O VIRA–MANTOS

Os primeiros flocos começaram a cair na altura em que o Sol se punha a oeste. Quando a noite caiu nevava tanto que a Lua se ergueu por trás de uma cortina branca, sem ser vista.

— Os deuses do norte libertaram a sua fúria contra o Lorde Stannis — anunciou Roose Bolton ao chegar a manhã, quando os homens se reuniram no Grande Salão de Winterfell para quebrar o jejum. — Aqui é um estranho, e os deuses antigos não toleram que sobreviva.

Os seus homens rugiram em aprovação, esmurrando as longas mesas de tábuas. Winterfell podia estar arruinado, mas as suas paredes de granito continuavam a manter afastado o pior do vento e do mau tempo. Estavam bem abastecidos de comida e bebida; tinham fogos para se aquecerem quando não estavam de serviço, um lugar onde secarem a roupa, cantos aconchegados onde se deitarem e dormirem. O Lorde Bolton preparara lenha em quantidade sufi ciente para manter os fogos alimentados durante meio ano, e por conseguinte o Grande Salão estava sempre morno e acolhedor. Stannis não tinha nada disso.

Theon Greyjoy não se juntou às aclamações. E, como não deixou de reparar, os homens da Casa Frey também não. Eles também são aqui estranhos, pensou, observando Sor Aenys Frey e o seu meio-irmão Sor Hosteen.

Nascidos e criados nas terras fluviais, os Frey nunca tinham visto um nevão como aquele. O norte já reclamou para si três dos do seu sangue, pensou Theon, lembrando-se dos homens que Ramsay procurara infrutiferamente, perdidos entre Porto Branco e a Vila Acidentada.

No estrado, o Lorde Wyman Manderly estava sentado entre dois dos seus cavaleiros de Porto Branco, enfiando na sua gorda cara colheradas de papas. Não parecia estar a gostar tanto, nem de perto nem de longe, como gostara dos empadões de porco da boda. Noutro ponto, o maneta Harwood Stout conversava em voz baixa com o cadavérico Terror-das-Rameiras Umber.

Theon juntou-se à fila dos outros homens que esperavam as papas, as quais eram tiradas às conchadas de panelas de cobre e despejadas em tigelas de madeira. Viu que os senhores e cavaleiros tinham leite e mel e até um pouco de manteiga para adoçar as suas doses, mas nada disso lhe seria oferecido. O seu reinado enquanto Príncipe de Winterfell fora breve. Desempenhara o seu papel naquele espetáculo de saltimbancos, 93

entregando a falsa Arya para ser casada, e agora já não tinha préstimo para Roose Bolton.

— No primeiro inverno de que me lembro, as neves subiram mais alto que a minha cabeça — disse um homem de Boscorno na fi la à sua frente.

— Pois, mas nessa altura só tinhas um metro de altura — replicou um cavaleiro dos Regatos.

Na noite anterior, incapaz de dormir, Theon dera por si a matutar em

fugir, em escapulir-se sem ser visto enquanto Ramsay e o senhor seu pai tinham a atenção posta noutras coisas. Mas todos os portões estavam fechados, trancados e fortemente guardados; a ninguém era permitido entrar ou sair do castelo sem a licença do Lorde Bolton. Mesmo se encontrasse alguma maneira secreta de sair, Theon não teria confiado nela. Não se esquecera de Kyra e das suas chaves. E se saísse, para onde iria? O pai estava morto, e não tinha nenhum préstimo para os tios. Pyke estava perdido para ele. A coisa mais próxima de um lar que lhe restava era ali, entre os ossos de Winterfell.

Um homem arruinado, um castelo arruinado. O meu lugar é este.

Ainda estava à espera das papas quando Ramsay entrou de rompante no salão com os seus Rapazes do Bastardo, a gritar por música. Abel esfregou o sono para longe dos olhos, pegou no alaúde, e atirou-se a “A Mulher do Dornês,” enquanto uma das suas lavadeiras batia o tempo no tambor.

Mas o cantor alterou as palavras. Em vez de provar a mulher de um dornês, cantou sobre provar a filha de um nortenho.

