II

A primeira imagem apareceu-lhe desfocada. Viu um vulto branco passar diante de si; mas era uma visão difusa, vaga, quase etérea, uma mancha nebulosa, um borrão enevoado. Escutou um barulho tranquilo, palavras murmuradas, incompreensíveis porém. Sentiu-se confuso, entorpecido, ébrio; os olhos demoravam a focar as imagens, pareciam pesados, ronceiros, até desobedientes. A mente divagava, embrutecida, preguiçosa, incapaz de compreender, demasiado lenta para raciocinar.

Pensa, Tomás.

Fez um esforço para se concentrar. Abanou a cabeça, como se assim pudesse expulsar o demónio que o inebriava, e procurou entender o que se passava. Pensa, Tomás, repetiu para si mesmo. Arregalou os olhos, tentando desse modo libertar-se da neblina que lhe toldava a visão, e fez por apreender o mundo ali e naquele momento; sabia que para compreender precisava de ver, mas ver era-lhe difícil. Tão difícil... Fez um esforço para captar o que se passava, para registar as imagens, para vencer o atordoamento, para atravessar a névoa embaciante.

Prendeu a atenção no vulto branco e os olhos focaram-no gradualmente. Era uma mulher, começou por perceber. Tinha uma coisa na cabeça; seria um lenço?

Não, era uma touca, uma touca branca. A mulher vestia de branco, parecia uma freira. Claro que não era uma freira, concluiu devagar, a mente ainda empastelada, 27


demorava a aguçar os reflexos. Não era uma freira. Era uma enfermeira.

"Então o nosso paciente já está a acordar?", perguntou a enfermeira, inclinando-se sobre ele com um sorriso.

Tinha os olhos castanhos e sardas no nariz, fazia-lhe vagamente lembrar a ex-mulher.

"Hmm", ouviu-se a murmurar.

"Dormiu bem?"

"Hmm?"

"Pronto, descanse", disse a enfermeira com infinita doçura. "Volto daqui a um bocadinho."

O rosto sardento saiu-lhe da frente e Tomás olhou em redor, numa modorra despreocupada. Apercebeu-se com esforço de que se encontrava num pequeno quarto de aspecto asséptico. Havia uma maquineta do lado direito, um móvel com um televisor em frente e uma janela à esquerda a dar para uns plátanos frondosos, os ramos iluminados pela luz do dia. Era manhã, verificou, e encontrava-se num sítio inesperado. Um hospital. A ideia assentou devagar na sua mente e surpreendeu-o.

Mas o que raio estou eu a fazer num hospital?, interrogou-se.

Sentiu o cansaço invadir-lhe o corpo e pesar-lhe nos olhos; a absurda embriaguez acossava-o irresistivelmente. Recostou-se na cama, aconchegou-se no quentinho, ajeitou as costas, respirou fundo e deixou-se ir no embalo mole do sono.

Uma voz masculina fê-lo despertar de novo. Abriu os olhos e viu um homem de bata branca e bigode fino ao lado da cama, a enfermeira sardenta atrás dele.

"Então muito bom dia, professor Noronha. Como se sente?"

Tomás olhou-o interrogativamente.

"Onde estou eu?"

"Na Clínica do Choupalinho. Como se sente?"

O paciente percebeu que recuperava gradualmente as suas faculdades, incluindo a capacidade de raciocinar com clareza. Arregalou os olhos, lembrando-se.

A frequência! Então e a frequência? Os alunos estão na faculdade à minha espera para a frequência! Ergueu a mão esquerda e consultou o relógio. Eram nove da manhã, ainda ia a tempo. A frequência estava marcada para daí a uma hora.

"Oiça, eu preciso de sair daqui", disse, as palavras ainda algo entarameladas.

"Tenho uma frequência às dez e não posso faltar."

"Ah, sim? E onde é essa frequência?"

"Na faculdade."

"Qual faculdade? A de Coimbra?"

28


"Não, a minha faculdade em Lisboa."

"Mas você está em Coimbra, homem", riu-se o médico. "Mesmo que saísse daqui agora a correr, não chegava a tem-po."

Tomás fez um esforço para recuperar as suas últimas memórias.

"Ainda estou em Coimbra?"

