"Então qual é o problema?"
"O problema, meu caro, é justamente este investimento tecnológico."
"O que tem ele de especial?"
Filipe suspirou.
"Lembras-te de eu te dizer que o petróleo saudita é o segundo mais barato do mundo?"
"Um dólar e meio o barril, não é?"
"Ou menos. Por que razão é assim tão barato?"
"Bem, se bem me lembro do que explicaste há pouco, isso tem a ver com as características de produção. Na Arábia Saudita, basta fazer um furo e o petróleo jorra como de uma fonte."
O geólogo pegou na brochura que se encontrava na mão do amigo e apontou para a fotografia frontal, que exibia maquinaria instalada no deserto.
"Se assim é, por que razão precisam os Sauditas de recorrer a este tipo de tecnologia tão sofisticada?" Arqueou o sobrolho. "Hã?"
"Não estou a perceber."
"Casanova, o petróleo da Arábia Saudita sempre foi muito fácil de explorar.
Basta, de facto, fazer um buraco e ele começa a saltar cá para fora como champanhe.
Por que razão, nesse caso, a Aramco se pôs a investir fortemente em alta tecnologia para extrair o petróleo?"
241
Tomás encolheu os ombros.
"Sei lá."
"Um leigo não nota este tipo de coisas, mas um geólogo sim, sobretudo se estiver familiarizado com as especificidades da extracção de petróleo." Bateu com o dedo na brochura. "Se os sauditas estão a investir em tecnologia muito sofisticada para extrair petróleo do deserto, isso só tem uma explicação."
"Qual?"
"O petróleo deixou de jorrar como de uma fonte."
Fez-se silêncio por um momento.
"O que queres dizer com isso?"
"O que eu quero dizer é que estas brochuras de propaganda revelam inadvertidamente algo de muito inquietante: o petróleo da Arábia Saudita já não está a fluir com a facilidade de antigamente."
Tomás reflectiu sobre este raciocínio.
"Estou a perceber."
"Quando vi estas brochuras pela primeira vez, no Ministério do Petróleo, em Riade, as sirenes de alarme puseram-se logo a soar na minha cabeça. Algo se está a passar na Arábia Saudita e ninguém sabe de nada." Ajeitou-se no sofá. "Repara, Casanova, que todos os modelos internacionais de abastecimento energético partem do pressuposto de que o petróleo saudita é de tal modo abundante e barato que poderá responder à procura mundial até pelo menos 30."
"2030? Não eram cem anos?"
"Cem anos é conversa para pategos. O horizonte de 2030 parece mais realista e a verdade é que os Sauditas encorajaram os mercados a acreditar nisso. Ao mesmo tempo, no entanto, foram sempre impedindo a verificação independente das suas reservas. Afirmam possuir reservas provadas de duzentos e sessenta mil milhões de barris, mas o contributo de cada campo petrolífero para este bolo é tratado como um segredo militar. Repara que nós nem sequer percebemos quanto petróleo exactamente produz o reino e encontramo-nos agora na delicada situação de ter de confiar o nosso destino global a um país que garante ter valores extravagantes e indemons-tráveis de produção petrolífera." Pegou na brochura pousada sobre a mesa e acenou com ela. "E, no meio de tudo isto, dou com folhetos que revelam indirectamente que o petróleo já não flui na Arábia Saudita com a facilidade de outrora. Foi por isso que, quando pousei os olhos nestes panfletos, comecei a tentar furar o bloqueio de informação e me pus a bater a todas as portas." Afagou a pasta de cartolina. "Até que tive o golpe de sorte que já te descrevi e deitei a mão a estes documentos técnicos."
242
"O que revelam eles, afinal?"
Filipe inclinou-se para a frente e cravou os olhos em Tomás.
"A verdade, Casanova'''' , disse, num tom críptico. "A verdade."
XXX
O empregado apareceu com uma bandeja equilibrada na ponta dos dedos e Filipe viu-se obrigado a pôr a pasta de cartolina sobre o sofá vazio ao lado, de modo a abrir espaço na mesa. O australiano depositou diante dos clientes as duas canecas de cerveja e os pratos indonésio e tailandês que tinham sido encomendados e, após um "enjoy, mates" com sotaque fortemente australiano, afastou-se tão depressa como viera.
"Nada mau, hã?", comentou o geólogo, depois de trincar um pedaço do saté balinês.
"É bom, é", confirmou Tomás. "Mas ainda não respondeste à minha pergunta."
O amigo acariciou a cartolina pousada no sofá vizinho.
"Queres saber o que se encontra guardado nesta pasta?"
"Sim."
Filipe girou o garfo no ar, um pedaço de carne temperada espetado na ponta.
"Só consegues perceber o que aqui está se tiveres uma noção exacta do que é o petróleo saudita e de como funciona a engenharia envolvida na sua extracção."
"Pelo que me contaste, não há nada mais simples. Faz-se um furo e o petróleo salta cá para fora."
O geólogo riu-se.
"Em linhas gerais, é isso mesmo", confirmou. "O petróleo foi descoberto na Arábia Saudita em 1938, num local chamado Dammam. Os campos eram de tal modo abundantes que os geólogos americanos chegaram a detectar poços enquanto sobrevoavam o deserto de avião, vê lá tu."
"Isso é possível?"
"Sim, desde que as características topográficas do terreno o permitam, como era o caso. O facto é que os campos se revelaram facilmente identificáveis do ar. A Arábia Saudita apresentou um perfil tão interessante que as companhias petrolíferas acorreram em massa e nasceu assim a Arabian America Oil Company, Aramco, cujos accionistas eram a Standard Oil, a Shell, a BP, a Mobil, a Chevron, a Texaco e a Gulf Oil."
"Tudo grandes tubarões, portanto."
243
"Ui, nem imaginas. E vinham todos de dentes afiados. Claro que a Segunda Guerra Mundial pôs o negócio em ba-nho-maria, mas, logo que a guerra acabou, a prospecção recomeçou e foram sendo descobertos mais e maiores campos. A Aramco acabou por ser nacionalizada e os tubarões expulsos, mas a Arábia Saudita já tinha, por esta altura, a sua posição firmemente estabelecida no mapa geoestratégico." Engoliu um trago de cerveja e encarou Tomás com um sorriso malicioso. "Agora tenho uma pergunta para ti."
"Diz lá."
"Sendo que a Arábia Saudita é o maior produtor mundial, quantos campos imaginas que produzem setenta e cinco por cento do seu petróleo?"
O historiador fez um ar pensativo.
"Sei lá... uns quinhentos."
Filipe torceu o nariz.
"Vamos lá, sê razoável", pediu. "Lembra-te que setenta e cinco por cento correspondem a três quartos de todo o petróleo da Arábia Saudita. É muita coisa.
Achas que quinhentos campos chegam para preencher três quartos desse bolo colossal?"
"Pois, tens razão", concordou Tomás, coçando a cabeça. Arriscou um número que lhe pareceu mais realista. "Mil campos?"
"Não."
"Cinco mil?"
"Não."
"Dez mil?"
"Também não."
"Eh, pá. Desisto."
"Tenta, vá lá. Dá-me intervalos, é capaz de ser mais fácil."
Tomás lançou um intervalo largo.
"Entre mil e cinco mil campos."
"Não."
"Olha, sei lá. Não faço a mínima ideia e não vou ficar aqui o dia inteiro a lançar números."
O geólogo sorriu e ergueu o indicador e o dedo do meio, como se fizesse o V
de vitória.
"Dois."
244
Tomás olhou-o, sem perceber.
"Dois quê?"
"Dois campos."
"Como?"
"Dois campos", repetiu Filipe. "Setenta e cinco por cento do petróleo produzido pela Arábia Saudita vem de apenas dois campos."
O historiador abanou a cabeça, como se estivesse atordoado.
"Não pode ser."
"Chamam-se Ghawar e Safaniya."
"Estás a falar a sério?"
"Vou repetir, Casanova", insistiu o geólogo, tão devagar que quase soletrava as palavras. "Setenta e cinco por cento do petróleo saudita é produzido por apenas dois campos. Percebeste? Isto significa que o futuro imediato do mundo depende de uma coisa chamada Ghawar e outra chamada Safaniya."
"Meu Deus! Como é isso possível?"
"É como te digo."
"Mas os governos ocidentais têm noção disso?"
"Eu acho que ninguém percebeu muito bem o que se passa na Arábia Saudita, meu caro. As pessoas têm esta ideia fantasiosa de que há milhares de campos quase inesgotáveis espalhados pelo deserto, todos eles com uma imensa produção, capazes de dar resposta à crescente procura mundial e aos múltiplos problemas dos restantes grandes produtores. O que ninguém ainda entendeu é que, se a economia global está essencialmente dependente da Arábia Saudita, isso representa uma dependência em relação a apenas dois campos."
Tomás quase tremeu ao fazer a pergunta que se formou na sua mente.
"E... e esses campos, como estão eles? Funcionam bem?"
"Boa pergunta", retorquiu o amigo, num tom sibilino. "A verdade é que ninguém sabe o que se passa na Arábia Saudita, pois não? Os dados são confidenciais e não há verificação independente da capacidade de produção instalada nem das avaliações das reservas. A única coisa que temos são as extravagantes afirmações dos Sauditas. Mais nada."
O historiador apoiou os cotovelos na mesa e pousou a cabeça na palma das mãos.
"Dois campos", murmurou, ainda siderado. "Está tudo assente em dois campos." Olhou para Filipe com uma expressão inquisitiva. "Mas que raio de campos são esses, afinal?"
245
O geólogo folheou uma das brochuras, localizou uma imagem com o mapa da Arábia Saudita e indicou um ponto na costa do golfo Pérsico, logo a sul do Kuwait.
"Safaniya está aqui", disse. "É o maior campo petrolífero offshore do mundo e o segundo mais produtivo da Arábia Saudita. Chamam-lhe a Rainha da Areia, uma vez que a sua ponta sul se situa por baixo das praias douradas da costa arábica do golfo Pérsico. Safaniya foi descoberto em 1951 e produz sobretudo petróleo pesado.
No mapa tem o formato de uma gota estreita, com setenta quilómetros de uma ponta à outra."
"Setenta quilómetros?", admirou-se Tomás. "É grande, hã?"
"Muito grande. Este campo produz uns quinze por cento de todo o petróleo do país."
"Só quinze por cento? Mas não disseste que esses dois campos são responsáveis por setenta e cinco por cento do petróleo saudita?"
"Disse, e é verdade."
"Então e o resto?"
"É produzido pelo outro campo."
O historiador fez uma expressão incrédula.
"Estás a brincar."
"Chama-se Ghawar e vale sessenta por cento do petróleo existente na Arábia Saudita. É o único campo petrolífero megagigante do mundo, o maior depósito de petróleo alguma vez encontrado no planeta. Chamam-lhe o Rei dos Reis, mas até essa definição peca por ser demasiado modesta. Se Ghawar fosse um imperador, ao pé dele os campos supergigantes não seriam reis, mas meros príncipes."
Tomás espreitou o mapa da brochura.
"E onde se localiza essa maravilha?"
O geólogo apontou para uma faixa no deserto, paralela à costa saudita junto ao Bahrain e ao Qatar.
"Aqui", disse. "É um campo longo e estreito, com o formato de uma perna. Se a ponta sul de Ghawar estivesse em Lisboa, a ponta norte chegaria a Aveiro."
"Caramba."
"São mais de duzentos quilómetros de uma extremidade à outra, com a parte mais larga a atingir quase cinquenta quilómetros. Ghawar entrou em actividade em 1951 e desde então já produziu mais de cinquenta e cinco mil milhões de barris."
Sorriu. "Eu sei que é um número de uma magnitude tal que se torna absolutamente incompreensível. Vamos pôr as coisas de modo mais simples: neste momento, um 246
em cada doze barris consumidos em todo o mundo vem de Ghawar."
"Porra!"
"A produção de Ghawar tornou-se um segredo de Estado em 1982 e a única informação segura que transpirou entretanto é que este megagigante produzia em 1994 sessenta e três por cento de todo o petróleo da Arábia Saudita. De resto, pouco mais se sabe. Mas há uma coisa da qual todos temos a certeza: a longevidade do campo de Ghawar está no coração do problema da sustentabilidade do petróleo como fonte energética. Qualquer análise da evolução da produção petrolífera global passa inevitavelmente por Ghawar. Se este campo permanecer rico, o abastecimento mundial está salvaguardado." Ergueu a mão, como se lançasse um alerta. "No entanto, se por acaso houver problemas em Ghawar... é o fim da linha."
"E há?"
A pergunta foi feita muito apressadamente, com um toque de ansiedade a colorir o tom. Filipe não respondeu de imediato. Inclinou-se sobre a esquerda, esticou o braço e pegou na pasta de cartolina azul-bebé, que pousou no regaço.
Abriu a pasta e exibiu o seu interior; eram resmas de folhas com texto em inglês e em árabe, agrafadas em grupos.
"Estes são os documentos que retirei do gabinete de um dos chefes de engenharia da Aramco, em Dharham. Como já te expliquei, tudo isto estava arquivado numa pasta intitulada Problems in Production Operations, Saudi Fields."
"E o que são afinal esses documentos?"
"São relatórios de engenheiros." Fechou a pasta de novo, como se a hora de expor os papéis ainda não tivesse chegado. "Há umas coisas técnicas que tens de saber para poderes compreender melhor o que aqui está escrito."
"Como por exemplo?"
"Os problemas de engenharia que o processo envolve", esclareceu Filipe.
"Como pensas tu que o petróleo sai cá para fora?"
"Bem, é o sistema do furo, não é? Faz-se um furo no chão e o petróleo começa a jorrar, suponho eu."
"Essa é a ideia que toda a gente tem. O que se passa, na verdade, é que o processo de extracção de petróleo envolve três elementos: o petróleo, o gás e a água.
Havia um amigo meu que dizia que, se o processo de extracção fosse um filme de Hollywood, o petróleo seria a estrela principal, o galã que atrai os espectadores ao cinema, e os papéis de actor e actriz secundários ficariam entregues ao gás e à água.
Na verdade, em linhas gerais um reservatório consiste em petróleo misturado com gás e um depósito de água assente por baixo. O gás funciona no petróleo como no champanhe: é o que lhe dá força, são aquelas borbulhinhas que o fazem mexer e lhe conferem vitalidade. O petróleo sem gás é como o champanhe sem gás, fica apenas um líquido inerte. São o gás misturado no petróleo e a água a empurrar em baixo 247
que fazem com que o depósito esteja cheio de pressão, um pouco como uma garrafa de champanhe agitada antes de ser aberta, estás a perceber?"
"Sim."
"Quando se faz o furo no depósito é como quando se tira a rolha da garrafa de champanhe. O petróleo salta cá para fora com grande pressão e é nessa altura que ocorre a extracção primária. O petróleo vem em grandes quantidades, é uma maravilha." Mudou a expressão do rosto, como quem diz que tudo o que é bom tem um fim. "O problema é que, uma vez feito o furo, ao fim de algum tempo a pressão começa a descer, não é?"
"Como o champanhe fora da garrafa..."
"Isso mesmo." Esticou o dedo e assinalou um ponto invisível no ar. "É aí que começam as chatices. A pressão põe-se a baixar e o petróleo deixa de jorrar com a mesma intensidade. Na verdade, até vai perdendo gradualmente força, uma vez que lá em baixo, e à medida que mais e mais petróleo sai, a pressão do depósito vai sempre baixando, até um ponto em que se torna inferior à pressão da superfície e o petróleo deixa de sair."
"O petróleo acabou?"
"Não, não acabou. Ainda há petróleo lá em baixo. O problema é que o depósito deixou de o empurrar para cima."
"Quando isso acontece, quanto petróleo já saiu?"
"No caso da extracção primária? Cerca de um quarto de todo o petróleo existente no depósito. O que significa que ficaram lá em baixo uns três quartos."
"E como é que se faz para ir buscar o resto?"
"Entra em acção a extracção secundária. Através do recurso à tecnologia, procura-se aumentar a pressão no depósito, de modo a fazer com que o petróleo volte a jorrar. Um dos métodos que se podem utilizar é lançar gás para o depósito, designadamente dióxido de carbono, que se mistura com o petróleo e o torna de novo enérgico, como o champanhe. Um outro método, muito utilizado na Arábia Saudita, é inserir água no depósito."
"Água? Eles misturam água com o petróleo?"
"Não, de modo nenhum. A água não é injectada no petróleo, mas nos depósitos de água que já existem por baixo do depósito de petróleo, estás a perceber? Com mais água a entrar, o depósito cresce, a água sobe e empurra o petró-
leo para cima. A consequência de tudo isto é que, à medida que o petróleo vai sendo extraído, é preciso injectar ainda mais água, de modo a manter elevada a pressão no reservatório. Só que este processo traz um novo grande problema."
248
"Qual?"
"Chamam-lhe water cut, ou teor de água. Como se tem de injectar água nos depósitos para aumentar a pressão, a certa altura essa água começa a misturar-se com o petróleo, sinal de que o crude se aproxima do esgotamento. Na extracção primária, o petróleo vem tendencialmente puro, mas, à medida que a extracção secundária se processa e o depósito se esvazia, começam a aparecer doses de água misturadas no petróleo. Primeiro um por cento, depois dois por cento e por aí fora. É
isso o water cut. Um poço chega ao fim quando o teor de água engole o teor de petróleo. Diz-se então que o petróleo se afogou na água."
"Quer dizer, acabou."
"Não, não acabou. Normalmente só se consegue extrair metade do petróleo existente num depósito. A outra metade fica lá em baixo em cantos isolados, mas a sua extracção torna-se economicamente inviável e o poço é encerrado."
"Estou a ver."
O geólogo reabriu a pasta que mantinha pousada no regaço. Pegou em algumas folhas e mostrou-as a Tomás.
"Estes documentos são os relatórios técnicos da Aramco", disse. "Quase todos foram preparados por engenheiros da companhia saudita de petróleo, embora alguns tenham sido elaborados por consultores da empresa. Cada relatório analisa desafios específicos de um determinado campo petrolífero, identificando problemas operacionais que foram surgindo ou se foram acumulando."
"Isso onde? Naquele megagigante que mencionaste há pouco?"
"Em vários campos", precisou. "Os relatórios analisam o que se passa em vários campos." Indicou as posições dos depósitos no mapa da brochura. "Como eu te disse, Ghawar e Safaniya produzem, juntos, setenta e cinco por cento de todo o petróleo da Arábia Saudita. Mas, se juntarmos os outros dois supergigantes sauditas, Abqaiq e Berri, essa quota ascende a noventa e três por cento. Ou seja, há quatro campos petrolíferos que, em conjunto, produzem mais de noventa por cento de todo o petróleo da Arábia Saudita."
"Isso é incrível."
Filipe folheou os documentos que tinha nas mãos, como se procurasse especificamente um.
"Vejamos o que se passa com Abqaiq. Este campo começou a produção em 1946 e o seu petróleo sempre foi considerado de excelente qualidade, talvez o melhor que já existiu." Localizou a folha que procurava. "Analisando aqui este relatório, constata-se que Abqaiq cruzou o pico em 1973, tendo já produzido mais de setenta por cento das suas reservas." Acenou com a mão. "Portanto, adeus Abqaiq."
249
Guardou a folha e procurou a seguinte. "O campo de Berri foi descoberto em 1964, um dos últimos supergigantes encontrados no reino, também com petróleo de primeira qualidade." Encontrou o documento páginas adiante. "Este relatório aqui mostra que a pressão do depósito de Berri desceu para valores atmosféricos em dez anos de exploração, altura em que entrou em acção a extracção secundária através de injecção de água. A coisa correu bem até 1977, quando a água se começou a misturar com o petróleo que jorrava cá para fora. O water cut foi subindo até ao ponto de afogar o petróleo em um quarto dos poços de Berri, em 1990, o que obrigou a Aramco a fechá-los. Este relatório revela que os problemas começaram então a multiplicar-se e em 1994 a produção tinha declinado mais de sessenta por cento. Em 2001 tornou-se claro que já só restavam pequenos segmentos de Berri onde o petróleo não se tinha ainda afogado em água." Arrumou o relatório. "Berri prepara-se para passar à história." Dedilhou mais umas folhas, procurando um outro relatório. "Agora Safaniya, de que já te falei. E o maior campo petrolífero offshore do mundo e o segundo mais produtivo da Arábia Saudita." Extraiu novas folhas da resma. "Entrou em produção em 1957 e o seu petróleo manteve-se relativamente limpo até ao final da década de 1980, altura em que começou a aparecer areia no crude, sinal de que a pressão estava a baixar perigosamente. A água também apareceu, crescendo ao ponto de o water cut se tornar muito elevado na maior parte do campo em 2001."
"Qual é a percentagem?"
"Em Safaniya? Alguns poços já chegaram aos cinquenta por cento de water cut."
"Bolas!"
"Safaniya encontra-se claramente em declínio, meu caro. O seu pico foi cruzado por volta de 1980 e os relatórios mostram que os problemas de água e areia tendem a agravar-se." Guardou as folhas na resma. "Ou seja, o que estes relatórios dizem é que os três maiores supergigantes da Arábia Saudita, Safaniya, Abqaiq e Berri, já cruzaram o pico e estão em declínio."
"Resta o grandalhão."
"Sim, resta Ghawar."
Tomás indicou com os olhos a pasta de cartolina.
"O que dizem esses documentos aí sobre esse campo?"
O geólogo localizou novas folhas.