Podia perder a língua por aquilo, pensou Theon enquanto a tigela era enchida. É só um cantor. O Lorde Ramsay podia arrancar-lhe a pele das duas mãos e ninguém diria uma palavra. Mas a letra fez o Lorde Bolton sorrir e Ramsay riu alto. Então os outros ficaram a saber que era seguro rir também.

O Picha Amarela achou a canção tão engraçada que até lhe saiu vinho pelo nariz.

A Senhora Arya não se encontrava presente para participar no divertimento. Não saíra dos seus aposentos desde a noite do casamento. O Alyn Azedo tinha andado a dizer que Ramsay mantinha a noiva nua e acorrentada a uma das colunas da cama, mas Theon sabia que isso era só boato. Não havia correntes, pelo menos não existia nenhuma que os homens pudessem ver. Só um par de guardas à porta do quarto, para evitar que a rapariga deambulasse. E só fica nua quando toma banho.

Isso, contudo, era algo que fazia quase todas as noites. O Lorde Ramsay queria a mulher limpa.

— Não tem aias, coitadinha — dissera ele a Theon. — Restas tu, Cheirete. Achas que te devo vestir com um vestido? — Rira-se. — Talvez se mo suplicares. Por agora, bastará que sejas a sua aia de banhos. Não a quero a cheirar como tu. — Portanto, sempre que Ramsay tinha vontade de se deitar com a mulher, cabia a Theon ir pedir emprestadas umas criadas à Senhora Walda ou à Senhora Dustin, e trazer água quente das cozinhas.

Embora Arya nunca falasse com nenhuma delas, não podiam evitar ver-lhe as nódoas negras. Foi culpa dela. Não o satisfez.

— Limita-te a ser Arya — dissera uma vez à rapariga, enquanto a ajudava a entrar na água. — O Lorde Ramsay não te quer magoar. Ele só nos magoa quando nós… quando nos esquecemos. Nunca me cortou sem motivo.

— Theon… — sussurrara ela, chorando.

— Cheirete. — Agarrara-lhe no braço e sacudira-a. — Aqui sou Cheirete. Tens de te lembrar, Arya. — Mas a rapariga não era uma verdadeira Stark, só a pirralha de um intendente. Jeyne, o nome dela é Jeyne. Não devia procurar salvamento em mim. Theon Greyjoy talvez tivesse tentado

ajudá-la, em tempos. Mas Theon nascera no ferro, e era um homem mais

corajoso do que o Cheirete. Cheirete, Cheirete, rima com tapete.

Ramsay tinha um novo brinquedo para o divertir, um brinquedo com mamas e uma coninha… mas depressa as lágrimas de Jeyne perderiam o sabor, e Ramsay voltaria a querer o seu Cheirete. Vai esfolar-me centímetro a centímetro. Quando ficar sem dedos, cortar-me-á as mãos. Depois dos dedos dos pés, os pés. Mas só quando eu o suplicar, quando a dor for tão insuportável que lhe suplique que me dê algum alívio. Não haveria banhos quentes para o Cheirete. Voltaria a rebolar em merda, proibido de se lavar.

A roupa que usava transformar-se-ia em farrapos, nojentos e fedorentos, e seria obrigado a usá-los até apodrecerem. O melhor que podia esperar era ser devolvido aos canis com as raparigas de Ramsay por companhia. Kyra, recordou. Chama Kyra à cadela nova.

Levou a tigela para o fundo do salão e arranjou lugar num banco vazio, a metros do archote mais próximo. De dia ou de noite, os bancos abaixo do sal nunca estavam menos de meio cheios de homens a beber, a jogar aos dados, a conversar ou a dormir vestidos em cantos sossegados.

Os seus sargentos acordavam-nos ao pontapé quando chegava a sua vez de se voltarem a encolher nos mantos e percorrer as muralhas. Mas nenhum homem entre eles acolheria bem a companhia de Theon Vira-Mantos, e ele

tampouco tinha grande gosto pelas deles.

As papas estavam cinzentas e aguadas, e pô-las de parte depois da terceira colherada, deixando que coagulassem na tigela. Na mesa seguinte, homens estavam a discutir sobre a tempestade interrogando-se em voz alta sobre quanto tempo a neve levaria a cair.

