VI
Quando lhe disseram que o edifício se situava junto ao canal do Danúbio, Tomás imaginou um palacete rodeado de verdura, imponente na sua arquitectura 52
imperial, o espelho azul do rio estendido a seus pés como um vassalo prostrado diante do suserano. Foi talvez porque as expectativas eram tão elevadas que Tomás vacilou de decepção ao chegar ao número noventa e três daquela rua de Leopoldstadt. Permaneceu um instante a observar o edifício baixo e feio, com estruturas brancas ou cinza intercaladas por linhas azuis, no topo uma bandeira azul e branca, um relógio digital e a sigla OPEC.
A sede da Organização dos Países Exportadores de Petróleo era tudo menos grandiosa. Não passava de uma mera arca encaixada entre edifícios de escritórios, no segundo distrito de Viena; não havia ali magnificência nem esplendor, nada que sugerisse que era daquele local que se geria o maior e mais lucrativo negócio do planeta, o produto milagroso que fazia mexer o mundo. Chegou a duvidar dos seus sentidos, a achar que aquele não era o endereço que procurava, deveria certamente haver engano, mas a sigla OPEC no topo e o noventa e três sobre a porta coberta por uma complicada estrutura envidraçada não ofereciam dúvidas. Estava mesmo diante da sede da OPEP.
Entrou no edifício e dirigiu-se à recepção.
"O senhor Abdul Qarim, por favor."
"Tem reunião marcada?"
"Sim. O meu nome é Tomás Noronha. Venho da parte da Interpol."
O empregado árabe digitou um número e deu a informação para o outro lado da linha. Tomás nada percebeu da algaraviada, excepto o seu nome e o da polícia internacional. O empregado ouviu as instruções, agradeceu e desligou.
"O senhor Qarim já vem", disse. Apontou para a rua. "Queira esperar lá fora, por favor."
"Lá fora?", admirou-se o visitante.
"Sim, ele pediu que o esperasse lá fora."
Sem nada entender, Tomás saiu do edifício e aguardou junto à estrutura envidraçada da entrada, espreitando amiúde para o interior da sede da OPEP. Viam-se muitos homens de turbante, outros de gravata, quase todos árabes ou africanos, passavam com pastas para um lado e para o outro, mas sem pressa, o seu não era um ritmo de stress. Cá fora, Tomás impacientava-se. Ia mudando a perna de apoio e sentia-se crescentemente irritado pela falta de cortesia, nunca vira ninguém mandar um visitante esperar na rua.
Os carros passavam num ronronar constante, de olhos fechados parecia o som do mar, o murmúrio furioso pontuado por buzinadelas exasperadas da mesma maneira que o marulhar das ondas é entrecortado pelo grasnar melancólico das gaivotas. Tratava-se realmente de uma desconsideração, reflectiu.
As buzinadelas tornaram-se tão insistentes que virou a cara para saber o que 53
se passava. Um reluzente Mercedes prateado, um desportivo de dois lugares com linhas aerodinâmicas, parara diante da porta da sede da OPEP e, por entre a penum-bra do interior, vislumbrou uma mão a agitar-se no ar. Não percebeu o que era e inclinou-se para a frente, tentando ver melhor. A mão parecia voltada na sua direcção e dava a impressão de o chamar. Será comigo?, questionou-se. Esboçou um gesto interrogativo para si mesmo e a mão fez que sim. Aproximou-se, cauteloso, e, para lá da janela aberta, viu um homem de turbante ao volante.
"Você é o tipo da Interpol?", perguntou o desconhecido.
"Não... quer dizer, sim, sou eu."
O homem estendeu o braço do interior e empurrou a porta do carro para fora.
"Entre, entre", convidou. "Eu sou o Abdul Qarim."
Vencendo a surpresa, Tomás encaixou-se no cubículo e cumprimentou o seu anfitrião. Era um homem magro, de meia-idade, com uma barba pontiaguda e os malares salientes. Tinha um shumag vermelho e branco na cabeça e o corpo coberto por um thoub, uma longa túnica escura, vestes tradicionais que ofereciam um estranho contraste com a sofisticada tecnologia que brilhava a âmbar no tablier do Mercedes. O volante do automóvel era seguro por dedos repletos de reluzentes anéis, eram tantos que dir-se-ia ter a mão coberta por uma coroa.
"Julguei que a nossa conversa era no seu escritório."
Mal fechou a porta, o carro arrancou com tal brusquidão que os pneus guincharam e até o corpo se lhe colou ao assento, como se fosse um astronauta no momento da descolagem.
"Viena é o meu escritório", disse o árabe. Fez um sinal com o polegar para o edifício que depressa desaparecia atrás. "A nossa sede é horrível, não acha? Vou levá-lo a um sítio mais interessante." Olhou para o seu passageiro. "Conhece Viena, senhor Tomás?"
"Não."
"É uma cidade charmosa", considerou. "Passo aqui metade do ano. Uma metade em Medina, onde está a minha mulher e a minha família, e a outra em Viena."
"Medina? Na Arábia Saudita?"
"Sim. E a minha terra." Bateu no volante. "Está a ver aqui o meu carro?"
Ergueu a mão cheia de anéis e rodou-a, como se exibisse tudo em redor. "Está a ver estes automóveis na estrada? Estes escritórios, esta actividade, esta vida? Está a ver tudo isto?"
"Sim."
"Tudo isto é possível graças ao meu país."
54
Tomás sorriu.
"Oiça, Viena é uma cidade muito antiga. É mais antiga do que a Arábia Saudita."
"Sem dúvida. Mas tudo o que existe no Ocidente só existe desta forma graças a nós. Sem a Arábia Saudita, nada do que vê à nossa volta seria possível."
"Está a referir-se ao petróleo?"
"Claro. E o petróleo que faz o mundo mexer."
"Mas há muito petróleo fora da Arábia Saudita."
"Diga-me onde."
"Bem... sei lá, no Iraque, no Irão, no Kuwait..."
"Tudo países que fazem parte da OPEP e que, por isso, se articulam com a Arábia Saudita."
"Mas há outros."
"Quais? Diga lá."
"Olhe, a Rússia, os Estados Unidos..."
O árabe soltou uma gargalhada.
"Não me faça rir."
Tomás mirou-o, desconcertado.
"Qual é a piada?"
Desciam pela Obere Donaustrasse, a estrada paralela ao canal do Danúbio; o canal serpenteava ao lado, para além de um tapete de relva bem aparada, a água a reflectir as árvores e os prédios como um longo espelho. O Mercedes desportivo parecia deslizar pelo alcatrão, era um felino de prata a cortar a verdura, um perdigueiro veloz a galgar pela estrada, a marginal transformada na sua coutada.
"Milhões de pessoas em todo o mundo gozam hoje de um nível de vida incrivelmente alto, graças a Deus", disse Qarim, os olhos atentos ao tráfego.
"Queixam-se de ganhar pouco, de não terem dinheiro para comprar um carro melhor ou para construir uma casa maior, mas esquecem-se de que há apenas setenta anos ter um carro ou uma casa era privilégio de ricos, esquecem-se de que ter o lar aquecido ou poder ir passar férias ao estrangeiro era um exclusivo da aristocracia. O
cidadão comum quase se contentava com comer e aquecer-se junto a uma lareira.
Embora isso não nos ocorra, a verdade é que vivemos hoje uma era de prosperidade e queira Deus que ela se prolongue. lnch'A\\ahí'" Cravou os olhos em Tomás. "Sabe em que assenta esta abundância?"
55
"No petróleo?"
"Não é simplesmente no petróleo, habibie. É no petróleo barato."