"Sim, senhor. Na Clínica do Choupalinho."


Deix

"Porta! Vou faltar à frequência!"

"Receio bem que sim", concordou o médico. "Como se sente?"

Tomás ponderou a pergunta.

"Um pouco esquisito", observou, descobrindo um gosto empastado na boca.

"Dói-me ligeiramente a cabeça."

"Pois deve doer, deve."

"O que aconteceu?"

"Não se lembra de nada?"

Tomás voltou a esgravatar nos arquivos mais recentes da sua meinte.

"Lennbro-me de ter entrado no carro à noite para ir para Lisboa."

"Mais nada?"

Reflectiu um instante.

"Benn... acho que é só isso."

"Qu;al a última imagem que guarda na memória?"

"Foi... foi a estação." Ergueu o sobrolho. "Não, foi o semáfoiro. Ia a virar para a ponte e parei no semáforo."

"Nã

"Nã

Abamou a cabeça, para reforçar a negativa, mas logo teve de parair, o cérebro parecia-lhe chocalhar.

"De certeza?", insistiu o médico.

"Siim", confirmou o paciente, impaciente. "O que aconteceu?"

O mtédico pegou num bloco de folhas A4, como se consultasse uimas notas.

"O senhor teve um acidente. Atravessou a ponte e ia aqui a passair pela Praça 29


da Canção, presumo que a caminho da auto-esitrada para Lisboa, quando o carro embateu num poste e você perdeu os sentidos."


"Eu embati num poste?"

"Sim." Voltou a consultar as anotações. "Aí pelas dez da noite."

"Aqui na Praça da Canção?"

"Sim."

Tomás fez um ar intrigado.

"Tem piada, não me lembro de nada disso. Só me lembro de arrancar o carro e parar no semáforo à espera do verde."

O médico sorriu.

"É natural. Quando se sofre um traumatismo na cabeça e se perdem os sentidos, é normal as pessoas apagarem a memória dos cinco minutos anteriores ao acidente. Há até quem perca a memória das horas anteriores, veja lá."

"A sério?"

"É muito comum, fique descansado."

Foi a vez de Tomás sorrir.

"Caramba, não me lembro mesmo de nada. E como se não tivesse acontecido.

Num momento estou parado no semáforo, no momento seguinte estou a olhar para a sua enfermeira. É como se não se tivesse passado nada entretanto. Saltei auto-maticamente de um lado para outro, percebe?"

"É estranho, é", assentiu o médico. "Mas muito comum."

Tomás apalpou a cabeça. Sentiu umas ligaduras agarradas ao cabelo e alarmou-se.

"O que tenho eu? Isto é grave?"

"Não, não é nada de especial, fique tranquilo." O médico aproximou-se e tocou-lhe ao de leve na nuca. "Você deve ter dado um jeito estranho à cabeça quando embateu no poste porque o traumatismo foi aqui atrás, na nuca." Pegou-lhe no braço direito e exibiu um penso sobre as costas da mão. "E magoou-se ligeiramente aqui na mão, está a ver? Nada de grave, mas não deve fazer esforços, entendeu?"

"Sim."

"Se tiver comichão nas costas da mão, não coce. Isto é muito importante. Não coce. É sinal de que a ferida está a cicatrizar."

"Muito bem, não vou coçar", prometeu Tomás, inspeccionando o penso na 30


mão direita. Levantou a cabeça para o médico e leu-lhe o nome na plaquinha pregada ao peito. "O senhor é o doutor Cariano?"

O médico sorriu.

"Sim, Luís Cariano."

"Ó doutor, eu esta noite tenho um jantar em Lisboa", disse o paciente. "Acha que vai dar para ir ou terei de desmarcar?"

"Pode ir, pode." Consultou o relógio. "Deixe cá ver... são oito horas, não é?

Olhe, tenciono dar-lhe alta ao princípio da tarde. Quero tê-lo a manhã toda aqui, para verificar se está tudo nos conformes, e depois do almoço deixo-o ir à sua vida."

"Ah, maravilha."

"Mas vá com calma, ouviu? Não o quero cá outra vez."

