu. "Já está de volta?"
"Como vai, Orlov?"
"Ora, cheio de fome!", lamuriou-se o russo. "Ainda não jantei", suspirou.
"Então conte lá. Encontrou o seu amigo?"
"Sim."
"Onde está ele?"
"Não sei."
Orlov estalou a língua com desagrado.
"Oiça, professor", disse, num tom de infinita paciência. "O senhor tem de nos contar alguma coisa, não é? Afinal foi a Interpol que pagou todas as despesas da sua viagem.
Se pagámos, temos ao menos o direito de saber o que se passou."
"Sem dúvida", reconheceu Tomás. "O problema é que não vos posso dizer onde ele se encontra porque eu próprio não sei."
"Como assim? Não esteve com ele?"
"Estive."
"Onde?"
"Na Rússia."
Orlov riu-se.
"O seu amigo escondeu-se na minha terra?" Soltou uma risadinha. "Eu devia ter calculado. Sabe, quando li que ele tirou o curso em Leninegrado, pressenti que poderia ter fugido para lá. Bem vistas as coisas, sempre conhecia o sítio, não é? Mas depois não dei sequência a esse pressentimento, pensei cá para os meus botões: se estivesse no lugar deste Filipe Madureira, onde me iria esconder? No frio? Ia passar o resto dos meus dias no meio do gelo? Hmm... nem pensar!" Riu-se de novo. "Ia para as Caraíbas!"
210
"Pois é, mas a verdade é que me encontrei com o Filipe na Rússia."
"Onde foi o encontro? Em Sampetersburgo?"
"Na Sibéria."
O russo assobiou do outro lado da linha.
"Não admira que ninguém tenha dado por ele este tempo todo", observou. "O
tipo foi para a Sibéria?"
"Sim."
"E ainda lá está?"
Tomás pigarreou.
"Oiça, Orlov. Não é possível termos esta conversa ao telefone. Quando podemos encontrar-nos?"
"Hoje."
"Hoje não posso. O meu avião aterrou esta manhã em Lisboa, fui a correr até Coimbra ver a minha mãe e estou agora de regresso a Lisboa. Sinto-me arrasado e preciso de dormir. Não imagina o que tem sido a minha vida nos últimos dias."
"Muito bem, então amanhã", disse Orlov. "Mas o senhor tem de me dar alguma coisa de palpável. O meu chefe em Lyon já me esteve a gritar aos ouvidos.
Está impaciente, quer resultados bem depressa e preciso de apresentar serviço."
"Diga lá onde nos podemos encontrar."
"Meio-dia no Victor, pode ser?"
"Victor? Quem é esse?"
"É um restaurante em Alcabideche, ao pé de Cascais. Conhece?"
Apesar da fadiga, Tomás não conseguiu conter um sorriso, tão previsível era Orlov. Muito espantado ficaria se, com aquele russo, não houvesse um restaurante metido na conversa.
O aroma quente da carne assada enchia o grande salão do Victor, onde algumas mesas já estavam ocupadas. Ainda era cedo, faltavam dois minutos para o meio-dia, mas os empregados afadigavam-se de um lado para o outro com travessas equilibradas nas mãos e garrafas de vinho tinto envoltas em guardanapos. O
ambiente era tranquilo, perfumado pelas essências deliciosas dos condimentos e pelo odor salivante dos alimentos ao lume; a meia-luz amarelada que alumiava os cantos parecia acariciar o barro da decoração, conferindo ao restaurante o aspecto acolhedor das adegas.
Tomás examinou os clientes num relance e, não identificando Orlov, 211
embrenhou-se no salão e meteu pela passagem esconsa à direita, desembocando no segundo salão. Deu com o vulto maciço do russo numa mesa ao canto, o corpanzil inclinado sobre um prato, gotas de transpiração a descerem-lhe pela face afogueada, a boca besuntada de gordura.
"Já está a comer?", perguntou o recém-chegado ao apro-ximar-se da mesa.
"Hmpf", grunhiu Orlov, levantando-se num susto, como uma criança apanhada em flagrante na despensa com a mão metida no frasco dos rebuçados.
"Olá, professor." Fez um gesto desajeitado na direcção dos pratos espalhados pela mesa. "Desculpe, mas não me aguentava de fome. Quando entrei aqui e senti este cheirinho... olhe, não resisti."
"Fez muito bem, não se preocupe", tranquilizou-o Tomás, ocupando o seu lugar à mesa. "A comida foi feita para ser comida."
"É servido?"
A mesa estava coberta com as entradas mais variadas, todos elas irresistivelmente deliciosas, formidáveis bombas de colesterol. Viam-se morcelas, chouriços, tâmaras em toucinho, presunto com melão, queijo da Serra amanteigado, ovas em azeite, amêijoas à Bulhão Pato, conquilhas, uma santola gratinada e uma garrafa de Dão já a meio, o copo ao lado com o vidro borrado de gordura.
"Ena, você trata-se bem!"
"Oh, faz-se o que se pode, faz-se o que se pode."
Tomás serviu-se de umas amêijoas, o que constituiu um sinal para Orlov se atirar de novo aos petiscos, mergulhando a colher nas entradas e reabastecendo o seu prato.
"A primeira coisa que quero fazer é dar-lhe conta de um homicídio", anunciou Tomás, indo direito ao assunto.
Orlov suspendeu momentaneamente a colher no ar; eram ovas pingando azeite.
"Um homicídio? Qual homicídio?"
"Fui para a Sibéria com uma rapariga chamada Nadezhda, uma amiga do Filipe que foi o meu contacto em Moscovo. Ela foi uma espécie de guia, percebe?
Acontece que, no regresso, fomos perseguidos por uns homens armados que a mataram."
"Que raio de história é essa? Você foi perseguido por homens armados?"
"Já lhe explico. Mas primeiro gostaria de lhe dar conta do homicídio. A rapariga foi morta numa floresta, junto à margem norte do lago Baikal e o corpo dela ainda lá deve estar."
212
"Se é assim, a polícia russa já foi certamente retirar o cadáver."
"Não, porque tudo aconteceu num lugar ermo no meio da floresta e eu não alertei as autoridades."
"Ah, não? E porquê?"
"Ora, porque não queria mais complicações. Se eu fosse ter com a polícia, só saía da Rússia daqui a uns meses. E isto se saísse! Na volta ainda me acusavam do homicídio e eu acabava na prisão ou num campo de trabalhos forçados."
"Sim, não é impossível."
"Portanto, ao falar consigo estou a alertar a Interpol para o sucedido. Presumo que vocês possam falar com a polícia russa e eu estou disponível para prestar os esclarecimentos necessários."
Orlov fez um ar pensativo.
"Isso vai ser complicado", considerou. "Oiça, ponha-me tudo por escrito e eu vou enviar o assunto para Lyon. À margem disso, irei efectuar uns contactos informais com uns amigos meus da polícia russa para ver o que se pode fazer."
"Agradeço-lhe."
"Mas o que o senhor me está a contar deixa-me um pouco preocupado. Então houve homens armados que foram atrás de si e mataram a sua guia?"
"Sim."
"Quem eram esses tipos?"
"São provavelmente os mesmos que abateram o cientista americano na Antárctida e o espanhol em Barcelona. Ou são os mesmos, ou estão a mando da mesma pessoa ou organização. Para todos os efeitos, este homicídio encontra-se evidentemente relacionado com os assassínios que você está a investigar."
"Como diabo sabe você isso?"
"Estes tipos andavam atrás do Filipe."
"E então? Podia ser um ajuste de contas local. O seu amigo tem tido nesta história um comportamento altamente suspeito, se quer que lhe diga."
Tomás inspirou devagar, avaliando por onde deveria começar.
"Oiça, esta história é muito complicada", disse. "O Filipe fazia parte de um grupo de cientistas que estava a investigar o aquecimento global e a sua relação com os combustíveis fósseis. Dois desses cientistas foram assassinados em 2002, como sabe. Os outros dois, o Filipe e o tal Cummings, tiveram de se esconder para escapar aos assassinos."
"Isso é o que diz o seu amigo", observou Orlov, fazendo um esgar céptico.
"Quem me garante a mim que eles não tiveram de se esconder para escapar à 213
justiça? Hã? Se estão tão inocentes como afirmam, por que razão não se apresentaram ainda à polícia?"
"Pela simples razão de que a polícia não os pode proteger."
O russo riu-se com sarcasmo.
"Que disparate", exclamou. "Claro que pode." Bateu com o dedo na mesa, para enfatizar a sua ideia. "Se eles não se apresentaram à polícia, não tenha dúvidas, é porque não estão de consciência tranquila."
"Oiça, não é assim tão simples. Os assassinos estão a mando de uma organização muito poderosa. Se calhar é mais do que uma organização. São países."
"Países? Que história é essa?"
"É como lhe estou a dizer. Não há polícia nenhuma que consiga fazer frente aos interesses que estão em jogo."
"Diz quem?"
"Digo-lhe eu e diz o Filipe."
"Mas que interesses tão poderosos são esses?"
"São os interesses do maior negócio do mundo."
"A droga?"
"O petróleo."