— Todo o dia e toda a noite, e pode ser ainda mais tempo — insistia um arqueiro grande de barba negra com um machado Cerwyn cosido ao peito. Alguns dos homens mais velhos falavam de outros nevões e insistiam que aquilo não passava de uma nevascazinha quando comparada com o que tinham visto nos invernos da juventude. Os homens do rio estavam aterrados. Não têm qualquer gosto pela neve e o frio, estas espadas do sul.

Homens que entravam no salão aninhavam-se junto aos fogos ou batiam palmas por cima de braseiros incandescentes enquanto os mantos pendiam a pingar de cavilhas junto da porta.

O ar estava denso e fumarento e formara-se uma crosta por cima das suas papas quando uma voz de mulher atrás dele disse:

— Theon Greyjoy?

O meu nome é Cheirete, quase respondeu.

— Que queres?

Ela sentou-se a seu lado, a cavalo no banco, e afastou dos olhos uma despenteada madeixa de cabelo castanho-arruivado.

— Porque comeis sozinho, senhor? Vinde, levantai-vos, juntai-vos à dança.

Theon regressou às papas.

— Eu não danço. — O Príncipe de Winterfell fora um dançarino elegante, mas o Cheirete, com os dedos que lhe faltavam, seria grotesco. — Deixa-me em paz. Não tenho dinheiro.

A mulher fez um sorriso torto.

— Tomais-me por uma rameira? — Era uma das lavadeiras do cantor, a alta e escanzelada, demasiado esguia e coriácea para lhe chamarem bonita… se bem que tivesse havido uma altura em que Theon a teria derrubado na mesma, para ver como era ter aquelas longas pernas enroladas à sua volta. — Para que me serve aqui o dinheiro? Que compraria com ele, um bocado de neve? — Ela riu-se. — Podíeis pagar-me com um sorriso. Nunca vos vi sorrir, nem mesmo durante o banquete de casamento da vossa irmã.

— A Senhora Arya não é minha irmã. — E eu não sorrio, podia ter-lhe dito. Ramsay odiava os meus sorrisos, portanto atirou-me um martelo aos dentes. Mal consigo comer. — Nunca foi minha irmã.

— Mas é uma donzela bonita.

Eu nunca fui bela como Sansa, mas todos diziam que era bonita. As palavras de Jeyne pareceram ecoar na sua cabeça, ao ritmo dos tambores que duas das outras raparigas de Abel estavam a tocar. Outra puxara o Walder Pequeno Frey para cima da mesa a fim de lhe ensinar a dançar. Todos os homens se riam.

— Deixa-me em paz — disse Theon.

— Não sou do agrado do senhor? Podia mandar-vos a Myrtle, se quiserdes. Ou a Holly, talvez gostásseis mais dela. Todos os homens gostam da Holly. Elas também não são minhas irmãs, mas são simpáticas. — A mulher aproximou-se mais. O seu hálito cheirava a vinho. — Se não tendes um sorriso para mim, contai-me como capturastes Winterfell. O Abel poria a história numa canção, e vós viveríeis para sempre.

— Como traidor. Como Theon Vira-Mantos.

— E porque não Theon, o Esperto? Foi um feito audaz, segundo ouvimos dizer. Quantos homens tínheis? Uma centena? Cinquenta?

Menos.

— Foi uma loucura.

— Gloriosa loucura. Stannis tem cinco mil, segundo dizem, mas Abel diz que nem dez vezes mais conseguiriam abrir uma brecha nestas muralhas. Portanto como foi que vós entrastes, senhor? Tínheis alguma maneira secreta?

Tinha cordas, pensou Theon. Tinha fateixas. Tinha a escuridão do

meu lado, e a surpresa. O castelo tinha apenas uma guarnição ligeira, e eu apanhei-os desprevenidos. Mas não disse nada disso. Se Abel fi zesse uma canção sobre ele, o mais certo era Ramsay furar-lhe os tímpanos para se assegurar de que nunca a ouviria.

— Podeis confiar em mim, senhor. O Abel confia. — A lavadeira pôs a mão sobre a dele. As mãos de Theon estavam enluvadas em lã e couro. As dela estavam nuas e tinham dedos longos, rudes, com unhas roídas até ao sabugo. — Não chegastes a perguntar-me o nome. É Rowan.