"Ghawar é tão grande que todo o reservatório foi dividido em áreas regionais, como Ain Dar, Shedgum, Uthmaniya, Hawiya, Haradh e outras. Consequentemente, a maior parte dos relatórios concentra-se na análise de diferentes aspectos destes diversos poços", observou, dedilhando o papel. Indicou um documento. "Este relatório, por exemplo, estuda a misteriosa inclinação do depósito, em particular na 250
zona de contacto entre a água e o petróleo." Um segundo documento. "Este aqui aborda os problemas de injecção horizontal na secção Árabe D." Mais um. "Aqui as atenções estão voltadas para os intervalos de permeabilidade." Ainda outro. "Olha, este tem uma simulação numérica que procura compatibilizar a informação sobre a pressão dos poços horizontais em diferentes tipos de heterogeneidades."
Crescendo de impaciência, Tomás espreitou os papéis.
"Essa conversa é chinês para mim."
"Sim, o jargão é eminentemente técnico."
"Traduzido por miúdos, o que dizem esses relatórios?"
Filipe parou de folhear os documentos amontoados na resma.
"Temos aqui múltiplas análises de diferentes aspectos das operações em Ghawar", disse, fitando o amigo. "Repara, nenhum destes relatórios apresenta uma visão de conjunto. É a soma de todos eles que nos revela uma imagem relativamente clara do que se está a passar neste grande colosso."
"E que imagem é essa?"
O geólogo consultou o relógio e, espantado com as horas, interrompeu bruscamente a conversa.
"Casanova, já se faz tarde", exclamou num sobressalto, subitamente apressado. "Temos de ir."
"Ir?", admirou-se Tomás. "Ir onde?"
Ergueu o braço e chamou a atenção do empregado. Quando o australiano fez tenção de se aproximar, fingiu que assinava no ar e o empregado entendeu; era o sinal para trazer a conta, e depressa.
"Tenho de ir ao quarto arrumar a mala e depois vamos sair da cidade."
"Onde vamos nós?"
"Para longe. Aviso-te já de que nem pensar em passarmos pelo teu hotel para ir buscar as tuas coisas."
"Porquê?"
"Ora, por medida de segurança. Depois do que aconteceu na Sibéria e de teres hoje sido seguido aqui em Sydney, não podemos correr riscos adicionais, não te parece? Terás de desaparecer comigo sem deixar rasto e é por isso que vais ter de deixar tudo no hotel até ao teu regresso."
"Mas onde vamos nós afinal?"
251
"Vamos ter com o James."
"O teu amigo de Oxford?"
"Sim, ele está cá."
Fez-se luz na mente de Tomás.
"Ah, bom. Já estou a perceber porque vieste para a Austrália." Soergueu uma sobrancelha, intrigado. "Ele está aqui em Sydney?"
"Não."
"Então está onde?"
"Já vais ver."
XXXI
A conta veio numa pequena bandeja de prata e Tomás insistiu em pagar; afinal aquela despesa acabaria por ser coberta pela Interpol. Levantaram-se os dois, saíram do Avery's Bar e dirigiram-se para a zona dos elevadores, no luxuoso lobby do hotel.
"Ainda não respondeste à minha pergunta", insistiu Tomás.
"Já te disse que na altura própria saberás para onde vamos."
"Não é isso, idiota."
"Então qual é a pergunta?"
"Estávamos a falar nos campos gigantes da Arábia Saudita", lembrou. Fez um sinal na direcção da pasta de cartolina que o amigo trazia na mão. "Disseste que os depósitos supergigantes já cruzaram o pico de produção, mas ainda não me contaste o que revelam esses relatórios sobre o grandalhão."
"Ah", percebeu Filipe. "Ghawar?"
"Sim. O que se passa nesse campo?"
Chegaram diante dos elevadores e entraram num que já tinha as portas escancaradas. O geólogo carregou no quinto andar e as portas fecharam-se para a curta viagem.
"Como já te disse, Ghawar começou a produzir em 1951 e, durante uma década, o petróleo jorrou livremente do seu depósito sem que fossem necessários métodos especiais de extracção. No final da década, porém, os reservatórios come-
çaram a registar alguma descida de pressão. Para responder ao problema, a Aramco iniciou um programa de injecção de gás no sector de Shedgum. Quando a década de 1960 começou, e perante o agravar da queda de pressão, foi lançado um novo 252
programa, desta vez injectando água nos flancos dos reservatórios. A situação ficou enfim controlada, mas só por alguns anos. Na década de 1970 apareceu água no petróleo que saía dos poços de Ghawar."
"A sério?"
Filipe inclinou a cabeça, como se a surpresa do amigo fosse despropositada.
"Casanova", disse. "Ghawar esteve vinte anos a produzir petróleo seco. Isso é muito bom."
"Ah, está bem. Julguei que o aparecimento de água fosse grave."
"O aparecimento de água é grave."
Tomás pareceu desconcertado, sem saber o que pensar.
"Desculpa, pensei que tinhas dito que não havia problema."
Um tim discreto assinalou a chegada do elevador ao quinto andar. As portas reabriram-se e saíram ambos para o corredor.
"O aparecimento de água na extracção é sempre uma coisa grave", disse Filipe, sem perder o fio à meada. "Isso não impede que o facto de um campo andar vinte anos sem extrair água seja bom. Foi excelente, sem dúvida. O problema é que as coisas boas não duram para sempre, não é?"
"Estou a perceber."
"A produção de Ghawar ao longo dessa década disparou, passando de milhão e meio de barris diários em 1970 para cinco vírgula sete milhões diários em 1981. A partir dessa altura, o consumo mundial baixou e, em resposta, a Aramco diminuiu intencionalmente a produção neste campo mega-gigante. O sector de Haradh, por exemplo, parou por completo, num esforço para descansar os reservatórios."
"Poupar, queres tu dizer."
"Descansar", insistiu o geólogo. "Sabes, quanto mais petróleo um campo produz, mais a pressão dos seus reservatórios baixa. Um modo de combater o problema é parar a produção, o que permite aumentar a pressão de forma natural.
Foi isso o que os Sauditas fizeram a partir de 1982. Começaram a descansar os campos petrolíferos, tentando recuperar a pressão perdida."
"E conseguiram?"
"Um pouco, sim. A pressão aumentou e os problemas com a água diminuíram ligeiramente, mas nada de decisivo." Acariciou a pasta de cartolina que tinha na mão. "Estes relatórios revelam que os problemas com a água em breve regressaram, e em força."
"Estás a referir-te ao teor de água?"
"Sim, ao water cut."
253
"Qual foi a evolução do problema?"
Pararam diante de uma porta e uma ficha magnetizada materializou-se entre os dedos de Filipe. Introduziu-a na ranhura e a porta do quarto fez clique.
"Como já te disse, a água apareceu em Ghawar na década de 1970", indicou, entrando no quarto. "Desde então a sua percentagem em relação ao petróleo não parou de aumentar... e a uma velocidade alarmante."
"Mas quanto?"
Filipe pousou a pasta na cama e sentou-se na borda, convidando Tomás a acomodar-se numa poltrona junto à escrivaninha.
"O water cut cifrava-se já nos vinte e seis por cento em 1993, e daí em diante foi um ver se t'avias", disse, prosseguindo o raciocínio. "Três anos depois já estava nos vinte e nove por cento e em 1999 nos trinta e seis por cento. A situação ameaçava descontrolar-se por completo e a Aramco decidiu abrir novos poços, de modo a contornar o problema. Mas em alguns meses também eles começaram a extrair água." Subiu a palma da mão para cima dos olhos. "A água apareceu até em depósitos situados em pontos elevados, onde não era previsível que ela chegasse tão depressa."
"E o que fizeram os Sauditas?"
"Começaram a ficar de cabeça perdida, claro. Em desespero de causa, a Aramco recorreu a alta tecnologia e a novas técnicas de poços horizontais."
"Isso resultou?"
"Os relatórios já não cobrem o período posterior. Mas, em 2005, consegui subornar em Viena um funcionário saudita que se endividou no jogo e que me deu informações mais actualizadas sobre o preocupante water cut de Ghawar. Ao que parece, o recurso a novas técnicas sofisticadas permitiu à Aramco fazer descer a percentagem de água para os trinta e três por cento em 2003." Abanou a cabeça.
"Mas foi sol de pouca dura. A tendência voltou a inverter-se e, em 2005, o water cut já estava em cinquenta e cinco por cento, com vários poços a subirem em apenas dois anos de vinte por cento para um valor absolutamente alarmante, uma coisa impensável."
"Quanto?"
"Setenta por cento."
"Meu Deus", espantou-se Tomás, arregalando os olhos. "Em dois anos apenas?"
"Num espaço de dois a cinco anos, conforme os casos."
"Em Ghawar?"
254
"Sim."
"Mas isso é... é catastrófico!"
"Podes ter a certeza. Olhando para os dados, chega-se à conclusão de que o pico de produção de Ghawar foi o recorde de cinco vírgula sete milhões de barris diários em 1981. Desde então, nunca mais este colosso voltou a produzir tanto petró-
leo num só ano. Ghawar atingiu o pico no início da década de 1980 e, graças ao recurso a novas tecnologias, encontra-se agora no planalto de produção. Mas, atenção, as novas tecnologias são um pau de dois bicos. Por um lado, é verdade que ajudam a manter a produção elevada, mas, por outro, aceleram o esvaziamento dos depósitos e a diminuição da respectiva pressão."
"Quanto tempo se vai manter este planalto de produção?"
Filipe afagou o queixo.
"Ninguém sabe", disse, meditativo. "Tudo indica, no entanto, que o declínio está para breve e uma coisa é certa: quando começar, será inesperado e brutal."
"O que é isso de para breve?"
"Ouve, Casanova." Abriu as duas mãos diante do rosto, como se exibisse um quadro. "Olha para a imagem geral do problema. O petróleo não-OPEP está perto do pico, que se prevê para 2015, mais coisa menos coisa. Isto significa que a grande esperança quanto ao futuro energético do mundo está depositada no petróleo da OPEP. O problema é que a maior parte dos países da OPEP já cruzou o pico, como é o caso do Irão, do Iraque, do Kuwait, do Iémen, de Omã e da Nigéria. A salvação reside então na Arábia Saudita, cuja produção, acabamos agora por descobrir, assenta afinal num punhado de velhos campos petrolíferos muito amadurecidos.
Todos eles já cruzaram o pico de produção e registam elevadíssimos teores de água na extracção, indício seguro de avançada degradação das operações. As coisas parecem agora depender do desempenho de Ghawar, mas a informação técnica sobre este campo é muito preocupante. Analisando a produção dos campos supergigantes fora da OPEP que já cruzaram o pico, como é o caso de Brent, Oseberg, Romashkino, Samotlor ou Prudhoe, por exemplo, verifica-se que o planalto de produção dos maiores reservatórios tende a durar uns dez anos. Sendo o único megagigante do mundo, é plausível que Ghawar tenha um planalto mais longo. Mas é importante lembrarmo-nos de que este campo descomunal atingiu o recorde de produção em 1981 e que entrou em planalto desde então." Fez uma pausa. "Perante este cenário, o que queres que te diga?" Arqueou o sobrolho. "Hã?"
Fez-se silêncio, enquanto Tomás assimilava a realidade, procurando apreendê-la com todas as implicações.
"Não era o petróleo saudita que ia durar muitos anos?", perguntou, quase a medo.
"Talvez dure cem anos, não sei. O que de certeza não vai durar muito é a alta 255
taxa de produção actual. Isso implica que o mercado terá em breve muito menos petróleo disponível, numa altura em que a procura está a aumentar exponencialmente. E sabes o que isso significa, não sabes?"
"O preço do petróleo vai entrar nos três dígitos."
"Tão certo como dois e dois serem quatro", sentenciou Filipe. "A era do petróleo barato está a acabar. A redução da oferta e o aumento da procura vão fazer escalar o preço do petróleo para valores até agora impensáveis. E o pior é que este processo já começou. O petróleo custava em 1998 dez dólares por barril e, em menos de dez anos, tornou-se oito vezes mais caro. Quando o petróleo custar trezentos dólares por barril, por exemplo, precisarás de uns trezentos euros só para encheres o depósito do teu automóvel."
"Terei de andar a pé."
"Deves estar a brincar", riu-se o amigo. "A actual economia mundial não se sustenta com as pessoas a andarem a pé. Mas a verdade é que o petróleo se tornará caro para tudo, não apenas para o depósito do teu automóvel, o que significa que os autocarros, os comboios e o metro também estarão dez vezes mais caros. Feitas as contas, muita gente acabará por verificar que, pura e simplesmente, não terá dinheiro para se movimentar, o salário não chegará para pagar o transporte para o emprego. E
os transportes, meu caro, são apenas a ponta visível do icebergue. O facto é que, para se fazer um automóvel ou um frigorífico, são necessários fornos, e os fornos são sobretudo alimentados por combustíveis fósseis. O que eu quero dizer é que petróleo mais caro significa produtos mais caros. Ora que nome tem este fenómeno da subida generalizada dos preços?"
"Inflação?"
"Galopante, Casanova." Suspirou. "Na história recente dos Estados Unidos, por exemplo, houve apenas três períodos em que a taxa de inflação atingiu os dois dígitos: 1917 a 1920, a década de 1940 e 1974 a 1981. Sabes o que estes três períodos tiveram em comum? A falta de petróleo. E as cinco recessões que ocorreram desde 1973 foram todas precedidas
pela subida do preço do petróleo. Os economistas andaram a ver estes números à lupa e descobriram que a inflação atingiu os dois dígitos sempre que os custos energéticos chegaram aos dez por cento do PIB. Ora, se isto aconteceu em alturas de carência conjuntural de petróleo, imagina o que acontecerá quando essa carência se tornar permanente."
"O que queres dizer é que a actividade económica vai abrandar."
"Claro. O aumento do preço do petróleo provoca o aumento do preço dos produtos e isso conduz à inflação e ao abrandamento da economia. Começará 256
devagar, claro. No entanto, como o problema não é conjuntural, mas estrutural, a situação vai agravar-se mais e mais. O petróleo sobe, a actividade económica abranda, a inflação torna-se gradualmente descontrolada. É bom lembrar que foi a hiperinflação que destruiu a Alemanha na década de 1920. Agora imagina essa situação em toda a economia mundial. Em tais circunstâncias, o colapso económico tornar-se-á iminente. E, como é bom de ver, um colapso económico arrasta consigo grande agitação social. Se isso acontecer, segue-se aquele rosário de que já falámos, não é? Recessão, fome, pilhagens, caos." Abriu os braços, como quem se entrega ao destino. "Por outras palavras, a nossa civilização pode muito bem estar à beira de se desmoronar."
Tomás ajeitou-se na poltrona e espreitou pela janela, como se procurasse orientar-se.
"Estou um pouco confuso", disse.
"Porquê?"
"Considerando o contributo dos combustíveis fósseis para o aquecimento global, o fim do petróleo deveria ser uma coisa boa, não é?"
"Deveria ser, e é."
"Ah, sim? Mas de que nos serve travar o aquecimento do planeta se, com o fim do petróleo, a nossa civilização for destruída e voltarmos todos à Idade Média?"
"O fim do petróleo ajuda a pôr termo à tendência de aquecimento global, e isso é indubitavelmente bom. Embora seja preciso sublinhar que os efeitos da cessação de emissões de carbono só se farão sentir ao fim de umas décadas, devido à acção cumulativa do aquecimento, como já te expliquei. Mas todas as moedas têm duas faces e o preço de pôr fim às emissões de carbono poderá ser demasiado elevado para a nossa civilização."
"Então, o que podemos fazer?"
Filipe sorriu.
"Voltamos à pergunta do nosso grupinho em Quioto", observou. "Quando nos conhecemos no Japão, eu, o Howard, o Blanco e o James sabíamos que as emissões de combustíveis fósseis teriam de parar, sob pena de o planeta fritar no prazo de algumas décadas, mas o problema que se punha era justamente esse: qual a alternativa aos combustíveis fósseis? Sabíamos também que a indústria do petróleo movimenta imenso dinheiro e não tínhamos ilusões quanto à nossa impotência perante os gigantescos interesses que estavam em jogo. A situação é, pois, de grande delicadeza. Tal como as coisas se apresentam, o cenário diante de nós é verdadeiramente apocalíptico. Estamos perante a pior de todas as perspectivas. Por um lado, vemos a temperatura do planeta subir desmesuradamente, desencadeando fenómenos descontrolados. É possível que estejamos prestes a cruzar valores críticos 257
de temperatura, para além dos quais a Terra se torna um verdadeiro inferno. E, no mesmo momento em que isso acontece, a grande produção de petróleo irá decair bruscamente, sem aviso.
As políticas secretistas da OPEP, o interesse de toda a indústria petrolífera em prolongar o status quo o mais tempo possível, a gestão política segundo curtos ciclos eleitorais e a perversão dos preços do petróleo no mercado mundial estão a camuflar o brutal tombo de produção que se avizinha. Repara que o grande problema não é o petróleo acabar, mas o facto de acabar de repente. Vamos ser todos apanhados de surpresa, sem tempo suficiente para desenvolvermos uma alternativa eficiente." Olhou em redor do quarto, afogueado, como se não tivesse ainda conseguido expressar tudo o que sentia. "Tu já reparaste bem no que nos espera?"
Tomás balançou a cabeça.
"Uma grande trapalhada."
"Nem imaginas a que ponto, Casanova" , observou Filipe com secura. "Vêm aí calores cada vez mais infernais, uma subida do nível do mar que levará as águas a engolirem ilhas e a invadirem continentes, vão aparecer tempestades crescentemente brutais, a desertificação irá alargar-se a metade do planeta e as colheitas mais produtivas serão destruídas pela seca. No mesmo instante em que isso acontece, o petróleo em grandes quantidades acaba de modo abrupto e apanha-nos de cuecas na mão, totalmente desprevenidos. A economia entra numa profunda recessão, as empresas fecham, aparece a fome, quebra-se a ordem pública e, quando deres por ela, a nossa civilização já desapareceu." Balançou o corpo para a frente, aproximando o rosto da face do amigo, e repetiu a pergunta. "Tu já viste o que vai acontecer?"
"O apocalipse."
"Sem tirar nem pôr", exclamou o geólogo. "O apocalipse. E isso não vai acontecer daqui a um século com os nossos bisnetos." Apontou o dedo para a carpete. "Isso vai acontecer muito em breve, ainda durante o nosso tempo de vida."
Deixou esta ideia assentar. "Nós vamos assistir a isso, Casanova. Nós vamos assistir a isso."
Tomás quase se encolheu na sua poltrona.
"É... é assustador."
Filipe endireitou-se na borda da cama.
"Quando nos conhecemos em Quioto, nós os quatro trocámos informações relativas a cada um dos nossos campos específicos de investigação e percebemos que a situação é de catástrofe iminente. O mundo não está preparado para esta crise, não existe nada pensado para a evitar. Foi por isso que desenvolvemos um plano."
258
"Um plano? Que plano?"
"Como a minha área de especialidade é justamente o sector energético, e em especial o petrolífero, eu já dispunha de alguns sinais de que poderia haver problemas no futuro abastecimento mundial de petróleo. Eram coisas pequenas, pedaços de informação aparentemente irrelevantes, certos comentários em surdina que por vezes escutava nos mercados financeiros, esse tipo de coisas. Pegando nas pontas soltas deste puzzle, comecei a perceber que o fim do petróleo barato poderia estar para breve e isso, sendo um gravíssimo problema, era também uma oportunidade."
"Uma oportunidade para enfrentar o aquecimento global, queres tu dizer."
"Nem mais. Se o petróleo estiver para durar, podes ter a certeza de que os poderosos interesses que se movimentam em seu redor jamais permitirão a emergência de uma alternativa viável. Todos nós naquele grupo sabíamos isso. Mas, se porventura o petróleo estiver em fim de vida economicamente viável, então as coisas serão diferentes. O negócio irá acabar e esses interesses perdem força, por via do fim da sua fonte de rendimentos. Foi por isso que dividimos o trabalho entre nós os quatro em função das nossas qualificações e áreas de especialidade. O Howard ficou encarregado de acompanhar a evolução climática, de modo a poder prever com exactidão qual o momento mais crítico do aquecimento. Foi com esse objectivo em mente que conseguiu ser colocado numa estação americana na Antárctida, onde o aquecimento está a ser mais rápido do que no resto do planeta. O Blanco e o James, que eram afinal os físicos e engenheiros do grupo, ficaram com a responsabilidade de procurar e desenvolver uma fonte energética alternativa. E eu dispus-me a determinar a situação exacta das reservas de petróleo, de modo a estabelecer qual o momento politicamente mais propício para avançar com a energia alternativa que o Blanco e o James viessem eventualmente a desenvolver."
"Energia alternativa?"
"Sim", confirmou Filipe. "O mundo terá de dar um salto em frente e encontrar uma nova fonte energética. Se não o fizer, é o fim."
"Estás a falar em energia solar?"
"Não, a energia solar é um bom complemento, mas nunca passará disso. As noites e os dias nublados impedem que essa solução seja viável enquanto principal fonte energética."
"Mas qual é a alternativa? O Qarim disse-me em Viena que o vento também não servia."
"E disse muito bem. É que, tal como a energia solar, a eólica é intermitente. O
que se faz quando o vento pára?"
"Então o quê?"