"Os interesses ligados ao petróleo estão por detrás dos assassínios dos professores Dawson e Roca?", admirou-se Orlov. "Isso não faz sentido nenhum."
"Pelo contrário, faz todo o sentido", insistiu Tomás. "A descoberta da ligação entre o aquecimento global e os combustíveis fósseis põe a indústria do petróleo em grave perigo. Estão em jogo biliões de dólares e a sobrevivência de multinacionais e até de países. A política internacional tem sido ditada por estes interesses, com a indústria petrolífera a financiar campanhas presidenciais nos Estados Unidos e a ver os seus interesses estratégicos defendidos intransigentemente pela Casa Branca. Sem petróleo, as empresas petrolíferas não podem sobreviver. E sem petróleo acaba-se também o poder dos países do Médio Oriente. O que vão a Arábia Saudita e o Kuwait, por exemplo, exportar quando o mundo já não quiser o petróleo?" Arqueou as sobrancelhas. "Areia? Camelos?" Abanou a cabeça. "Sem petróleo, muitos países da OPEP deixam de ter futuro. E a minha pergunta é esta: como acha que esses países e essas multinacionais vão lidar, ou estão a lidar, com todos aqueles que põem em causa o seu futuro?
Acha que ficam quietos? Encostam-se a uma árvore e deixam correr o 214
marfim?" Inclinou a cabeça, como se estivesse a mostrar um outro caminho. "Ou fazem alguma coisa? Ou actuam para pôr fim à ameaça?"
Orlov mastigava duas tâmaras em toucinho, mas os olhos estavam fixados nos cantos do salão com uma expressão meditativa.
"O senhor acha mesmo que são os interesses do petróleo que estão por detrás de tudo isto?"
"Depois de tudo o que vi e ouvi, não tenho grandes dúvidas."
"Essa acusação é muito grave."
"Oiça, Orlov, já reparou que os interesses do petróleo estão em toda a parte?
São uma rede imensa e estendem-se da Casa Branca ao Médio Oriente." Baixou o tom de voz, quase com medo que o escutassem nas mesas ao lado. "Estamos perante forças muito poderosas e altamente motivadas para defenderem a qualquer preço um negócio tremendamente lucrativo. Se tiverem de afastar quatro ou cinco pessoas que se lhes atravessem no caminho, não vejo que isso constitua problema para esses interesses."
O russo abanou a cabeça, o cepticismo estampado no rosto.
"Mesmo assim, continuo a achar que não faz sentido."
"Porquê?"
"Por que razão andariam os interesses do petróleo atrás desses quatro cientistas em particular? No fim de contas, existem muitos cientistas a estudar as ligações entre o aquecimento global e os combustíveis fósseis. Porquê perseguir estes quatro?"
"Porque eles fizeram uma descoberta que, pelos vistos, arruma de vez com o negócio do petróleo."
Orlov franziu o sobrolho.
"Que descoberta?"
O seu interlocutor encolheu os ombros.
"O Filipe não me explicou."
"Porquê? Ele não confia em si?"
"Não é isso. Ele disse que contará tudo quando o momento for apropriado."
"Isso será quando?"
"Não faço a mínima ideia."
O russo afagou o queixo.
"Onde anda o seu amigo agora?"
215
"Não sei. Nem sequer sei se ainda está vivo."
"Há-de estar, com certeza."
"Espero que sim. Mas a única coisa que sei é que estávamos os dois na Sibéria quando apareceram os homens armados e, logo que começámos a ser perseguidos, tivemos de nos separar."
"Para onde foi ele?"
"Não sei. O Filipe fugiu com um amigo russo, eu escapei-me com a guia que conheci em Moscovo. Mais tarde, nas margens do Baikal, os homens armados deram connosco e mataram a guia. Não sei se eles apanharam também o Filipe, não faço ideia."
"Se o tivessem apanhado, provavelmente já o saberíamos", conjecturou Orlov. "Mas, se as coisas são como o senhor diz, apanhá-lo é uma mera questão de tempo. O seu amigo só tem uma hipótese de se safar desta embrulhada. Sabe qual é?"
"Hmm?"
"Nós chegarmos primeiro a ele."
"Nós, quem? Eu e você?"
"Nós, a Interpol." Rodou o garfo no ar. "Vocês combinaram voltar a encontrar-se?"
"Sim, o Filipe disse que me contactaria."
"Então se calhar convinha levar-me consigo, não acha?"
"Isso depende das condições que o Filipe vier a impor. Olhe que ele está convencido de que nenhuma polícia do mundo o pode proteger de quem o persegue."
"Talvez", considerou Orlov. "Mas a Interpol é a sua melhor esperança.
Parece-me aconselhável eu ir consigo ao próximo encontro."
"Não sei se haverá próximo encontro. Mas, como lhe disse, tudo depende das instruções que o Filipe me der."
"Como queira", rendeu-se Orlov, erguendo o braço para chamar o empregado. "Mas depois não se queixem."
As entradas tinham acabado e mandou vir o cabrito assado.
Tomás passou o resto do dia a tratar dos assuntos que deixara pendentes.
Quando saiu do restaurante telefonou do carro ao doutor Gouveia para trocar impressões sobre o estado da mãe e depois seguiu para a faculdade. Tinha uma reunião da comissão científica, mas, uma vez lá, e embora o seu corpo estivesse 216
presente, a verdade é que não conseguiu acompanhar os trabalhos; as preocupações levaram-no para longe dali, os olhos de Tomás registavam o que se passava na sala de reuniões e a mente deambulava pelas imagens dolorosas do sucedido na taiga do Baikal. Assistiu à reunião como um sonâmbulo e foi como um sonâmbulo que passou depois pela Gulbenkian para verificar a chegada de documentação sobre as últimas peças de baixos-relevos assírios adquiridas recentemente em Amã para o museu da fundação.
Era já noite quando o professor de História entrou por fim no seu apartamento solitário. Encontrou tudo desarrumado, como deixara antes de partir para a Rússia, quase duas semanas antes, e veio-lhe à mente uma palavra para descrever o que via à frente. Uma pocilga. Os homens, concluiu ao passar desanimadamente os olhos pelo caos de desarranjo e sujidade em que se haviam transformado os aposentos onde vivia, não foram feitos para viver sozinhos; como sempre lhe haviam dito as mulheres da sua vida, ele de certo modo não passava de uma criança, um bebé eternamente dependente de uma mãe, um homem à espera de quem tivesse a paciência de lhe arrumar a vida. O seu apartamento era afinal o espelho fiel daquilo em que a sua existência se transformara, uma imensa cavalgada de um lado para o outro, agrilhoado por sucessivas responsabilidades e ansiando por uma liberdade redentora. Talvez o seu destino não estivesse naquele confinamento tacanho entre quatro paredes, considerou, mas se estendesse pelas vastas estepes e taigas do mundo, como se encarnasse o espírito xamânico do vento.
Comeu uma pizza que trouxe de um take away por onde passara pelo caminho para casa e, no final, os dedos ainda sujos de gordura, deu um salto ao escritório e sentou-se diante do computador. A sua caixa de correio na Internet apresentava a memória quase bloqueada; eram centenas de e-mails que se tinham acumulado ao longo dos últimos tempos, cobrindo todo o período em que estivera ausente. A esmagadora maioria não passava de mensagens com vírus ou publicidade variada; alguns continham vídeos que os amigos faziam circular pela rede, justamente os que mais sobrecarregavam a memória do endereço e, inevitavelmente, foram os primeiros a ser apagados. Restavam algumas mensagens avulsas que se revelaram genuínas, umas da faculdade, outras da Gulbenkian, duas do Centro Getty, uma do museu de Bagdade, três de um instituto hebraico em Jerusalém.
E uma de osetimoselo.
O coração pulou quando se apercebeu desta mensagem. O seu sentido imediato era o de que Filipe estava vivo. Rodou o rato e premiu a linha, abrindo o e-mail. O conteúdo era de uma simplicidade desarmante. A mensagem vinha de facto assinada por Filipe, tinha top secret assinalado no topo, dava uma data e uma hora, dois valores em graus que calculou serem coordenadas num mapa e ainda uma palavra cujo verdadeiro significado lhe escapava naquele instante.
Centrepoint.
217
XXVII
Sentou-se num banco do Circular Quay, junto ao terminal transatlântico de passageiros, e apreciou a vista que se abria diante dele. Aquele lugar dos The Rocks era realmente magnífico, sobretudo porque a manhã nascera deliciosa e o sol moderado acariciava com brandura a urbe exuberante. Inspirou fundo a brisa que soprava no cais; era o mar a cheirar a cidade, como se a curiosidade roesse a natureza diante de tão admirável obra do engenho humano.
Recostando-se no banco, a perna cruzada com deleite, Tomás Noronha deixou os sentidos inebriarem-se pela harmonia urbana daquele esplêndido recanto.