Theon afastou-se bruscamente. Aquilo era um truque, sabia que era.

Foi Ramsay que a enviou. É outra das suas brincadeiras, como a Kyra com as chaves. Uma alegre brincadeira, nada mais. Quer que eu fuja, para poder punir-me.

Apeteceu-lhe bater-lhe, arrancar-lhe aquele sorriso trocista da cara.

Apeteceu-lhe beijá-la, fodê-la ali mesmo na mesa e obrigá-la a gritar o seu nome. Mas sabia que não se atrevia a tocar-lhe, em fúria ou em desejo.

Cheirete, Cheirete, o meu nome é Cheirete. Não posso esquecer o meu nome.

Pôs-se em pé de um salto, e abriu caminho sem uma palavra até às portas, manquejando sobre os pés mutilados.

Lá fora, a neve continuava a cair. Húmida, pesada, silenciosa, já começara a cobrir os passos deixados pelos homens que iam e vinham do salão. Os montes de neve acumulada chegavam-lhe quase ao topo das botas. Na mata de lobos deve estar mais profunda… e na estrada de rei, onde o vento sopra, não haverá forma de lhe fugir. No pátio travava-se uma batalha; Ryswells a fazer chover bolas de neve sobre rapazes de Vila Acidentada.

Lá em cima, viam-se alguns escudeiros a construir bonecos de neve nas ameias. Estavam a armá-los com lanças e escudos, pondo-lhes meios elmos de ferro nas cabeças, e dispondo-os ao longo da muralha interior, uma fi leira de sentinelas de neve.

— O Senhor Inverno juntou-se-nos com os seus recrutas — brincou uma das sentinelas que estava à porta do Grande Salão… até que viu a cara de Theon, e se apercebeu de quem era o homem com quem estava a falar.

Depois virou a cabeça e cuspiu.

Atrás das tendas, os grandes corcéis dos cavaleiros de Porto Branco e das Gémeas tremiam nas suas fi leiras de cavalos. Ramsay queimara os estábulos quando saqueara Winterfell, portanto o pai construíra outros novos duas vezes maiores do que os antigos, para acolher os cavalos de guerra e palafréns dos senhores e cavaleiros seus vassalos. O resto dos cavalos estava amarrado nos pátios. Palafreneiros encapuzados deslocavam-se entre eles, cobrindo-os com mantas para os manterem quentes.

Theon dirigiu-se mais para o interior das partes arruinadas do castelo. Enquanto avançava pela pedra estilhaçada que fora em tempos o torreão do Meistre Luwin, corvos observavam-no do rasgão na parede, mais acima, resmungando uns com os outros. De vez em quando, um lançava um grito roufenho. Parou na entrada de um quarto que em tempos fora seu (enterrado até aos tornozelos em neve que entrara por uma janela partida), visitou as ruínas da forja de Mikken e do septo da Senhora Catelyn.

Sob a Torre Queimada, passou por Rickard Ryswell, que tinha o nariz enterrado no pescoço de outra das lavadeiras de Abel, a rechonchuda com bochechas rosadas e nariz arrebitado. A rapariga estava descalça na neve, envolta num manto de peles. Theon achou que provavelmente estaria nua por baixo. Quando o viu, disse qualquer coisa ao Ryswell que o fez soltar uma gargalhada.

Theon afastou-se pesadamente deles. Havia uma escada atrás dos estábulos, raramente usada; foi para aí que os pés o levaram. Os degraus eram íngremes e traiçoeiros. Subiu com cuidado, e deu por si sozinho nas ameias da muralha interior, bem longe dos escudeiros e dos seus bonecos de neve.

Ninguém lhe dera liberdade de castelo, mas também ninguém lhe negara.

Podia ir onde quisesse, dentro das muralhas.

A muralha interior de Winterfell era a mais antiga e a mais alta das duas, e as suas antigas ameias cinzentas erguiam-se a uma altura de trinta metros, com torres quadradas em cada canto. A muralha exterior, erguida muitos séculos mais tarde, era seis metros mais baixa, mas era mais espessa e estava em melhor estado, ostentando torres octogonais em vez de quadradas. Entre as duas muralhas ficava o fosso, profundo e largo… e gelado.