"Boa pergunta", observou. "O nuclear seria uma opção, não se desse o caso 259
de ser caro e enfrentar grande resistência pública, com o problema adicional de os resíduos permanecerem radioactivos durante milhares de anos. Outras fontes, como as marés, poderão ser complementos interessantes, mas nunca a base na qual toda a economia poderá assentar. O gás e o carvão, que permanecem em grandes quantidades, são energias fósseis emissoras de carbono, pelo que terão de ser postos de parte, sobretudo o carvão, que ainda por cima é muito poluente." Todo o seu rosto se contraiu numa expressão interrogativa. "Então, o que fazer? Foi justamente em torno deste problema que o Blanco e o James se afadigaram." "E chegaram a alguma conclusão?"
"Eu e o Howard andávamos um pouco afastados do trabalho dos dois físicos, pelo que não conheço os pormenores. Apenas sei que o Blanco teve uma ideia interessante. Ele e o James estavam a trabalhar nessa ideia quando ocorreram os homicídios. O Blanco morreu, mas o essencial do trabalho teórico estava, ao que parece, completo. Na sequência dos assassínios, eu e o James desaparecemos de circulação, mas mantivemo-nos activos. Eu continuei a acompanhar a evolução das reservas mundiais de petróleo e ele, que é um homem muito prático, dedicou todo este tempo a desenvolver os conceitos teóricos delineados pelo Blanco." "Vocês os dois mantiveram-se em contacto?" "Claro", assentiu Filipe. "Através da Internet." O
amigo levantou-se da cama e abriu a mala, que se encontrava pousada sobre um estrado. Foi ao guarda-fato e começou a retirar roupa, que dobrou e guardou na mala. "E como são esses contactos? Frequentes?" "Não, de modo nenhum. Temos perfeita consciência dos recursos ao dispor dos interesses ligados ao petróleo e não queríamos correr riscos desnecessários. Ficou combinado que ele me enviaria uma mensagem codificada quando precisasse de se encontrar comigo."
"Qual mensagem? Aquela citação do Apocalipse?"
"Essa mesmo." Filipe parou de dobrar roupa sobre a mala e, endireitando-se, recitou de memória. "«Quando Ele quebrou o sétimo selo, fez-se silêncio no céu.»"
Voltou a inclinar-se sobre a mala e retomou a arrumação das coisas. "É por isso que estamos aqui."
"O teu amigo inglês sabe que eu também venho?"
"Claro."
"E qual vai ser o meu papel?"
"Tu estás a trabalhar para a Interpol, não estás? Então vais ajudar-nos, Casanova."
O historiador ergueu-se da poltrona, incapaz de permanecer sentado.
"Mas como? Como te poderei ajudar?"
Filipe ergueu os olhos.
260
"Para darmos o próximo passo, vamos precisar de uma polícia de confiança."
XXXII
Um bafo abrasador acolheu-os no momento em que a porta do avião se abriu e desceram as escadas para a pista do Aeroporto Connellan; parecia que tinham mergulhado num forno ou cruzado a entrada de uma sufocante estufa seca, instalada a meio da planície semidesértica onde o aparelho tinha aterrado.
"Welcome to Yulara", acolheu-os uma hospedeira no último degrau, uma morena que exibia um sorriso profissional.
Bufando de calor, Tomás e Filipe calcorrearam o alcatrão a uma velocidade incerta; ora se apressavam para escapar da fornalha o mais depressa possível, ora abrandavam porque o corpo parecia derreter-se sob aquele calor abafado. Nuvens de minúsculos insectos esbarraram-lhes na cara, obrigando-os a sacudir o ar diante do nariz; e foi com alívio que entraram por fim no terminal, abraçando a frescura do ar condicionado com a alegria de quem inspira o ar depois de quase ter morrido afogado. O aeroporto era pequeno, quase só um aeródromo arejado, e, logo que o geólogo recuperou a sua mala, saíram para o átrio principal do terminal.
"Philip!", chamou uma voz.
Olharam ambos na direcção da voz e viram um sexagenário alto e magro, de cabelos grisalhos e barba branca pontiaguda, a pele muito ruborizada e olhos azuis gastos por trás de uns óculos muito graduados.
"Olá, James", saudou Filipe, abrindo-se num sorriso.
Os dois homens abraçaram-se e, quando se soltaram, o desconhecido encarou Tomás com uma expressão inquisitiva.
"É este o teu amigo?"
Filipe fez um gesto largo, como se os quisesse juntar.
"Sim, este é o Tomás. Está a trabalhar para a Interpol."
O anfitrião estendeu a mão ossuda.
"How do you do?", cumprimentou. "Nem imagina como... humpf... estou satisfeito por conhecê-lo."
"Tomás, apresento-te James Cummings, físico de Oxford exilado em Yulara."
Os dois apertaram as mãos, o inglês imensamente satisfeito pela presença de um elemento da Interpol junto dele, como se Tomás fosse a garantia do fim da insegurança que o apoquentava desde a morte dos outros membros do grupo.
Cummings espreitou para além dos recém-chegados, como se procurasse alguém que viesse atrás.
261
"E os outros?", perguntou.
"Quais outros?"
"Bem... humpf... não vieram mais polícias convosco?"
"James, o Tomás veio sozinho", atalhou Filipe, um toque de impaciência na voz. "Eu já te tinha explicado que ele vinha sozinho."
O inglês pareceu desapontado.
"Pois foi", reconheceu. "Mas eu tinha esperança... humpf... de que viesse mais segurança." Estudou Tomás dos pés à cabeça. "E a arma? Onde traz você a arma?"
"O Tomás não é polícia. É historiador."
"Historiador? Humpf... mas para que precisamos nós de um historiador?"
"Eu já te expliquei que ele é meu amigo e está a trabalhar para a Interpol."
Pousou-lhe a mão no ombro. "Confia em mim, vai correr tudo bem." Olhou para Tomás e falou em português. "Desculpa lá, Casanova. O James é um daqueles cientistas que parecem viver no mundo da lua. Uma espécie de Professor Pardal, estás a ver? Só que, no que diz respeito a trabalho, não há génio mais inventivo do que este, podes crer."
"Não te preocupes", retorquiu o historiador. "O meu pai também era assim."
Cummings conduziu-os para fora do terminal e levou-os sob o sol abrasador até ao parque de estacionamento.
"Está calor, hem?", comentou Tomás.
"Calor?", riu-se o inglês. "Você deve estar a brincar, old cbap. Eu queria vê-
lo aqui em Fevereiro. Aí é que você ia ver... humpf... o que era calor a sério."
O historiador avaliou o seu anfitrião. Era um homem muito alto, quase de um metro e noventa, de fisionomia seca, pernas e braços longos e magros; usava camisa e calções caqui, com a cabeça tapada por um chapéu australiano, ornado com uma pena verde e amarela de pássaro. Parecia desengonçado, um artolas armado em cowboy.
Chegaram ao pé de um Land Rover verde-azeitona, a cor escondida por uma densa camada de pó, e Cummings abriu as portas; os três acomodaram-se lá dentro, mas o calor era tal que os assentos escaldavam e o ar quase lhes queimava os pulmões. Sem perder tempo, o inglês ligou o motor e o poderoso ar condicionado australiano refrescou o interior do jipe em apenas três segundos; se Tomás não tivesse visto, jamais acreditaria.
262
"Então, James?", disse Filipe, que se sentara no banco ao lado do condutor.
"Como te tens dado aqui na Austrália?"
"Humpf", expeliu o físico, no que parecia a Tomás ser uma peculiaridade de fala. O tique assemelhava-se a um soluço, mas um daqueles soluços afectados, aristocráticos, um trejeito que lhe nascia no estômago e explodia com pompa nos lábios. "Isto é um inferno, um verdadeiro inferno."
O jipe arrancou e fez-se à estrada impecavelmente alcatroada.
"Um inferno?", admirou-se Tomás, instalado no banco traseiro. "Olhe que estou a gostar muito deste país. Acho-o bonito."
Cummings fez um gesto a exibir a paisagem em redor.
"Bonito? Acha isto... humpf... bonito?"
A estrada cortava uma planície de terra enrubescida, árida, de um castanho-avermelhado que coloria tudo como se fosse uma paisagem alienígena, marciana —
terra, pedras, pó, tudo se apresentava de vermelho, com excepção dos tufos verdes de vegetação e da palha amarelada do capim de savana que se espalhava até ao horizonte.
"Sim, é bonito."
"De certeza que não pensaria assim se... humpf... estivesse aqui desterrado anos a fio, old chap. Este inferno no meio do nada dá cabo de mim." Revirou os olhos, exasperado. "Quando penso que... humpf... eu vivia em Oxford! Em Oxford, by Jove!" Abanou a cabeça, cheio de nostalgia. "Que saudades tenho daquele verde sereno e repousante na minha doce Inglaterra."
"Percebo o seu ponto de vista", admitiu Tomás, contemplando ainda a paisagem avermelhada. "Uma coisa é estar cá de passagem, outra é viver aqui."
"Não tenha... humpf... dúvidas. E olhe que isto não vai para melhor, old chap.
Se a temperatura média do planeta subir três graus Celsius... hmpf... a Austrália não passará de deserto e cinzas." Apontou para o terreno árido lá fora. "Aliás, a coisa já começou. Os grandes incêndios de 2003 libertaram em dez minutos mais energia do que... humpf... a bomba atómica de Hiroxima, e o fumo das árvores a arder foi atirado para o ar com uma força de tal modo explosiva que entrou na estratosfera e começou a circular pelo globo. Consegue imaginar isso?" Calou-se um instante, aparentemente concentrado na condução. "Com os termómetros a subirem três graus, os incêndios vão destruir tudo", comentou entre dentes. "Além disso, as secas irão alastrar e a agricultura entrará em colapso. Este continente... humpf... está à beira do abismo."
"Imagino que as pessoas estejam assustadas."
Cummings riu-se.
263
"Assustadas? Good Heavens, claro que não. A Austrália foi, juntamente com os Estados Unidos, a única nação supostamente civilizada que se recusou a assinar o Protocolo de Quioto."
"O que pensam as pessoas disso?"
"Os Aussiesr
"Sim, os Australianos."
"Hooligans", exclamou, com desdém. "Os Aussies não passam de... humpf...
hooligans que foram viver num sítio com sol. Não querem saber do aquecimento global para nada."
Filipe inclinou-se para trás.
"Tu não conheces o James", disse. "Para ele só a Inglaterra se aproveita. Tudo o resto é selvajaria."
O silêncio instalou-se no jipe, que percorria a planície semi-desértica debaixo do sol ardente. Admirando a paisagem exótica, Tomás apercebeu-se de um vulto em frente, descaído para a esquerda, sobre a linha do horizonte; era um colosso vermelho-alaranjado, de pedra nua, como se um gigantesco menir para ali tivesse sido atirado.
"O que é aquilo?", perguntou.
O inglês espreitou na direcção indicada.
"Uluru."
O historiador analisou o estranho corpo que se erguia sobre a savana, parecia uma montanha árida; não era bicuda e serrada, como as dos Himalaias, mas antes um monstro de pedra com um planalto no topo, como uma mesa maciça.
"Tem piada", comentou. "Eu já vi esta montanha em algum sítio."
"Uluru é famoso", disse Cummings, sem tirar os olhos da estrada. "Também lhe chamam... humpf... Ayers Rock."
"Ah, já sei."
"Toda esta zona é sagrada para os... humpf... aborígenes. Mas há místicos de todo o mundo que aqui vêm venerar Uluru. Dizem que a montanha está situada num importante ponto de grelha planetário, tal como... humpf... a Grande Pirâmide de Gize."
"A sério?"
"Humpf... superstições."
Tomás estudou melhor a pedra que se erguia sobre o horizonte.
264
"Mas que a montanha é estranha, lá isso é", observou. "Ela é feita de quê?"
"Uluru? Arenito. E o segundo maior monólito do mundo. O primeiro explorador europeu que o viu chamou-lhe... humpf... um calhau notável. E, de facto, tenho de admitir que esta montanha pode ser algo surpreendente. Uma das suas qualidades mais bizarras é mudar de cor ao longo do dia." Apontou para a montanha. "Agora está alaranjada, não está? Mas o monólito também pode ficar...
humpf... vermelho, castanho, violeta ou azul. Depois da chuva torna-se prateado e até negro brilhante. Por vezes parece que existe uma fonte de luz que emana do interior, como um candeeiro."
"A sério? Já viu isso?"
"Right ho", assentiu. "Acontece algumas vezes por ano. Julgo que é...
humpf... um efeito de luz, como se a natureza nos estivesse a pregar uma partida."
"E como é que uma coisa destas apareceu aqui?"
Cummings fez sinal com a cabeça para o passageiro que ia ao lado.
"Isso é uma pergunta aqui para o... humpf... nosso geólogo."
Filipe remexeu-se no assento.
"Não sei muito bem", confessou. "Já ouvi dizer que Ayers Rock fazia parte do fundo do oceano, há uns quinhentos milhões de anos. Mas não conheço ao pormenor a história geológica desta formação."
"E como é que se explica essa coisa da variação de cor?"
"Bem, como o James já disse, a montanha é constituída por arenito, não é?
Mas também está impregnada de outros minerais, não é só arenito. A variação de cor deve-se justamente à acção de um mineral em particular, o feldspato, que tem a propriedade de reflectir a luz. Eu acho que é isso que cria essa impressão de que a pedra está a emanar luminosidade. Já o vermelho, este tom que parece ferrugem, deve-se à oxidação." Apreciou o aspecto exótico do monólito lá adiante. "De qualquer modo, não há dúvida de que este monstro é realmente misterioso."
"E o que dizem os aborígenes?"
Cummings retomou a palavra.
"Oh, esses tratam Uluru como se fosse Deus em pessoa", exclamou. "Acham que a montanha é oca por dentro e tem uma fonte de energia a que chamam...
humpf... tjukurpa."
"O que quer isso dizer?"
"Tempo de sonho. E uma espécie de história aborígene sobre a criação do universo e dos homens. Eles acham que cada acontecimento deixa uma espécie de...
humpf... vibração na terra, um pouco como as plantas deixam uma imagem de si nas 265
sementes que libertam." Fez um gesto na direcção da montanha. "Uluru seria o eco da Criação e, segundo eles, está povoado... humpf... por espíritos ancestrais."
"Não me diga."
O inglês olhou em redor.
"Está a ver este deserto aqui no Red Centre da Austrália? Tudo isto está cheio de locais sagrados para os aborígenes." Apontou para uma outra forma rochosa, lá longe, à direita, uma mera protuberância de cumes arredondados no fio do horizonte.
"Aquela, por exemplo, é uma outra... humpf... formação sagrada. São as Olgas, mas os aborígenes chamam-lhes Kata Tjuta."
Um aglomerado urbano apareceu de repente à beira da estrada, por entre as dunas, uma visão inesperada no meio daquele deserto avermelhado. Uma placa anunciava Yulara e o jipe abandonou a estrada e mergulhou no casario.
"Vocês têm uma cidade aqui no deserto?", admirou-se Tomás.
"Vocês, não", corrigiu James, quase ofendido. "Que eu saiba não sou nenhum... humpf... Aussie hooligan.'"
"Desculpe." Reformulou a pergunta. "Os Australianos construíram uma cidade no meio do deserto?"
"Yulara é o que os Aussies designam por aldeia turística. Foi erguida para receber os... humpf... turistas que aqui vêm visitar Ayers Rock."
"Há muitos turistas?"
"Humpf... você nem imagina. Meio milhão por ano."
"Meio milhão? Esta aldeia consegue albergar meio milhão de pessoas?"
Cummings indicou as fachadas elegantes e bem tratadas da povoação, os espaços verdes decorados com palmeiras e arbustos, como se ali estivesse um oásis.
"O que não falta aqui são locais para alojamento. Desde hotéis de cinco estrelas até parques de campismo. Mas avi-so-o já de que o melhor sítio para se estar é... humpf... na piscina. Em Yulara, a piscina não é um luxo, old chap, mas uma necessidade. Com o calor que aqui faz, é o único sítio onde se consegue estar quando queremos sair do ar climatizado dos interiores."
O jipe deambulou devagar pelas ruas cuidadosamente desenhadas de Yulara.
A certa altura abandonou a zona povoada e meteu por um caminho de terra, mergulhando no deserto. O Land Rover saltitava nos buracos da terra batida e quase voava sobre as cristas onduladas das dunas, erguendo atrás de si uma nuvem acobreada de poeira seca. Avançou pelo deserto durante dez minutos, rugindo e estremecendo, até que por fim se imobilizou com brusquidão. A nuvem de poeira cobriu o jipe como um manto, deslizando devagar pelo ar ao sabor do vento; parecia uma sombra colorida, e foram necessários alguns instantes até que Tomás pudesse 266
vislumbrar, por entre o denso pó erguido pelo veículo, as paredes alvas de uma casa.
Apearam-se e dirigiram-se para a casa. Cummings tinha desligado o motor e um silêncio profundo abateu-se sobre os recém-chegados; era um mutismo vazio, sem um ténue zumbido de fundo sequer. A ausência de som revelava-se de tal modo despojada que se tornava desconcertante, asfixiante até.
"Isto é a sua casa?", perguntou Tomás, a voz rasgando o silêncio.
Cummings assentiu.
"Baptizei-a com o nome de Arca."
Tomás sorriu. O nome parecia-lhe auspicioso; fazia muito calor e realmente só a frescura de um frigorífico o poderia aliviar naquele momento.
"Arca, hem? Fresca como uma arca frigorífica?"
"Não. Como a arca de Noé."
"Arca de Noé?"
O inglês caminhou na direcção da casa, os passos a chocalharem na areia seca.
"É aqui que se encontra uma coisa preciosa para a humanidade."
"O quê?"
Cummings agarrou a maçaneta e abriu a porta.
"A derradeira esperança."
XXXIII
A casa parecia um pardieiro entregue aos bichos. Havia papéis por todo o lado, livros amontoados em sofás rotos, roupa espalhada pelos cantos, os móveis cobertos por uma grossa camada do omnipresente pó avermelhado; aqui e ali viam-se no chão pedaços de comida seca e embrulhos vazios de batatas fritas, enquanto dezenas de latas de cerveja e de refrigerantes jaziam abandonadas sobre a mobília de madeira exótica. As cortinas tinham enormes nódoas de gordura e o vidro das janelas mostrava-se baço de tão sujo.
"Desculpem a... humpf... desarrumação", disse Cummings, movendo-se pela sala como um explorador a atravessar a selva densa. "Nunca tive muito jeito para as lides domésticas."
Tomás não era um modelo de homem arrumado, mas aquilo pareceu-lhe de mais; a casa manifestamente não levava uma limpeza há pelo menos seis meses. Ele e Filipe desbravaram caminho até aos sofás e acomodaram-se com cautela, evitando as partes do tecido onde as nódoas lhes pareciam mais frescas.
267
"Então é aqui que tens trabalhado?", perguntou Filipe, reprimindo um esgar de nojo.
"Rigbt bo", confirmou o inglês. "E este o meu covil secreto."
Tomás olhou para o amigo com surpresa.
"Nunca cá tinhas estado?"
"Não", disse o geólogo. "Sabia que o James estava escondido aqui em Yulara, claro, mas nunca cá vim." Inclinou a cabeça, como se explicasse o óbvio. "Por motivos de segurança."
O anfitrião saiu momentaneamente da sala e voltou logo a seguir, a cabeça a espreitar pela porta.
"Querem tomar alguma coisa? Chá? Café? Cerveja?"
"Talvez uma água fria", pediu Tomás, a boca seca com o calor da viagem do aeroporto até ali.
Cummings reapareceu com uma garrafa de litro gelada e entregou-a a Tomás.
"Não trouxe copo", desculpou-se. "Estão todos... humpf... sujos."
O historiador não queria copo algum naquela casa; o gargalo selado dava-lhe maiores garantias de higiene. Encetou a garrafa de água mineral e bebeu com sofreguidão quase até meio. Quando acabou, Filipe pediu-lhe a garrafa e matou a sede com o que restava na metade final.
"Então digam lá", começou Tomás, indo direito ao assunto. "O que querem vocês de mim?"
Filipe e Cummings trocaram um olhar e o inglês sentou-se diante deles e fez sinal ao seu amigo português para que fosse ele a explicar as coisas.
"Julgo, Casanova, que já conheces o essencial da história", disse Filipe, cruzando a perna e descontraindo-se no sofá. "Desde a morte do Howard e do Blanco, eu e o James temos andado escondidos. Eu fui para a Sibéria, ele veio aqui para a Austrália. Mas não parámos os trabalhos. Eu continuei a monitorizar a situação das reservas petrolíferas mundiais e ele prosseguiu as pesquisas que tinha encetado com o Blanco. Quando nos separámos, ficou combinado que não nos contactaríamos, a não ser em caso de necessidade extrema e sempre através de mensagens codificadas. Até que, há algumas semanas, o James me enviou uma dessas mensagens, a da citação bíblica que já mencionei."
"A do Apocalipse."
"Essa", assentiu. "Ela contém o nome de código do nosso projecto."
"Ah, sim? E como se chama o projecto, afinal?"
"O Sétimo Selo."
268
Tomás balançou afirmativamente a cabeça.
"Hmm", murmurou. "Daí essa frase de código."
"Exacto", confirmou Filipe. "Quando o James me mandou essa citação, era um sinal de que o projecto estava concluído e que devíamos encontrar-nos aqui na Austrália para ultimar os pormenores. O problema é que tínhamos consciência de que sozinhos não chegaríamos a sítio nenhum e eu não sabia para onde me deveria voltar. Até que vi a tua mensagem no site do liceu e, para além da nostalgia que ela me suscitou, confesso que achei que poderias ser um contacto importante, uma espécie de agente invisível, estás a perceber? Isso reforçou a minha decisão de te convidar para vires ter comigo. Eu precisava da ajuda de alguém que estivesse de fora do circuito, alguém cuja existência os interesses do petróleo desconhecessem em absoluto."