A enfermeira já levava o tabuleiro com o almoço consumido e Tomás calçava os sapatos e preparava-se para abandonar o quarto da clínica quando o telemóvel tocou.

"Olá, Tomás. Daqui Gouveia."

Caramba, pensou Tomás. Como diabo teria o médico de família sabido que ele fora hospitalizado naquela clínica? Bem, a comunicação entre médicos deve ser expedita, concluiu.

"Bom dia, doutor. As notícias correm depressa, hã?"

"Neste caso, a notícia veio ter comigo", observou Gouveia do outro lado da linha. "Aliás, está mesmo na sala aqui ao lado."

Tomás franziu o sobrolho, sem entender aquele comentário.

"A notícia está na sala aí ao lado? Não estou a perceber..."


"Ó homem, é a sua mãe."

"A minha mãe?"

"Sim, está aqui, na sala ao lado."

"Onde? No hospital?"

"Pois, vieram cá trazer-ma."

Tomás sentiu-se alarmado.

"Levaram a minha mãe ao hospital? O que se passa? O que tem ela?"

"Não tem nada, ela está bem", apressou-se a esclarecer o médico, procurando tranquilizá-lo. "Ou melhor, tem o mesmo de sempre. Está a perder faculdades."

Sem saber ainda o que pensar, Tomás sentou-se na cama.

31


"Diga-me lá, doutor, o que se passa?"

"A sua mãe perdeu-se. Ao que parece, saiu esta manhã para ir às compras e, quando vinha da mercearia, não conseguiu encontrar a casa. Pôs-se a deambular pela Baixinha e veio dar ao Largo das Olarias. Parecia confusa e levaram-na para a esquadra. Da esquadra mandaram-na aqui para o hospital e a minha enfermeira deparou com ela nas urgências e veio trazer-ma."

"Porra", exclamou Tomás, levando a mão direita à cabeça. "Ela está bem?"

"Sim, está bem. Já estive a conversar com ela, mas ainda me parece um pouco confusa."

"Que chatice! E agora?"

Ouviu Gouveia suspirar do outro lado.

"Oiça, Tomás, eu já lhe disse o que tem a fazer, não disse?"

"Doutor, eu conversei ontem com ela, logo que chegámos a casa. O senhor nem imagina a fita que me fez."

"Imagino, imagino. Eu também lhe falei no assunto há pouco e ela teve uma fúria incrível. Diz que todos a querem despachar."


Tomás ergueu os olhos para cima, aliviado por não ser o único a ouvir as queixas da mãe. Talvez assim o médico compreendesse melhor o seu dilema.

"Está a ver? O que hei-de eu fazer?"

"Vai ter de a levar, Tomás. Ela não está em condições de viver sozinha."

"Mas como, doutor? Ela não quer ir..."

O médico respirou fundo.

"Oiça, Tomás", disse. "É muito arriscado deixá-la sozinha. As coisas não vão evoluir para melhor, percebeu? Ela está a mostrar-se desorientada e isto é um processo degenerativo. A sua mãe precisa de ajuda, não pode permanecer entregue a si própria. Além do mais, num lar ela tem outras pessoas com quem conviver, só lhe vai fazer bem."

"Acredito, acredito. Mas o problema mantém-se. Como vou colocá-la num lar se ela não quer ir?"

"Tem de ir."

"Mas como é que eu faço isso? Ela não quer!"

"Você tem de conversar com ela e convencê-la."

Tomás riu sem gosto.

"Conversar com ela? E como é que eu faço isso? Ela não quer ouvir e põe-se 32


num estado de... de exaltação. Como é que eu a convenço?"

Gouveia pigarreou.

"Oiça, o que lhe vou dizer a seguir não é como médico, entendeu? E como amigo."

"Diga lá."

"Sabe que, à medida que a idade avança, os velhos entram em regressão e, de certo modo, retornam à infância, não sabe?"

"Sei."

"Então imagine que a sua mãe é uma criança."


"Sim."

"Ela é uma criança e não quer ir para a escola. Você sabe que ela precisa de ir à escola, que isso é bom para o seu futuro, mas ela não sabe isso, pois não? Apenas sabe que não quer ir para a escola, prefere ficar em casa a brincar com as bonecas.