À esquerda, ele-vando-se acima do espelho de água e da verdura tropical, destacava-se o característico emaranhado de ferro enrubescido da Harbour Bridge, parecia uma Torre Eiffel elíptica deitada sobre o braço de mar que separava o centro da zona residencial; à direita, erguendo-se como gigantescas agulhas de cimento, cintilavam os arranha-céus sobranceiros a Sydney
Cove, símbolos de poder que afirmavam a pujança da cidade; mas a jóia da coroa, a pedra mais preciosa daquele elegante diadema, brilhava do outro lado da enseada, beijando o mar, era a estrutura vanguardista da Opera House, com as suas múltiplas conchas brancas encavalitadas umas nas outras, voltadas em todas as direcções, como se exibissem, com orgulho, o encontro da genialidade humana com a simplicidade da natureza.
Sydney resplandecia na Primavera austral.
Durante vinte minutos, o visitante abandonou-se ao plácido espectáculo da arquitectura a fundir-se com o mar e a terra, como se aquela cidade tivesse sido construída, não por presos e forçados, a ralé da espécie humana, mas por artistas e iluminados, gente de saber e talento. Tomás tinha tempo para gastar e não via melhor modo de o fazer do que sentir Sydney respirar o dia.
Foi então que reparou nele.
Era um homem de fato escuro e gravata cinzenta, óculos de marca a esconder-lhe os olhos, que se sentara no banco ao lado. O desconhecido tinha um jornal nas mãos, o Sydney Morning Herald, mas parecia mais preocupado em observar Tomás do que em ler as notícias. A sensação de que estava a ser observado fez Tomás sentir-se desconfortável, primeiro, inquieto depois. Sempre que olhava para o homem ele parecia embrenhado na leitura do jornal. Mas, por três vezes, enquanto contemplava o edifício da Opera, do outro lado de Sydney Cove, voltou-se depressa e surpreendeu o desconhecido a espreitá-lo.
"O cabrão está a espiar-me", murmurou Tomás entre dentes.
Ergueu-se do banco e calcorreou o Circular Quay em direcção aos arranha-218
céus, mas sempre pelo Writer's Walk, o passeio calcetado junto à água. Caminhou dois minutos e só então virou a cabeça, como se estivesse a apreciar a fachada art déco do Museu de Arte Contemporânea. Pelo canto do olho apercebeu-se do vulto escuro do homem; vinha uns cem metros atrás dele com o jornal debaixo do braço.
Seria coincidência? A possibilidade de estar a ser vigiado afigurava-se-lhe como algo absolutamente incrível, coisa de filmes, até porque não comunicara a ninguém o seu destino. Orlov transferira-lhe o dinheiro para a conta e quem comprara o bilhete do avião fora ele, e só em cash, quando chegara ao aeroporto de Frankfurt. Talvez tudo aquilo não passasse de coincidência, admitiu. Decidiu testar esta hipótese e abandonou o Writer's Walk; apanhou Argyle Street e virou logo a seguir para a movimentada George Street. Palmilhou um quarteirão e espreitou pelo reflexo do vidro de uma loja, para saber o que se passava atrás. Como uma sombra que não desgrudava, lá vinha o homem do fato escuro e óculos de marca, o jornal sempre debaixo do braço.
Não havia dúvidas, concluiu, aterrado. Estava mesmo a ser seguido. Agora que a evidência se encontrava estabelecida com firmeza, o problema seguinte, no qual até aí evitara pensar, impôs-se-lhe com brutalidade. Quem seria aquele homem?
Quem o enviara? E, sobretudo, o que lhe queria ele? As perguntas eram arrepiantes, dado que as respostas o remetiam inexoravelmente para a Sibéria, para os desconhecidos que haviam invadido o acampamento yurt a meio da noite e os tinham perseguido por Olkhon até à Shamanka, e depois para além dela, pelo Baikal até à fatídica clareira da taiga onde Nadezhda fora executada. Se aquele homem estava no seu encalço, raciocinou Tomás, é porque se encontrava a mando de alguém, e esse alguém era evidentemente aquele que mandara eliminar os cientistas incómodos.
Os interesses do petróleo.
A ideia deixou-o à beira do pânico. Se os assassinos o tinham seguido até Sydney, em breve iriam desencadear o caos. Fosse como fosse, o encontro com Filipe estava comprometido. Se os levasse até ele, o seu amigo seria abatido com a mesma frieza com que Nadezhda fora executada; ela e o americano na Antárctida e o espanhol em Barcelona. Olhou de relance para o espectro que o acompanhava pelas ruas de The Rocks e sentiu os pelos eriçarem-se-lhe de medo. O que fazer agora? Voltar ao hotel e marcar o voo de regresso? Isso representaria perder o rasto de Filipe. Não, vendo bem, havia uma alternativa. Precisava absolutamente de despistar aquela sombra.
No instante em que tomou a decisão apressou o passo e pôs-se a arquitectar um plano. A cabeça a fervilhar de ideias, passou por baixo da movimentada Cahil Expressway, cruzou Bridge Street, permanecendo sempre na grande George Street, até que a abandonou lá mais ao fundo, quando virou à direita e se dirigiu ao Darling Harbour.
219
O alcatrão repleto de automóveis foi cortado diante dele pela figura imponente de um veleiro a cruzar Cockle Bay, e por um instante esqueceu o perseguidor e deixou-se maravilhar por aquela visão surpreendente; só numa cidade daquelas o mar podia entrar assim pelas ruas, com as velas de um navio a passarem tranquilamente entre dois prédios, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.
Mas o encantamento depressa se evaporou; havia algo de mais urgente a atormentá-
lo, o perigo inquietava-o mais do que o espanto o maravilhava. Dirigiu-se a um carro estacionado, espreitou para o espelho retrovisor como se fosse ajeitar o cabelo e viu o homem do fato escuro a segui-lo.
Não desgruda, pensou.
O Darling Harbour era um recanto harmonioso rodeado por construções de linhas vanguardistas. O veleiro que vira instantes antes manobrava na Cockle Bay, rodeado pelo cais, onde se viam vários barcos de recreio atracados, e pela Pyrmont Bridge, uma ponte móvel que atravessava a água e era cruzada por um monocarril futurista. Desceu até ao cais e, aproveitando um ponto em que o seu perseguidor deixara de o ver, embrenhou-se subitamente pelo colorido Cockle Bay Wharf, o recinto de entretenimento da marina. Misturou-se com a multidão e abandonou o recinto pelo outro lado, pon-do-se a correr por um caminho abrigado por um renque de árvores.
Olhou para trás e o homem já lá não estava.
Para se assegurar de que despistara o perseguidor, meteu-se pela primeira porta da grande estrutura comercial que encontrou do outro lado do cais, o Harbourside Complex, e refugiou-se lá dentro. Subiu pelas escadas rolantes e foi para a esplanada instalada na varanda que dava para a marina, de onde esquadrinhou a multidão que formigava em Darling Harbour.
Deixou-se ali ficar uma dezena de minutos, procurando assim garantir que o homem lhe perdera o rasto. O coração regressou gradualmente à normalidade e a confiança também; o encontro com Filipe estava salvo. Consultou o relógio e percebeu que o tempo passara mais depressa do que lhe parecera. Só tinha meia hora para chegar ao local.
O ponto de encontro não foi difícil de localizar. Para dizer a verdade, a sua estrutura esguia era visível de toda a cidade e desde que chegara a Sydney que a espreitava amiúde, do quarto do hotel na véspera, do banco de Sydney Cove nessa manhã, da esplanada do Harbourside Complex alguns instantes antes. Na realidade, o local combinado para se juntar a Filipe atraía-o como um íman; parecia um farol plantado em plena baixa da grande urbe, como se gritasse que era aquele o centro do mundo.
A espreitar em todas as direcções, abandonou Darling Harbour a ritmo de passeio e meteu por Market Street na direcção da ponta norte de Hyde Park, sempre 220
com o seu destino em mira. Apesar da inquietação, sentiu o ritmo aprazível da cidade; Sydney laborava com descontracção, as ruas imaculadamente limpas e arranjadas, a população multiétnica cruzando os passeios, era ali o ponto de encontro da Europa com a Ásia e a Oceânia. Alcançou o seu destino uns quarteirões adiante, no bloco entre Pitt Street e Castlereagh Street, e parou junto ao edifício para medir a altura do colossal monumento que Filipe escolhera para se encontrarem.
Centrepoint.
O nome oficial era Sydney Tower, mas os australianos co-nheciam-na por Centrepoint, por ter sido concebida como parte do centro comercial com esse nome.
Era uma estrutura com trezentos metros de altura, uma espécie de palmeira de aço, com um eixo cilíndrico muito delgado e alto, e uma coroa dourada no topo, como um alfinete gigante de pernas para o ar, equilibrado pelo bico e com a base lá em cima. Alguns cabos de aço emaranhavam-se no eixo como as cordas das velas penduradas no mastro dos navios e o torreão do topo cintilava ao sol; era o pó de ouro do revestimento que reflectia a luz límpida do final da manhã.
Depois de uma última inspecção para se assegurar de que já não era seguido, meteu-se no elevador e subiu até ao torreão. A maior parte dos passageiros ia em grande excitação para o deck de observação, no quarto andar da estrutura, mas To-más saiu um piso antes.
O café.