"Estou a entender."
"Quando em Olkhon me revelaste que estavas ao serviço da Interpol, isso foi uma grande contrariedade, pois significava que afinal não estavas fora do circuito.
Se a Interpol te tinha chamado para ajudares na investigação dos homicídios, era evidente que os autores morais desses assassínios iriam saber da tua existência."
"Estás a referir-te aos interesses ligados ao petróleo?"
"Claro!"
"Hmm."
"De resto, isso ficou confirmado no Baikal. Umas horas depois de teres aparecido surgiram no acampamento yurt aqueles homens armados. Ora, pergunto eu, como raio chegaram eles lá?"
"Certamente que me seguiram."
"E evidente que te seguiram", concordou Filipe. Retomou a narrativa.
"Depois de termos escapado, considerei que estávamos perante uma emergência e contactei o James. Ele mostrou-se muito preocupado, como é natural, mas o nome da Interpol ficou a ecoar-lhe nos ouvidos."
O inglês percebeu a deixa e tomou a palavra.
"O ideal era que você estivesse ao serviço da... humpf... Scotland Yard, of course", disse. "Mas suponho que a Interpol dava garantias de segurança suficientes e foi por isso que disse ao Philip que, bem vistas as coisas, talvez... humpf... fosse melhor assim. Precisávamos de ajuda e, tirando a Scotland Yard, quem melhor do que a Interpol para nos dar uma mãozinha?"
"Em que tipo de mãozinha estão vocês a pensar?"
"Para começar, precisamos de... humpf... protecção."
"Mas o Filipe tinha-me explicado que, considerando os colossais interesses 269
que estão em jogo, nenhuma polícia do mundo vos poderia proteger."
"Durante muito tempo", atalhou Filipe. "Nenhuma polícia do mundo nos poderia proteger durante muito tempo."
"Não estou a perceber."
O geólogo respirou fundo.
"Se nós nos tivéssemos dirigido à polícia em 2002, quando o Howard e o Blanco foram assassinados, a esta hora não estaríamos vivos. Nenhuma polícia nos poderia proteger durante muito tempo das garras dos interesses petrolíferos, disso podes estar certo. Mas agora as coisas são diferentes, Casanova. "
"Em quê?"
"O James terminou o projecto que começou com o Blanco. O mercado mundial do petróleo encontra-se prestes a cruzar o pico. Os efeitos da subida das temperaturas globais já se estão a fazer sentir de uma forma palpável." Abriu os braços, com a palma das mãos para cima. "O que eu quero dizer é que o mundo já não tem de esperar mais, este é o momento certo para actuar. O que precisamos de fazer agora é pegar no projecto e entregá-lo nas mãos certas. Para isso não precisamos de anos, bastam-nos semanas." Sorriu. "A Interpol jamais nos conseguiria manter vivos durante anos. Mas, umas semanas? Não vejo qual a dificuldade."
"E quando essas semanas se esgotarem? O que vos acontecerá então?"
Filipe encolheu os ombros.
"Os interesses do petróleo já não terão qualquer vantagem em neutralizar-nos.
Nessa altura o Sétimo Selo estará cá fora e a nossa morte não inverteria o processo.
Pelo contrário, constituiria até um risco demasiado grande, uma vez que, por essa altura, a identidade dos mandantes dos assassínios se tornaria demasiado óbvia. Se conseguirmos tornar público o Sétimo Selo, acho que eles já não se vão arriscar."
Tomás passou a mão pelo cabelo e ponderou o assunto.
"Muito bem", exclamou. "O que querem então que eu faça?"
"Queremos que expliques a situação à Interpol e os tragas cá para garantirem a nossa segurança. Precisamos que eles criem condições para possibilitar o nosso contacto com um conjunto de instituições-chave."
"E o que lhes digo exactamente?"
"Contas-lhes o que viste aqui."
O historiador olhou em redor, desconcertado.
"Aqui? Mas aqui só vi deserto."
Filipe sorriu.
"Vou dizer de outra maneira", corrigiu. "Contas-lhes o que vais ver agora."
270
"E o que vou ver eu?"
"O Sétimo Selo."
XXXIV
A gaveta parecia emperrada, mas, com um puxão forte e decisivo, Cummings conseguiu finalmente desencravá-la. Pôs as mãos no interior e extraiu um caderno grosso, de capa dura negra, como aqueles que se usam na contabilidade. Depois ergueu-se e exibiu o caderno na direcção dos convidados.
"Aqui está, old chap", anunciou, no seu habitual tom afectado. "O Sétimo...
humpf... Selo."
Sem conter a curiosidade, Tomás ergueu-se do assento e foi ter com o inglês.
Pegou no caderno e folheou-o com cuidado. Estava escrevinhado a esferográfica, cheio de equações e esquemas, e com um texto manuscrito em letra difícil. Tentou ler um extracto, mas parou a meio da primeira linha.
"Isto está em espanhol", exclamou, surpreendido.
"Rigbt ho", confirmou James. "Foi escrito pelo Blanco."
"Mas você percebe espanhol?"
"Good Heavens, não." Quase parecia escandalizado com a ideia. "O Blanco é que... humpf... não conseguia raciocinar em inglês, poor chap. Tomava primeiro os apontamentos na... humpf... língua dele, e depois, uma vez tudo registado, traduzia para inglês mais à frente." Apontou para um parágrafo adiante. "Está a ver aqui?
Esta parte é em inglês."
Tomás devolveu o livro e, ao voltar-se, apercebeu-se de um vulto esverdeado para lá da janela. Espreitou e viu que era uma piscina, suja e negligenciada, que James tinha no pátio da casa. A água estava coberta de poeira vermelha, daquele pó que se erguia da terra e tudo cobria, como aquelas nuvens ali ao fundo.
Olhou melhor, intrigado.
As nuvens eram poeira que se agitava no ar, como se fosse levantada pelo sopro violento de uma tempestade. Só que o céu apresentava-se de um azul límpido, não podia ser nenhuma tempestade. Estreitou os olhos e distinguiu um ponto no meio da nuvem de pó, como se uma pulga emergisse da neblina.
"James", chamou, sem tirar os olhos da janela. "Você costuma ter visitas?"
"Sim", confirmou o inglês. "O merceeiro manda cá todos os dias um rapaz com... humpf... comida e bebidas."
"Ah, então ele vem aí."
271
O professor de Oxford aproximou-se e olhou para a nuvem de pó que se aproximava.
"Não é possível."
"Hmm?"
"O rapaz do merceeiro. Ele... humpf... já cá veio esta manhã."
Filipe deu um pulo do sofá e juntou-se aos dois, todos a olharem pela janela com uma expressão electrizada.
"Então quem vem aí?"
A nuvem cresceu rapidamente e depressa se percebeu que não era apenas uma nuvem, mas duas.
Saíram de casa, algo apreensivos, os dois portugueses com a memória bem fresca em relação ao que se passara no Baikal. Tomás olhou em redor, avaliando de onde poderia vir ajuda ou por onde poderiam escapar, mas estavam no meio do deserto e não havia vivalma em redor.
"Não será melhor metermo-nos no jipe?", perguntou, indicando o Land Rover.
"Já não temos tempo", disse Filipe. "De qualquer modo, não deve ser nada de especial. Tomámos todas as precauções, não tomámos?"
"Bem... sim. Mas na Rússia eu também as tinha tomado e depois foi o que se viu, não é? E em Sydney também..."
"Agora é diferente. Os nossos cuidados foram maiores."
O rugido dos motores em aceleração reverberou pelo deserto e os dois jipes aproximaram-se rapidamente. Abrandaram já perto de casa e separaram-se, um para um lado e o outro para o outro; curvaram num movimento de tesoura e convergiram com grande espalhafato diante da casa. Os motores rugiam quando alcançaram o destino, travando no meio de uma nuvem de pó tão grande que os três homens parados no pátio tiveram de tapar a cara, fechar os olhos e conter a respiração, enquanto o vento soprava todo aquele pó para longe.
A poeira assentou e ouviram portas a abrir-se. Do meio da nuvem que se desfazia saíram vultos, pareciam espectros a emergir da névoa. Os vultos aproximaram-se, devagar, e traziam o que pareciam ser paus compridos entre os braços. Olharam melhor e os corações dispararam, desenfreados. Não eram paus.
Eram armas.
Os recém-chegados vinham armados e nas mãos não tinham umas armas quaisquer; traziam espingardas automáticas, claramente de arsenal militar. Os três recuaram um passo e depois outro, receosos, até embaterem na fachada da casa. Não 272
tinham para onde fugir.
Um vulto mais maciço distinguiu-se dos restantes. Caminhava pesadamente e, ao sair da nuvem de pó, Tomás conseguiu por fim distinguir-lhe as feições.
"Orlov!"
O russo estacou. Tinha o rosto encharcado de suor, claramente aquele não era o clima que mais lhe agradava.
"Olá, professor. Por aqui?"
"Isso pergunto eu", exclamou o historiador, ainda surpreendido. "Como é que você soube que eu estava aqui?"
"Digamos que tenho os meus meios."
Filipe tocou no braço de Tomás.
"Quem é?"
Tomás deu um passo para o lado, facilitando o encontro entre as duas partes.
"Ah, desculpa." Indicou o russo. "Este é Alexander Orlov, o meu contacto da Interpol." Em seguida a mão apontou para Filipe. "Orlov, este é Filipe Madureira, o meu amigo que você andava a procurar." Fez um gesto na direcção do inglês. "E
este é James Cummings, o físico de Oxford que também estava desaparecido."
O físico e o geólogo avançaram, estendendo as mãos para cumprimentar o recém-chegado, mas Orlov ergueu a espingarda automática e travou-os com um gesto brusco.
"Fiquem onde estão", ordenou.
"Orlov!", escandalizou-se Tomás. "O que está você a fazer?"
"Quietos."
"Mas eles não são os assassinos", disse, num esforço para esclarecer o mal-entendido. "Eu já lhe explico tudo."
Os restantes homens armados aproximaram-se; eram três e estabeleceram um perímetro de segurança no pátio. Já sem paciência para suportar aquele calor opressivo, o russo fez um gesto com a arma na direcção da porta da casa.
"Lá para dentro."
Tomás não entendia a atitude do homem da Interpol.
"Mas o que está você a fazer? Eu já lhe disse que eles não são os assassinos."
Orlov voltou a arma na direcção de Tomás, que nem queria acreditar no que via diante dos seus olhos.
"O senhor também, professor. Lá para dentro."
273
Estupefacto, quase sem reacção, Tomás obedeceu e entrou na casa; tinha a impressão de que um autómato se havia apossado do seu corpo.
Estava fresco no interior, para alívio do enorme russo, que apontou para o sofá. Os três sentaram-se, muito juntos, como se um instinto de defesa os unisse. Do grupo, Filipe parecia o mais sereno; cruzou a perna, possuído por uma estranha calma, e cravou os olhos no homem que os ameaçava.
"Você não é da Interpol, pois não?"
Os lábios de Orlov curvaram-se num sorriso velhaco.
"O seu amigo é esperto", observou, dirigindo-se a Tomás. "Aliás, isso não me surpreende. Só um homem esperto consegue escapar-me durante tanto tempo."
Afagou a arma, como se a preparasse para o trabalho. "Mas tenho novidades para si." O sorriso alargou-se no rosto anafado. "A esperteza es-gotou-se."
"Não é da Interpol?", perguntou o historiador, perplexo. "Você não é da Interpol?"
Orlov fitou Tomás com uma expressão trocista.
"O que acha?"
A verdade assentou em Tomás, sinistra e terrível. Andara aquele tempo todo a trabalhar para um desconhecido e nunca suspeitara de nada; o homem não era quem ele pensava.
"Mas quem é você então?"
"É assim tão difícil de perceber?"
Filipe inclinou-se para a frente.
"Quem você é já eu percebi", disse. "O que eu gostaria de saber é quem lhe paga o cheque."
O russo voltou a arma para o geólogo.
"Tu, ó espertinho. Está quieto."
"Por que razão hei-de ficar quieto?" perguntou Filipe. "Você vai-nos matar na mesma."
Os olhos de Orlov passearam pelos três rostos ansiosos diante dele.
"Talvez."
"Então temos o direito de saber a verdade."
Dos três homens que tinham vindo com Orlov, dois entraram também na casa e começaram a vasculhar nos cantos. Um deles foi à cozinha e apareceu na sala com várias latas de cerveja australiana fria nas mãos.
274
"Stnotri, chto ya nasbol v kbolodilnike", disse em russo, exibindo o que acabara de encontrar. "Kholodnoe pivkó."
"Dáy mne odnó", rosnou Orlov, pedindo uma lata.
O homem entregou-lhe a cerveja e o volumoso russo engo-liu-a até ao fim, quase de uma só vez. No final endireitou-se, arrotou com violência e riu-se.
"Ah, maravilha." Já saciado e mais bem-disposto, sentou-se numa poltrona, suspirou e encarou os três académicos que o observavam com ar intimidado. "Então vocês acham que têm o direito de saber a verdade, não é?"
Filipe mantinha o sangue-frio, o que suscitou a profunda admiração de Tomás.
"Se tiver a amabilidade de nos explicar em nome de que vamos morrer", disse o geólogo, muito controlado, quase desafiador, "eu agradecia."
"Você sabe muito bem em nome de quê", retorquiu o russo. "O que lhe interessa saber se quem pagou o cheque foi o país A ou a sociedade B, a empresa C
ou o conglomerado D?" Encolheu os ombros. "Isso não interessa para nada." Ergueu o dedo gordo. "O que interessa, o que realmente interessa, é que vocês andaram a brincar com o fogo e chegou a hora de pormos termo a esta brincadeira."
"Mas quem deu a ordem?", insistiu o geólogo.
"Se calhar foi um país, se calhar foi uma petrolífera, se calhar foi um grupo de interesses, se calhar não foi ninguém." Pegou na lata vazia e mostrou-a a um dos seus companheiros. "Igor", chamou, pedindo uma nova cerveja. "Dáy mne yeshó odnó.'" Voltou-se para os três prisioneiros e retomou a conversa. "O que interessa quem deu a ordem?" Apontou para Filipe e Cummings. "O que interessa é que vocês deviam ter tido juízo. Quando limpámos os vossos dois amigos, deviam ter aprendido a lição e ficado muito quietinhos." Abanou a cabeça. "Mas não. Não conseguiram ficar quietos, pois não? Não conseguiram parar as vossas maquinações, pois não? Obrigaram-nos a vir outra vez atrás de vocês." Assumiu uma expressão de incompetência, como um pai que, contrariado, se vê na obrigação de punir um filho mal-comportado. "E agora sujeitam-se às consequências. Ou pensavam que se iam escapar?"
Igor aproximou-se com uma nova lata na mão, que entregou ao seu chefe.
Orlov voltou a engoli-la de uma vez e a soltar um brutal arroto no fim.
"Com licença", riu-se.
Filipe não se deu por vencido.
"Como diabo soube você onde nós estávamos?"
O russo apontou para Tomás com o polegar.
275
"Através do nosso professor. Ele foi o nosso agente infiltrado."
Os olhos de Filipe e Cummings pousaram em Tomás, acusadores. O
historiador reagiu quase anestesiado; arregalou os olhos, ainda mais estupefacto do que pensava ser possível alguém alguma vez sentir-se, e abriu a boca, mas levou ainda um longo segundo a conseguir emitir qualquer som.
"Eu?!" Fitou Orlov com uma expressão absolutamente pasmada. "Eu?!"
Voltou-se para os dois companheiros, como se lhes implorasse que acreditassem nele. "Eu não fiz nada!"
"Então, professor?" O russo divertia-se. "Vá lá, não seja tímido. Confesse tudo."
Tomás sentiu um rubor de irritação crescer-lhe no corpo.
"Você está louco?", quase rugiu. "Mas que conversa é essa de que eu andei a informá-lo? Quando é que eu fiz isso?"
"Oh, não se ofenda. Quando eu era novo, no tempo da União Soviética, bufar era algo perfeitamente normal, coisa mundana."
"Bufar?" Esboçou uma careta de repugnância e desprezo, o medo vencido pelo desdém que o homem diante dele lhe suscitava agora. "Você está doido, Orlov.
Doido varrido."
O russo soltou uma grande gargalhada, apenas interrompida por um novo arroto, era a cerveja ainda a fazer-lhe efeito no estômago.
"Estou doido, é?"
"Sim, doido. Já não diz coisa com coisa."
"E se eu provar que você denunciou o seu amigo? E se eu provar isso?"
Foi a vez de Tomás se rir.
"Ninguém pode provar uma coisa que nunca aconteceu."
"Ah, não? E se eu lhe provar?"
"Então prove lá, sempre quero ver isso."
Orlov estendeu a espingarda e tocou com o cano no braço direito de Tomás.
"Mostre aí a sua mão."
"A minha mão?"
"Sim, mostre lá."
Sem perceber onde o russo queria chegar, estendeu o braço e exibiu a mão direita. Orlov pegou-lhe na mão, analisou-a durante uns segundos e premiu um ponto.
"Sente alguma coisa aqui?"
276
Uma sensação desconfortável percorreu a mão do historiador.
"Sim, isso é o sítio onde me magoei no outro dia. Sofri um acidente e a mão ficou ferida aí."
"Um acidente, hem? E se eu lhe disser que está aqui um pequeno emissor alimentado com uma bateria de lítio?"
"Um emissor?"
"Chama-se Projecto Iridium. Este chip usa uma identificação de rádio-frequência para emitir um sinal GPS que é captado por mais de sessenta satélites que orbitam o planeta. Graças a esse sinal, os satélites podem identificar o local onde o senhor se encontra com um rigor de alguns centímetros."
Tomás analisou a sua mão, embasbacado.
"Um emissor?", repetiu, ainda a tentar digerir o que acabara de lhe ser dito.
"Mas... mas como? Como é que puseram aqui um emissor?"
Um sorriso condescendente encheu o rosto de Orlov.
"Então, professor? Não se lembra do dia em que lhe liguei pela primeira vez?
Lembra-se disso?"
"Sim. Estava no hospital, à espera da minha mãe."
"Lembra-se do que aconteceu nessa noite?"
O historiador fez um esforço de memória.
"Nessa noite?"
"Sim. Não se lembra do que aconteceu? Você meteu-se no carro para vir para Lisboa e... pimba, onde é que acordou?"
A recordação encheu-lhe os olhos nesse instante. Viu o homem de bata branca e bigode fino ao lado da cama e a enfermeira sardenta logo atrás.
"Na clínica", exclamou. "Acordei na clínica."
"E o que estava lá a fazer?"
"Tive um acidente. O meu carro chocou com um poste."
"Como sabe isso? Lembra-se de ver o carro chocar com o poste?"
"Bem... não, não me lembro."
"Então como sabe que chocou com o poste?"
"Disseram-me."
Orlov sorriu, uma expressão sarcástica a bailar-lhe nos olhos azuis.
"Disseram-lhe, foi?"
277
Tomás olhou para o russo, hesitante.
"Não foi? Não choquei?"
Orlov apontou para a mão direita do seu prisioneiro.
"Como acha o senhor que o emissor foi aí parar? Por obra e graça do Espírito Santo?"
O historiador observou a mão com olhos perscrutadores, como se tentasse ver para além da pele.
"Puseram-me este implante na clínica? Foi isso? O acidente foi uma farsa?
Não houve acidente nenhum?"
O russo fez-lhe sinal de que voltasse para o seu lugar e acomodou-se de novo na poltrona.
"Acho que pode agora imaginar o que aconteceu nessa noite, não é difícil. O
facto é que, mesmo antes do nosso primeiro encontro, já nós tínhamos a sua posição no mapa perfeitamente identificada. Graças a esse emissor aí, seguimo-lo pela Sibéria até Olkhon e apanhámo-lo depois na taiga, lembra-se?"
"Cabrões", rosnou Tomás. "Foram vocês..."
"Lamento pela sua amiga." Apontou para Tomás. "E o senhor só se safou porque ainda precisávamos de si. Sabe porquê?" Indicou Filipe. "Para chegar a ele.
A sua sorte foi vocês terem-se separado no Baikal, à noite. O GPS apenas nos dava a sua posição, não a do seu amigo. Quando o descobrimos com a miúda nas margens do Baikal, mas sem o seu amigo, percebemos que teríamos de o deixar à solta, na esperança de ainda nos vir a levar até ele." Fez um gesto na direcção de Cummings.
"Ali o bife é que foi a nossa sorte grande. Nunca pensámos que também nos conduzisse a ele." Sorriu. "Mas conduziu." Acenou com a cabeça, num gesto apreciativo. "O senhor dava um agente e peras, sabia? Olhe que no tempo da União Soviética seria de certeza recrutado pelo KGB." Suspirou. "Mas a União Soviética já acabou e, receio bem, o senhor terá de lhe seguir o exemplo."
"Filho da puta!"
"Então, professor? Estamos a descer de nível?"
"Porque não nos mata já?"
Orlov balançou a cabeça, como se contemplasse essa hipótese.
"É uma possibilidade", disse. "Mas antes de passarmos à parte mais desagradável da nossa conversa há umas coisas que eu gostaria de perceber, se não se importam."
"Que coisas?"
278
O russo desviou os olhos de Tomás e fixou a sua atenção em Filipe e Cummings, as pessoas que lhe poderiam dar as respostas que há muito procurava.