Perante essa recusa, o que faz você? Satisfaz-lhe o capricho ou escolhe o que é bom para ela?"

"Não é a mesma coisa."

"Responda à minha pergunta. Se a criança não quer ir para a escola, o que faz você? Não a leva? Deixa-a ficar sempre em casa a brincar? Nunca mais vai aprender? Prejudica o seu futuro só para não a contrariar naquele instante?"

"Claro que a levo à escola."

"Nem que seja à força?"

"Sim."

"Então tem aí a sua resposta."


III

O aroma salgado da maresia enchia o restaurante, refrescante e vigoroso, acompanhando o marulhar reconfortante e cadenciado das ondas no laborioso vaivém sobre a praia. Tomás espreitou pela janela e vislumbrou o vulto esbranquiçado da espuma colar-se à areia, dava a impressão de algodão doce preso ao açúcar; mas o mar permanecia invisível, era de um negro profundo que se confundia com a noite, cortado pelo foco intermitente do farol do Bugio e pelos pontos iluminados dos navios que, no horizonte escondido, deslizavam docemente pela boca do Tejo. Os candeeiros públicos enchiam de luz a praia de Oeiras, quase como se fosse dia, eram pequenos sóis a rasgar a noite; o seu clarão revelava-se forte para a curta língua de areia, impotente porem diante da imensa treva dura do oceano.

33


Olhou para o relógio; passavam quinze minutos das oito. vem atrasado, pensou. Mordiscou mais um rissol de camarão e manteve os olhos presos no manto escuro das águas, embalado pelo rumor ritmado das ondas na sua incansável valsa com a praia.

"Professor Noronha?", perguntou a voz com o leve sotaque.

Era um homem corpulento, dono de um abdómen enorme, e trazia uma pasta velha pendurada na mão; tinha um cabelo loiro fino, com entradas no topo da testa, e densos olhos azuis, um papo inchado sob o queixo, como um sapo.

"Sim?"

"Peço desculpa pelo meu atraso", disse, quase ofegante. Estendeu a mão sapuda. "Alexander Orlov, da Interpol. Os meus amigos chamam-me Sacha."

Cumprimentaram-se e Orlov pousou a pasta debaixo da mesa e sentou-se com dificuldade, a cadeira era quase estreita de mais para o seu corpanzil.

O empregado aproximou-se e fez uma vénia na direcção do recém-chegado.

"Boa noite, senhor Orlov. Quer pedir já?"

Orlov era, pelos vistos, um conhecido da casa. O volumoso cliente pegou no menu que lhe era estendido e passou os olhos superficialmente pelas propostas do restaurante. Quase fez o pedido de imediato, mas calou-se a tempo e mirou Tomás.

"Já escolheu?"

"Não conheço bem os pratos."

"Recomendo a santola recheada. É uma delícia."

"Muito bem", aceitou Tomás. "Venha a santola."

"E vinho verde branco muito frio", acrescentou Orlov. Encarou Tomás em busca de aprovação. "Concorda?"

"Vamos a isso."

O empregado afastou-se e Orlov agarrou-se aos acepipes e engoliu num instante três rissóis, dois croquetes e dois pães barrados com creme de atum.


"O que tem na cabeça?", perguntou, reparando no penso que Tomás trazia colado à nuca.

O historiador tocou levemente no penso.

"Isto? Oh, não é nada. Tive um pequeno acidente de viação, só isso."

"Não é grave, espero."

34


"Não, não é grave."

Orlov meteu duas chamuças à boca.

"Suponho que tenha ficado surpreendido com o meu telefonema", disse, a voz quase abafada pela boca cheia.

"Sim", admitiu Tomás. "Não consigo imaginar o que pretenda a Interpol de mim. O senhor falou-me de um amigo meu do liceu, mas, com toda a franqueza, não percebo o que tem isso a ver comigo."

"Não me trate por senhor", disse Orlov, erguendo a mão. "Sou uma pessoa informal."

"Muito bem."

"Sei que você é professor de História, perito em línguas antigas e um dos maiores criptanalistas do mundo, não é?"

Tomás enrubesceu e sorriu.

"Um dos maiores do mundo? Isso é exagero..."