Montes de neve tinham começado a avançar pela superfície gelada. Neve também se acumulava ao longo das ameias, enchendo os intervalos entre os merlões e pondo suaves coruchéus brancos no topo de todas as torres.

Para lá das muralhas, até tão longe quanto a vista alcançava, o mundo estava a ficar branco. Os bosques, os campos, a estrada de rei — as neves estavam a cobri-los a todos sob um suave manto branco, enterrando os restos da vila de inverno, escondendo as paredes enegrecidas que os homens de Ramsay tinham deixado para trás quando passaram as casas pelo archote.

As feridas que o Snow fez, a neve esconde, mas isso não estava certo. Ramsay era agora um Bolton, não um Snow, nunca um Snow.

Mais longe, a estrada sulcada desaparecera, perdida entre os campos e colinas onduladas, tudo uma vasta extensão branca. E a neve continuava a cair, pairando em silêncio de um céu sem vento. Stannis Baratheon está algures por ali, gelando. Iria o Lorde Stannis tentar tomar Winterfell de assalto? Se o fizer, a sua causa está condenada. O castelo era forte demais.

Mesmo com o fosso coberto de gelo, as defesas de Winterfell continuavam a ser formidáveis. Theon capturara o castelo pela calada, mandando os seus melhores homens escalar as muralhas e atravessar o fosso a nado a coberto da escuridão. Os defensores nem sequer se tinham apercebido de que estavam sob ataque até ser tarde demais. Nenhum subterfúgio semelhante era possível para Stannis.

Ele talvez preferisse isolar o castelo do mundo exterior e vencer os defensores pela fome. Os armazéns e as adegas de Winterfell estavam vazios.

Uma longa coluna logística tinha atravessado o Gargalo com Bolton e os seus amigos de Frey, a Senhora Dustin trouxera de Vila Acidentada comida e rações para os animais, e o Lorde Manderly chegara bem aprovisionado de Porto Branco… mas a hoste era grande. Com tantas bocas para alimentar, as suas reservas não podiam durar muito tempo. Mas o Lorde Stannis e os seus amigos deverão estar igualmente esfomeados. E também com frio e com bolhas nos pés, nada em condições para um combate… se bem que a tempestade os vá deixar desesperados para entrarem no castelo.

A neve também estava a cair no bosque sagrado, derretendo quando tocava no chão. Sob as árvores cobertas de branco a terra transformara-se em lama. Gavinhas de névoa pairavam no ar como fitas fantasmagóricas.

Porque foi que vim cá? Estes não são os meus deuses. Este lugar não é meu.

A árvore coração estava na frente dele, um pálido gigante com uma cara esculpida e folhas que eram como mãos sangrentas.

Uma fi na película de gelo cobria a superfície da lagoa sob o represeiro. Theon caiu sobre os joelhos a seu lado.

— Por favor — murmurou por entre os dentes quebrados — eu nunca quis… — As palavras prenderam-se-lhe na garganta. — Salvai-me — conseguiu por fim dizer. — Dai-me… — O quê? Força? Coragem? Misericórdia? A neve caía à sua volta, pálida e silenciosa, guardando os conselhos para si. O único som era um ténue e suave soluçar. Jeyne, pensou. É ela, a soluçar na sua cama de noiva. Quem mais poderá ser? Os deuses não choravam. Ou chorarão?

O som era demasiado doloroso para suportar. Theon agarrou um

ramo e puxou-se até se pôr em pé, sacudiu a neve das pernas e regressou a coxear na direção das luzes. Há fantasmas em Winterfell, pensou, e eu sou um deles.

Mais bonecos de neve tinham crescido no pátio quando Theon

Greyjoy regressou. Para comandar as sentinelas nevadas nas muralhas, os escudeiros tinham erguido uma dúzia de senhores nevados. Um pretendia claramente ser o Lorde Manderly; era o boneco de neve mais gordo que Theon vira na vida. O senhor maneta só podia ser Harwood Stout, a senhora de neve Barbrey Dustin. E aquele que estava mais perto da porta, com a barba feita de pingentes, tinha de ser o Terror-das-Rameiras Umber.