"O que é isso do Sétimo Selo?"
XXXV
O corpo longo e esguio de James Cummings, até aí encolhido no sofá, adquiriu vida como se de repente tivesse sido ligado à corrente eléctrica. O professor de Oxford levantou-se do canto e, com os seus característicos gestos bruscos e desajeitados, quase aos solavancos, pegou no caderno que tinha deixado pousado sobre um móvel e voltou-se para o inesperado público.
"O projecto do Sétimo Selo encontra-se conceptualizado neste caderno", anunciou. "Foi concebido, em termos teóricos, pelo meu colega de Barcelona, professor Blanco Roca, que... humpf... foi cobardemente assassinado no seu gabinete."
Orlov remexeu-se na poltrona, acusando o toque.
"Adiante", ordenou. "Adiante."
O inglês endireitou-se e ficou muito hirto, a olhar o russo com uma expressão sobranceira.
"Este projecto apresenta aquilo que poderá ser a solução para os problemas que a humanidade está já a enfrentar e que
se vão agravar no futuro. Trata-se de uma bateria que nunca precisa de recarga, que não emite calor, que não emite som, que não polui e que se alimenta de um combustível muito abundante no nosso planeta."
"Um combustível muito abundante?", admirou-se Orlov. "O quê? Caca de vaca?"
Cummings fitou o russo com frieza glacial, o desdém a cintilar-lhe nos olhos.
"Água."
Os homens reunidos na sala, com excepção de Filipe, contraíram o rosto numa careta incrédula.
"Água?", exclamou Tomás, que decidira ficar calado, mas naquele instante não conseguiu reprimir a surpresa. "A água como combustível do futuro?"
"A água", insistiu o inglês.
"Mas... mas como?"
O professor de Oxford voltou-se para o móvel e abriu uma gaveta, o que 279
levou os russos a porem as armas a postos, em alerta, sem saberem o que dali iria sair. Cummings mergulhou as mãos na gaveta e extraiu uma grande placa branca, que foi pendurar num prego já colocado na parede. Era um quadro, a superfície láctea e lisa como marfim, igual a tantos outros usados nas reuniões de trabalho das empresas. O académico pegou numa caneta de feltro e assinalou um ponto negro na brancura.
"Tudo começou num ponto, há quinze mil milhões de anos", disse. "Toda a matéria, o espaço e as forças estavam comprimidas num ponto infinitamente pequeno que de repente, sem que nós saibamos porquê, irrompeu... humpf... criando o universo."
"O Big Bang", observou Tomás, já familiarizado com esse tema.
"Isso mesmo", confirmou Cummings. "O Big Bartg. Os primeiros segundos foram, como devem imaginar... humpf... muito atribulados. Começaram a formar-se quarks e anti- quarks, constituindo os hadrões. Ao fim de um milissegundo, formaram-se os electrões e os neutrinos, mais as suas antipar-tículas. O universo estava em... humpf... expansão acelerada e, à medida que crescia, ia arrefecendo.
Isso permitiu que, aos cem segundos, os neutrões se começassem a converter em protões. Alguns instantes depois, as partículas juntaram-se em núcleos, mas havia ainda pouco espaço no universo e a temperatura era demasiado elevada, pelo que os... humpf... electrões colidiam com os fotões e destruíam-se uns aos outros. Se pudéssemos viajar no tempo, veríamos que o universo parecia, nesta altura, um nevoeiro denso. Foi só ao fim de trezentos mil anos, quando a temperatura desceu para baixo dos três mil graus Celsius, que os núcleos conseguiram atrair electrões de um modo estável. Formaram-se... humpf... os primeiros átomos." Contemplou a sua bizarra assistência, constituída por dois académicos portugueses e quatro gangsters russos. "E qual foi, pergunto-vos eu, o primeiro átomo a ser formado?"
Os russos encolheram os ombros, quase indiferentes. A sua especialidade era outra.
"Hidrogénio", respondeu Filipe, que já conhecia a resposta.
Cummings voltou-se para o quadro e escreveu um grande H na superfície branca.
"Hidrogénio", confirmou. "O primeiro elemento da tabela periódica, o mais simples de todos os átomos." Assinalou dois pontos, um ao lado do outro, e desenhou um círculo em seu redor. "Tem um protão e um neutrão no núcleo e um electrão a orbitar. Humpf... nada mais elementar." Voltou-se para a assistência.
"Também foram criados os átomos de hélio, mas os de hidrogénio eram os mais abundantes. Para cada átomo de hélio havia nove de hidrogénio."
Orlov suspirou, claramente impaciente.
280
"Desculpe lá, mas que interesse tem essa conversa de chacha?"
O inglês soergueu a sobrancelha, numa pose muito afectada.
"O... humpf... cavalheiro não queria que eu lhe explicasse o que é o Sétimo Selo?"
"Sim, claro. Mas o que tem isto a ver com o Sétimo Selo?"
"Tenha paciência", pediu Cummings. O seu corpo de gigante franzino estremeceu, como se tivesse levado um pequeno choque. "Onde... humpf... ia eu?"
"No hidrogénio."
"Ah, right ho. O hidrogénio." Olhou para o H que desenhara no quadro branco. "Pois, o hidrogénio é o mais pequeno, o mais simples, o mais antigo e o mais abundante átomo que existe no universo." Ergueu a mão. "Saliento sobretudo a ideia de... humpf... abundante. O hidrogénio é muito, muito abundante. Três em cada quatro de todos os átomos que se podem encontrar no universo são de hidrogénio. O
hidrogénio... humpf... corresponde a setenta e cinco por cento da massa existente no cosmos." Arqueou os olhos. "É muito." Bateu com a ponta da caneta no H. "Sendo tão abundante, todavia, é difícil encontrar hidrogénio em estado puro. Alguém sabe por que razão isso acontece?"
Fez-se silêncio na sala. Ninguém sabia.
"O hidrogénio é reactivo", disse Filipe por fim, era ele o único que estava a par do assunto.
"O hidrogénio é altamente reactivo", confirmou o professor de Oxford.
Tornava-se evidente que Cummings estava mais habituado a falar para plateias de universitários imberbes do que para bandos de mafiosos mal-encarados. "Isso quer dizer que o hidrogénio odeia... humpf... a solidão. Como não gosta de ficar sozinho em casa, o que ele faz é juntar-se com grande facilidade a outros átomos. Se fosse uma mulher... humpf... o hidrogénio seria uma prostituta."
Os russos riram-se. Esta conversa já era mais do seu meio.
"E as mamas?", perguntou Igor num tom alarve, a espingarda automática a dançar-lhe excitadamente de uma mão para a outra. "E as mamas? São grandes? Hã?
São grandes?"
Cummings arrependeu-se da imprudência de ter recorrido àquela metáfora perante tal plateia e pôs um ar digno, como se não tivesse escutado os comentários.
"O que eu quero dizer com isto é que o hidrogénio, sendo extraordinariamente abundante, quase só se encontra... humpf... em forma híbrida.
Por exemplo, quando o hidrogénio se aproxima do oxigénio, cola-se logo a ele, 281
formando a água. Se por acaso é o nitrogénio que passa nas redondezas, o hidrogénio associa-se de imediato e ambos formam amónia. E, se o átomo que passar por perto for o carbono, o hidrogénio agarra-se a ele e... humpf... nascem os hidrocarbonos."
"Grande puta!", grunhiu um russo, às gargalhadas. "Vai com o primeiro átomo que lhe passa à frente! Quer ser penetrada pelos electrões de toda a gente!"
"Silêncio", rosnou Orlov, erguendo a voz para mandar calar os seus homens.
"Deixem ouvir."
Os gangsters acalmaram-se, intimidados com a ordem do chefe, as risadinhas reprimidas, e Cummings, que se tinha calado para deixar passar a galhofa obscena, o ar sempre imperturbável, retomou o raciocínio.
"Ao juntar-se aos outros átomos, o... humpf... hidrogénio armazena energia."
"A energia nuclear?", perguntou Orlov, em cuja mente a palavra energia, associada a hidrogénio, dava bomba de hidrogénio.
"Não", corrigiu o inglês. "Isso é outra coisa. Chama-se energia nuclear à energia associada à força forte que... humpf... mantém o núcleo unido. Neste caso, porém, estamos a falar de um outro tipo de energia, uma energia que é armazenada quando o hidrogénio se liga a outros átomos."
"Ah, bom."
Cummings deu dois passos para o lado e, aproximando-se da janela, apontou para qualquer coisa que estava para além do vidro sujo.
"Estão a ver aquilo ali?", perguntou.
Orlov ergueu-se e espreitou pela janela na direcção indicada. Era um enorme arbusto, de aspecto robusto e rude, semelhante aos milhares que se estendiam pela planície.
"Sim, o que tem?"
"Chama-se wanari e é uma espécie de acácia." Encolheu os ombros. "Na verdade, é-me indiferente que seja um... humpf... wanari ou outra coisa qualquer. O
que importa é que se trata de uma planta. E isto porquê? O que têm as plantas a ver com... humpf... o hidrogénio?"
Orlov, que regressara ao seu lugar, relacionou a pergunta com o anúncio que Cummings tinha feito no início da sua exposição.
"A água?"
A observação teve o condão de fazer suster as respirações na sala. Sentindo a expectativa, o inglês voltou devagar para junto do quadro branco, onde permanecia rabiscado o H e a estrutura esquemática do átomo de hidrogénio, e fez pleno uso da 282
pausa dramática.
"A água", confirmou. "Humpf... e o que é a água?" Vol-tou-se para o quadro e escreveu HzO. "São dois átomos de hidrogénio, associados a um de oxigénio."
"Ménage à trois", atirou um russo lá de trás, não resistindo à tentação da piadinha.
"Zatknís!", vociferou Orlov, mandando o prevaricador calar-se e fixando nele o olhar ameaçador. "Dizes mais uma e vais ver o que te acontece."
O russo das piadas encolheu-se, comprimiu os lábios e baixou os olhos.
Depois daquela reprimenda, era claro que não iria proferir nem mais uma palavra.
"Onde eu queria mesmo chegar era a um processo chamado... humpf...
fotossíntese", disse Cummings, esforçando-se por manter um fio condutor na sua exposição. "Em termos gerais, a fotossíntese ocorre quando as plantas transformam o ar, a luz do Sol e a água em açúcar." Virou-se para o quadro e desenhou o Sol por cima e uma folha por baixo, com uma gota de água assente na superfície. "O que se passa é o seguinte." Do Sol desenhou uma seta apontada para a folha da planta. "A energia solar incide sobre a folha e... humpf... provoca uma cisão das moléculas de água. O oxigénio e o hidrogénio, que estão unidos na água, separam-se." Bateu com a caneta na gota desenhada sobre a folha, para enfatizar esse ponto. "Separam-se", repetiu. "Ora, como já vimos, o hidrogénio não gosta de ficar sozinho. A energia solar obri-gou-o a separar-se do oxigénio, e o átomo de hidrogénio, para recuperar a sua estabilidade, vai logo à procura de um novo companheiro. E quem é que encontra ali na planta? O carbono. Ou seja, o hidrogénio associa-se ao carbono e...
humpf... forma um novo composto, chamado carbo-hidrato, com quem partilha a sua energia extra." Voltou-se para a assistência. "Que nome damos nós aos carbo-hidratos?"
"Açúcar", respondeu Filipe de imediato, sempre ciente de que mais ninguém iria dar a resposta.
"Nem mais", confirmou o inglês. "Os carbo-hidratos, que nascem da junção do carbono com o hidrogénio carregado de energia solar, são habitualmente conhecidos por... humpf... açúcar." Alterou o tom de voz, num aparte. "Daí que o açúcar seja altamente energético."
"Ah, estou a perceber", murmurou Orlov.
"O que eu quero dizer... humpf... é que o açúcar é um depósito de energia solar, a qual se encontra armazenada no hidrogénio que compõe o açúcar. Essa energia solar pode depois ser libertada de diversas maneiras." Simulou o gesto de pôr qualquer coisa na boca. "Se eu comer uma alface, por exemplo, o hidrocarbono entra no meu corpo e... humpf... sujeita-se à acção química do meu metabolismo, 283
que funciona como a fotossíntese ao contrário. Ou seja, o hidrogénio sepa-ra-se do carbono e volta a juntar-se ao oxigénio, criando uma molécula de água." Agitou a caneta de feltro no ar. "E aqui é que é a parte crucial", sublinhou. "Para poder juntar-se ao oxigénio, o hidrogénio tem de se desfazer da energia solar que armazena.
Chama-se oxidação a esse processo e... humpf... é por causa dele que o nosso corpo produz calor. O calor é a energia solar a libertar-se na altura em que, no nosso corpo, o hidrogénio se separa do carbono dos alimentos e se junta ao oxigénio."
"O calor do corpo vem da energia solar contida nos alimentos?", admirou-se o russo.
"Sim, é isso. Mas esta energia do Sol, libertada pelo hidrogénio contido nos alimentos, não assume apenas a forma de... humpf... calor. Também assume outras formas, como a energia eléctrica, a energia mecânica ou a energia química."
"É, portanto, o que nos dá força."
"É isso." Cerrou os punhos. "A energia do nosso corpo vem da energia do Sol, armazenada no hidrogénio. E o que é interessante é que essa energia, em vez de ser libertada, também pode ser guardada por milhões e milhões de anos." Fez um sinal com o polegar para a janela. "Por exemplo, se as folhas do wanari que está lá fora não forem comidas por nenhum animal ou queimadas num incêndio, mas, em vez disso, caírem no chão e se forem enterrando, ao fim de muito tempo transformar-se-ão em... humpf... carvão. Ora que uso damos nós ao carvão?"
"E uma fonte de energia", disse Filipe.
"Nem mais. O carvão é uma fonte de energia. E que tipo de energia é essa? E
a energia solar, armazenada pelo hidrogénio no momento da fotossíntese, ocorrida na altura em que a folha do wanari... humpf... estava viva. Quando atiramos o carvão para a fornalha, o processo de fotossíntese inverte-se. O hidrogénio larga o carbono e associa-se ao oxigénio, libertando a sua energia extra. E o carbono, que entretanto ficou sozinho, também se associa ao oxigénio, criando o dióxido de carbono, que é libertado na atmosfera. Isto acontece com o carvão... humpf... e acontece com os outros hidrocarbonetos que se formam ao longo de milhões de anos: o petróleo e o gás."
"Se bem entendi, a energia não está no carbono", resumiu Orlov. "Está no hidrogénio."
"Isso. O que significa que, quanto mais átomos de hidrogénio tem o hidrocarbono... humpf... mais energia esse hidrocarbono contém."
"Os hidrocarbonos não têm todos a mesma quantidade de hidrogénio?"
"Não, de modo nenhum. Por exemplo, o hidrocarboneto com menos energia é... humpf... o carvão. E porquê? Porque o carvão tem o carbono e o hidrogénio na proporção de um para um. Já o petróleo é mais energético, uma vez que, para cada átomo de carbono que possui, existem dois de hidrogénio. E o gás natural pode 284
libertar ainda mais energia, dado que tem... humpf... quatro átomos de hidrogénio para cada átomo de carbono." Olhou a assistência. "Isto está claro?"
"Sim."
"Então prestem atenção a esta pergunta... humpf... porque é importante." Fez uma curta pausa. "E se, em vez de queimarmos um combustível que tem carbono e hidrogénio, queimarmos apenas hidrogénio? O que acontece?"
"Apenas hidrogénio?"
"Sim. E se, na palavra hidrocarbonos, dispensarmos os carbonos? E se...
humpf... ficarmos só com os hidros?"
"Isso é possível?"
"Porque não? Tiramos os carbonos da equação e ficamos apenas com o...
humpf... hidrogénio."
Orlov encolheu os ombros.
"Qual seria a consequência?"
Cummings pareceu espantado com a pergunta.
"À luz do que eu já vos expliquei, a consequência não vos parece... humpf...
óbvia? Então, se a energia do petróleo está no hidrogénio que ele contém e não no carbono, é evidente que, se eu retirar o carbono da equação, continuarei a dispor de energia." Repetiu a ideia, preocupado em sublinhar este ponto crucial. "Não se esqueçam de que... humpf... a energia está no hidrogénio, não no carbono."
"Estou a ver."
"Ou seja, eu não preciso do carvão, do petróleo ou do gás natural para nada.
Apenas preciso do hidrogénio."
"Mas isso é brilhante", exclamou Tomás, rompendo o mutismo a que se remetera. "Brilhante."
Orlov abanou a cabeça, sem entender bem.
"Qual é a vantagem disso?"
Cummings estreitou as pálpebras. A cabeça do russo era dura.
"Oiça, o que provoca o aumento da temperatura do planeta?", perguntou, enchendo-se de paciência professoral.
"Segundo o que os maricas dos ecologistas andam para aí a dizer, é a queima do petróleo."
"Que é um hidrocarboneto", adiantou o inglês de imediato. "Repare bem que, quando se queima petróleo, o que acontece... humpf... é que ocorre a fotossíntese ao 285
contrário. Ou seja, o hidrogénio liberta-se do carbono e associa-se ao oxigénio.
Como fica sozinho, o carbono também se associa ao oxigénio, criando um novo composto. Como se chama... humpf... esse composto?"
"Dióxido de carbono", repetiu Filipe, sem perder tempo.
"E qual o composto mais responsável pelo efeito de estufa que provoca o...
humpf... aquecimento do planeta?"
"Dióxido de carbono", disse o geólogo, como se tivesse o disco riscado.
"Então o que acontece se tirarmos o carbono da equação?"
"Deixa de se formar o dióxido de carbono, porque não há carbono."
Os olhos de Cummings pousaram em Orlov, insinuando que não era preciso acrescentar mais nada.
"Está a perceber agora qual a vantagem de se queimar apenas o hidrogénio?"
"Sim."
"Se eliminarmos o carbono e ficarmos apenas com o hidrogénio, retemos a parte energética do combustível e, ao mesmo tempo, deixamos de lançar dióxido de carbono na atmosfera. É uma solução ganhadora a todos os níveis. Ganhamos mais energia... humpf... e ganhamos uma energia limpa."
"O hidrogénio puro tem mais energia do que a gasolina?"
"Claro que tem", exclamou Cummings, quase escandalizado com a pergunta.
"Um litro de hidrogénio possui três vezes mais energia do que um litro de gasolina."
"Hmm."
"E assim matamos dois coelhos com... humpf... uma cajadada só", exclamou o inglês. "Paramos o aquecimento do planeta e deixamos de depender do petróleo, recorrendo ao... humpf... átomo mais abundante do universo para ir buscar o combustível de que precisamos."
Orlov contorceu-se na poltrona, reflectindo sobre o que ouvira.
"Isso é muito inconveniente para os meus empregadores", observou sombriamente. "Se essa ideia for conhecida e desenvolvida, eles vão ficar no desemprego." Fez uma pausa. "E eu também."
Cummings cofiou a sua barba branca.
"Pois, imagino que isso seja... humpf... um pouco aborrecido para a indústria petrolífera, sim."
O russo acariciou a arma.
"Vamos ter de fazer alguma coisa para resolver esse problema, não lhe 286
parece?"
O inglês olhou, horrorizado, para a espingarda automática nas mãos de Orlov.
"Mas, espere, ainda há um problema a resolver", apres-sou-se a acrescentar, os olhos a saltitarem nervosamente entre a arma e o russo.
"Problema? Que problema?"
"Onde é que vamos buscar o hidrogénio?"
Orlov pareceu não estar a perceber a pergunta.
"Bem... não foi você que disse que três em cada quatro átomos existentes no universo são de hidrogénio?"
"Disse, e... humpf... é verdade."
"Então qual é o problema?"
"É um facto que setenta e cinco por cento da massa existente no cosmos é hidrogénio. Mas eu acrescentei também outra coisa, não se lembra?"
Orlov fez um esforço de memória, mas nada lhe ocorreu.
"O quê?"
"Expliquei que o hidrogénio, sendo imensamente abundante, odeia viver sozinho. O que ele gosta é de se associar a outros átomos."
"Ah, sim", sorriu o russo. "O hidrogénio é uma puta."
"Pois... humpf... é isso", murmurou Cummings, revirando os olhos. "Ora a facilidade que o hidrogénio tem em associar-se a outros átomos faz com que seja muito raro encontrar átomos isolados de hidrogénio."
O rosto do russo abriu-se num sorriso.
"Ah, pois é", exclamou. "Você disse isso, disse." Cruzou a perna, satisfeito.
"Então como vão vocês resolver esse problema?"
"Quer mesmo saber?"
"Estou curioso."
Foi a vez de ser o inglês a sorrir.
"Então peguem nas vossas coisas e venham ali connosco."
"Ali, onde?"
"Já vai... humpf... ver."
XXXVI
287
Como um rebanho vigiado por ferozes molossos de dentes arreganhados, os três prisioneiros foram escoltados para os dois jipes. Tomás e Cummings enfiaram-se no banco traseiro de uma das viaturas dos russos, Igor pôs-se ao volante e o corpo maciço de Orlov sentou-se ao lado, de arma nas mãos, voltado para trás e atento aos cativos; Filipe teve de ir para o segundo jipe, entregue aos outros dois russos.
"Para onde vamos?", perguntou Orlov.
O inglês indicou as rochas de topo arredondado, que se erguiam como bolhas avermelhadas no horizonte.
"As Olgas", disse Cummings. "Aquelas formações ali."
Igor identificou o destino e olhou em redor, à procura de um caminho naquela direcção.