"Barato? Acha que o petróleo é barato? Olhe que eu, quando vou encher o depósito, acho-o sempre muito caro, e está cada vez pior."
" é porque nunca parou para pensar no assunto. Já notou que considerando toda a prosperidade que o petróleo gera? &ste é um produto incrivelmente barato?
Olhe o caso do Perfume, por exemplo. Um litro de perfume é infinitamente mais c: caro do que um litro de petróleo, ou não é?"
"Atno que sim."
"Mtesmo o mais ordinário dos perfumes é mais caro que o petrólieo#" Ergueu o indicador, ornado por um magnífico anel de diamantes. "Pois eu garanto-lhe que o nosso modo de vida podia perfeitamente passar sem perfume, mas seria de todo impossível sem petróleo."
"Disso não duvido."
"Tudo o que consumimos, desde um Wiener Schnitzel até um sumo de laranja, desde uma mísera mesa de madeira até ao seirviço de um dentista, desde um sofisticado plasma de televisão até um bilhete para ir ali à Staatsoper escutar Strauss, tudo representa uma medida de energia produzida e consumida."
"Não estou a entender..."
Qairim pigarreou.
"0)iça, o que sabe o senhor da história da humanidade?"
"Sei alguma coisa", riu-se Tomás. "Afinal sou historiador."
O árabe arregalou os olhos.
"Você é historiador? Julguei que era polícia."
"Não, sou historiador. Este trabalho para a Interpol é mesm-K) só uma... uma colaboração pontual. Digamos que esta investigação parece ter conotações com enigmas antigos e foi isso cque levou a polícia a pedir a minha ajuda."
"Himm... estou a perceber. Então, se é historiador, presumo que esteja a par da relação entre o progresso e o consumo de energia."
Tomás hesitou.
"Quer dizer, sim e não. Está a referir-se a quê, concretamente?"
"Estou a referir-me à organização social em função das necessidades energéticas."
"Bem... confesso que essa não é a minha área."
56
"É muito simples de explicar", disse Qarim com entusiasmo, claramente esta era matéria da sua especialidade. "Diga-me uma coisa, por que razão acha que os homens primitivos preferiam caçar animais grandes?"
"Ora, essa é fácil. Os corpos desses animais, sendo grandes, tinham mais alimento."
"Claro. Ou, dito de outro modo, porque as calorias necessárias para caçar eram mais facilmente compensadas por um grande pedaço de carne do que por um pequenino naco. Se matar uma vaca exige tanta energia como matar um coelho, é melhor matar a vaca, não é? Isto quer dizer que a avaliação benefício-custo energético já estava na mente dos homens mais primitivos de uma forma instintiva.
Razão pela qual, aliás, se passou de uma economia de caça para uma economia agrícola. Os nossos antepassados perceberam que a agricultura oferecia vantagens nessa relação entre consumo e aquisição de energia."
"Assim postas as coisas, isso parece-me evidente."
"Agora repare, o que aconteceu quando começou a agricultura? A vida tornou-se mais fácil e as comunidades prosperaram. A prosperidade trouxe mais população e nasceram as cidades. O problema é que cada pessoa consumia uma média de meia tonelada de lenha por ano. Como havia muito mais gente do que anteriormente, isso implicou a destruição de cada vez mais floresta, de modo a satisfazer as necessidades da população crescente. Uma vez que as florestas iam recuando, ano após ano, tornou-se necessário ir cada vez mais longe buscar cada vez mais lenha para cada vez mais pessoas." Arqueou os olhos. "Está a ver o problema que isto gerou, não está?"
"O abastecimento deixou de satisfazer o consumo."
"Exacto. Foi justamente para dar resposta a esse problema que nasceu a primeira economia energética. As pessoas antigamente não podiam percorrer distâncias cada vez maiores para ir buscar quantidades crescentes de combustível e decidiram organizar equipas a quem era atribuída essa tarefa. Mas as novas invenções fizeram disparar ainda mais as necessidades energéticas. O ferro, por exemplo. Era precisa uma tonelada de lenha para obter uns míseros quilos de ferro.
Como a indústria do ferro se expandiu, as necessidades de lenha para o fabricar tornaram-se enormes. Ora, como havia cada vez mais gente e menos floresta, a certa altura essa economia assente na lenha começou a entrar em ruptura." Espreitou Tomás. "Sabe qual foi a solução?"
"Não."
"O carvão. O carvão era muito abundante e fácil de transportar. Além disso, um quilo de carvão contém cinco vezes mais energia do que um quilo de lenha. Sem o carvão, a Revolução Industrial não teria sido possível. A lenha não era suficiente para obter as quantidades de ferro requeridas pela industrialização; só o carvão o permitiria. E permitiu. Graças ao carvão apareceram as fábricas, as máquinas, as 57
linhas de caminho-de-ferro, os engenhos a vapor, os grandes navios. Esta nova fonte de energia não trouxe apenas mais aquecimento e mais transportes. Trouxe mais comida, mais roupas, mais máquinas, mais papel, mais tudo. Entrámos aí num ciclo devorador. Quanto mais se produz, mais energia é necessária. E quanto mais energia tivermos, mais coisas podemos produzir." Piscou-lhe o olho. "Está a perceber por que razão eu digo que qualquer produto é uma medida de energia?" Apontou para os castanheiros que coloriam as ruas em redor. "Se apenas tivéssemos lenha como combustível, a vida tal como a conhecemos não seria possível." Bateu no volante. "É
preciso energia para produzir toda a riqueza que nos rodeia, desde este automóvel até qualquer outro bem de consumo."
"E é aí que entra o petróleo."
"Nem mais. O carvão oferecia grandes vantagens sobre a lenha e foi ele que viabilizou a Revolução Industrial, mas tinha alguns graves inconvenientes. Para começar, era muito poluente. O ar nas cidades tornou-se negro e irrespirável. Além disso, a energia que produzia não era suficiente para os novos processos industriais que apareceram entretanto. Foi então que, numa manhã de 1901, uma perfuração num pequeno monte chamado Spindletop, no Texas, provocou uma erupção de gás metano que se tornou líquido e negro. Cha-mamos-lhe petróleo. Spindletop foi o primeiro..."
"Desculpe", interrompeu Tomás. "Isso não é verdade."
Qarim arregalou os olhos.
"O quê?"
"Isso de que o petróleo só apareceu em 1901. Já li textos árabes antigos que mencionam a existência de petróleo."
O árabe riu-se.
"Claro que o petróleo já era conhecido." Olhou para cima. "Allah u akbar!
Deus é grande e infinita é a Sua sabedoria. Deus cria todas as maravilhas e o petróleo é uma das Suas criações. Não foi por acaso que Ele o pôs no Médio Oriente. Deus entregou-nos o petróleo para o usarmos contra os infiéis. Os meus antepassados, por exemplo, já o utilizavam na guerra contra os cruzados, aproveitando a sua facilidade de combustão."
"Então está a dar-me razão."
"Receio não me ter explicado bem. Há muito tempo que se sabia que o petróleo existia, é um facto. O problema é que se pensava que ele era raro. Já se tinha consciência de que o petróleo era mais potente, mais seguro e mais limpo do que o carvão, mas pensava-se que não existia em grandes quantidades. Na Rússia produzia-se um máximo de cinco mil barris por dia e isso já era uma coisa extraordinária. Mas Spindletop começou a produzir a mesma quantidade numa única 58
hora. Está a perceber? Spindletop provou que o petróleo era abundante."
"Ah, estou a ver."