Lá dentro, os cozinheiros estavam a servir estufado de carne de vaca e cevada, cheio de cenouras e cebolas, em trinchos abertos em pães do dia anterior. Eram atirados bocados para o chão, que eram devorados pelas raparigas de Ramsay e pelos outros cães.

As raparigas mostraram-se felizes por vê-lo. Conheciam-no pelo cheiro. A Jeyne Vermelha aproximou-se aos saltos e lambeu-lhe a mão, e Helicent enfi ou-se debaixo da mesa e enrolou-se aos seus pés, roendo um osso. Eram bons cães. Era fácil esquecer que cada um recebera o nome de uma rapariga que Ramsay caçara e matara.

Fatigado como estava, Theon tinha apetite sufi ciente para comer um pouco de estufado, empurrado para baixo com cerveja. Por essa altura já o salão se enchera de vozes roufenhas. Dois dos batedores de Roose Bolton tinham regressado pelo Portão do Caçador para relatar que o avanço do Lorde Stannis abrandara até quase parar. Os seus cavaleiros montavam corcéis de batalha, e os grandes cavalos afundavam-se na neve. Os pequenos garranos de patas seguras dos clãs da montanha estavam a portar-se melhor, segundo os batedores, mas os homens dos clãs não se atreviam a avançar demasiado para evitar que a hoste se desfizesse. O Lorde Ramsay ordenou a Abel para lhes cantar uma canção de marcha em honra da difícil caminhada de Stannis pelas neves, de modo que o bardo voltou a pegar no alaúde, enquanto uma das suas lavadeiras convenceu o Alyn Azedo a emprestar-lhe uma espada e imitou Stannis a atirar espadeiradas aos flocos de neve.

Theon estava a fitar os últimos restos da terceira caneca quando a Senhora Barbrey Dustin entrou de rompante no salão e ordenou a dois dos homens a si ajuramentados que o levassem até ela. Quando parou abaixo do estrado, ela olhou-o de cima a baixo e soltou uma fungadela.

— Essa é a mesma roupa que usastes no casamento.

— Sim, senhora. É a roupa que me foi dada. — Essa era uma das lições que aprendera no Forte do Pavor: aceitar o que lhe era dado, e nunca pedir mais.

A Senhora Dustin vestia de negro, como sempre, embora as mangas estivessem forradas de veiro. O vestido tinha um colarinho alto e rígido que lhe enquadrava a cara.

— Vós conheceis este castelo.

— Conheci em tempos.

— Algures por baixo de nós encontram-se as criptas onde os velhos reis Stark estão sentados nas trevas. Os meus homens não foram capazes de encontrar a entrada. Percorreram todas as galerias e caves, andaram mesmo nas masmorras, mas…

— Não é possível aceder às criptas a partir das masmorras, senhora.

— Podeis mostrar-me o caminho até lá abaixo?

— Lá não há nada a não ser…

— Starks mortos? Pois. E calha que todos os meus Starks preferidos estão mortos. Conheceis o caminho ou não?

— Conheço. — Não gostava das criptas, nunca gostara das criptas, mas não lhe eram estranhas.

— Mostrai-me. Sargento, vai buscar uma lanterna.

— A senhora vai querer um manto quente — acautelou Theon. — Vamos precisar de ir ao exterior.

O nevão estava mais forte do que nunca quando saíram do salão, com a Senhora Dustin envolta em zibelina. Aconchegados nos seus mantos com capuz, os guardas lá fora eram quase indistinguíveis dos bonecos de neve. Só os seus hálitos a carregar o ar de neblina eram prova de que ainda estavam vivos. Ardiam fogueiras ao longo das ameias, uma vã tentativa de afastar as sombras. O pequeno grupo que eles constituíam deu por si a avançar penosamente por uma extensão lisa e virgem de brancura que lhes subia até meio das pernas. As tendas no pátio estavam meio enterradas, ajoujadas sob o peso da neve acumulada.