Enormes rectângulos de vidro serviam de parede ao vasto corredor circular do terceiro andar. Sydney estendia-se para lá das largas janelas, revelando o mar a entrar pela terra em múltiplas enseadas; por todo o lado se erguiam ilhas verdes de vegetação ou estruturas alvas e cinza de betão, era naquela cidade que se cruzavam o homem, a terra e o oceano. Num lado viam-se as Blue Mountains, no outro o azul de Botany Bay, em baixo o emaranhado de prédios e ruas e estruturas de arquitectura sofisticada.
"Então, Casanova?'1''
A voz vinha de uma das mesas e tinha uma assinatura inconfundível.
"Olá, Filipe. Já aqui estás há muito tempo?"
Cumprimentaram-se com um aperto de mão e Tomás aco-modou-se na cadeira junto a uma grande janela.
"Cheguei há pouco", disse o amigo, passando os dedos pelos cabelos claros e encaracolados. "Não foste seguido?"
Tomás baixou a voz.
"Por acaso, fui."
221
Filipe olhou em redor, alerta.
"Quem?"
"Não sei. Mas consegui despistá-lo."
"De certeza?"
"Sim. Não o voltei a ver."
"Mas como é que deram contigo?"
"Não sei."
"Deixaste alguma pista ao apanhar o avião?"
"Julgo que não."
"Julgas ou tens a certeza?"
Tomás bocejou, era o jet lag a atacar.
"Depois do que se passou na Sibéria, já não tenho a certeza de nada. Mas tive o máximo cuidado em baralhar as pistas. Fui para Faro de automóvel, apanhei lá o avião para Londres, daí segui para Frankfurt e só então é que comprei o bilhete para Sydney, menos de duas horas antes de o voo partir."
"Com cartão de crédito?"
"Em dinheiro."
"Que nome deste para o voo e aqui no hotel?"
"Rosendo."
"E eles aceitaram?"
"Sim, é o meu nome do meio. Tomás Rosendo Noronha, está no passaporte.
O Rosendo é da minha mãe."
Filipe suspirou.
"Seja o que Deus quiser." Descontraiu-se na cadeira e bebe-ricou um copo de água fria que tinha levantado da mesa. "Conta-me lá o que aconteceu depois de nos separarmos, no Baikal."
"Eles mataram a Nadia."
"Eu sei. Mas como foi que isso aconteceu?"
"Apanharam-nos no final da manhã junto ao lago. Ainda fugimos para a floresta, mas eles deram connosco. Desfize-ram-lhe a cabeça com um tiro."
Estremeceu. "Foi horrível."
Deixaram-se ficar um longo momento sentados, os olhos a passearem pela 222
cidade que se estendia lá em baixo; à distância tudo parecia irrelevante, sem significado.
"Coitada da Nadia", murmurou Filipe. "A culpa foi minha, eu é que a meti nisto."
Tomás pigarreou.
"Ouve, Filipe. Por que razão marcaste este encontro? Sabes tão bem como eu que isto é perigoso."
O amigo olhou-o surpreendido.
"Não querias encontrar-te comigo?"
O SÉTIMO SELO
"Claro que queria", apressou-se Tomás a dizer. "Isso não impede que eu seja, mesmo que involuntariamente, um perigo para ti. Olha o que aconteceu na Sibéria."
"Tu tomaste precauções, não tomaste?"
"Claro que tomei. Já te contei. Mas só o facto de estarmos juntos é um risco, não te parece?"
"É evidente."
"Então porque marcaste este encontro?"
"Porque precisamos de ti."
"Precisamos?"
"Eu e o James. Precisamos de ti."
"Para quê?"
"Para ver qual a melhor forma de lidar com o que descobrimos."
"Estás a falar na descoberta que põe em causa o negócio do petróleo?"
"Essa mesma."
"Mas essa é uma área que eu desconheço. Não vejo como te possa ser útil."
"Não estás envolvido nisto pela Interpol?"
"Sim."
"Então podes ser útil."
Tomás balançou afirmativamente a cabeça. Era evidente que Filipe se sentia acossado e, mesmo não confiando nas polícias, sabia que era nelas que residia a sua derradeira esperança. E qual poderia ser melhor que a Interpol?
"Ainda não me contaste que descoberta foi essa."
Filipe pôs-se bruscamente de pé e fez-lhe um sinal com a mão, como se o 223
convidasse a segui-lo.
"Anda", disse. "Vou-te mostrar."
XXVIII
A viagem de regresso ao rés-do-chão foi feita em silêncio, com os dois homens atentos às pessoas em redor, procurando surpreender olhares suspeitos ou movimentos denunciadores. Mas tudo parecia tranquilo e normal, os visitantes de Centrepoint tagarelavam com grande excitação, a animação era imensa dentro do elevador ao longo do percurso de descida; o comportamento de toda a gente afigurou-se-lhes de tal modo natural que, no instante em que as portas se abriram e Tomás e Filipe saíram do complexo e mergulharam na multidão, se sentiram ambos de imediato invadidos por uma relativa sensação de segurança.
Mesmo assim, caminharam tensos pela rua, olhando amiúde para trás ou espreitando para os cantos com receio das sombras. O geólogo palmilhava o passeio em passada ligeira, assumindo a liderança com a determinação de quem sabe para onde vai, e conduziu Tomás até Pitt Street. Virou aí em direcção a sul e percorreu a grande artéria no sentido oposto a The Rocks. Era uma rua buliçosa, quase inteiramente entregue ao comércio e aos peões, o formigar laborioso dos transeuntes revelava-se aqui cheio de vida e cor. A multidão era tão densa que nenhum perseguidor invisível os conseguiria localizar.
"Se bem entendi o que me disseste na Sibéria, foste a Viena reconstituir os meus passos", observou Filipe, já suficientemente à vontade para retomar a conversa.
"Sim, fui lá falar com o tipo da OPEP com quem tu te encontraste em 02."
"O Abdul Qarim?"
"Esse mesmo. Ele contou-me que andavas a avaliar o estado das reservas mundiais de petróleo."
"E que mais te contou ele?"
Tomás fez um esforço de memória.
"Bem, falou-me sobre a situação da produção internacional. Disse-me que o petróleo não-OPEP está à beira do pico de produção e que, depois disso, a economia mundial ficará dependente do petróleo da OPEP."
"Ele disse-te quanto tempo vai durar o petróleo da OPEP?"
Novo esforço de memória.
"Se bem me lembro, disse que iria durar ainda muitas décadas. Talvez um século."
Filipe caminhava com os olhos pousados no chão, como se estivesse absorto 224
em qualquer coisa.
"E contou-te mais alguma coisa sobre a nossa conversa?"
"Bom, falou-me sobre as questões do petróleo e da energia, mas o essencial da sua mensagem era isso. O petróleo não-OPEP vai entrar em declínio e o mundo ficará nas mãos do petróleo da OPEP."
"Ele não te falou nos documentos técnicos da Aramco, pois não?"
"Os documentos de quem?"
"Da Aramco. A companhia petrolífera saudita."
Tomás torceu a boca.
"Não, não me falou nisso." Olhou para o amigo. "Porquê? Devia ter falado?"
Pararam diante de um semáforo para peões, aceso no vermelho. Os automóveis fluíam diante deles, jorrando por Park Street, enquanto os transeuntes aguardavam a sua vez de passarem para o quarteirão seguinte de Pitt.
"No quadro do meu trabalho para o grupo criado depois de Quioto, cabia-me, como já te contei, estudar o problema da energia", disse, ignorando a pergunta de Tomás. "Andei a inspeccionar os principais campos existentes no planeta. Fui ao Texas, à Rússia, ao Cazaquistão, ao mar do Norte, ao golfo do México, ao Alasca...
enfim, onde houvesse grandes poços de petróleo era onde eu ia. Ora, como é evidente, também tive de visitar os países da OPEP. O problema é que aí o acesso à informação foi consideravelmente mais complicado."
"Pois, são ditaduras."
"Não é esse o problema. Os países da OPEP há muito tempo que são governados por regimes autoritários, mas sempre forneceram informação adequada sobre as suas reservas e a produção petrolífera. Desde 1950 que disponibilizavam dados detalhados quanto ao que se passava em cada um dos seus campos." Fitou Tomás. "Estás a perceber? Os tipos não se limitavam a fornecer informações sobre a situação geral. Eles davam pormenores específicos sobre a produção em cada campo petrolífero."
"E deixaram de dar?"
Filipe assentiu com a cabeça.
"Foi em 1982 que os países da OPEP fecharam a torneira da informação. De um momento para o outro, tudo o que se relacionava com as suas reservas e a produção de petróleo tornou-se segredo de Estado. A pouca informação que passaram a disponibilizar era demasiado escassa e absolutamente inverificável. O
mercado passou então a regular-se por estimativas e os dados da OPEP tornaram-se tão pouco credíveis que até o secretariado da organização, em Viena, começou a 225
assentar as informações sobre a produção da OPEP, não nos dados oficiais fornecidos pelos seus próprios membros, mas nessas estimativas."
"A sério?"
"E incrível, não é? Nem a OPEP acredita nos dados fornecidos pelos seus próprios membros."
"Mas por que razão adoptaram eles toda essa política de segredo?"