"Como é que se vai para lá? Atravessamos o deserto?"
"Não, é melhor apanhar a Estrada Quatro e, antes de Uluru, sair no trilho à direita."
Os jipes arrancaram com fragor, as rodas a patinarem na areia púrpura do deserto australiano e a levantarem uma enorme poeirada, e seguiram pelo trilho por onde tinham vindo, dirigindo-se para a estrada alcatroada entre o aeroporto e Yuiara.
Fazia um calor infernal, mas dessa vez Tomás nem notou; sentia-se demasiado preocupado com o seu destino imediato para se incomodar com ninharias.
"Afinal o que vai você mostrar-nos?", quis saber Orlov, inquirindo Cummings.
"Já vai... humpf... ver."
"Não", insistiu o russo, muito firme. "Eu quero saber agora."
Cummings e Tomás trocaram um olhar apreensivo. Quanto mais depressa os russos soubessem tudo, mais cedo seria o seu fim. É verdade que o historiador não alimentava grandes ilusões quanto às suas hipóteses de sobrevivência nas mãos daqueles homens; vira-os executar Nadezhda com arrepiante frieza e sabia que para os seus carcereiros a vida humana não valia mais do que a de uma formiga; tinha plena consciência de que naquele instante ele e os outros dois prisioneiros não passavam de insectos aos olhos dos seus guardas, seres insignificantes que tinham tido o desplante de se atravessar no caminho de interesses poderosos e que, entregues agora à sua sorte, iriam em breve enfrentar o fim num qualquer recanto daquele remoto deserto. Mas, mesmo sabendo tudo isso, mesmo percebendo que tinha o destino irrevogavelmente traçado e que nada poderia fazer, Tomás agarrava-se ainda à ilusão da vida, à vontade de escapar, à esperança de se salvar; até poderiam ganhar apenas dez minutos, uns dez miseráveis minutos, mas sempre seriam mais dez minutos de vida e valia a pena lutar por eles.
288
"Como é?", porfiou Orlov, os olhos cravados no inglês. "Perdeu o pio?"
Girou a arma, de modo a arranjar espaço no assento quase totalmente ocupado pelo seu enorme corpo, e colou o cano à testa de Tomás. "Se não começar já a cantar, aqui o professor português é despachado de imediato." Sorriu, malicioso. "Garanto-lhe que não vai gostar nada do espectáculo. Verá o aborrecido que é andar a limpar os miolos que ficarem espalhados aí no assento."
A transpiração de Tomás tornou-se copiosa e, num estado febril, deu consigo a interrogar-se sobre como seria o fim. Sentiria dor? Ou deixaria de existir de um momento para o outro? Agora via o cano da espingarda automática apontado para a testa, a seguir seriam as trevas eternas, o grande nada.
"Por favor", implorou Cummings. "Não há necessidade disso. Somos todos...
humpf... pessoas razoáveis, não somos?"
"Então é melhor você começar a ser razoável e contar o resto da história", rosnou Orlov, batendo com o dedo gordo no relógio de pulso. "Temos voo marcado para o final da tarde e tenho pressa de despachar o serviço, percebeu? Não quero perder o avião e muito menos ficar mais um dia neste buraco perdido no meio do nada."
"Eu conto-lhe, tenha calma. Não vou atrasar o seu... humpf... serviço, fique descansado."
O russo recolheu a arma e manteve os olhos fixos no professor de Oxford, aguardando o resto da história. Já sem o cano colado à testa, Tomás quase teve um colapso nervoso; o coração saltava-lhe como uma bola em ricochete no peito, sentia o corpo mole e os joelhos e as mãos tremiam descontroladamente.
"Então?", voltou Orlov a grunhir, impaciente. "Olhe que não tenho todo o dia."
Os jipes abandonaram o trilho no deserto e subiram para o impecável alcatrão da Estrada Quatro, logo depois de Yulara, virando aí em direcção ao magnífico maciço vermelho de Uluru.
"Estávamos então a falar do hidrogénio, não estávamos?", começou Cummings, tentando reordenar o seu pensamento naquelas circunstâncias penosas.
"O carbono é o átomo dos combustíveis fósseis que aquece o planeta, mas...
humpf... quem tem a energia é o hidrogénio. Se tirarmos o carbono e ficarmos só com o hidrogénio, acaba-se o aquecimento do planeta e a dependência em relação aos combustíveis fósseis. Do ponto de vista conceptual, nada mais... humpf...
simples."
"O problema é arranjar o hidrogénio em estado puro", observou o russo.
"Sim, o hidrogénio é o átomo mais abundante do universo, mas... humpf... é difícil arranjá-lo em estado puro."
"Então como é que você faz?"
289
Cummings passou os dedos delgados nos pelos brancos da barba, como se o que fosse dizer a seguir fosse a descoberta mais óbvia da história da humanidade.
"Uso a... humpf... água."
"Porquê?"
"A água é um composto muito abundante no nosso planeta, não é? Porque não usá-la... humpf... como combustível?"
"Mas como é que você faz isso?"
O inglês suspirou, um tanto enfadado por ter de explicar o seu trabalho a um energúmeno com a missão de o matar.
"Oiça", disse. "Você sabe decerto qual... humpf... a fórmula química da água, não sabe?"
"H2o", devolveu o russo. "Isso é elementar."
"E o H vem de onde?"
"E o símbolo do hidrogénio."
"Consequentemente, a água tem... humpf... hidrogénio, certo?"
"Sim."
"Então é aí que eu vou buscar a... humpf... energia. Ao hidrogénio da água."
"Mas como é que faz isso?", insistiu Orlov.
"Você sabe o que é a electrólise?"
O russo fez um esforço de memória.
"Já dei isso na escola", observou. "E um processo químico qualquer, não é?"
"A electrólise é a decomposição de uma substância química... humpf...
através de uma corrente eléctrica. Os seus princípios baseiam-se nas leis de Faraday e, através desse processo, é possível separar os dois elementos da água, o oxigénio e o hidrogénio. Para conseguir isso, coloca-se água pura num recipiente e... humpf...
liga-se a corrente eléctrica. Submetidos à energia eléctrica, os átomos de hidrogénio separam-se dos de oxigénio e juntam-se aos outros átomos de hidrogénio. A energia eléctrica gasta neste processo... humpf... fica armazenada no hidrogénio."
"Isso não é um processo novo, pois não?"
"Não, é uma coisa antiga. A primeira vez que... humpf... se fez a electrólise foi em 1800."
"Então onde quer você chegar?"
Cummings inclinou-se para a frente, como se se preparasse para confidenciar um segredo.
290
"E se... humpf... invertermos o processo? O que acontece?"
"Inverter o processo? O que quer dizer com isso?"
"Inverter o processo", repetiu o inglês. "Em vez de pegar em água e separar os seus dois elementos, hidrogénio e oxigénio, porque não... humpf... uni-los?"
Arqueou as sobrancelhas. "O que acha você que aconteceria?"
Orlov considerou aquela ideia.
"Bem, suponho que, se se juntasse o hidrogénio e o oxigénio, se formava outra vez a água, não é?"
"Claro."
"E então? Qual é a vantagem disso?"
Cummings recostou-se no assento.
"Não se lembra de eu lhe explicar que, quando o hidrogénio se volta a juntar ao oxigénio... humpf... se liberta a energia de ligação entre eles?"
"Sim."
"Então é essa... humpf... a vantagem."
Os jipes aproximaram-se de uma tabuleta que indicava Kata Tjuta/The Olgas, já perto do enorme e majestoso monólito de Uluru, e abrandaram. Tomás, que durante todo o troço de estrada alcatroada se mantivera atento ao tráfego, na expectativa de ver alguma viatura da polícia ou do exército passar providencialmente naquela altura, sentiu o coração comprimir-se e a esperança esfumar-se. A direita nascia um estreito caminho de terra e foi para aí que as duas viaturas desceram, abandonando a estrada e iniciando o último troço no deserto.
Orlov acompanhou a manobra enquanto ela se processou, mas, logo que o jipe começou a saltitar pelo trilho, regressou ao tema que naquele instante lhe ocupava a atenção.
"Portanto, se bem entendi, o senhor quer aproveitar a energia extra do hidrogénio." Arqueou o sobrolho. "É isso?"
"Claro."
"E como poderá fazê-lo?"
Cummings ergueu o dedo, como se indicasse que aquela pergunta era muito pertinente.
"Essa é a grande questão", exclamou. Fez um gesto com as mãos, como se segurasse um objecto rectangular invisível. "A
291
solução é arranjar uma caixa... humpf... dividida em duas partes." Simulou que enchia cada um dos lados da caixa. "Colocamos oxigénio numa parte e hidrogénio puro na outra. Posicionamos um metal especial, designado catalista, na parte do hidrogénio, de modo a provocar uma reacção química... humpf... que forçará os átomos de hidrogénio a solta-rem-se. O problema é que, sozinhos, esses átomos tornam-se muito instáveis e têm grande urgência em associar-se a outros elementos." Alterou o tom de voz, num aparte. "Lembre-se de que eles odeiam a solidão." Inclinou a cabeça. "Ora, se os átomos de hidrogénio quiserem acasalar com outros átomos, quais são... humpf... os parceiros mais disponíveis nas redondezas?"
"O oxigénio?"
O inglês sorriu.
"O oxigénio armazenado no outro lado da caixa", confirmou. "Quando o catalista provoca a reacção química que solta os átomos de hidrogénio, esses átomos... humpf... vão a correr em direcção aos de oxigénio." Aproximou o dedo esquerdo do direito, simulando a aproximação entre os dois elementos. "O que nós vamos fazer é abrir um corredor que viabilize esse encontro, colocando um electrólito... humpf... entre as duas partes da caixa. O electrólito deixa passar o protão de hidrogénio, mas, atenção, barra o caminho ao electrão. Ora isto é um problema, uma vez que o electrão fica totalmente desesperado com esta separação e quer a todo o custo juntar-se ao protão. Como somos boas pessoas... humpf... e ficamos com enorme pena do electrão solitário, coitadinho, arranjamos maneira de possibilitar esse encontro romântico."
"E como é que fazem isso?"
"Abrimos um segundo corredor, instalando um fio metálico entre os dois lados da caixa." Procurou o russo com os olhos. "Está claro... humpf... isto?"
"Sim", disse Orlov. "O protão do átomo de hidrogénio passa pelo electrólito e o electrão tem de ir pelo fio metálico."
"Right ho", exclamou Cummings, satisfeito por até um gangster ser capaz de perceber a sua explicação técnica. "E é aqui que está ... humpf... o segredo. Um electrão é, na prática, uma descarga de corrente eléctrica, o que significa que a sua deslocação liberta energia sob uma forma que pode ser usada para o que quisermos.
Com ela podemos acender lâmpadas ou... humpf... pôr motores de automóveis em funcionamento." Fez um gesto vago com a mão. "O que quisermos." Indicou a outra metade da caixa imaginária. "Uma vez no outro lado, o electrão junta-se ao protão e, agora reconstituído, o átomo de hidrogénio... humpf... pode então acasalar com o oxigénio e formar água."
Orlov ficou um longo momento a massajar o queixo enquanto assimilava as implicações deste processo.
292
"E é isso o Sétimo Selo?"
O inglês assentiu com a cabeça.
"Em termos esquemáticos, sim. O Sétimo Selo é um projecto para desenvolver uma nova fonte de energia, usando um combustível... humpf... muito mais abundante do que o petróleo e que funciona sem o carbono que aquece a atmosfera. O nosso desafio envolveu a resolução de problemas técnicos específicos, incluindo as delicadas questões da concentração e do armazenamento do hidrogénio, tornando-o uma alternativa vantajosa aos combustíveis fósseis. O hidrogénio já era conhecido como alternativa energética. Nós limitámo-nos a superar os derradeiros obstáculos."
"E já passou à fase de testes?"
"Não tenho feito... humpf... outra coisa."
Orlov assinalou o deserto em redor.
"Foi para isso que veio para aqui?"
"Bem... não. Eu podia perfeitamente fazer isto em Oxford, um lugar que, para ser sincero, se me afigura bem mais simpático. Acontece que havia uns... humpf...
nasty chaps que decidiram que este trabalho era inconveniente e que..."
"Sim, já sei", cortou Orlov, impaciente. "Mas já experimentou esse sistema em automóveis?"
"Com certeza."
"E qual o resultado?"
"Quatro litros de gasolina... humpf... dão para um automóvel normal percorrer, em média, cinquenta quilómetros, não é? Mas nos testes que efectuei aqui no deserto, um carro movido com este tipo de bateria conseguiu percorrer mais de cem quilómetros... humpf... com apenas um quilo de hidrogénio."
"A sério?"
"A eficiência quase triplicou", disse. "Além disso, as baterias de hidrogénio são silenciosas, não apresentaram quaisquer vibrações e... humpf... apenas emitiram vapor de água." Ergueu o indicador. "Acima de tudo, é muito importante lembrar, não houve libertação de dióxido de carbono, uma vez que o processo... humpf... não envolve carbono."
O russo estreitou as pálpebras.
"Onde foram realizados esses testes?"
Cummings fez sinal para diante. No fim do caminho de terra que serpenteava pelo deserto australiano esperava-os a estranha estrutura de rochas arredondadas; 293
pareciam gigantescos seixos da praia, uma fantástica composição esculpida pelo sopro da natureza.
"Ali", disse. "Nas Olgas. Foi lá que os testes foram feitos e é lá que o equipamento está guardado." Remexeu-se no assento. "Mas... humpf... para que precisa você de o ver?"
Orlov arreganhou os dentes, numa cruel caricatura de sorriso.
"Para destruir tudo."
XXXVII
Os dois jipes estacionaram junto ao estranho conjunto de rochas arredondadas, enoveladas como gigantescas antas, esculpidas pelo vento e pelo tempo, algumas tão grandes que a maior parecia ainda mais alta que o monólito vizinho de Uluru. Os russos deram ordem aos prisioneiros para se apearem e, uma vez fora dos carros, todos se deixaram ficar imóveis por um longo instante, indiferentes ao calor e ao pó, absortos na contemplação do enigmático cenário que se erguia diante de si.
"Como se chama isto?", perguntou Orlov, sem tirar os olhos das grandes pedras.
"As Olgas", disse Cummings. "Mas os aborígenes cha-mam-lhes... humpf...
Kata Tjuta. Parece que significa «muitas cabeças»."
O russo olhou em redor, perscrutando o horizonte.
"E onde guarda o senhor o material?"
"Qual material?"
"Não se faça desentendido."
Cummings apontou para a direita.
"Temos de... humpf... ir por ali."
Voltaram-se para o local e viram um profundo desfiladeiro aberto entre duas das maiores pedras do conjunto.
"O que é aquilo?"
"É um trilho", explicou o inglês. "Chama-se... humpf... Walpa Gorge."
A um sinal, o grupo pôs-se em movimento em fila indiana, Orlov e Cummings à frente, depois Igor, a seguir os outros dois prisioneiros e, na cauda, os dois restantes russos. O piso era árido e a vegetação rasteira escassa. Ao chegarem à 294
entrada do desfiladeiro sentiram o vento quente soprar-lhes no rosto, como se lá ao fundo estivesse uma gigantesca ventoinha.
Após uma breve hesitação, Orlov contornou um pedregulho e entrou no desfiladeiro, logo seguido pelo grupo. Avançaram por entre aquela passagem estreita com passos cuidadosos, irresolutos, percorrendo devagar o caminho rasgado por entre as paredes íngremes das rochas monstruosas. Os seus passos ecoavam pelas encostas, crescendo, multiplican-do-se; a barulheira tornou-se tão grande que parecia que um exército estava a descer por Walpa Gorge.
Uma pedra rolou do alto e Orlov, sempre muito atento, estacou.
"Alto", ordenou, erguendo a mão direita.
O grupo parou a marcha e os russos analisaram o desfiladeiro, procurando movimentos suspeitos.
"Ali!", exclamou Igor, apontando para a crista da enorme rocha que os emparedava. "Está ali alguém!"
"Devem ser... humpf... aborígenes", apressou-se Cummings a explicar. "Esta terra é sagrada para eles."
"Hmm", murmurou Orlov. "Não estou a gostar disto." Fez um gesto em direcção do ponto de onde tinham vindo. "Se calhar é melhor voltarmos para trás."
"São apenas aborígenes", insistiu o inglês. "Não há... humpf... qualquer problema."
Orlov analisou o desfiladeiro.
"Não, não arrisco. Esta passagem é demasiado estreita para o meu gosto." Fez um gesto com a mão. "Vamos para trás."
Igor deu uma ordem aos outros russos e o grupo fez meia volta. Foi nesse instante, quando todos já caminhavam em direcção ao ponto de onde tinham vindo, que uma voz ressoou pelo desfiladeiro, possante como um trovão.
"Todos quietos!"
Ficaram imóveis no trilho, sem saberem se deveriam recuar ou avançar, tentando reordenar os pensamentos.
"Mas que raio...", rosnou Orlov, a arma pronta, a cabeça a rodopiar em busca da voz que berrara a ordem.
O Walpa Gorge pareceu suspender-se no tempo.
"Deitem as armas no chão", berrou a mesma voz. "Ergam as mãos acima da cabeça."
Por um instante, tudo permaneceu congelado, como numa fotografia; apenas 295
o adejar indiferente do pó no ar quebrava essa ilusão. Mas naquela imagem estática algo se mexeu, um movimento ali em cima, uma cabeça que espreitava do topo do penhasco, um corpo que saía da sombra. Os vultos tinham um chapéu largo na cabeça, como o dos cowboys, e t-sbirts e calças cinzentas.
"A polícia!", exclamou Orlov, petrificado.
A voz voltou a ecoar pelo desfiladeiro.
"Não voltamos a avisar", disse. "Deponham as armas e levantem os braços."
Orlov fez um sinal aos seus homens e os russos atiraram-se para trás dos pedregulhos. Igor puxou os prisioneiros para um canto e espreitou para cima. Soou um tiro, depois outro e outro ainda.
Crack.
Crack.
Os disparos começaram por ser isolados, um tiro aqui e a resposta ali, mas logo vieram mais e mais ainda, de repente a situação pareceu fora de controlo; os disparos eram tantos e tão próximos que se transformaram em tiroteio cerrado.
Crack-crack-crack-crack-crack.
O ar em torno do pedregulho para onde os prisioneiros foram atirados estralejava de detonações e de zumbidos de projécteis, por toda a parte se erguiam penachos de pó, eram as balas que atingiam as rochas e feriam a terra.
Tomás olhou em redor e já não sabia quem disparava sobre quem, tão grande era a confusão que ali se instalara. Viu Igor encostado ao pedregulho a procurar alvos no topo das enormes pedras que emparedavam o trilho. Espreitou para cima e não vislumbrou ninguém; era como se os polícias se tivessem volatilizado, fantasmas a assombrarem o desfiladeiro.
Sentiu uma mão puxar-lhe o braço e virou a cabeça. Filipe fazia-lhe sinal com os olhos.
"Vamos", murmurou, tenso.
"Vamos onde?"
"Depressa", disse, num tom conclusivo.
O amigo certificou-se uma derradeira vez de que Igor olhava para o outro lado e atirou-se para lá da pedra, arrastando-se e gatinhando por entre moitas e pedregulhos. Cummings seguiu-o de imediato, com uma agilidade surpreendente para a idade, e Tomás, vencendo uma derradeira hesitação, atirou-se no seu encalço.
"Stop!", gritou alguém atrás.
Era a voz de Igor.
296
Num impulso, movendo-se o mais depressa possível, tentando fundir-se com o ar, Tomás saltou para uma sombra, era um pequeno declive, rebolou pelo chão, bateu com a mão no ângulo de uma pedra, sentiu dor mas ignorou-a, projectou-se para a frente e procurou protecção por entre as rochas.
Crack.
O estampido explodiu-lhe junto dos ouvidos com violência, tão perto a arma tinha sido disparada.
Crack-crack.
Era Igor que abria fogo sobre os fugitivos. Com horror, o pânico a tomar-lhe conta do corpo, Tomás percebeu que o brutamontes russo lhes dava caça. Se não os capturasse, matá-los-ia. Ou se calhar já nem os queria sequer capturar, apenas procurava mesmo abatê-los.
Sentiu ganas de se levantar e correr como um desalmado desfiladeiro fora; o corpo implorava-lhe que o fizesse, correria como o vento, mas uma réstia de lucidez dominou o impulso primário, uma voz na mente avisou-o de que, se se erguesse naquele instante, tombaria logo a seguir, e para sempre. Confiou nessa voz como um cego confia no cão que o guia e manteve-se baixo, rolando nos declives, trepando pelas cristas, rastejando pela terra vermelha e empoeirada como uma cobra que serpenteia colada ao chão. Parou um instante para se orientar, tentando localizar os outros fugitivos, mas Filipe e Cummings haviam desaparecido, no desespero da fuga cada um seguira o seu caminho, um para um lado e outro para outro.
Crack.
A bala sibilou perto do ouvido de Tomás e o som teve o efeito de um choque eléctrico. Os movimentos do historiador redobraram de energia e o corpo rolou pelo chão, buscando a protecção do solo. Sentiu que embatia numa das paredes que comprimiam o desfiladeiro e gatinhou por entre as moitas, os ramos a arranharem-lhe a pele, até que sentiu uma fenda na rocha e se enfiou lá.