"Spindletop marcou o início da idade do petróleo. Toda a economia se transformou. Alguns processos industriais que não eram viáveis com o carvão tornaram-se possíveis com o petróleo. Apareceram os automóveis, permitindo que as pessoas vivessem longe do sítio onde trabalhavam. Não preciso de lhe explicar o impacto urbanístico e social que isso teve, pois não?"
Tomás riu-se.
"Não é necessário ser um cientista para perceber isso."
"E eu pergunto-lhe: onde está concentrada essa riqueza?"
"Qual? O petróleo?"
"Sim."
"Sei lá... aqui e ali, não é?"
O árabe abanou a cabeça e esboçou um sorriso condescendente.
"Essa riqueza está hoje quase inteiramente nas mãos da OPEP e queira Deus que assim continue. lnch'Allahr
"Mas, então, e os Estados Unidos? E a Rússia? Eles também não produzem petróleo?"
Qarim mirou-o de relance.
"Esse petróleo está a acabar."
"Como?"
O carro circulava na zona de Schottenring e Alsergrund, já bem dentro do perímetro urbano. Era uma área elegante, com uma arquitectura imponente, os edifícios bem tratados. O Mercedes abrandou, condicionado pelos semáforos e pelo fluxo do trânsito. O automóvel deixara de ser um lobo para se transformar num cordeiro.
"Esse foi o tema da minha conversa com o homem que o senhor procura."
"O Filipe Madureira?"
"Sim."
"Ele veio falar-lhe sobre o petróleo americano e russo?"
"Ele veio falar-me sobre o estado da produção e das reservas mundiais de petróleo."
Tomás retirou o bloco de notas do bolso. A conversa tinha entrado no assunto 59
que o trouxera a Viena.
"Deixe-me só perceber as circunstâncias em que vocês se encontraram", disse. "Quando é que ele o contactou?"
"Oh, foi já há alguns anos."
Tomás consultou as suas notas.
"Isso terá sido em... em Fevereiro de 2002?"
"De 2002? Não sei, terei de verificar na minha agenda." Fez um ar pensativo.
"Espere, lembro-me de que conversámos sobre o 11 de Setembro e a invasão americana do Afeganistão, que tinham ocorrido pouco tempo antes. Quando é que foi isso? Em finais de 2001, não foi?" Balançou a cabeça, mais convicto. "Pois, devemos ter-nos encontrado por volta de Fevereiro de 2002. Recordo que fazia muito frio, estávamos no pico do Inverno e até andámos a evitar a neve que se acumulava aqui nos passeios da cidade."
"Como é que o Filipe Madureira chegou a si?"
"Através de um cliente nosso. O engenheiro Ferro, da Galp."
"A petrolífera portuguesa?"
"Sim. Temos negócios com a Galp e o meu interlocutor costuma ser o engenheiro Ferro. Ele telefonou-me e disse que tinha um consultor que, devido à crise política internacional, precisava de fazer uma avaliação das reservas disponíveis e da capacidade de produção instalada e perguntou-me com quem é que ele tinha de falar. Eu disse-lhe que viesse ter comigo."
"E ele veio."
"Veio."
"Aqui a Viena?"
"Sim, encontrámo-nos cá." Fez um gesto vago para trás. "Fomos almoçar à Lusthaus, um restaurante ali no Prater, e depois demos um salto ao hipódromo para ver os cavalos."
"E ele queria falar sobre a produção mundial de petróleo..."
"Sim, a produção e as reservas. Mas estava sobretudo preocupado com as reservas."
"Ele disse-lhe por que razão precisava de..."
Qarim ergueu a mão opulenta.
"Espere aí, o senhor ainda não me explicou exactamente por que motivo precisa de conhecer esta conversa", cortou. "Como deve calcular, não me sinto 60
muito à vontade para revelar o conteúdo das minhas conversas com os clientes."
"Eu compreendo, mas isto é uma investigação da Interpol."
"Pois, já me disse isso ao telefone, e foi por essa razão que acedi a encontrar-me consigo. Mas será que pode ser mais específico?"
Tomás suspirou.
"O Filipe Madureira é suspeito de envolvimento em dois homicídios."
O árabe esbugalhou os olhos e abriu a boca, num misto de espanto e choque.
"A sério?"
"Sim. Foram descobertas ligações entre ele e dois cientistas que apareceram mortos a tiro."
Qarim abanou a cabeça.
"Que coisa incrível", exclamou. "Estive à conversa com um assassino e sobrevivi!" Virou os olhos para cima com uma expressão de gratidão. "Allab u akbar! Deus é grande e misericordioso!"
"Espere, eu não disse que ele é o assassino. O assunto ainda está a ser investigado."
O homem da OPEP fixou os olhos no trânsito.
"Pois, mas o facto é que ele é procurado pela polícia." Franziu as sobrancelhas. "Onde é que eu entro nesse filme?"
"Os homicídios ocorreram na altura em que você se reuniu com ele."
"Oiça, eu garanto-lhe que isso não foi tema da conversa, pode ter a certeza.
Alá é minha testemunha."
"Acredito", disse Tomás. "Mas há uma outra circunstância que nos parece relevante. É que, pelas nossas contas, o senhor foi a última pessoa a ver o Filipe em público."
"Eu?"
"Sim. Ele desapareceu depois dos homicídios. Nunca mais voltou a ser visto."
"Não lhe poderá ter acontecido alguma coisa?"
"Talvez, não sei."
"Se calhar também foi morto. Não são vocês, os cristãos, que dizem que quem com ferro mata com ferro morre?"
"Não, ele está vivo."
"Como sabe isso?"
61
"Temos registo de trocas de e-mails entre ele e um amigo inglês."
"Então é simples. Falem com esse inglês."
"Não podemos. O inglês também desapareceu."
O carro parou junto a uma fila de estacionamento e Qarim olhou pelo retrovisor antes de carregar na embraiagem, meter a mudança e fazer a manobra de marcha atrás.
"História estranha, essa. Mas, com toda a franqueza, não vejo em que o possa ajudar."
"Oiça, eu estou a tentar reconstituir o que tinha o Filipe em mente na altura em que isto aconteceu. E por isso que preciso que me relate a conversa que vocês tiveram."
O carro guinou e começou a recuar.
"Eu conto-lhe", prometeu Qarim, a cabeça voltada para trás durante a manobra. "Mas não aqui."
E estacionou.
VII
Foram a pé desde o magnífico edifício da Bolsa, onde deixaram o carro.
Atravessaram o jardim do Parque Gmeiner, um espaço verde em plena Bõrseplatz, e meteram pela Renngasse, a rua que rompe por entre o soberbo palácio barroco Schònborn-Batthyány e o esplendoroso complexo medieval do antigo priorado da Schottenkirche. Cruzaram a praça e, como um cicerone, Qarim conduziu Tomás para o edifício em frente, o palácio Ferstel, cujo interior revelou uma sumptuosa galeria, a Passagem Freyung. Percorreram a galeria e viraram à esquerda, penetrando num enorme estabelecimento, a entrada guardada pela figura em papier maché de um homem sentado numa cadeira.
"O Café Central", anunciou Qarim.
O café quase parecia uma catedral. Enormes colunas gregas sustentavam o tecto alto e abobadado, de onde pendiam, como frutos silvestres num galho, os pálidos candelabros esféricos que inutilmente tentavam iluminar o salão. O facto é que a sua luz ténue era ofuscada pelo pujante clarão do dia, os raios de Sol jorravam vigorosos pelas largas janelas de topo arredondado e espraiavam-se com fulgor pelo Central. Mas até essa claridade parecia relegada para segundo plano, ensombrada pelo grande estilo da decoração e da arquitectura interior; mais do que pela luz, o ambiente era dominado pela cor e pelas linhas harmoniosas, uma elegante mistura entre o difuso tom amarelado que tudo pintava e um certo estilo Art nouveau que 62
enchia o café de um requinte clássico. Em tempos, quando se usava fraque, bengala e chapéu de coco, dir-se-ia que aquele era um sítio chie.