Filipe cravou os olhos no amigo.
"Essa é a grande pergunta, não é? O que levou a OPEP a cessar o fornecimento de informações sobre a sua produção petrolífera? Ou, fazendo a pergunta de outra maneira: o que tem a OPEP a esconder?"
A luz dos peões passou a verde e a multidão que se aglomerara nos dois passeios avançou e cruzou-se a meio da rua, pareciam dois enxames a convergir, a fundir-se e depois a afastar-se.
"Então diz lá", insistiu Tomás, evitando colidir com dois australianos de calções caqui que atravessavam a rua em sentido contrário. "Por que razão fechou a OPEP a torneira da informação?"
"A resposta oficial é que o petróleo tem uma importância geoestratégica de tal modo grande que os membros da OPEP, para se protegerem das maquinações do Ocidente, têm de manter a informação reservada."
"Mas tu não acreditas nessa explicação..."
"Não", confirmou Filipe. "Não acredito."
"Porquê?"
"Porque é simplória. Porque não bate certo. Porque é um indício de que a OPEP está a ocultar alguma coisa."
"Mas o quê? O que estão eles a ocultar?"
"Foi essa a pergunta que fiz repetidamente a mim próprio. Em busca da resposta, andei alguns meses a voar a caminho das várias capitais do Médio Oriente e comecei a ficar com a sensação de estar a embater em verdadeiras paredes. Depa-rei-me com um manto de sigilo em Teerão, em Bagdade, na Cidade do Kuwait, em Riade. Não imaginas, parecia que estava a falar sozinho."
"Irritavam-se contigo?"
"Não, pelo contrário. Foram sempre muito simpáticos, ofereciam imensas prendas, davam-me excelentes jantares, trata-vam-me com grande cortesia, mas, tudo espremido, não revelavam nada. Daquelas bocas apenas saía a versão oficial de que o Médio Oriente dispõe de tanto petróleo que o pico da OPEP só será alcançado 226
daqui a muitos anos."
"Foi exactamente isso que o Qarim me disse."
"É essa a versão oficial", insistiu Filipe. "Até que, na minha última visita à Arábia Saudita, fui bafejado por um golpe de sorte. Cansado de embater nestes sucessivos muros de silêncio, resolvi tentar visitar o campo de Ghawar, o maior super-campo petrolífero do mundo. Claro que se tratava de uma missão impossível, mas mesmo assim decidi tentar. Para conseguir chegar a Ghawar tive de sair do circuito rotineiro do Ministério do Petróleo, de onde não saía qualquer informação, e fui bater à porta de um departamento de engenharia da Aramco. Marquei uma reunião com o chefe do departamento e, no dia seguinte, compareci à hora marcada na sede da Aramco, um prédio de vidro erguido junto ao deserto, em Dhahran. O
homem recebeu-me com grande cortesia e lá me explicou que não me podia levar a Ghawar, que isso não era matéria da sua competência, que gostaria muito de me ajudar mas era apenas um engenheiro, que eu teria de me dirigir aos circuitos normais."
"O governo?"
"O Ministério do Petróleo. Ora esse circuito já eu conhecia de ginjeira.
Percorria-o há já alguns meses e nunca me levou a sítio nenhum. Como é bom de ver, percebi logo que esta tentativa se encontrava, também ela, condenada ao fra-casso e fiquei muito desanimado." Parou um instante para se orientar na rua e em seguida retomou a conversa. "Acontece que, já perto do fim da reunião, o engenheiro saudita teve uma outra visita e, com uma delicadeza de que só os árabes são capazes, saiu para falar com o recém-chegado e insistiu que eu o aguardasse no seu gabinete." Arqueou as sobrancelhas. "Estás a perceber o que aconteceu?"
"Ficaste sozinho no gabinete."
"Isso mesmo. Quando dei por ela, o homem tinha saído e eu estava sozinho no gabinete. Para queimar tempo, levantei-me do sofá e pus-me a passear os olhos pelos livros e pastas que ele guardava nas estantes." Parou a meio do passeio, como se tivesse chegado a um ponto importante. "Lembra-te de que eu não estava num dos habituais gabinetes de relações públicas do Ministério do Petróleo, em Riade, onde só existem brochuras de propaganda. Dei comigo sozinho no gabinete do chefe de um dos departamentos de engenharia da Aramco, em Dharhan. Tratava-se de um local de trabalho e os documentos nas estantes não eram meras brochuras a cantar loas às imensas reservas petrolíferas da Arábia Saudita, mas verdadeiros documentos técnicos." Retomou a marcha. "Passando os olhos pelas lombadas das pastas, deparou-se-me
uma intitulada Problems in Production Operations, Saudi Fields. Achei o título curioso, de modo que peguei na pasta e pus-me a folheá-la. O que encontrei com uma simples passagem de olhos pelas primeiras páginas deixou-me de tal modo 227
estarrecido que, num impulso, arranquei as folhas todas e escondi-as à pressa na minha mala de mão."
Tomás ficou com um ar embasbacado, algures entre o escandalizado e o admirado.
"Roubaste as páginas que estavam nessa pasta?"
"Eu sei que parece uma loucura, mas aquilo era uma verdadeira mina de informação e não me consegui controlar. Coloquei a pasta vazia no seu lugar na estante e depois sentei-me no sofá muito quietinho, cheio de dúvidas sobre o que acabara de fazer, já meio arrependido, amaldiçoando o meu impulso e tentado a voltar a pôr tudo no lugar. Só que entretanto o engenheiro regressou e já não tive oportunidade de o fazer. Despedi-me dele meio à pressa e fui logo a correr para o aeroporto, sem sequer passar pelo hotel."
"E saíste do país com essa pasta?"
"Tudo", disse Filipe. "Levei tudo."
"Eles não descobriram?"
"Suponho que sim. Quando apareci em Viena de surpresa e confrontei o Qarim com os factos, ele não pareceu muito admirado por eu saber uma série de coisas que não devia saber. E a verdade é que foi nesse mesmo dia, dois meses depois de eu ter roubado essas folhas, que mataram o Howard e o Blanco e andaram a vasculhar a minha casa e a do James."
"Achas que as mortes deles estão relacionadas com o furto desses documentos?"
"Não tenho a certeza", admitiu Filipe. "Mas os bilhetinhos com o triplo seis ao lado dos cadáveres provam que as mortes estavam relacionadas com a nossa pesquisa. E isto responde também à pergunta que me fizeste no outro dia. Por que razão andávamos nós a ser perseguidos se havia muitos outros cientistas a estudar igualmente o aquecimento global do planeta? O que fazia do nosso grupo um caso especial?" Fez uma pausa, como se quisesse prolongar a dúvida. "A resposta é que nós estávamos na posse de informações altamente confidenciais sobre o que se passava nos campos petrolíferos da OPEP." Baixou a voz. "Informações que põem em causa a sobrevivência do negócio do petróleo."
Tomás inclinou a cabeça e virou-se para o amigo, intrigado, a curiosidade espicaçada.
"Caramba", exclamou. "Mas que raio de informações são essas?"
Cruzaram Bathurst Street e seguiram em frente, sempre pela movimentada Pitt.
"Para perceberes o que tenho para te contar, é importante que domines alguns conceitos básicos do mundo do petróleo", observou Filipe. "Por exemplo, sabes o 228
que é um pico de produção?"
"O Qarim explicou-me em Viena", disse Tomás, intimamente satisfeito por não ter de se mostrar um absoluto ignorante nesta área. "É quando a produção passa metade da reserva total. Chama-se pico porque o gráfico de produção parece uma montanha." Fez um desenho no ar com o dedo. "Sobe até atingir o pico e depois começa a descer."
Filipe esboçou uma careta.
"É isso, mas não é exactamente isso."
"Então?"
Foi a vez do amigo desenhar o gráfico no ar.
"A curva da produção não é semelhante à curva de uma montanha que sobe, atinge um pico e desce, mas à de um planalto. Sobe devagar, atinge o pico, mantém-se elevada durante um determinado período e, de repente, pimba!" O dedo desceu bruscamente. "Cai como se se tivesse precipitado num abismo."
"Um planalto, é?"
"É assim a curva da produção global de petróleo. Sobe, atinge o pico, mantém-se no pico por algum tempo e, de um momento para o outro, cai abruptamente. E isto porque, ao atingir o pico, as companhias petrolíferas e os países que são grandes produtores fazem um enorme esforço para manter a produção elevada, e é esse esforço que explica o planalto da curva. O problema é que o esforço não pode ser sustentado indefinidamente, uma vez que as reservas são finitas, pelo que é inevitável que a produção caia... e caia com violência. De um ano para o outro."
"Quando será esse pico?"
"Como o Qarim te disse, o pico do petróleo não-OPEP está iminente. De todos os países fora da OPEP, apenas a Rússia parece capaz de aumentar a produção, mas não por muito tempo, e mesmo isso é incerto. Um relatório da Aca-demia das Ciências russa revelou que quase sessenta por cento das reservas da Sibéria Ocidental estão à beira do esgotamento e o presidente Putin promulgou um decreto a classificar as informações sobre as reservas petrolíferas como segredo de Estado. Se o fez, meu caro, é porque a Rússia quer ocultar alguma coisa. Por outro lado, o mar do Norte encontra-se esgotado, o Texas também, o Canadá dá sinais de declínio e a Noruega parece prestes a cruzar o pico."