Era uma abertura estreita e escura. Com o coração a rufar-lhe no peito como um batuque, olhou em volta e esforçou-se por absorver a topografia do terreno que o cercava. Sabia que a sua segurança era momentânea, que Igor vinha no seu encalço, que dispunha de apenas alguns segundos para escapar daquela ratoeira. A fenda rachava a pedra pelo interior e Tomás experimentou um terrível sentimento de indecisão. Poderia saltar de novo para o desfiladeiro e gatinhar ao longo da parede, mas provavelmente seria visto por Igor e tê-lo-ia à perna. Era um risco. Poderia subir pela fenda e ver aonde ela o levaria, mas era provável que isso viesse a revelar-se um beco sem saída, deixando-o sem escapatória quando Igor chegasse ao buraco.
Era outro risco.
O que fazer?
O tiroteio prosseguia no desfiladeiro, intenso e caótico, até que, por entre as 297
detonações que ecoavam por Walpa Gorge, se apercebeu de que alguém se aproximava. Era Igor que ali vinha. Ao verificar que o regresso ao desfiladeiro se tornara uma absoluta impossibilidade, Tomás mergulhou nas profundezas da abertura e trepou em direcção à luz; apoiando um pé numa saliência, agarrando a terra com uma mão, fazendo de uma rocha um degrau, escorregava e recomeçava, irrequieto, tentando controlar o pânico, esforçando-se por escalar a todo o custo, com a determinação dos desesperados.
Alcançou um parapeito e sentou-se para repousar um momento. Pingava gotas de transpiração em abundância; na verdade nem eram gotas, mas um fio de água que lhe escorria pela ponta do nariz e pelo queixo, nunca pensou que fosse possível suar tão intensamente. Sentiu uma sede incrível e a boca muito seca; passou a língua pelos lábios, mas era como se ela fosse de cortiça, nem uma gota de saliva conseguiu extrair. Encolheu os ombros, resignado. Sabia que naquele momento crítico a água constituía a última das prioridades.
Ouviu movimento em baixo e viu um vulto; era Igor que se aproximava com a espingarda automática nas mãos. Os olhos de ambos cruzaram-se num instante de reconhecimento, mas foi mesmo um efémero momento porque depressa o russo rodou a arma e voltou o cano para cima, na sua direcção.
Crack.
Tomás rolou para o lado, no parapeito, e escapou a tempo à bala assassina. O
parapeito tinha uns dois metros, o que lhe dava espaço de recuo, mas o cerco apertava e tornava-se claro que Igor nem precisava de subir; bastava-lhe escalar até à borda e apontar a arma, coisa de alguns segundos.
O fugitivo explorou apressadamente o parapeito, andando para cá e para lá, como um leão enjaulado, sempre em busca de uma saída daquela armadilha. Não havia nada, estava encurralado. Sentiu a respiração ofegante de Igor no esforço da escalada e viu o cano da arma subir acima da linha da borda do parapeito; parecia um periscópio a emergir das águas do mar.
Num arremesso de desespero, Tomás deu um salto até à borda, espreitou para baixo e viu a cabeça de Igor a meio metro de distância. O russo arfava agarrado às saliências para subir ao parapeito. Sem hesitar, o fugitivo ergueu a perna e, nesse instante, passando de presa a predador, desferiu uma brutal pisadela na nuca do russo. Apanhado de surpresa, Igor bateu com a testa na parede, desequilibrou-se e caiu com estrondo no chão da fenda.
O contra-ataque deu algum tempo adicional a Tomás, que recuou até à parede do parapeito e reavaliou a situação. Do local onde se encontrava não conseguiria subir mais. Haveria algum caminho alternativo que, na loucura da fuga, lhe tivesse escapado? Estudou melhor a fenda e viu que, se desse um salto sobre o parapeito, passando por cima do local de onde viera e onde agora se encontrava o seu 298
perseguidor, poderia atingir uma pequena plataforma com um trilho aberto na rocha.
Mas era arriscado, uma vez que teria de se expor por instantes à mira de Igor; além disso, se o salto falhasse, arris-cava-se a cair na fenda onde o russo o aguardava.
Enquanto avaliava os prós e os contras, ouviu o som da respiração de Igor e percebeu que este tentava de novo alcançar o parapeito. Foi nesse instante que tomou a decisão. Antes que o seu perseguidor subisse de mais, Tomás aproximou-se da borda e espreitou para baixo. A primeira coisa que viu foi o cano da arma apontado na sua direcção.
Crack.
A bala roçou-lhe a cabeça e o estrondo ficou a zunir-lhe nos ouvidos, deixando-o momentaneamente atordoado.
Cabrão, pensou. Já estava à espera que eu espreitasse.
A táctica do pontapé, percebeu, já não voltaria a surpreender o seu inimigo, que agora escalava a fenda com cautelas redobradas. O tempo urgia e por isso Tomás tomou balanço, encheu os pulmões como quem se enche de coragem, correu para a borda e saltou.
Aterrou com um gemido na plataforma para onde tinha apontado o corpo.
Sentiu que se desequilibrava, girou os braços no ar em busca de estabilidade e agarrou-se por fim a uma saliência, evitando a queda na fenda. Ouviu lá atrás os movimentos de Igor a apressar a sua escalada e percebeu que em breve o russo o alcançaria. Levantou-se e percorreu o
trilho rasgado na pedra. Alguns metros adiante, o trilho parecia desaparecer na sombra, engolido por um buraco com o tamanho de um cão. A sensação de que estava encurralado regressou em força, uma vez que não podia voltar para trás.
Sem alternativas, Tomás deitou-se no chão e rastejou pela entrada do buraco, sem saber o que iria encontrar nas trevas. Nada de bom, imaginou, mas aquela era a única saída, de maneira que seguiu caminho. Sentiu zumbidos à volta da cabeça; eram insectos a esvoaçar, surpreendidos com a presença do intruso. Uma nesga de luz incidiu sobre um estranho lagarto cheio de picos, de ar temível; tratava-se de um diabo-espinhoso, que o mirava com espanto por vê-lo naquelas paragens.
O fugitivo fez um esforço por ignorar a bicharada, mas era mais forte do que ele. Sentiu comichões por todo o corpo e apressou-se, não sabia se eram os bichos a passear-se debaixo da roupa ou se era a sua imaginação a fervilhar, mas decidiu não verificar, não fosse dar-se o caso de não gostar do que viesse a descobrir. A verdade é que pressentia movimento por toda a parte e teve de fazer um esforço para controlar os medos. Internou-se no buraco e, contorcendo-se, conseguiu acompanhar uma curva para a esquerda e deixar a entrada bem lá para trás.
Negro.
299
Como o abismo mais profundo, como a sombra mais tenebrosa, era negro tudo o que rodeava Tomás. Ali já nem o clarão da entrada chegava, nada se enxergava e tudo se sentia. Quase fazia frio e o intruso tacteava agora às cegas, a cabeça embatendo numa saliência invisível, as mãos procurando adivinhar as curvas abertas na rocha, os ouvidos sempre atentos aos sons da bicharada que ali se ocultava. Que ameaças se escondem aqui?, interrogava-se Tomás quase sem cessar.
Que insectos, que lagartos, que nojos, que venenos? Haveria escorpiões? Haveria cobras? Como poderia não as haver num tal buraco, tão grande e tão profundo, tão escondido e tão medonho?
Parou, a respiração pesada, ofegante, aflita. Teve ganas de recuar e voltar ao ponto de partida, de fugir dali, a ameaça desconhecida parecia-lhe mais terrível do que a que sabia que o esperava lá atrás, mas teve de fechar os olhos e controlar o pânico, teve de reunir forças para dominar a claustrofobia que o sufocava, teve de concentrar-se e lembrar-se que lá atrás o espreitava a morte e que, qualquer que fosse a ameaça invisível que se escondesse naquele buraco, jamais poderia ser pior do que a certeza que o aguardava se recuasse.
Encheu-se de coragem e enfrentou o desconhecido. Recomeçou a rastejar, tacteando no escuro, como um cego desajeitado, procurando com as mãos formar na mente a imagem dos contornos invisíveis daquele túnel escavado na rocha. Embateu numa enorme superfície que bloqueava o caminho e estacou, ansioso. Seria o fim da linha? Apalpou as paredes frias do buraco, acariciando as pedras e a terra, até que sentiu que à direita se abria uma saída. Seria um antro de cobras? Pegou numas pedrinhas soltas e atirou-as naquela direcção, como se avisasse a bicharada de que era melhor sair dali porque vinha aí gente; e aguardou, expectante, tentando perceber se havia movimento, se as pedrinhas tinham afugentado o que quer que ali se encontrasse. Nada. Não ouviu nada. Encorajado, torceu-se e esgueirou-se pela abertura.
Apercebeu-se de um clarão lá ao fundo. Era a saída. O buraco tinha uma saída. Quando deu conta disso, sentiu o ânimo voltar-lhe, a esperança encher-lhe a alma e a força regres-sar-lhe ao corpo. Rastejou muito rápido, num desassossego, ansioso por escapar dali o mais depressa possível. Os seus movimentos tornaram-se frenéticos, bruscos, quase desvairados. Já via os contornos do túnel, as sombras das pedras, as formigas, as baratas, os lagartos e sobretudo o céu azul do outro lado, a liberdade que o esperava para além da gruta. O buraco alargou e Tomás conseguiu erguer-se ligeiramente, o que lhe permitiu gatinhar nos derradeiros metros e, num último esforço, esticar a cabeça e sentir o ar quente exterior bater-lhe no rosto suado.
"Priviet", saudou uma voz.
A luz do Sol encandeava-o após aqueles minutos na escuridão profunda e Tomás levou por isso alguns segundos a readaptar os olhos à claridade diurna e a distinguir a figura que se agigantava diante dele, à saída do buraco.
Igor.
300
O russo fitava-o com um sorriso sarcástico a bailar-lhe na face e tinha a espingarda automática com o cano quase colado à testa de Tomás. Como diabo apareceu ele aqui?, admi-rou-se o fugitivo, perplexo e desconcertado com aquela recepção inesperada. E agora? O que vai acontecer? Será que me leva prisioneiro?
Será que me vai usar como escudo para escapar daqui? Será que me vai matar?
Click.
Tomás percebeu que Igor acabara de armar a espingarda e se preparava para carregar no gatilho. Estava perdido, concluiu. Suspirou e resignou-se ao seu destino.
Tinha a consciência de que tentara tudo para escapar, mas a verdade é que acabara por ser apanhado e não havia escapatória possível. Igor tinha a arma apontada à sua cabeça e ia disparar a todo o momento. Acabou-se.
Foi, porém, nesse instante de rendição que, como um animal encurralado e enlouquecido pelo medo, uma parte de si se revoltou. Iria morrer como um cordeiro ou lutar como um
lobo? Iria entregar-se ao carrasco ou enfrentá-lo? Cercado, desesperado, sem nada a perder, Tomás decidiu lutar.
Projectou-se para a frente como um nadador que se atira para a piscina e bateu com a cabeça no estômago do russo.
Crack.
Apanhado de surpresa pelo movimento e pela violência do assalto, Igor disparou contra a parede de pedra e perdeu o equilíbrio. Sabendo que não podia dar espaço nem tempo ao seu inimigo, Tomás abraçou-o pela cintura e voltou a impulsionar o corpo. Os dois rebolaram pela rocha e sentiram de repente que o chão lhes faltava e tombavam no vazio.
Era um abismo.
XXXVIII
"Tomás?"
A voz, tensa e preocupada, emergiu do nada.
"Tomás?"
Sentiu um líquido fresco jorrar-lhe pelos olhos e o negro da escuridão tornou-se claro.
"Hmm", gemeu de mansinho.
"Ele está a acordar", disse a mesma voz, muito perto. "O doutor?", perguntou, projectando-se agora numa direcção diferente, como se falasse para o lado ou para 301
trás. "Quando é que ele chega?"
"Já aí vem", devolveu uma segunda voz mais afastada, com um sotaque australiano arrastado. "No worries, mate."
"Tomás, estás bem?"
A primeira voz parecia agora outra vez muito perto. No torpor do despertar, Tomás entreabriu os olhos muito devagar e sentiu a luz invadir-lhe os sentidos.
"Hmm", voltou a gemer.
Uma sombra indefinida recortava-se mesmo à sua frente, enchendo-lhe a visão ainda desfocada. Era uma figura humana e estava debruçada sobre ele, uma das mãos a segurar-lhe a cabeça, a outra a movimentar-se à frente do nariz.
"Estás a ver o meu dedo?"
Tomás focou os olhos no objecto erecto diante de si.
"Uh-uh."
O dedo oscilou para a direita e para a esquerda.
"E agora? Ainda o vês?"
"Uh-uh."
O homem debruçado sobre o seu corpo suspirou de alívio.
"Ufa! Ainda bem."
"Haw, sbe'll be rigbt, mate", disse a segunda voz, despreocupada.
No torpor do despertar, Tomás fez um esforço para debelar a confusão que lhe toldava o raciocínio e perceber o que se estava a passar em redor. De olhos entreabertos, identificou finalmente a voz e a figura que se curvava sobre ele. Era Filipe. Sorriu com fraqueza ao reconhecer o amigo. Depois espreitou para além dele e apercebeu-se da presença de um homem uniformizado lá atrás, em pé, a espreitar sobre o ombro de Filipe. Um polícia.
Tranquilizado, e com a mente gradualmente mais clara, Tomás respirou fundo, apoiou os cotovelos no chão árido e ergueu o tronco. Uma dor lancinante nasceu-lhe da perna esquerda e subiu-lhe pelo corpo com a força de um trovão.
"Agh!", gritou, literalmente a ver estrelas.
"Está quieto", recomendou Filipe, apoiando-lhe o corpo. "Não te mexas, Casanova."
"Porra", resmungou, os olhos e os dentes cerrados por causa da dor. "Está-me a doer." Gemeu. "É abaixo do joelho."
302
"Está quieto", insistiu o amigo. "Acho que partiste a perna."
A dor brutal teve o condão de o despertar totalmente. Foi como se o nevoeiro se tivesse levantado de repente e agora visse tudo claro. Logo que a dor acalmou, Tomás esticou o pescoço e tentou observar a perna esquerda.
"Está mal?"
"O quê? A perna?" Filipe mirou a perna. "Vai ficar boa, não te preocupes. O
médico da polícia já aí vem." Abanou a cabeça e sorriu. "Nunca vi um gajo com tanta sorte como tu."
"Ah, sim? Porquê?"
Filipe riu-se.
"Porquê? Ainda tens a lata de perguntar porquê?"
"Não vejo qual é a... agh... admiração."
O amigo fez sinal para o enorme rochedo mesmo ao lado.
"Olha lá, tu já viste bem de onde é que caíste? Foram quase dez metros, o que pensas tu? Tu caíste de quase dez metros de altura e só partiste uma perna."
"Estás a brincar!"
Filipe apontou com a cabeça para o lado. Tomás olhou naquela direcção e viu um corpo estendido no chão.
"Então pergunta ali ao teu amiguinho se estou a brincar."
"Quem é esse?"
"E o russo com quem caíste lá de cima."
"Como está ele?"
"O que te parece?"
"Está morto?"
"Mais morto que o Tutankhamon." Fez uma careta. "Que é como tu também estarias se não tivesses caído por cima dele. O corpo do tipo amorteceu-te a queda, foi a tua sorte."
"Porra", praguejou Tomás. "Já viste as voltas que a vida dá? Veio atrás de mim para me matar e acabou por me salvar."
"É, foi um gajo porreiro. Deu a vida por ti." Piscou o olho. "Espero que lhe retribuas a gentileza e pelo menos compareças à missa do sétimo dia, hã?"
"Vai-te lixar." Olhou para um cantil pousado no chão. "Eh, pá. Estou a morrer de sede."
303
Filipe desenroscou a tampa do cantil e deu-lhe de beber. Recebeu a água com a sofreguidão de um faminto diante de um banquete. Bebeu golo atrás de golo até o cantil se esvaziar e se sentir meio saciado, mas não completamente; afinal tinha ficado seriamente desidratado enquanto fugia de Igor.
"Porra", exclamou Filipe ao verificar que o cantil se esvaziara. "Estavas mesmo com sede, Casanova. Queres mais?"
Tomás acenou afirmativamente.
"Sim", murmurou, quase sem fôlego.
Filipe voltou-se para o polícia que observava a cena atrás dele.
"Tem aí mais água?"
"Acho que só nos carros-patrulha, que estão do outro lado", disse o australiano. "Vou buscar."
O polícia deu meia volta e Tomás ficou a vê-lo a afastar-se.
"Como é que a polícia soube disto?"
"É uma longa história."
"Sabes que gosto de longas histórias."
Filipe franziu o sobrolho.
"Queres que ta conte agora?"
"E porque não?"
O amigo suspirou.
"A polícia tem estado a vigiar-nos desde o princípio", revelou. "A casa do James tem microfones plantados por toda a parte e eles acompanharam tudo."
Tomás olhou interrogativamente para o amigo, uma expressão perplexa estampada no rosto.
"Mas que raio de história é essa que estás para aí a contar?"
"Bem, estou a contar-te o que aconteceu."
"Mas como é que a polícia soube disto?"
"Fui eu que os avisei."
"Avisaste a polícia?" Abanou a cabeça. "Não estou a perceber", exclamou, tentando reordenar o raciocínio. "Não eras tu que dizias que, perante os gigantescos interesses que estavam em jogo, nem na polícia se podia confiar?"
"Disse, e é verdade."
304
"E então? Como é que aparece a polícia no meio disto tudo?"
"As circunstâncias mudaram e foi necessário alertá-los. Eles puseram a casa sob escuta e observaram a chegada dos gangsters e toda a conversa que se seguiu."
"Mas por que razão não os prenderam logo?"
"Por vários motivos, Casanova. Era necessário gravar a conversa para juntar elementos que os incriminassem. Por outro lado, tínhamos esperança de que os russos revelassem inadvertidamente quem eram os seus mandantes."
"Coisa que eles não revelaram."
"Pois não, mas ao menos tentámos. O plano era deixá-los falar à vontade, pelo menos enquanto não houvesse perigo iminente para a nossa segurança. Depois deveríamos trazê-los aqui para as Olgas, onde seriam capturados à saída de Walpa Gorge." Apontou numa direcção. "Há ali uma clareira que seria propícia para a intervenção, estás a ver? O problema foi que um polícia escorregou lá em cima, quando vigiava a nossa passagem pelo desfiladeiro, e os russos toparam a armadilha." Sorriu. "Escapámos por pouco, hem?"
Tomás fez ar de quem não estava ainda a perceber a história.
"Desculpa lá, mas continuo sem compreender o que te levou a chamar a polícia, depois de andares anos a fugir dela."
Filipe pigarreou, ponderando por onde começar. Concluiu que não há melhor sítio para iniciar uma narrativa do que pelo princípio.
"Ouve, Casanova, vamos recuar no tempo", propôs. "Quando o Howard e o Blanco apareceram mortos no mesmo dia com um triplo seis ao lado e eu e o James descobrimos que só tínhamos escapado devido ao facto de nos termos ausentado inesperadamente de casa, concluímos os dois que precisávamos de desaparecer do mapa. A indústria petrolífera tinha descoberto que nós éramos uma ameaça e, pelos vistos, decidira eliminar-nos."
"Isso tudo já eu sei."
"O problema é que desaparecer do mapa, como deves calcular, não é uma coisa simples. É fácil dizê-lo, mas não é fácil fazê-lo. A verdade é que a indústria petrolífera dispõe de imensos recursos e não seria difícil aos tipos que estavam por detrás de tudo conseguir localizar-nos, sobretudo porque os nossos recursos são irrisórios quando comparados com os deles. Eu e o James temos algum dinheiro, mas nada que nos permitisse escapar a um inimigo desta envergadura."
"Então o que fizeram vocês?"
"Concluímos que tínhamos de arranjar um aliado, e depressa. Uma hipótese óbvia era dirigirmo-nos à polícia, mas, como eu já te disse, logo percebemos que não há polícia no mundo que nos conseguisse proteger durante muito tempo.
Ficámos a matutar no assunto e foi então que o James se lembrou do aliado perfeito, 305
alguém que poderia ter a vontade e os recursos para nos proteger e até para nos ajudar a concluir as nossas pesquisas."
"Quem?"
Filipe sorriu, como se quisesse fazer perdurar o mistério.
"Não consegues imaginar?"
"Eu não."
"Pensa bem", desafiou. "Quem é que poderá estar interessado em fazer parar o aquecimento global?"
"A humanidade?"
"Claro que o interesse é da humanidade, idiota. Mas ela não actua espontaneamente, pois não? Estou a referir-me a um grupo organizado."
Tomás comprimiu os olhos, num esforço para adivinhar a resposta.
"Só estou a ver os ecologistas."
O amigo riu-se.
"Esses têm muita conversa, não há dúvida, mas não dispõem dos recursos necessários para nos ajudar. Do que eu estou a falar é de um aliado muito poderoso, suficientemente forte para fazer frente à indústria petrolífera."
"Não imagino quem seja."
"Vá lá, faz um esforço."
Tomás encolheu os ombros.
"O exército dos Estados Unidos?"
Filipe voltou a soltar uma gargalhada.
"Engraçadinho", comentou. "Vamos lá, não consegues mesmo imaginar ninguém?"
"Já te disse que não. Vá, desembucha. Quem é esse vosso poderoso aliado secreto?"
Filipe inclinou-se sobre Tomás e sussurrou-lhe a resposta ao ouvido.
"A indústria seguradora."
"Quem?"
"A indústria seguradora."
Tomás franziu o sobrolho, desconfiado, e fitou o amigo, tentando avaliar se ele estava a brincar. Pela expressão do rosto, porém, percebeu que era a sério.