Alguns clientes folheavam distraidamente o jornal, outros pareciam embrenhados num livro gostoso e um punhado saboreava um Kapuziner ou um Pharisàer; mas todos, todos mesmo, se mostravam embalados pela sonata melancólica que um pianista dedilhava de olhos cerrados e cabeça descaída para trás, arrebatado pela embriagante paixão da música. Mozart enchia a Kaffehaus de melodia, as notas soavam melífluas, como o pipilar meigo das andorinhas a acolherem a Primavera.
Com passos ligeiros, para não perturbar o inspirado músico nem estragar a bela sonata que fluía do teclado, cruzaram o soalho e foram sentar-se a uma pequena mesa de formato oval, ao canto, encostados a uma janela.
"Este sítio é notável", murmurou Tomás, contemplando as abóbadas do tecto.
"Notável."
"É, não é?", sorriu Qarim, acomodando-se na sua cadeira. "Dizem que antigamente se reuniam aqui os escritores de Viena." Indicou com o dedo a estátua em papier maché que vigiava a entrada do café. "Aquele era um deles."
Tomás observou a figura de bigode.
"Quem é?"
"Sei lá. Um poeta, ao que parece."
"É famoso?"
Qarim observou pela janela a Herrengasse e a Minoriten-platz, por onde se movia o trânsito.
"Não faço a mínima ideia", disse. "Mas toda esta zona de Schottenring e Alsergrund era muito frequentada pelos intelectuais. Olhe, Freud vivia por aqui, por exemplo. A casa dele é agora um museu."
Um empregado com um smoking a rigor aproximou-se de bloco de notas na mão.
"Guten Tag", cumprimentou. Mostrava uma atitude incerta, era evidente que não sabia se o cliente de shumag na cabeça e thoub a cobrir o corpo o entenderia.
"Was mõchten SieV
"Eu quero um Túrkiscber e um Rebrúcken" , respondeu Qarim em inglês.
Levantou-se e olhou para Tomás. "Vou ali ao quarto de banho. Faça o seu pedido."
Enquanto o árabe se afastava, ágil dentro da sua túnica escura, o historiador consultou a ementa que lhe foi entregue.
"Eu... eu estou com um bocado de fome", disse ao empregado. Apontou para 63
uma fotografia exposta no menu. "O que é isto?"
O austríaco inclinou-se e observou a imagem.
"A Heringsalat?"
"Sim, o que é isso?"
"É salada de arenque."
"Traga-me uma dose."
"E para beber?"
"Uma cerveja de pressão."
"Pfiff, Seidl ou Krúgeir
"Sei lá. Uma marca qualquer."
O empregado abanou a cabeça.
"Não, não. O que eu preciso de saber é qual é a medida da caneca."
"Ah. Pode ser uma de meio litro." "Ach so. Krúgel.n Quando Qarim regressou à mesa encontrou à sua espera o café turco fumegante e uma suculenta fatia de bolo de chocolate. O piano calara-se e o pianista sentara-se ao balcão para repousar os dedos e tomar um Einspãnner. Tomás estava agarrado a uma grande caneca de cerveja e trincava a salada já servida; parecia gozar o sol que lhe acariciava o rosto pela janela, mas tinha o bloco de notas aberto sobre a mesa, pronto a ser rabiscado.
"Se calhar é melhor aproveitar a pausa na música para avançarmos na nossa conversa", sugeriu, logo que se apercebeu do regresso de Qarim.
"Muito bem", concordou o homem da OPEP, colando os dedos à chávena de café para medir a temperatura. "Diga lá o que quer saber."
"O senhor revelou-me há pouco que, quando veio ter consigo, o Filipe Madureira queria conhecer o estado da produção mundial de petróleo. Achou esse pedido normal?"
Qarim fez um ar pensativo.
"Normal? Não sei. Quer dizer, é normal que se queira avaliar as condições do mercado, sim, afinal tinham ocorrido pouco tempo antes os atentados do 11 de Setembro, os Estados Unidos tinham invadido o Afeganistão e havia uma grande incerteza quanto à situação internacional. Nessas condições, parece-me compreensível que os diferentes governos queiram acautelar os seus interesses e saber se o mercado se aguenta. Mas lembro-me que ele se mostrava muito insistente quanto à situação da produção da OPEP."
"Ah, sim? Porquê?"
64
"Bem... suponho que isso fosse de esperar, não é? Bem vistas as coisas, a situação da produção fora da OPEP encon-tra-se num estado calamitoso..."
"Como assim?"
Qarim bebeu muito devagar um trago do seu café turco e permaneceu calado um longo instante.
"Oiça", disse por fim. "O que sabe o senhor sobre o negócio do petróleo?"
"Pouca coisa. Não se esqueça de que sou historiador. As subtilezas do mercado energético nunca foram um tópico que me fizesse saltar de excitação."
O árabe mordeu o lábio enquanto considerava um modo de explicar o assunto àquele leigo.
"Bem, você tem de perceber que este não é um negócio qualquer", começou por dizer. "Em primeiro lugar, trata-se do negócio que movimenta mais dinheiro em todo o mundo. E, graças a Deus, está centrado no Médio Oriente." Fez uma prece para os céus e louvou a grandeza de Deus. "Allah u akbarr Fitou de novo Tomás.
"Em segundo lugar, é um negócio de tal modo importante que se funde com a política." Inclinou a cabeça. "Quando falo de política, estou a falar de alta política, de assuntos de vida e de morte, do destino de países e de civilizações." Fechou o punho, como se estivesse a fazer força. "Petróleo é poder. Percebe?" Fez mais força com o punho fechado, que aproximou do rosto. "Poder."
"Sim, claro. Dinheiro implica poder."
Qarim abanou a cabeça.
"Não, você não está a perceber. Não estou a falar no poder gerado pelo dinheiro. Eu estou a falar num poder mais profundo, mais fundamental, muito mais primário do que esse." Bebeu um novo golo de café. "Oiça, sete anos depois da descoberta de Spindletop, a Grã-Bretanha decidiu converter a sua marinha de guerra, abandonando a combustão do carvão e passando para os motores movidos a derivados do petróleo." Estreitou os olhos, como se tivesse acabado de dizer algo de importância transcendente. "Você está a perceber o significado dessa decisão?"
"Bem... suponho que, ao modernizarem a sua marinha, os Britânicos tenham ficado mais poderosos."
"Não, não é nada disso." Bateu com o dedo na mesa. "O que os Britânicos fizeram foi dar um passo muito delicado. Eles tinham uma marinha movida a carvão, uma matéria-prima que era abundante na Grã Bretanha, e mudaram para uma marinha movida a derivados de petróleo, uma matéria-prima de que não dispunham no seu país." Arregalou os olhos. "Percebeu agora? Eles não dispunham dessa matéria-prima." Fez uma pausa, para deixar a ideia assentar. "Essa conversão implicou que o abastecimento de combustível deixou de ser um dado adquirido. Se a 65
Grã-Bretanha queria assegurar que a sua força militar se podia mover, era agora obrigada a garantir a segurança das vias de abastecimento. Ou seja, era forçada a proteger os seus interesses no Médio Oriente. A partir desse momento, a segurança nacional ficou irrevogavelmente atada à questão crucial do acesso ao petróleo."