"Pois, ele contou-me. O petróleo não-OPEP aproxima-se do fim do seu tempo de vida. Mas acreditas mesmo nisso? Não é possível encontrarem novos poços?"
"O problema é que o petróleo é um produto relativamente raro, devido às condições excepcionais que são necessárias para que a natureza o fabrique. Em todo o planeta foram detectados, ao todo, apenas seiscentos sistemas capazes de produzir 229
petróleo e gás em quantidades rentáveis. Desses seiscentos sistemas, quatrocentos já foram ou estão a ser explorados e os duzentos restantes encontram-se no Árctico ou em águas profundas, não havendo sequer a certeza de que possuam petróleo ou gás.
Só para teres uma ideia, nos últimos quarenta anos apenas foram descobertos quatro campos petrolíferos supergigantes fora do Médio Oriente. O campo chinês de Daqing, em 1961, o campo russo de Samotlor, em 1963, o campo de Prudhoe, no Alasca, em 1967, e o campo mexicano de Cantarell, em 1975. De então para cá, mais nada. Apenas poços mais pequenos. E, destes quatro últimos supergigantes, apenas Daqing e Cantarell mantêm produções elevadas, embora já com sinais de declínio. Os picos de todos eles já passaram. E, se pusermos de lado os supergigantes e nos concentrarmos apenas nos campos gigantes, verificamos que a tendência é a mesma. A maior parte dos que entraram em produção depois de 1970
esgotaram-se até 2000, como é o caso dos campos Brent e Forties, do mar do Norte.
E só três entraram em funcionamento desde 1990." Olhou Tomás nos olhos.
"Percebes o que se está a passar? O petróleo não-OPEP está mesmo à beira do pico irreversível, se é que não o cruzou já."
"Mas como é que ninguém sabe de nada?" "Por várias razões", considerou Filipe. "A principal é que a informação sobre o petróleo ainda existente é muito enganadora. Por exemplo, uma das mais respeitadas agências petrolíferas do mundo, o US Geological Survey, calcula que as reservas mundiais de petróleo se situam por volta dos 2,5 biliões de barris." "Isso é muito?"
"Para que tenhas uma ideia, estima-se que até agora o mundo consumiu pouco mais de um bilião de barris."
"Então 2,5 biliões é muito."
"Claro que é", confirmou o geólogo. "Esta estimativa soma 1,6 biliões de barris de reservas provadas, metade das quais no Médio Oriente, com novecentos mil milhões de barris de petróleo ainda por descobrir."
"Com todo esse petróleo ainda por usar, quando será o pico?"
Filipe franziu o sobrolho, fazendo as contas mentalmente.
"Ora bem, o mundo consome actualmente mais de oitenta milhões de barris por dia, não é?" Desenhou os números no ar, como se assim os pudesse visualizar.
"Se o consumo continuar a crescer a uma taxa de dois por cento ao ano, os 2,5
biliões de barris deverão atingir o pico em... em... deixa cá ver... por volta de 2030."
"Em 2030?"
"Mais coisa, menos coisa."
"Então qual é o problema?"
O amigo forçou um sorriso.
"Estes números são falsos."
230
"Falsos? Mas não disseste que eram uma estimativa de uma das mais respeitadas agências petrolíferas do mundo?"
"Sim, mas isso não impede que sejam falsos."
"Como podes dizer isso?"
"Por dois motivos. Primeiro, porque são os Americanos a afirmar tal coisa.
Como já uma vez te expliquei, os interesses do petróleo dominam o poder político na América e tudo o que uma agência americana diz tem de ser visto à luz dessa realidade. Por exemplo, o US Geological Survey, que agora calcula existir ainda imenso petróleo no planeta, é o mesmo US Geological Survey que, na década de 1990, apresentou uma estimativa pessimista das reservas petrolíferas existentes no Árctico. Sabes o que aconteceu a seguir?"
"Hmm..."
"Os interesses do petróleo mexeram-se e a agência teve de apagar a estimativa pessimista e substituí-la por uma mais optimista." Piscou o olho. "Estás a perceber?"
Tomás abanou a cabeça, incrédulo.
"Não acredito que isso seja assim."
"Podes crer", assegurou o amigo. "Há até uma anedota que corre entre a malta do mundo do petróleo sobre o modo como as agências americanas recrutam o seu pessoal. Queres ouvir?"
"Conta lá."
"O US Geological Survey precisava de contratar um empregado e, um dia, decidiu entrevistar três candidatos: um geólogo, um geofísico e um analista de reservas petrolíferas. Perguntou aos três: quanto são dois e dois? O geólogo respondeu: quatro. O geofísico respondeu: vinte e dois. Quando chegou a vez do analista de reservas petrolíferas, o homem chamou o entrevistador para um quarto ao lado, trancou a porta, fechou as janelas, desligou os telefones, e depois, muito baixinho, segredou: quanto quer você que seja? Foi contratado."
Riram-se os dois.
"Muito bem", disse Tomás, bem disposto. "Já percebi que não se pode confiar nas agências americanas. E qual é a outra razão para desconfiares que os números não são verdadeiros?"
"O segundo motivo pelo qual a estimativa dos 2,5 biliões de barris é falsa prende-se com a própria análise desse número. Repara, o cálculo da existência de 2,5 biliões de barris de petróleo no planeta parte da soma de reservas provadas e de recursos por descobrir, não é? As reservas provadas são, segundo o US Geological Survey, de 1,6 biliões de barris. O problema é que, quando falamos de reservas provadas, estamos a falar de dados fornecidos pelos países produtores, informação 231
que, no caso da OPEP, tem uma fiabilidade muito dúbia, como já te expliquei. Por exemplo, no final da década de 1980, seis dos maiores produtores da OPEP
acrescentaram de repente mais de trezentos mil milhões de barris às suas reservas colectivas. Ora só se aumenta a quantidade de petróleo em reserva em duas situações específicas: quando são feitas novas descobertas ou quando novas metodologias de avaliação de reservas revelam existir num determinado campo mais petróleo do que se pensava. O problema é que, nesse período, nenhum desses seis países da OPEP
anunciou novas descobertas importantes de petróleo, nem as tecnologias de avaliação de reservas sofreram qualquer evolução significativa."
"Então como descobriram eles que as suas reservas eram maiores do que se pensava?"
"Boa pergunta", exclamou Filipe. "Esses países alegaram que estavam apenas a corrigir um erro do passado. Mas a verdade, suspeito eu, é outra. Em 1985, a OPEP determinou que, quanto maiores forem as reservas de um país, mais petróleo esse país poderá exportar. Ou seja, mais lucro terá. Acto contínuo, puseram-se todos a aumentar administrativamente as suas reservas."
Tomás riu-se.
"Mas eles podem fazer isso?"
"Não só podem, como fizeram. Quem é que os controla? Os dados da OPEP
são secretos e inverificáveis. Se eles disserem que têm mil triliões de barris de reserva, quem é que pode afirmar o contrário? Não há inspecções independentes..."
"Mas tu tens mesmo a certeza de que esse aumento foi administrativo?"
"O Casanova, não sejas ingénuo. Repara no caso do Iraque, por exemplo. O
Iraque foi um dos seis países que, de um dia para o outro, aumentaram miraculosamente as reservas petrolíferas. Analisando este caso ao pormenor, verificamos que, desde 1980, os Iraquianos quadruplicaram o valor das suas reservas." Fez uma careta. "Ora como é isso possível se o país passou esse tempo todo em guerra ou sujeito a embargos petrolíferos?"
Tomás considerou a objecção.
"Realmente..."
"Portanto, sobre a fiabilidade dos dados relativos às reservas provadas estamos conversados", concluiu Filipe. "Vejamos agora a ainda mais dúbia situação do petróleo por descobrir. Como já te disse, o petróleo é um produto raro e há apenas duzentos sistemas no mundo que permanecem inexplorados. As estimativas partem do princípio de que quase todos esses sistemas têm petróleo, mas isso não é necessariamente verdade. O facto é que não sabemos o que lá está, uma vez que, como a própria definição indica, esses sistemas permanecem inexplorados." Ergueu o dedo. "Há uma coisa, no entanto, que eu sei de ciência certa. Está cada vez mais 232
difícil encontrar novos campos de petróleo. Os maiores, porque eram mais fáceis de descobrir, já foram localizados. Estamos agora a encontrar apenas os mais pequenos, que escaparam aos anteriores escrutínios. E desde 1961 que as companhias petrolíferas descobrem menos petróleo a cada ano que passa. Desde 1995 que o mundo gasta um mínimo de vinte e quatro mil milhões de barris por ano, mas só estão a ser descobertos nove mil milhões de barris de petróleo novo por ano." Fixou o olhar num ponto indefinido de Pitt Street.
"Na verdade, o petróleo existente no mundo fora da OPEP deverá rondar um bilião de barris."
"Um bilião? Isso dá um pico para quando?"