"Não é exagero, não. Eu fiz o trabalho de casa." Devorou mais um rissol. "O

importante é que isso é útil para a investigação que estou a levar a cabo para a Interpol."

Tomás remexeu-se na cadeira.

"Estamos numa situação desigual, já reparou? Você sabe tudo sobre mim e eu não sei nada de si."

Orlov soltou uma gargalhada.

"Tem razão, peço desculpa. O meu nome é Alexander Ivanovitch Orlov.

Nasci em Sampetersburgo no tempo em que a minha grande cidade se chamava Leninegrado. Andei na tropa, fui conselheiro em Angola e depois..."

"Ah, foi aí que aprendeu português!"

"Sim, foi em Luanda. Havia muitos conselheiros soviéticos a trabalhar com os cubanos e o MPLA." Sorriu. "Naquele tempo aquilo era uma farra!" Suspirou.

"Depois fui trabalhar para a polícia russa, mas o fim do comunismo fez-me ver que o meu futuro não estava na Rússia. A autoridade central des-moronou-se e o país ficou entregue aos oligarcas e às máfias." Esboçou uma careta e abanou a cabeça.

"Corromperam tudo, incluindo a polícia. Preferi sair a ficar a ver os meus chefes e os meus colegas a venderem-se por um punhado de rublos. E quem não se vendia acabava com um tiro na cabeça." Abocanhou uma fatia de pão. "Candidatei-me então a um lugar na Interpol e acabei por ir viver para Lyon, onde fui integrado no Specialized Crime Directorate, uma unidade dedicada a combater o crime especializado." Pôs a mão no peito. "Puseram-me a trabalhar em casos envolvendo seitas e coisas do género."

35


"Seitas?"

"Sim, esses malucos que cometem crimes pelos motivos mais bizarros que se possa imaginar. Suicídios colectivos e assassínios motivados por crenças políticas ou religiosas, por exemplo." Fez um gesto com a mão. "São aqueles tipos que acreditam no Demónio ou pensam que o fim do mundo está a chegar..."

"Ah, estou a ver."

"Ando a lidar com esses idiotas há sete anos. Você nem imagina os tarados que já me apareceram pela frente..."

O empregado aproximou-se com um tabuleiro. Pôs os pratos quentes sobre a mesa, eram duas fumegantes carapaças de santola, e despejou vinho verde gelado nos copos. Fez uma vénia, desejou bom apetite aos clientes e retirou-se.


Os dois comensais provaram o prato, com Tomás a mostrar uma expressão de aprovação, e ambos ergueram os copos.

"Como é que vocês dizem em russo?", perguntou o historiador, o copo pendurado na ponta dos dedos.

"Na zdrovie!"

Fizeram uma saúde e começaram a comer. Orlov arfava enquanto metia a comida à boca, parecia esfaimado; o seu vasto estômago tinha ar de ser muito exigente e requerer grandes quantidades de alimentos.

Tomás ergueu o garfo e apontou na direcção do seu interlocutor.

"Ainda não me explicou o que tem isso a ver comigo ou com o meu amigo do liceu..."

"Já lá vamos", disse Orlov, engolindo com sofreguidão mais duas garfadas cheias. "Já lá vamos." Avaliou o prato, que esvaziava a grande ritmo, e chamou o empregado com a mão. "Olhe, traga-me mais uma santola, por favor."

Tomás riu-se.

"Caramba, você está mesmo com fome!"

Orlov passou as costas da mão pela testa, limpando o suor que lhe nascia no topo.

"Não me diga nada, isto é uma tortura." Devorou mais uma garfada. "Adoro comer."

"Pois, já notei."

O russo ingeriu mais duas fatias de pão, ambas generosamente barradas com creme de atum, e aconchegou-as com um longo golo de vinho verde. Pousou o copo e respirou fundo antes de atacar novamente o que restava da santola.

36


"Vamos então ao seu amigo do liceu."

"O Filipe."

Orlov fez desaparecer os derradeiros resquícios da sua primeira santola e, depois de limpar a boca a um guardanapo, retirou um envelope da pasta que guardara debaixo da mesa.

"Em Março de 2002 deu entrada na Interpol um pedido do FBI para investigar um homicídio." Abriu o envelope e tirou uma fotografia. "Tratava-se da morte de um cientista americano na Antárctida, era um perito em climatologia."