Voltou a cerrar o punho. "É a esse poder que me refiro."
"Estou a perceber."
Ergueu o punho ao nível dos olhos.
"Quem tem o petróleo na mão tem o mundo na mão. Não só as grandes potências precisavam de petróleo para fazer a guerra, elas começaram a fazer a guerra por causa do petróleo. Percebeu? Por causa do petróleo. Quando Hitler dizia que precisava da Rússia para o Lebensraum, o espaço vital da Alemanha, não se estava a referir à agricultura russa, mas aos campos de petróleo existentes no Sul do país. Os Alemães não dispunham dessa matéria-prima no interior das suas fronteiras e precisavam de garantir a segurança do seu abastecimento para se afirmarem como grande potência mundial."
"Hmm."
"E foi pela mesma razão que os Japoneses bombardearam a frota americana em Pearl Harbor."
"Vá lá. Não me venha dizer que foi por causa do petróleo..."
"Digo, digo."
"Não havia petróleo em Pearl Harbor."
"Mas havia nas índias Orientais holandesas, a actual Indonésia. O Japão encontrava-se exactamente na mesma situação da Alemanha: não possuía petróleo dentro das suas fronteiras e precisava de o ir buscar a algum sítio. Os Japoneses tinham absoluta necessidade de tomar os poços das índias Orientais holandesas, mas receavam a intervenção da esquadra americana, uma vez que a América tinha decretado um embargo petrolífero ao Japão. Foi por isso que os Japoneses atacaram e neutralizaram a esquadra em Pearl Harbor."
"Ah, bom."
"E por que razão lideraram os Americanos a operação para libertar o Kuwait em 1991? Acha que essa operação teria sido efectuada se o país só produzisse bananas?"
Tomás riu-se.
"Claro que não."
"Mais do que qualquer outra, a Guerra do Golfo foi uma guerra pelo petróleo.
E o mesmo se pode dizer da invasão do Iraque em 2003. Pensa que ela foi motivada por quê? Pelas armas de destruição em massa, que aliás não existiam?"
66
"Pelo petróleo."
Qarim deu uma ruidosa palmada na mesa.
"Claro que foi pelo petróleo! De resto, o vice-presidente dos Estados Unidos, Dick Cheney, chegou a afirmá-lo em público, até alguém o ter mandado calar. O
facto é que os Americanos queriam redesenhar o mapa do Médio Oriente segundo os seus interesses estratégicos e tudo o resto era conversa."
Tomás remexeu-se na cadeira e fez uma careta.
"Mas, oiça lá, os Americanos não são grandes produtores de petróleo?"
"São o terceiro produtor mundial."
"Então qual é o problema?"
Qarim manteve o rosto fechado um instante, como se tivesse uma importante revelação a fazer.
"O problema é que esse petróleo está a acabar."
"O que quer dizer com isso?"
O árabe abriu as palmas das mãos para cima.
"Esse é o terceiro facto que você tem de saber sobre o petróleo: ele é finito.
Entendeu?" Quase soletrou. "O petróleo é finito."
Tomás soergueu uma sobrancelha.
"Claro que é finito. Mas sempre ouvi dizer que ainda ia durar muito."
"E vai, com a graça de Deus."
"Então qual é o problema?"
"O problema é que o petróleo que vai durar muito é o da OPEP." Aproximou o rosto do seu interlocutor e esboçou um leve sorriso. "Em particular o da Arábia Saudita, inch'Allah!"
"E o petróleo fora da OPEP?"
"Está a acabar."
"Não acredito."
"Pode acreditar."
"Mas eles vão descobrir mais."
Qarim riu-se.
"Vê-se mesmo que não está familiarizado com este assunto", disse. "Você 67
sabe o que é o petróleo?"
"Bem... é aquela matéria líquida viscosa que sai da terra."
"Sim, mas o que é o petróleo?"
"São químicos, suponho."
"Tudo na vida são químicos, meu caro." Apontou para Tomás. "Até você. O
que lhe estou a perguntar é se sabe o que é exactamente o petróleo."
O historiador encolheu os ombros.
"Só sei o que toda a gente sabe."
"Ou seja, quase nada", disse o árabe. "Então preste atenção." Pegou na chávena de café turco e agitou-a, fazendo girar o líquido negro. "Tanto o petróleo como o carvão são restos de matéria viva. O carvão deriva sobretudo de plantas mortas, enquanto o petróleo deriva de animais que morreram há milhões de anos. A gordura dos animais está cheia de hidrogénio, o que, aliando-se ao elemento mais comum dos seres vivos, o carbono, cria os hidrocarbonetos. O petróleo é, na verdade, uma mistura de hidrocarbonetos resultantes da gordura de animais mortos.
Essa gordura tende a acumular-se em reservatórios por baixo da terra, onde é transformada em petróleo quando se encontra durante um certo tempo numa zona onde a temperatura varia entre os cem e os cento e trinta e cinco graus Celsius. Logo que se forma, o petróleo tende a vir para cima, como uma mancha de tinta a emergir de uma esponja."
"Mas há animais por toda a parte. Se o petróleo vem da gordura dos animais, então terá de ser abundante."
"Não necessariamente. É preciso encontrar um equilíbrio difícil. A gordura não se transforma em petróleo assim sem mais nem menos. São precisas condições de temperatura adequadas durante um determinado período para se poder transformar em petróleo. Se o sítio onde se encontra depositada não for suficientemente profundo, a gordura não atingirá a temperatura necessária e, consequentemente, não se transformará em petróleo. Se o sítio for demasiado profundo, a temperatura será excessivamente alta e o petróleo transformar-se-á em gás ou será destruído. Está a perceber? As condições adequadas são muito específicas e delicadas. Além do mais, logo que se forma, o petróleo desaparece, uma vez que vem imediatamente à superfície. Para o encontrarmos debaixo da terra é preciso ainda localizar uma área onde o petróleo se acumulou e não conseguiu subir, por estar tapado por um bloco impermeável. É como se esse bloco fosse uma rolha, está a ver? O petróleo tenta subir, mas a rolha tapa-lhe a saída. O problema é que são muito raros os sítios onde estas condições existem em simultâneo e nós já os conhecemos quase todos."
"Conhecemos mesmo?"
"Não tenha dúvidas. Para haver petróleo é necessário que exista uma fonte onde a gordura animal se acumule durante um determinado tempo a uma 68
determinada temperatura de modo a transformar-se em petróleo. É precisa também uma rocha porosa que permita que o petróleo suba e uma pedra impermeável cá em cima que sirva de rolha, obrigando-o a acumular-se. Este tipo de solo está identificado e, graças às modernas tecnologias de satélite, já foi possível localizar todos os sítios onde ele se pode encontrar."
"E então?"
"Existem no mundo apenas seiscentos sistemas com as condições adequadas para produzir petróleo ou gás. Quatrocentos já foram ou estão a ser explorados e os restantes duzentos situam-se em zonas de águas profundas ou no Árctico." Ergueu o dedo. "E note que em nenhum dos duzentos que falta explorar há garantias de que exista petróleo."
"Mas se calhar até se podem encontrar aí grandes quantidades, quem sabe?"
Qarim abanou a cabeça.
"É pouco provável. Os duzentos sistemas que faltam são de difícil acesso e, com toda a probabilidade, vão revelar-se pequenos. Os grandes sistemas são mais fáceis de encontrar do que os pequenos, razão pela qual foram os primeiros a ser descobertos. À medida que a exploração vai progredindo, a dimensão dos campos vai diminuindo. Isto é algo que qualquer geólogo lhe pode explicar."