"Para breve. Nós vamos estar vivos e assistir a tudo isso."
"Mas quando será o pico?"
Filipe suspirou.
"Entre 2010 e 15."
"É essa também a estimativa do Qarim."
"Posso estar errado por dois ou três anos, mas esta é a data de referência para o pico do petróleo não-OPEP."
Uma multidão aglomerava-se a meio de Pitt Street, rodeando dois malabaristas que faziam um arriscado número com garrafas. Ouviam-se aaah e ooob sucessivos, por vezes irrompiam palmas; eram os mirones a reagir às emoções do espectáculo de rua. Mas os dois amigos passaram pelo local como se nada ali acontecesse, sem sequer lançarem um olhar de relance, totalmente embrenhados no problema que os ocupava naquele instante.
"Há uma coisa que não estou a entender", observou Tomás.
"Diz."
"Se a situação é assim tão crítica, como é possível que os mercados ainda não tenham reagido? Quer dizer, basta haver uma tempestade mais forte no golfo do México e, upa, o preço do petróleo trepa logo por aí acima. Os mercados sempre se revelaram ultra-sensíveis às mínimas flutuações no abastecimento, mesmo quando essas flutuações são manifestamente temporárias, como é o caso das quebras provocadas por tempestades. Assim sendo, como é possível que não tenham ainda reagido a uma enormidade destas?" Abanou a cabeça. "Isso não faz sentido."
"Os mercados ainda não entraram em pânico por um motivo muito simples", disse Filipe. "Trata-se da confiança existente em relação às reservas disponíveis no Médio Oriente. Os mercados acreditam que o Médio Oriente possui ainda reservas incríveis de petróleo, quantidades tão elevadas que podem a qualquer altura cobrir uma eventual ruptura na produção de outros países. É senso comum nos mercados que a Arábia Saudita e o Kuwait dispõem de poços que não estão a ser usados e que 233
podem ser activados de um momento para o outro. Cha-ma-se a isso spare capacity, ou capacidade de reserva."
"Estás a dizer que o mercado acredita que nunca haverá ruptura no abastecimento?"
"Isso", assentiu o geólogo. "Por causa da capacidade de reserva da OPEP."
Franziu o sobrolho. "O problema é que, se formos a ver bem, esta capacidade de reserva é uma faca de dois gumes. À medida que a produção do petróleo não-OPEP
cai, os países da OPEP aumentam a sua produção, impedindo que haja ruptura no abastecimento. Consequentemente, os preços mantêm-se estáveis e assim não servem de sistema de aviso. Por outro lado, é bom lembrar que o preço de um produto só reflecte a escassez ou abundância desse produto se estivermos a operar num mercado livre."
"E não estamos?"
"No caso do petróleo, não. A OPEP impede que o sistema funcione em liberdade."
"Em que sentido?"
Filipe fez uma pausa, avaliando a melhor forma de explicar o funcionamento do negócio.
"Olha, imagina que o mercado do petróleo era livre e que todo o petróleo existente estava acessível a todos", propôs. "Numa situação dessas, o normal seria as companhias petrolíferas venderem primeiro o petróleo mais acessível, justamente por ser mais barato de produzir e por ser mais competitivo perante a concorrência, não é?"
"Claro."
"À medida que esse petróleo acessível se fosse esgotando, as companhias voltar-se-iam para o petróleo mais inacessível, de produção mais cara. Nessas circunstâncias, os preços iriam subindo gradualmente, acompanhando os crescentes custos de produção e dando aos consumidores e aos governos um aviso em tempo útil para começarem a consumir menos e a procurar fontes alternativas de energia."
"E isso não funciona assim porquê?"
"Justamente porque o mercado não é livre. Para o mecanismo de preços funcionar, é fundamental que se tenha acesso livre ao petróleo barato. O problema é que o petróleo barato está nas mãos da OPEP, que envolveu todas as suas operações num manto de segredo e submeteu a sua produção a quotas."
"Quando falas em petróleo barato, estás a falar em quê exactamente? Que tipo de petróleo é esse?"
"O petróleo mais barato do mundo é o iraquiano, logo seguido pelo saudita. O
Iraque e a Arábia Saudita dispõem de campos incríveis, em que basta fazer um furo 234
e... puf!, o petróleo começa a jorrar como de uma fonte. Nesses países é tão fácil aceder ao petróleo que a sua extracção se torna muito barata, percebes?"
"Mas estamos a falar de que valores?"
"Para que tenhas uma ideia, a Rússia gasta quinze dólares para extrair um único barril de petróleo. Pela mesma quantidade de petróleo, a Arábia Saudita despende apenas um dólar e meio. Ou menos."
"Caramba!"
"Uma vez que a OPEP impõe limites à sua própria produção, o que se passa é que o mundo está a recorrer primeiro ao petróleo caro. As implicações são óbvias.
Acabando o petróleo caro, entra no mercado o petróleo barato, o que significa que a lógica do mercado está invertida e os preços não servem de sistema de alerta. O
preço do petróleo man-tém-se relativamente baixo devido a este fenómeno, percebes? A falta de liberdade do mercado esconde assim os graves problemas de produção e abastecimento que se avizinham."
"Estou a entender."
Filipe manteve o rosto fechado.
"Mas mesmo este efeito começa a esbater-se. Um barril de petróleo custava apenas dez dólares em 1998 e, uns meros nove anos depois, esse valor trepou para mais de oitenta dólares. O problema é que a spare capacity, que era de oito milhões de barris por dia em 1987, está agora reduzida quase a zero, uma vez que a procura tem aumentado mais do que a oferta. A prova é que bastou uma ligeira quebra de produção provocada por dois furacões em 2005, o Katrina e o Rita, para lançar o caos no preço do petróleo. Se os mercados reagiram assim perante uma quebra de produção tão pequena, isso é sinal evidente de que já não existe spare capacity."
Fixou os olhos no chão, sombrio. "Quando a produção entrar de facto em ruptura, o mundo será apanhado de surpresa."
Aproximaram-se de Liverpool Street e o geólogo apontou para o edifício na esquina em frente. Era um prédio moderno, coberto de janelas de um lado e do outro.
"É o teu hotel?", perguntou Tomás.
O amigo assentiu.
"Quero mostrar-te uma coisa", disse, parado no passeio. "Sabes, o grande problema não é saber se o petróleo vai acabar, porque vai. O grande problema é saber se seremos avisados a tempo do seu fim e se teremos capacidade para nos prepararmos para essa situação."
"O que me queres mostrar está relacionado com esse problema?"
"Sim."
235
Olharam em redor e não detectaram nada de suspeito. Atravessaram a rua, franquearam a entrada do hotel e a primeira coisa que Tomás viu foram as cinco estrelas assinaladas na porta.
"Ena, tu tratas-te bem."
Habituado aos luxuosos circuitos do mundo do petróleo, Filipe nem respondeu. Dirigiu-se à recepção e pediu acesso ao cofre. O empregado convidou-o a entrar num compartimento privado e ambos desapareceram por uma porta lateral, claramente uma zona de segurança reforçada. Tomás ficou a deambular diante da recepção, apreciando o mármore de creme polido que reluzia no chão e os belos tapetes na zona dos sofás, mas não aguardou muito tempo; pouco depois o amigo e o empregado reapareceram no lobby. Filipe trazia na mão uma pequena pasta de cartolina azul-bebé.
"Está aqui", disse ele, exibindo a pasta com um movimento subtil.
"O que é isso?"
"É o segredo."
"Qual segredo?"
"O segredo que roubei à OPEP."
XXIX
Instalaram-se no bar do hotel, junto a uma tabuleta onde se anunciava para essa noite a companhia musical de uma cantora americana cujo principal atributo era a "graça angelical". O Avery's Bar apresenta va-se quase deserto; a maior parte dos clientes tinha saído do hotel e os que ficaram pareciam preferir, àquela hora, o restaurante ao lado. Satisfeito com o ambiente tranquilo à meia-luz do bar, Filipe encomendou um saté de galinha Balinese style, enquanto Tomás se ficou por uma salada de cordeiro e sésamo Thai style, que ambos completaram com um pedido de cerveja australiana.
"Isto é apenas uma coisa leve, antes de sairmos", disse Filipe. "Temos algum tempo para conversar, mas não muito."
"Onde vamos?" Ja vais ver.
Quando o empregado se afastou, o geólogo pousou a pasta de cartolina azul-bebé sobre a mesinha de madeira escura e cruzou a perna, instalando-se confortavelmente no sofá.
"Para perceberes o que está aqui guardado, há uma coisa que tens de entender primeiro", indicou, afagando a cartolina. "A importância do petróleo saudita."
"Mas isso já eu percebi há muito tempo", disse Tomás. "A Arábia Saudita é o maior produtor mundial de petróleo."
236
"Não é apenas o maior produtor", insistiu Filipe. "É muito mais do que isso."
"Então?"
"Sem o petróleo saudita, acaba-se o negócio do petróleo. O mundo fica sem energia."
O historiador esboçou uma expressão céptica.