Exibiu a fotografia de um homem de meia-idade, os olhos sorridentes por detrás de óculos redondos e uma barba rala grisalha coberta de gelo. O homem encontrava-se de pé numa paisagem plana, glaciar, com uma fileira de bandeiras cravadas na neve atrás de si, um céu limpo azul-claro por cima. "O professor Howard Dawson."

Tomás empurrou o seu prato para o lado e analisou a foto.

"Esta fotografia foi tirada na Antárctida?"

"Pólo Sul."

Observou melhor a fila de bandeiras.

"Isto é mesmo o Pólo Sul?"

"Simbolicamente, sim." Engoliu um pedaço de comida. "Na verdade, a localização exacta do Pólo Sul varia todos os anos, não é?"

Tomás mirou o russo interrogativamente.

"Como assim?"

"Existem vários Pólos Sul." Acenou com a fotografia. "Esta foto foi tirada no Pólo Sul cerimonial. As bandeiras dos doze primeiros signatários do Tratado Antárctico oferecem o cenário perfeito para registar imagens." Encolheu os ombros.

"Mas é tudo uma encenação, claro. O verdadeiro Pólo Sul anda a passear-se de um lado para o outro."

"Não estou a perceber", murmurou Tomás. "Que eu saiba, o Pólo Sul está sempre no mesmo sítio."

Orlov abanou a cabeça.


"Existem três tipos de Pólo Sul." Ergueu três dedos gordos. "O Pólo Sul magnético, cuja presença é registada pelas agulhas magnéticas, é algures ao largo da Antárctida, na baía da Commonwealth. Desloca-se actualmente dez a quinze quilómetros por ano na direcção norte."

"Caramba!"

"Depois há o Pólo Sul geomagnético, onde se manifesta o fluxo do campo 37


electromagnético da Terra. Este Pólo Sul localiza-se no planalto antárctico, perto da estação russa de Vostok." Voltou a acenar com a fotografia. "Finalmente, existe o Pólo Sul geográfico, situado perto do Pólo Sul cerimonial. Quando nos referimos ao Pólo Sul, em geral isso significa o Pólo Sul geográfico, não é?"

"Exacto."

"O problema é que o Pólo Sul geográfico nunca está muito tempo no mesmo lugar."

Tomás franziu as sobrancelhas.

"É isso que não entendo", disse. "O Equador encontra-se sempre no mesmo sítio e o Pólo Norte também. Por que razão haveria o Pólo Sul de ser diferente?"

"Por causa do gelo."

"O que tem o gelo a ver com isto?"

"Repare, professor, o Pólo Sul está coberto de gelo, não é? Ora esse gelo não permanece estático. Pelo contrário, encontra-se sempre em movimento. O gelo no Pólo Sul desloca-se dez metros por ano na direcção da América do Sul e isso significa que a marca do Pólo Sul geográfico se afasta dez metros por ano do sítio verdadeiro."

"Ah."

"Isto obriga a que todos os anos se calcule a nova posição do Pólo Sul e se coloque a marca no sítio certo. O que significa que, na prática, todos os anos temos um novo Pólo Sul."


O empregado reapareceu com a nova santola, à qual Orlov se atirou de imediato sem quartel, dir-se-ia que ainda não comera nada. Enquanto o russo mastigava com sofreguidão o prato acabado de chegar, Tomás pegou na fotografia pousada sobre a mesa.

"Este cientista foi assassinado no Pólo Sul?"

Orlov emitiu um grunhido enquanto comia.

"Não", disse, logo que engoliu o que tinha na boca. "Foi morto em McMurdo."

"Onde?"

"McMurdo." Deglutiu um pedaço de comida pelas goelas abaixo. "McMurdo é a maior estação existente na Antárctida." Quase arfava a falar. "Foi construída pelos Americanos em 1956 como base militar, mas transformada em estação científica logo que entrou em vigor o Tratado Antárctico. Conta com mais de mil habitantes durante o Verão e duzentos no Inverno."

38


"Isso fica onde?"