"Esses aldrabões?"
306
Mais uma gargalhada de Filipe.
"Talvez sejam aldrabões, não sei, mas podes estar certo de que é graças a eles que nós ainda estamos vivos e que pudemos prosseguir as nossas pesquisas durante todo este tempo."
"Não estou a perceber", balbuciou Tomás. "Que interesse têm as seguradoras em salvar-vos o pêlo?"
"Ao salvar-nos o pêlo, como tu dizes, a indústria seguradora estava a salvar o seu próprio pêlo."
"Como assim?"
O amigo adoptou um tom condescendente.
"Como quase sempre acontece, Casanova, tem tudo a ver com o dinheiro."
Arregalou os olhos para enfatizar a ideia. "Com o dinheiro e apenas com o dinheiro."
"Não estou a perceber."
"É muito simples", disse Filipe. "Na década de 1980, a indústria seguradora americana pagou uma média de menos de dois mil milhões de dólares anuais por danos provocados pelo mau tempo. Mas de 1990 até 1995 esses custos escalaram para mais de dez mil milhões de dólares anuais, valor que voltou a trepar depois de 1995. As inundações e as tempestades cada vez mais extremas fizeram escalar os prejuízos e são as seguradoras quem está a pagar a factura mais pesada. A situação tornou-se tão grave que as maiores seguradoras do mundo assinaram um pacto a introduzir considerações climáticas nas suas avaliações de risco. Elas vivem agora num clima de pânico latente e receiam que o aquecimento global produza eventos meteorológicos catastróficos. Segundo certos cálculos, bastam alguns grandes desastres provocados pelo extremar das condições atmosféricas para toda a indústria entrar na bancarrota." Fez uma pausa, procurando enfatizar a ideia. "Percebes, Casanova? Toda a indústria seguradora enfrenta a possibilidade de falência por causa do aquecimento global." "Caramba", exclamou Tomás. "Não fazia ideia." "A Lloyds de Londres perguntou há uns anos a um grupo de peritos se as tempestades, as secas e as cheias cada vez mais violentas se deviam ao aquecimento do planeta.
Na altura os peritos disseram que não podiam provar que o planeta estava de facto a aquecer, mas que, quando o pudessem provar, as seguradoras estariam em apuros."
Balançou a cabeça. "O aquecimento global já está agora provado, o que significa que elas estão em apuros." "Estou a ver."
"De modo que, quando eu e o James contactámos determinados elementos das maiores companhias de seguros do mundo e lhes explicámos a nossa pesquisa e a perseguição que a indústria petrolífera nos estava a mover, eles agarraram em nós como se tivessem agarrado em ouro. Foram as seguradoras que disponibilizaram os meios que nos permitiram desaparecer do mapa e prosseguir as pesquisas em 307
segredo. Arran-jaram-nos uma nova identidade, deram-nos documentos, disponibilizaram uma conta quase inesgotável e esconderam-nos onde os tipos do petróleo não nos poderiam encontrar, a mim na Sibéria e ao James aqui no deserto australiano." "Que é onde vocês têm estado este tempo todo." "Sim", confirmou Filipe. "Quer dizer, por vezes tivemos de viajar. Precisávamos de ir aqui ou ali para investigar determinado assunto ou obter uma certa componente, esse tipo de coisas.
A nova identidade e o fundo de pesquisa foram muito
úteis para isso. Mas, no essencial, mantivemo-nos escondidos e apenas dois ou três executivos-chave das grandes companhias de seguros sabiam do nosso paradeiro."
"E a polícia?"
"Nada. Não dissemos nada a ninguém. A polícia nem sequer tinha conhecimento de que nós estávamos vivos. No que ao resto do mundo diz respeito, eu e o James não existíamos."
Tomás fez um gesto com a mão em direcção ao local onde o polícia fora buscar água.
"Então como é que eles estão aqui?"
"Já lá vou", disse o amigo. "O que se passou foi que eu concluí a pesquisa sobre o estado das reservas mundiais de petróleo e, pouco depois, o James terminou os trabalhos de desenvolvimento do hidrogénio como fonte energética do futuro.
Estavam enfim criadas as condições para avançarmos. Por um lado, o mercado aproxima-se do momento em que vai constatar que não há petróleo suficiente para satisfazer as suas necessidades. Por outro, temos já preparada a alternativa que irá resolver esse problema. Isto significa que é este o momento certo, mas faltava-nos ainda ultrapassar um derradeiro obstáculo."
"Qual?"
"Neutralizar os mandantes dos homicidas. Os autores morais dos assassínios do Howard e do Blanco tinham de ser desmascarados, sob pena de toda a operação se encontrar sob permanente ameaça. Eu próprio e o James jamais poderíamos voltar a dormir tranquilamente. Iríamos sempre viver com medo de que os homicidas do triplo seis nos aparecessem à noite à cabeceira da cama. Era imperativo neutralizar esta ameaça."
"Foi então que chamaram a polícia."
"Tem calma", insistiu Filipe, indicando que já chegaria a essa parte.
"Decidimos estender uma armadilha aos homicidas. Utilizando um canal na Internet que sabíamos estar a ser vigiado, o James mandou-me um e-tnail com a citação 308
bíblica."
"A do Sétimo Selo."
"Essa. Ele mandou-me o e-mail e ficámos à espera, a ver o que aconteceria."
Tomás olhou para o amigo com uma expressão intrigada.
"Mas por que razão não me contaste todos esses pormenores quando nos encontrámos?"
"Desculpa, mas tive de ser prudente. O êxito da operação dependia do sigilo.
Além do mais, e vais ter de compreender isso, tu acabaste por ficar sob suspeita."
"Eu?"
"Claro, Casanova. Repara que, num primeiro momento, nós pomos um e-mail na Internet para atrair o assassino. Semanas depois, o que aparece no site do liceu? Uma mensagem tua à minha procura."
"Ah, estou a entender", exclamou Tomás, caindo em si. "Percebeste que os homicidas se tinham mexido."
"A princípio, não. Confesso que não fiz imediatamente a relação. Como te contei noutro dia, o que se passou foi que a tua mensagem me despertou saudades do meu país e dos meus tempos de juventude, e foi por isso que quis ver-te. Além do mais, achei que, não tendo tu qualquer relação com o mundo do petróleo, não haveria problema nenhum em encontrarmo-nos. Poderia até haver utilidade nisso."
"E quando é que percebeste que o nosso encontro estava relacionado com a perseguição dos homicidas do triplo seis?"
"Quando fomos perseguidos em Olkhon", disse Filipe. "Achei estranho o aparecimento dos homens armados no acampamento yurt horas depois de lá teres chegado. A desconfiança tornou-se certeza quando os vi seguirem-nos por todo o lado na ilha. íamos para um lado, eles vinham também, íamos para outro, eles iam também. Não era normal, parecia que alguém os estava a informar. Esse alguém só poderias ser tu."
Tomás ergueu o braço direito e olhou para as costas da mão.
"E era", confirmou. "O chip que me implantaram aqui na mão estava, pelos vistos, a informá-los dos nossos movimentos."
"Eu não sabia de chip nenhum. Apenas sabia que os tipos conseguiam dar connosco com surpreendente facilidade. Foi por isso que decidi separar-me de ti no Baikal. Suspeitava que, se me afastasse de ti, afastar-me-ia também daqueles gorilas.
E tinha razão."
Tomás franziu o sobrolho.
"Saíste-me um amigo da onça. Os gajos mataram a Nadia e quase me matavam a mim também."
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"Mas eu não podia saber isso", apressou-se Filipe a esclarecer. "Tens de perceber que naquela altura tudo me parecia suspeito e eu admitia como muito provável que estivesses de conluio com os gajos, entendes? Não me passou pela cabeça que tu e a Nadia corressem verdadeiro perigo. Eu achava que estavas envolvido na jogada, pelo que eles não vos fariam mal nenhum."
"Estou a perceber. Só a morte da Nadia te provou que não era assim."
Filipe abanou a cabeça.
"Não, pelo contrário", exclamou. "Quando soube que ela tinha morrido e que tu estavas vivo, mais se cimentou a ideia de que te encontravas metido na porcaria até ao pescoço. De que outro modo se poderia explicar o facto de eles te terem deixado vivo? A tua sobrevivência parecia-me prova da tua culpa."
Tomás sorriu.
"Que confusão!"
"Foi por isso que te atraímos aqui à Austrália. Mas desta vez preparámo-nos com cuidado. Contactámos primeiro a Interpol, que nos revelou que jamais te tinha contratado, o que pareceu confirmar as nossas piores suspeitas em relação a ti. Daí que as companhias de seguros tivessem montado um forte esquema de segurança em Sydney, monitorizando toda a gente à nossa volta, e a polícia australiana tivesse sido contactada. Até pusemos um gajo a seguir-te ostensivamente pela cidade, para estudar o teu comportamento."
"Não me digas que foi aquele tipo..."
"Esse mesmo." Filipe sorriu. "Queríamos ver como reagias ao aperceberes-te de que estavas a ser vigiado." Encolheu o pescoço e abriu as mãos, numa expressão de perplexidade. "Ainda fiquei a conversar longamente contigo, à espera que sucedesse alguma coisa. Só que, para nossa decepção, não aconteceu nada em Sydney."
"Foi aí que começaste a ter dúvidas."
"Não, de maneira nenhuma. Concluí que os homicidas queriam chegar também ao James, pelo que decidimos embarcar no jogo e avançámos para o plano B. Trouxe-te aqui a Yulara e fomos para aquela casa, à espera dos acontecimentos.
Queríamos ver se atraías outra vez os gangsters e apanhávamos toda a gente de uma assentada."
"Não achas que isso foi um pouco arriscado? E se os tipos tivessem chegado lá e nos tivessem matado imediatamente?"
"Claro que foi arriscado, mas esse era o preço que tínhamos de pagar por nos vermos definitivamente livres dos nossos perseguidores. Se não fizéssemos isso, que outro engodo teríamos para capturar os assassinos? Era agora ou nunca."
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"Tens razão."
"Além do mais, tratava-se de um risco controlado. A polícia tinha microfones por toda a casa e agentes escondidos nas imediações. O plano era atrair toda a gente à casa, pôr-vos a confessar tudo lá dentro e depois levar-vos para as Olgas, sob o pretexto de que os testes da energia a hidrogénio foram feitos aqui e era aqui que estavam guardados os resultados." Voltou a indicar um ponto lá atrás. "Seria naquela clareira que se faria a vossa captura."
"E se os tipos não quisessem vir aqui para as Olgas e decidissem matar-nos dentro da casa?"
Filipe encolheu os ombros.
"Já te disse, Casanova, que era um risco que tínhamos de correr. De qualquer modo, não te esqueças de que a polícia australiana estava a escutar a conversa e tinha homens nas redondezas. Se por acaso alguma coisa corresse mal, eles podiam intervir no espaço de apenas um minuto."
"Pois, estou a perceber", observou Tomás. "Daí que estivesses tão calmo quando o Orlov apareceu..."
"Claro."
"E eu, parvo, a admirar a tua coragem!"
Filipe riu-se.
"Com as costas quentes, meu caro, todos somos uns bravos."
"Bem vejo, bem vejo."
"De qualquer modo, quando o gordo apareceu..."
"O Orlov."
"... com os seus capangas, depressa percebi, pela conversa dentro de casa, que afinal não estavas metido com eles."
"Conseguiste perceber?", gracejou Tomás. "És um génio."
"Sou, não sou?"
"Es um génio, mas a coisa ia acabando mal."
"Não se pode ter tudo. Mas estamos todos vivos, é isso que interessa."
Tomás espreitou o corpo de Igor, deitado de bruços a um metro de distância.
"E os outros russos? O que lhes aconteceu?"
"Morreram este e outro, um ficou ferido e o quarto foi apanhado ileso."
"Como ficou o Orlov?"
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"O gordo javardo?"
"Esse."
"É o ferido. Foi baleado num braço."
"Já contou alguma coisa?"
"Ainda não", disse Filipe. "Mas fica descansado que os australianos vão pô-lo a cantar que nem um canário."
Ouviram vozes a aproximar-se e viraram ambos a cabeça na direcção dos sons. Era o médico que vinha com dois polícias, um deles com um cantil na mão. Os três chegaram ao pé dos portugueses e o médico, um homem de barba aloirada com um estetoscópio ao pescoço, olhou para Tomás com uma expressão inquisitiva.
"Foi você que caiu lá de cima?"
"Parece que sim."
O médico fez um ar reprovador.
"Vocês estão todos doidos", exclamou. "Ninguém devia ter mexido no ferido." O australiano ajoelhou-se ao pé de Tomás e analisou-lhe o corpo com um olhar conhecedor. "Dói-lhe alguma parte em especial?"
"Sim. A perna esquerda."
O médico voltou a sua atenção para a perna. Depois de a analisar com os olhos, virou-se para um dos polícias, que mirava Tomás com curiosidade.
"A maca?"
"Já aí vem, doe."
O médico voltou a sua atenção para a perna.
"Vou ter de lhe ajeitar isto", disse.
Estudou com atenção a posição de Tomás e depois, com muito cuidado, tocou na perna e deu-lhe um jeito. Foi nesse instante que o ferido voltou a ver estrelas.
"Aaaagh!"
Epílogo
A primeira pessoa que o viu entrar na vivenda foi a recepcionista, uma senhora de meia-idade muito dada à conversa fácil; era ela muitas vezes a confidente dos familiares dos hóspedes.
"Bom dia, professor", cumprimentou com jovialidade. "Já não o via por cá há mais de um mês."
"Dois meses", corrigiu Tomás, apoiando-se nas canadianas a cada passo.
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"Estive fora muito tempo."
A recepcionista mirou com curiosidade as muletas e a perna esquerda engessada.
"O que lhe aconteceu? Foi atropelado?"
Tomás forçou um sorriso. Estava tão cansado de responder à mesma pergunta que até já pensara em escrever um texto a contar tudo, tirar dezenas de fotocópias e entregar um exemplar a cada pessoa que o questionasse sobre a perna. Outra hipótese era rabiscar toda a informação na testa; assim até pouparia o trabalho de distribuir as fotocópias por cada idiota que o interpelasse.
"Mais ou menos", disse, evitando elaborar. "Foi por causa desta perna que permaneci tanto tempo fora."
A recepcionista levantou-se e abandonou o balcão, solícita, aproximando-se de Tomás.
"O senhor professor precisa de ajuda?"
"Não, deixe estar. Eu cá me desenrasco, já me vou habituando." Parou diante da recepção e olhou para dentro da casa. "A minha mãe? Onde está ela?"
"A dona Graça?" A recepcionista recuou uns passos, parou diante da porta do salão e olhou lá para dentro. "Não a vejo aqui."
"Estará no quarto?"
Tomás aproximou-se da recepcionista, mas ela entrou de imediato no salão e foi falar com um idoso. Da porta, Tomás escutava os sons da conversa, mas não distinguia as palavras. O idoso disse alguma coisa imperceptível e a recepcionista espreitou pela janela, deu meia volta e regressou à entrada.
"Ela afinal está lá fora, no jardim", revelou. "Quer que eu a chame?"
"Não, deixe estar. Eu vou ter com ela."
Movimentando-se com dificuldade, o corpo a balouçar entre as duas muletas e a perna engessada muito hirta, Tomás saiu da vivenda e caminhou ao longo da relva, por entre os canteiros coloridos de roseiras, hipericões e nigelas. Contornou o lar e foi dar ao jardim traseiro, onde vários hóspedes se encontravam sentados em bancos de madeira a saborear o sol matinal. As andorinhas chilreavam nos ramos dos pinheiros, alegres e irrequietas, enchendo a verdura de musicalidade; um cheiro a erva fresca flutuava no ar, era um perfume agradável, uma essência pura e aromática que exalava a relva ainda molhada pela rega da manhã.
Passeou os olhos pelo jardim e viu a mãe sentada lá ao fundo, à sombra de um pinheiro manso, o olhar perdido na floresta vizinha. Sempre equilibrado nas canadianas, Tomás aproximou-se devagar, agora um passo e depois outro; atravessou o relvado até chegar junto dela e parar ao lado da cadeira.
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"Olá, mãe."
Dona Graça voltou a cabeça e mirou-o de modo estranho. Não o olhou com a alegria do reencontro, como seria de esperar depois de dois meses sem ver o filho, mas com curiosidade.
"Bom dia."
O filho inclinou-se e beijou-a na face.
"A mãe está boa?"
Dona Graça manteve-se muito hirta, quase distante.
"Desculpe, o senhor deve estar a confundir-me com outra pessoa."
Esta declaração, proferida num tom quase indiferente, atin-giu-o com a força de uma bofetada. Apanhado desprevinido, Tomás hesitou, desconcertado.
"O mãe, sou eu", disse, pondo a mão no peito. "O Tomás."
Ela estendeu a mão para o cumprimentar.
"Como está?", perguntou. "Eu sou Graça Noronha."
Tomás ignorou a mão que lhe era estendida e insistiu, mais veemente, mexendo-lhe no ombro como se a quisesse despertar do sono.
"Sou eu, mãe. O seu filho. Sou o Tomás, o seu filho."
Dona Graça sorriu com bonomia.
"O senhor é muito simpático, mas já lhe disse que deve estar a fazer confusão", murmurou ela, numa entoação tranquila. "O meu filho chama-se, de facto, Tomás, mas ainda é pequenino, coitadinho."
Tomás olhou longamente para a mãe, ansioso. Seria possível que ela tivesse recuado assim tanto no tempo? Seria possível que já nem sequer o reconhecesse?
Seria possível? Olhou para a mãe com intensidade e, naquele instante de terrível angústia, percebeu que a tinha perdido para sempre. Já sem se poder conter, sentiu os olhos embaciarem-se de lágrimas, como se as comportas de uma barragem se tivessem aberto, e teve de se afastar à pressa.
Era de mais.
Caminhou desajeitadamente para junto do pinheiro vizinho, as costas voltadas para a mãe, e ali ficou um longo instante a soluçar, as gotas brotando-lhe dos olhos e zigueza-gueando pelo rosto, quentes e intensas, um nó a estrangular-lhe a garganta. Não ser reconhecido pela própria mãe pare-cia-lhe das coisas mais tristes que podiam acontecer a alguém.
"O senhor Tomás está bem?", perguntou dona Graça lá atrás, preocupada com a súbita comoção daquele estranho.
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Ainda de costas, Tomás fez que sim com a cabeça. Inspirou fundo, passou as costas da mão pelo nariz, limpando o ranho, e com a palma da outra secou as lágrimas que lhe molhavam o rosto. Sentindo que retomara o comando das emoções, como se a onda que ameaçara afogá-lo tivesse passado, voltou para junto da mãe e puxou uma cadeira vazia.
"Importa-se que eu me sente ao pé de si?"
"Com certeza", condescendeu ela, com um sorriso polido. "É muito simpático da sua parte." Inclinou a cabeça e obser-vou-o com compaixão, atenta aos seus olhos avermelhados. "Sente-se melhor?"
"Sim, obrigado."
"Está com problemas na vida?"
Tomás fungou.
"Mais ou menos."
"É assunto de família?"
"Sim, pode dizer-se que é assunto de família."
Dona Graça contemplou o pinhal e suspirou.
"A minha já não me vem visitar há muito tempo." Mordeu o lábio, assombrada pela nostalgia. "Muito tempo, mesmo."
Tomás assentiu com a cabeça. Olhou para a mãe e, sem perceber como nem porquê, pensou na impermanência da vida, na transitoriedade das coisas, na efemeridade do ser; diante dele a existência fluía como um sopro, sempre em mutação, tudo muda a todo o instante e nada jamais volta a ser o mesmo. Não há finais felizes, reflectiu de si para si. Todos temos um sétimo selo para quebrar, um destino à nossa espera, um apocalipse no fim da linha. Por mais êxitos que somemos, por mais triunfos que alcancemos, por mais conquistas que façamos, para a última estação está-nos sempre reservada uma derrota. Se tivermos sorte e nos esforçarmos por isso, a vida até pode correr bem e ser uma incrível sucessão de momentos felizes, mas no fim, faça-se o que se fizer, tente-se o que se tentar, diga-se o que se disser, aguarda-nos sempre uma derrota, a mais final e absoluta de todas elas.
"Importa-se que eu seja a sua família?", perguntou ele, quebrando um longo silêncio melancólico.
Dona Graça olhou-o, surpreendida, algures entre intrigada e divertida.
"O senhor? Minha família?"
"Sim, porque não?" Encolheu os ombros. "Se ninguém a vem visitar, o que tem a senhora a perder?"
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Ela baixou os olhos verdes, subitamente brilhantes pela comoção; não esperava tanta generosidade daquele estranho para com uma velha que a família parecia ter esquecido.
"Está bem", sussurrou, quase inaudível. "Pode ser." Tomás estendeu o braço à mãe e ficaram ali os dois sentados, de mãos dadas, ambos a fruir o calor terno e meigo da mão do outro, a desfrutar das carícias doces do sol da manhã, do grinfar melodioso das andorinhas, do aroma revigorante da relva e do rumor das árvores a ondularem suavemente ao vento. Deixando-se embalar por aquele sereno concerto da natureza, Tomás admirou a verdura com os olhos de quem sabe que tudo é fugaz, a vida é frágil, o que começa há-de acabar. As plantas e as flores farfalhavam diante de si como se o ritmo a que dançassem tivesse a marca da eternidade, quando afinal eram tão efémeras quanto a brisa que as agitava.