"Não achas que estás a exagerar um bocadinho? É evidente que a Arábia Saudita, sendo o maior produtor mundial, é um país muito importante nesse negócio, sem dúvida. Mas daí até dizer que sem o seu petróleo o mundo fica sem energia...
enfim, vai um grande passo, não achas?"
"Casanova, ouve o que te digo. Sem o petróleo saudita não há negócio do petróleo."
"Mas como podes afirmar tal coisa?"
"Por uma razão muito simples. Já vimos que o petróleo não-OPEP está à beira do pico, não é verdade?"
"Sim."
"Cruzando o pico, entra em declínio numa altura de crescente procura mundial e o planeta fica essencialmente dependente do petróleo da OPEP."
"Até aí já eu percebi."
"A pergunta seguinte é esta." Quase soletrou. "Quanto petróleo existe afinal na OPEP?"
Tomás encolheu os ombros, como se não considerasse essa questão particularmente relevante.
"O Qarim disse-me que era o suficiente para durar cem anos."
"O Qarim limitou-se a repetir-te a versão oficial", atalhou Filipe. "O
problema, o grande problema, sabes qual é? É que ninguém sabe. Uma vez que a OPEP trata toda a informação relativa ao petróleo como se fosse segredo de Estado, e dado que não há modo de verificar as suas raras revelações sobre o estado das reservas dos países que integram o cartel, o facto é que ninguém tem a mínima certeza sobre quanto petróleo a OPEP possui exactamente. Percebeste?"
"Sim."
O geólogo afinou a voz.
"Mas há algumas coisas que nós sabemos sobre vários dos grandes produtores da OPEP. Vejamos o caso do Irão, que é só o quarto maior produtor mundial de petróleo. Tu fazes alguma ideia de qual o estado das reservas petrolíferas iranianas?"
237
"Não."
"Estão em declínio."
"A sério?"
"O Irão tem quatro campos petrolíferos supergigantes. Aghajari, descoberto em 1936, Gach Saran, detectado em 1937, Marun, de 1963, e Ahwaz, de 1977.
Todos eles já cruzaram o pico e a produção iraniana está a descer ano a ano."
"E dizes tu que o Irão é o quarto maior produtor mundial de petróleo?"
Filipe torceu os lábios.
"Preocupante, não é? E o pior é que há mais países da OPEP na mesma situação. Por exemplo, o único supergigante de Omã, o campo de Yibal, cruzou o pico em 1997. A Nigéria também já passou o pico e, factor muito preocupante, o Kuwait reduziu a taxa de produção do complexo de Burgan, o segundo maior campo petrolífero do mundo, alegadamente para recuperar a pressão dos poços. A companhia petrolífera kuwaitiana anunciou, no final de 2005, que Burgan estava exausto. E, para além do Kuwait, o pico já foi igualmente cruzado no Iraque, na Síria e no Iémen."
Tomás endireitou-se no sofá.
"Desculpa, não estou a perceber", disse, hesitante. "Estás a insinuar que a OPEP também entrou em declínio?"
"Não", rectificou. "Estou a afirmar que a maior parte dos grandes produtores da OPEP entrou em declínio." Ergueu o indicador. "Mas há um produtor, um só, em quem todo o mundo confia para resolver os problemas do abastecimento petrolífero global."
"A Arábia Saudita?"
"Nem mais", sorriu o geólogo. "O Reino da Arábia Saudita. E este o principal produtor mundial de petróleo, a rede de segurança montada por baixo do circo energético, a almofada que apara a queda de produção em todo o planeta." Arqueou as sobrancelhas. "Estás a perceber agora por que razão eu disse há pouco que a Arábia Saudita é muito mais do que o principal produtor do mundo?"
"Sim."
"Sem Arábia Saudita não haveria energia suficiente para satisfazer as necessidades globais. A economia mundial entraria em profunda recessão e o caos espalhar-se-ia por toda a parte. Já viste o que era o petróleo tornar-se tão caro que, em vez de custar oitenta dólares por barril, custasse setecentos dólares?"
"Era complicado."
"Complicado?" Filipe riu-se. "Era o fim, meu caro." Abriu os braços. "O
fim." Inclinou-se na direcção do amigo. "Tu sabes o que significa o barril a 238
setecentos dólares?"
"Significa chatice."
"Ah, disso podes estar certo", concordou. "O barril a setecentos dólares quer dizer que, em vez de gastares setenta euros para encher o depósito do teu carro, por exemplo, gastarias setecentos." Deixou o número ressoar na mente de Tomás.
"Setecentos euros para encher um simples depósito."
O historiador assobiou, impressionado com a perspectiva.
"Lá íamos todos andar de bicicleta, hem?"
"Pois íamos. E tu fazes alguma ideia do impacto que isso teria na economia mundial?"
"Entrávamos em recessão."
Filipe voltou a rir-se.
"Recessão é uma palavra ridícula para descrever o que aconteceria nessas circunstâncias. Repara que, das últimas sete recessões económicas mundiais, seis estão directamente relacionadas com reduções temporárias de abastecimento de petróleo." Repetiu as duas palavras-chave. "Reduções temporárias." Fez uma pausa.
"Agora imagina o que aconteceria se a ruptura não fosse temporária, mas permanente. Ou seja, uma ruptura que não fosse conjuntural, mas estrutural, sem perspectiva de resolução."
"A recessão seria profunda."
O geólogo cravou os olhos no amigo.
"Casanova, uma situação dessas poderia acarretar o fim da civilização, o que pensas tu? O fim da civilização."
"Não estarás a exagerar um bocadinho?"
"Achas que sim?" Fez um gesto em redor, exibindo o ambiente tranquilo e requintado do bar. "Olha para tudo isto e imagina o que aconteceria se houvesse uma súbita ruptura do abastecimento energético. Numa situação dessas, todas as coisas a que nos habituámos, estes luxos que já damos como garantidos, evaporar-se-iam de um momento para o outro." Começou a enumerar os problemas com os dedos, cruzando-os sucessivamente. "Não podíamos deslocar-nos para o trabalho, o transporte de bens de um lado para o outro parava, as fábricas deixavam de receber matérias-primas, a produção ficava suspensa e a distribuição também, a economia paralisava, as empresas iam à falência em cascata, as pessoas ficavam sem meios de subsistência, parava o transporte de alimentos para os mercados, haveria quebra da ordem pública, tumultos, pilhagens, os países tornavam-se ingovernáveis, a fome espalhava-se por toda a parte e mergulhávamos no caos."
239
Tomás considerou o cenário.
"Seria muito complicado."
"Seria o fim da civilização, Casanova.'" Arregalou os olhos, dando ênfase à ideia. "O fim da civilização."
Fez-se um silêncio sombrio na mesa. A conversa tornara-se assustadora e o historiador, olhando para o bar deserto, não pôde deixar de pensar que tudo na vida é, de facto, frágil e que a história está repleta de civilizações que em certo momento pareceram eternas, inquebráveis, e que afinal se desmoronaram de um instante para o outro.
"Bem, mas essa perspectiva não é verdadeiramente possível, não é verdade?", comentou Tomás. "Afinal as reservas da Arábia Saudita são a nossa válvula de segurança."
"É o que diz a Arábia Saudita."
"E há alguma razão para duvidar disso?"
O geólogo torceu a boca.
"O Casanova, vou dizer-te a mesma coisa mais uma vez. Como é que nós sabemos que a Arábia Saudita tem assim tanto petróleo se os dados relativos à sua produção são segredo de Estado e as raras informações que os Sauditas divulgam permanecem inverificáveis?"
"Mas há alguma razão para lançar dúvidas sobre a veracidade dessas raras informações?"
Filipe permaneceu um instante calado, como se estivesse a reflectir sobre a melhor maneira de dizer o que tinha a dizer.
"Por acaso até há."
Tomás abriu a boca, entre surpreendido e alarmado.
"Como?"
O amigo abriu a pasta de cartolina azul-bebé e tirou uns folhetos coloridos do interior, que mostrou a Tomás.
"Sabes o que é isto?"
O historiador analisou os folhetos. Estavam impressos em papel de qualidade e mostravam belas imagens de poços de petróleo e maquinaria sofisticada a funcionar nas areias do deserto. O texto encontrava-se escrito em inglês e era enca-beçado pela imagem do que parecia uma estrela a brilhar num quadrado verde e azul, com uma frase em árabe ao lado e Saudi Aramco em baixo.
"É um panfleto, não é?"
240
"Sim, são brochuras da Aramco, a companhia petrolífera da Arábia Saudita.
Arranjei isto num gabinete de relações públicas do Ministério do Petróleo, em Riade."
Tomás voltou a examinar as brochuras.
"E o que têm estes panfletos de especial?"
"Já viste o texto?"
O historiador leu um pouco.
"Não noto nada de anormal", constatou. "Fala na alta tecnologia usada pela Arábia Saudita para explorar petróleo, com recurso a técnicas muito avançadas e sofisticadas." Levantou os olhos. "Se queres que te diga, até me deixa mais tranquilo."
"Claro que te deixa tranquilo. Qualquer leigo que leia isso não pode deixar de se sentir impressionado com o investimento tecnológico feito pelos Sauditas para assegurar o abastecimento energético do planeta."