"E qual é a situação dos quatrocentos sistemas já explorados?"
"No que diz respeito à OPEP, está tudo bem. Temos petróleo para dar e vender, inch'Allah! Mas fora da OPEP existe um grande problema." Quase entoou as palavras. "Grande, grande problema."
"Quão grande?"
"Oiça, depois da descoberta de Spindletop percebeu-se que o Texas estava cheio de petróleo. Logo a seguir foram encontrados grandes campos noutras partes dos Estados Unidos, como o Oklahoma, e ainda na Venezuela, no México e na Rússia. As potências europeias concentraram-se no Médio Oriente, com os britânicos da BP no Irão e os holandeses da Shell no Iraque, logo seguidas pelas companhias americanas, que criaram a Aramco na Arábia Saudita. Mas, em 1951, o Irão nacionalizou a companhia britânica que operava no seu território, exemplo que foi seguido pelos outros países da região, os quais se juntaram em 1961 para estabelecer a OPEP." Sorriu. "A organização para a qual eu tenho a honra de trabalhar."
"E cuja produção, segundo me disse, se encontra bem."
"Encontra-se muito bem, graças a Deus." Qarim voltou-se para cima e louvou mais uma vez a grandeza do Senhor. " Allab u akbar! Louvado seja o Senhor por nos proteger, nós que somos os Seus fiéis seguidores, a quem Ele confia a verdadeira 69
Palavra, tal como ela está registada no sagrado Alcorão." Cofiou depois a barba pontiaguda. "Sabe quanto petróleo há no Médio Oriente?"
"Não, mas suspeito que me vai dizer."
"Mais de metade do petróleo que existe no mundo. O que quer dizer que as nacionalizações deixaram as grandes companhias petrolíferas ocidentais com menos de metade do petróleo existente. Chama-se a isso petróleo não-OPEP."
"Petróleo não-OPEP?"
"Isso." Bateu novamente com o dedo na mesa. "E é esse petróleo que está a acabar."
"Mas está a acabar como?"
"Está a acabar." Qarim puxou para si o bloco de notas de Tomás e preparou a caneta. "Conhece o conceito de pico?"
"Não."
O árabe desenhou uma linha ascendente numa folha limpa do bloco.
"Toda a produção de bens finitos tem um pico. A produção sobe, sobe, sobe, até que atinge a metade e começa a descer, como uma montanha." A caneta alcançou um ponto elevado na folha e iniciou a trajectória descendente. "Chama-se a isso um «pico». Quando cruzarmos o pico de produção..." Ergueu os olhos para cima, numa prece. "Que Allab, o todo-poderoso, tenha misericórdia de nós."
"Porquê?"
"Porque isso significa que já não podemos aumentar a produção. Pelo contrário, passamos a produzir menos petró-
leo." Inclinou-se sobre a mesa, para a frente. "Está a ver o problema que isso representa?" Desenhou uma nova linha ascendente no bloco de notas. "A procura mundial está sempre a aumentar. Há cada vez mais gente e mais consumidores no planeta. A China, que antes se movia à força dos pedais das bicicletas, está agora a passar para os automóveis. A índia também." Cruzou a linha ascendente da procura com uma linha descendente da oferta. "E a produção de petróleo a baixar."
Tomás manteve os olhos fixos nas duas linhas cruzadas.
"Estou a ver", murmurou. "Os preços dos combustíveis vão disparar."
"Vão entrar nos três dígitos. E, mesmo assim, o petróleo não irá chegar para todos. Acaba-se o petróleo barato e a economia mundial ficará à beira do precipício."
"Quando é que isso vai acontecer?"
"No caso do petróleo não-OPEP, o pico está iminente. Nos Estados Unidos já 70
aconteceu em 1970 e o mesmo se passou nos grandes campos petrolíferos do Canadá e do mar do Norte. O maior produtor da Europa Ocidental, a Noruega, está à beira de entrar no pico, o que deverá acontecer por volta de 2010, e a Rússia também se encontra para breve. Calcula-se que o petróleo não-OPEP atinja o pico já em 2015, talvez antes."
"Meu Deus."
"E não é tudo. Desde 1961 que a descoberta de petróleo novo tem estado em declínio. Apesar do desenvolvimento de novas tecnologias de prospecção, a cada ano que passa se descobre menos petróleo. Desde 1995 que o mundo consome pelo menos vinte e quatro mil milhões de barris por ano, mas apenas descobre nove mil milhões de barris de petróleo novo por ano."
Ao ouvir isto, Tomás estreitou os olhos.
"Mas isso é um grande problema."
Qarim assentiu com a cabeça.
"Muito grande. Quando o petróleo começar a faltar, a economia mundial vai pelo cano abaixo. Não se lembra do que aconteceu das últimas três vezes em que a produção de petróleo sofreu rupturas abruptas?" Ergueu três dedos. "Foi durante o embargo árabe de 1974, a revolução iraniana de 1979 e a Guerra do Golfo de 1991.
Recorda-se do que sucedeu então à economia mundial?"
"Entrou em recessão."
"Exactamente. E note que estamos a falar de efeitos perante rupturas temporárias." Fez uma pausa. "Temporárias." Deixou a palavra assentar. "Imagine agora os efeitos perante uma ruptura permanente, como a que acontecerá depois do pico da produção." Uma nova pausa, sombria. "Será o fim da civilização como a conhecemos."
Tomás suspirou.
"Bem, isso quer dizer que teremos de mudar para uma nova forma de energia."
O árabe esboçou uma expressão trocista.
"Qual nova forma de energia? Voltamos para o carvão?"
"Não, teremos de arranjar uma outra fonte de energia."
"Mas isso é uma ilusão. Não há, neste momento, outra fonte de energia capaz de sustentar a actual economia mundial."
"Descobre-se uma nova."
Qarim riu-se, abanando a cabeça.
"Receio que isso não seja assim tão simples."
71
"Porquê? Se fomos capazes de ir à Lua, seremos certamente capazes de descobrir uma nova forma de energia. a é que não a encontrámos ainda. O melhor candidato é, neste momento, o gás natural. Existe em abundância e é pouco poluente."
"Está a ver?"
"O problema é que o gás é muito mais caro do que o petróleo e o seu transporte da zona de produção é difícil. Não tenha dúvidas de que a transposição da economia para o gás natural, forçada pelo fim do petróleo, terá efeitos muito negativos na economia mundial. Além do mais, e apesar de o gás ser relativamente abundante, continuamos a falar de uma matéria-prima finita, tal como o petróleo."
"Não haverá outras alternativas?"
"Há a energia nuclear. Mas os seus problemas são conhecidos, não é? As centrais nucleares revelaram-se incrivelmente caras e trazem complicados problemas de segurança, como se constatou em Chernobyl. E há ainda a questão de saber o que fazer com os resíduos radioactivos, que contaminam tudo o que tocam e cujo tempo de vida pode atingir os milhares de anos. Estas centrais são tão problemáticas que a maior parte dos países está até a desactivá-las."
"Tem de haver mais alguma solução."
"Temos ainda a energia solar e a energia eólica. São ambas limpas, mas o problema é que continuam pouco eficientes e pouco maleáveis. A célula fotovoltaica, por exemplo, só transforma em electricidade um décimo da energia solar que recebe. Por outro lado, tanto o sol como o vento são intermitentes, não estão sempre a dar-nos energia. Quando o vento pára, as turbinas eólicas deixam de produzir energia, e o mesmo acontece com a energia solar à noite ou quando o céu está nublado. E há ainda a questão de que são ambas proibitivamente caras." Fez um gesto enfático com a mão. Estas duas fontes energéticas têm certamente um papel a as nem pensar em assentar nelas a economia mundial."