"Numa ponta da ilha de Ross, que está colada à Antárctida pela gigantesca plataforma de gelo de Ross, na parte do continente que é banhada pelo oceano Pacífico." O russo fez um gesto na direcção do rosto sorridente na fotografia. "O

professor Dawson era o director do Crary Science and Engineering Center, o principal edifício de pesquisa científica de McMurdo. Estava envolvido num projecto de análise climática quando morreu."

"Diz você que ele foi assassinado?"

"Numa manhã de Fevereiro de 2002 foi encontrado estendido na cozinha do centro onde trabalhava, com dois tiros no corpo e um na testa." Abafou um arroto.

"Não parece morte natural, pois não?"

"Quem o matou?"


Orlov sorriu.

"Se eu soubesse, não estava aqui a falar consigo."

Foi a vez de Tomás se rir.

"Veio falar comigo para eu o elucidar sobre um crime ocorrido na Antárctida? Deve estar a brincar..."

Mais garfadas.

"Nunca brinco em serviço. A verdade é que estou convencido de que me poderá ajudar a desvendar o mistério."

"Como?"

"Tenha calma", disse o russo, atacando os últimos pedaços da segunda santola. "Deixe-me primeiro contar-lhe toda a história." Tinha nacos de comida nos cantos da boca, o que estava a deixar Tomás enojado; por mais que evitasse olhar, a sua atenção parecia cair irresistivelmente naqueles bocados gordurosos que quase escorriam pelos lábios luzidios do russo. "Quando a Interpol recebeu o pedido do FBI e analisou as características do homicídio, decidiu remeter o caso para o meu serviço. Logo que me inteirei dos pormenores, aperce-bi-me de que este assassínio apresentava semelhanças bizarras com um homicídio ocorrido em Espanha e que eu tinha analisado dias antes. Fui rever o dossier do homicídio de Espanha e descobri que apenas algumas horas separavam os dois acontecimentos. O professor Howard Dawson foi assassinado na Antárctida, o professor Blanco Roca apareceu morto pouco depois no seu gabinete, na Universidade de Barcelona, onde leccionava Física. Também a tiro, desta vez um único, na nuca, enquanto trabalhava no computador."

"O que tinham os dois casos de semelhante?"

39


"Ambos envolviam cientistas mortos a tiro nos seus locais de trabalho no espaço de apenas algumas horas."

Tomás olhou para o russo sem compreender.

"E então? Um foi assassinado na Antárctida, o outro em Espanha. Um era americano, o outro espanhol. Um era climatologista, o outro físico. Cá para mim existem aqui demasiadas diferenças."

Orlov fez um sorriso malicioso.

"Você não diria o mesmo se visse as fotografias dos locais do crime."

"O que têm essas fotografias de especial?"

O russo limpou as mãos ao guardanapo e enfiou os dedos gordos dentro do envelope, de onde extraiu mais fotografias. Mas, em vez de as exibir, manteve-as voltadas para si, como se estivesse a disputar um póquer e quisesse ocultar o seu jogo.

"Deixe-me dizer-lhe antes do mais que, em ambos os casos, as consultas às respectivas agendas permitiram concluir que as duas vítimas se conheciam."

"Ah, sim?"

"Pelos registos que encontrámos nas agendas, concluímos também que partilhavam dois amigos, igualmente cientistas." Inclinou a cabeça. "Mais curioso ainda, os nomes de cada um dos três amigos encontrados em cada agenda eram assinalados pelo mesmo sinal."

"Hmm", murmurou Tomás, cheio de curiosidade de ver as fotografias. "Que sinal é esse?"

"O mesmo sinal que foi encontrado num papel junto aos corpos das duas vítimas." Orlov exibiu enfim as fotografias. "Isto."

As imagens mostravam corpos estendidos no chão e uma folha ao lado das mãos inertes com três dígitos rabiscados a tinta grossa.

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"Seis-seis-seis?"

"Sim. Sabe o que isto é?"

Tomás não conseguia tirar os olhos das fotografias. Fixava os três algarismos desenhados nos papéis ao lado das vítimas com um fascínio incrédulo, não queria ver mas não podia deixar de ver, era como se estivesse hipnotizado, subjugado à tremenda força simbólica daquele medonho sinal.

"O número da Besta."

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