Tomás suspirou.
"Estou a perceber", disse. "Então estamos tramados."
"Há sempre a hipótese de descobrirmos um modo de alcançar a fusão nuclear controlada, que nos traria uma fonte inesgotável de energia limpa."
"Ah, sim?"
"A dificuldade é que serão precisos uns cem anos para a desenvolver."
"Cem anos?", alarmou-se Tomás. "Nós não temos cem anos de petróleo pela frente."
"Quem lhe disse isso?"
O historiador ficou desconcertado.
72
"Bem... uh... você."
"O que eu disse foi que o pico do petróleo não-OPEP está iminente."
"E o da OPEP?"
"Oh, esse parece ser abundante, graças a Deus. Louvado seja o Senhor, o misericordioso! Se as nossas estimativas estiverem correctas, o Médio Oriente, e em particular a Arábia Saudita, está a nadar em petróleo. O nosso pico só está previsto para daqui a uns cinquenta a cem anos."
"E essas estimativas estão mesmo correctas?"
Qarim virou os olhos para cima, como quem entrega o seu destino à Divina Providência.
"Inch'Allah!"
VIII
Foi sem surpresa que, ao calcorrear o enorme salão, Tomás se deparou com Alexander Orlov rodeado de pratos cheios de comida. Logo que regressou de Viena, o historiador entrou em contacto com o volumoso agente da Interpol e, previsi-velmente, recebeu um convite para almoçar num restaurante de Lisboa. O
estabelecimento escolhido foi uma casa brasileira no Campo Pequeno, uma daquelas churrascarias especializadas em enfardar clientes até os deixar com os sentidos embrutecidos.
O russo ergueu-se pesadamente para cumprimentar o re-cém-chegado. A primeira coisa que Tomás notou foi que Orlov transpirava com abundância, sinal de que comia havia já algum tempo.
"Desculpe, comecei antes de si", grunhiu o russo. Limpou o suor da testa e acariciou a vasta barriga. "Estava com tanta fome que até me doía o estômago, você nem imagina."
"Fez muito bem, não se preocupe."
O prato de Orlov estava a abarrotar de carne, as fatias ensanguentadas de picanha, maminha e cupim amontoadas junto ao arroz e ao feijão preto, temperados por farofa e por uma garrafa de tinto alentejano já a meio, ao lado do copo cheio.
Tomás pediu uma caipirinha e serviu-se do arroz e do feijão, mas deixou claro que não queria nenhum rodízio, apenas duas fatias de picanha.
"Então Viena?", arfou Orlov, mastigando um grande naco de carne. "Muita valsa?"
Tomás abanou a cabeça.
73
"A música foi outra."
"Imagino. Que sonata lhe cantou o tipo da OPEP?"
"Disse-me que o Filipe estava a fazer uma investigação sobre a produção e as reservas de petróleo, tendo-se mostrado particularmente interessado pelo que se passa nos países da OPEP."
O russo torceu os lábios brilhantes de gordura.
"Faz sentido", assentiu. "Se era consultor da Galp, é natural que precisasse de se informar sobre esses assuntos, não acha?"
Tomás esboçou uma careta.
"Não sei se faz tanto sentido como isso."
"Então?"
"Por que razão iria o Filipe a Viena fazer perguntas cuja resposta poderia obter por telefone ou por e-mail? Qual a necessidade de voar até Viena?"
Orlov engoliu mais um pedaço de picanha.
"Se calhar apeteceu-lhe experimentar umas delícias da gastronomia austríaca, sei lá."
"Ou se calhar esta história tem mais que se lhe diga."
"Claro que tem", exclamou o homem da Interpol. Bebeu um golo de vinho para ajudar a mastigar. "Não se esqueça de que, depois de Viena, o seu amigo desapareceu e, acto contínuo, alguém limpou o sebo aos outros dois tipos. O árabe não lhe deu nenhuma pista útil?"
"Nem por isso. Disse-me que o petróleo não-OPEP está à beira de cruzar o pico, mas que a OPEP acredita que os seus poços permanecem cheios."
O russo parou de mastigar por um instante.
"Não vejo qual a relevância dessa informação para o nosso problema."
"Nem eu."
"Então em que ficamos?"
Tomás suspirou.
"Estou a tentar avançar por outra via."
"Qual?"
"Através de uma mensagem que deixei na semana passada num site especial criado pela malta da minha geração no liceu de Castelo Branco e é provável que o Filipe o consulte. Ele sempre teve um grande espírito de grupo e de certeza que conhece este lugar na Internet."
74
"Ah, é? Pôs isso na semana passada?"
"Sim."
"E então?"
Tomás abanou a cabeça.
"Para já, não há nada."
O empregado apareceu com a picanha e a caipirinha para Tomás, enquanto um outro despejava no prato do russo mais doses de carne, que anunciara como sendo lombo de búfalo. Quando os dois saíram, Orlov mirou o seu interlocutor.
"Se você não descobriu nada, por que razão pediu para falar comigo?"
"Quem é que lhe disse que não descobri nada?"
"Bem... foi o que acabou de me dizer..."
Tomás inclinou-se e pegou na sua pasta.
"Não descobri nada sobre o Filipe, é verdade, mas tenho novidades relativas às enigmáticas mensagens que envolvem todo este caso."
Orlov soergueu o sobrolho, surpreendido.
"Quais mensagens? Está a referir-se ao sinal do Diabo?"
"Sim, o triplo seis."
"Você decifrou o sinal?"
"Penso que sim."
"Ena, homem. Mostre lá isso!"
O historiador tirou da pasta o grosso volume da Bíblia e folheou as últimas páginas, em busca do texto final do Novo Testamento. Localizou-o e apontou-o ao russo.
"Este é o Livro da Revelação, o mais enigmático de todos os textos bíblicos, o documento das profecias. Foi escrito em 95 numa pequena ilha do mar Egeu por um homem chamado João. A tradição diz que foi o apóstolo João, o mesmo João que escreveu o quarto Evangelho, mas não há certezas sobre isso. Existem importantes diferenças de estilo, mas encon-tram-se igualmente algumas semelhanças."
"Julgava que esse texto se intitulava Apocalipse.'''' E assim e.
Orlov mostrou-se confuso.
"Mas você disse que era Livro da Revelação.'"
"Apocalipse é a palavra grega que significa revelação, está a perceber? Dizer 75
que o livro final do Novo Testamento se intitula Apocalipse ou Revelação é a mesma coisa."
"Ah, bom. Não sabia."
Tomás voltou a exibir o texto.
"Este é um livro assustador." Os olhos pousaram sobre o primeiro parágrafo.
"Começa com estas palavras: «Revelação de Jesus Cristo, que Deus Lhe deu para manifestar aos Seus servos as coisas que brevemente devem acontecer.»" Levantou a cabeça e repetiu as palavras finais. "«Que brevemente devem acontecer.»"
"Hmm... tenebroso."
Bateu com o dedo nas páginas abertas.
"Pode ter a certeza de que, ao longo dos séculos, muita gente ficou em pânico com o que vem aqui escrito e o caso não era para menos." Folheou as páginas.
"Trata-se de um livro de profecias que fala sobre o fim dos dias e é o responsável por várias expressões ditas apocalípticas, como o dia do Juízo Final, a batalha do Armagedon e os quatro cavaleiros do Apocalipse, mas a mais famosa expressão que este texto bíblico introduziu foi a própria palavra apocalipse, a qual, no seu sentido comum, deixou de significar revelação para passar a querer dizer fim do mundo.''''
"E é aí que está também o número da Besta."
"Sim, é aqui." Começou a procurar o trecho. "Repare que no Apocalipse os números têm muita importância. O texto está cheio de algarismos simbólicos. Dá a impressão de esconder mensagens atrás de mensagens, como um imenso holograma."
"É o caso do triplo seis?"
"Nem mais." Tomás parou de folhear e apontou o dedo para um parágrafo.
"Está aqui", exclamou. "É a parte em que se refere o aparecimento da Besta."
Compôs a voz. "Diz assim: «É aqui que é preciso sabedoria. Quem for dotado de inteligência calcule o número da Besta, porque é o número de um homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis»."
Ergueu os olhos para o seu interlocutor, que recebia mais picanha de um empregado.
"E diz você que isso é decifrável?", perguntou o russo.
"Não tenha dúvidas. Isto é uma mensagem oculta e tem uma solução."
Apontou para as linhas que acabara de ler.
"Está a ver esta expressão? «É preciso sabedoria», diz aqui. Quer dizer que quem tiver sabedoria poderá quebrar o enigma."
"Que sabedoria é essa?"
"A sabedoria dos iniciados." Indicou com o dedo a expressão seguinte. "Veja 76
esta frase: «Calcule o número da Besta, porque é o número de um homem.» Isto significa que se trata da sabedoria dos números."
"A matemática?"
"A guematria."
"A geometria?"
"Gue-ma-tria."
"O que é isso?"
"A guematria é uma disciplina da Cabala que está na génese da moderna numerologia. Trata-se de um método para obter o valor numérico das palavras hebraicas através da conversão das letras em números."
Orlov fez uma careta.
"Mas para que serve isso?"
"A ideia é chegar ao âmago das palavras, à revelação dos mistérios ocultos na linguagem, ao estabelecimento de ligações invisíveis entre expressões aparentemente diferentes, de modo a compreender o sentido divino da Criação. Os místicos cabalistas acreditavam que Deus criou o universo com as letras do alfabeto e escondeu segredos nos números e nas palavras por detrás dessas letras. A guematria permite atingir o sentido oculto da palavra de Deus."
"Não estou a entender..."
Tomás afastou o prato, pegou numa caneta, retirou o bloco de notas da pasta e pousou-o diante de si.
"Uma vez, em Jerusalém, um velho cabalista explicou-me isto ao pormenor", disse. "A ideia é esta. A cada letra do alfabeto hebraico corresponde um número. As nove primeiras letras associam-se às nove unidades, às nove letras seguintes associam-se as nove dezenas e as quatro letras restantes estão associadas às quatro primeiras centenas." Gatafunhou uma equação.
"Assim, as letras da palavra hebraica shanab, que significa ano, somam um total de trezentos e cinquenta e cinco. Está a ver? Ora trezentos e cinquenta e cinco é exactamente o número de dias do ano lunar. Isto significa que há uma relação numérica entre a palavra e o objecto a que ela se refere."
"Por que razão você pôs o a com letra pequena?"
"A escrita hebraica ignora muitas vogais. Quando a letra está escrita, põe-se em maiúscula. Quando a letra é dita, mas não é escrita, fica em minúscula."
"Estou a ver", murmurou Orlov. "Portanto, pelo que entendi da sua explicação da geome... uh... deste sistema, cada letra tem um valor e a soma do valor de cada letra que compõe uma palavra dá o valor dessa palavra. É isso?"
77
"Exacto." Estreitou os olhos. "Mas a coisa torna-se mais interessante quando entramos nas áreas místicas. Repare na equivalência entre as palavras Elohim e Hateva, ou Deus e natureza.'"
"Têm o mesmo número, oitenta e seis. Isto significa que Deus é a natureza."
Nova equação.
"Note aqui a equivalência entre or, ou luz, e raz, mistério. Ambas valem duzentos e sete. Ou seja, a luz remete para o mistério. Quando Deus disse: yehi or!, ou faça-se luz!, iniciou o mistério da Criação."
"É espantoso."
"É, não é?" Bateu com os dedos nos rabiscos. "A guematria revela significados ocultos nas palavras."
O russo hesitou.
"E... e acha que é possível com esse sistema chegar à revelação do triplo seis?"
Tomás voltou a procurar o trecho da Bíblia que consultara minutos antes.
"Não só é possível como é este o único e verdadeiro caminho", observou.
"Repare no que diz aqui: «Quem for inteligente calcule o número da Besta, porque é o número de um homem.»" Olhou Orlov. "«Calcule o número da Besta»? «É o número de um homem»?" Deixou um sorriso aflorar-lhe aos lábios. "Não podia ser mais claro. O mistério do triplo seis é descodificável pela guematria."
"Então é preciso recorrer à Cabala."
"Isso foi justamente o que eu pensei de início. Mas depois apercebi-me de que podia não ser a Cabala."
"Ah, não?"
"É que a Cabala é um método hebraico." Passou a palma da mão pelo texto.
"O Apocalipse foi escrito na zona do mar Egeu. Isto significa que é possível que tenhamos de ir para o grego."
"Grego?"
"Faz todo o sentido." Preparou a caneta. "Repare, Jesus diz-se, em grego, Iesous. São seis letras. Vamos lá ver o seu valor numérico."
I £ 5 O 0 5
\0 % ZOO j^> ^OO TJOO^-^%
"Em grego, o número de Cristo é, como vemos, um triplo oito. Isto torna 78
lógico que o número do Anticristo seja igualmente simétrico, mas inferior, e decifrável através da guematria aplicada ao grego. O triplo seis insere-se nesse perfil."
"Estou a ver."
"O que demonstra que este enigma bíblico se pode resolver recorrendo ao grego. Sendo assim, pus-me a procurar nomes cuja guematria dê um triplo seis.
Adivinhe o que encontrei."
"Não faço a mínima ideia."
"Vá lá, lance um nome."
"Não sei."
O fio de um sorriso percorreu o rosto de Tomás.
"Maomé."
Orlov abriu a boca de espanto.
"Maomé? Maomé dá um triplo seis?"
"Dá."
"Está a insinuar que Maomé é o Anticristo?"
"Não estou a insinuar tal coisa. Estou apenas a dizer que a guematria do nome de Maomé dá um triplo seis."
"Caramba!"
"Mas há um outro nome que obtém o mesmo resultado. Um nome ainda mais surpreendente, um nome que parece perfeito para desempenhar o papel da Besta, um nome que remete irresistivelmente para o Anticristo."
"Qual?"
Tomás olhou para a mesa e depois para todo o salão. Sentia-se enfastiado, o cheiro a comida deixava-o enjoado e o espectáculo de Orlov com a boca besuntada de gordura agoniava-o para além do que podia suportar.
"Oiça, já acabou o almoço?"
"Eu?", admirou-se o russo. "Já, porquê?"
"É que eu já não consigo ficar mais tempo aqui. Vamos lá para fora, está bem?"
"Isso não vale", protestou Orlov. "Você tem de me dizer qual o outro nome que dá um triplo seis."
"Eu digo-lhe, mas só se prometer que podemos ir imediatamente lá para 79
fora."
"Está bem."
Tomás ergueu-se da cadeira.
"Então vamos lá."
"Espere", quase gritou o seu interlocutor, esticando a mão para o prender ao lugar. "Primeiro tem de me dizer que nome é esse."
O historiador sorriu, fruindo antecipadamente o gozo que lhe daria ver a cara de Orlov quando pronunciasse o nome.
"Hitler."