A entrada das criptas ficava na secção mais antiga do castelo, perto da base da Primeira Torre, a qual não era usada há centenas de anos. Ramsay passara-a pelo archote quando saqueara Winterfell, e muito daquilo que não ardera ruíra. Só restava uma casca, com um lado aberto aos elementos e a encher-se de neve. Havia entulho por todo o lado; grandes bocados de pedra quebrada, vigas queimadas, gárgulas partidas. A neve caída cobrira quase tudo, mas parte de uma gárgula ainda se projetava da superfície da neve, com um rosto grotesco que rosnava cegamente ao céu.

Foi ali que encontraram Bran quando caiu. Theon andara à caça nesse

dia, cavalgando com o Lorde Eddard e o Rei Robert, sem qualquer indício das terríveis notícias que os aguardavam quando regressaram ao castelo.

Lembrou-se da cara de Robb quando lhe contaram. Ninguém esperara que o rapaz quebrado sobrevivesse. Os deuses não conseguiram matar Bran, tal como eu não consegui. Era um estranho pensamento, e era ainda mais estranho lembrar-se que Bran podia ainda estar vivo.

— Ali. — Theon apontou para o local onde um monte de neve começara a subir a parede da fortaleza. — Debaixo daquilo. Cuidado com as pedras partidas.

Os homens da Senhora Dustin precisaram da maior parte de meia hora para destapar a entrada, cavando a neve e afastando entulho. Quando o fi zeram, a porta estava trancada com gelo. O sargento teve de ir à procura de um machado antes de conseguir abri-la, com as dobradiças a gritar, revelando degraus de pedra que desciam em espiral para as trevas.

— É uma longa descida, senhora — acautelou Theon.

A Senhora Dustin não se deixou demover.

— Beron, a luz.

O caminho era estreito e íngreme, o centro dos degraus estava gasto por séculos de pés. Seguiram em fila única; o sargento com a lanterna, depois Theon e a Senhora Dustin, e o outro homem atrás deles. Theon sempre

pensara nas criptas como um lugar frio, e pareciam sê-lo no verão, mas agora, à medida que desciam, o ar foi-se tornando mais quente. Não quente, nunca quente, mas mais quente do que lá em cima. Cá em baixo, no subsolo, segundo parecia, o frio era constante, imutável.

— A noiva chora — disse a Senhora Dustin enquanto desciam, um degrau cuidadoso após outro. — A nossa pequena Senhora Arya.

Agora tem cuidado. Tem cuidado, tem cuidado. Pôs uma mão na parede. A luz mutável do archote fazia com que os degraus parecessem mexer-se sob os seus pés.

— É… é como dizeis, senhora.

— Roose não está contente. Dizei isso ao vosso bastardo.

Ele não é o meu bastardo, quis dizer, mas outra voz dentro dele disse: Mas é, mas é. O Cheirete pertence a Ramsay e Ramsay pertence ao Cheirete.

Não te podes esquecer do teu nome.

— Vesti-la de cinzento e branco não serve de nada se a rapariga for posta a soluçar. Os Frey podem não se importar, mas os nortenhos… temem o Forte do Pavor, mas amam os Stark.

— Vós não — disse Theon.

— Eu não — confessou a Senhora de Vila Acidentada — mas os outros sim. O velho Terror-das-Rameiras só aqui está porque os Frey têm o Grande-Jon cativo. E imaginais que os homens de Boscorno esqueceram o último casamento do Bastardo, e o modo como a sua senhora foi deixada à fome, a roer os próprios dedos? Que julgais que lhes passa pelas cabeças quando ouvem a nova esposa chorar? A preciosa rapariguinha do valente Ned?

Não, pensou. Ela não é do sangue do Lorde Eddard, o seu nome é Jeyne, é só filha de um intendente. Não duvidava de que a Senhora Dustin suspeitava, mas mesmo assim…

— Os soluços da Senhora Arya causam-nos mais dano do que todas as espadas e lanças do Lorde Stannis. Se o Bastardo quiser permanecer como Senhor de Winterfell, é melhor que ensine a esposa a rir.

— Senhora — interrompeu Theon. — Chegámos.

— A escada continua a descer — observou a Senhora Dustin.

— Há andares inferiores. Mais antigos. O mais profundo ruiu parcialmente, segundo ouvi dizer. Nunca estive lá em baixo. — Abriu a porta com um empurrão e levou-os para um longo túnel abobadado, onde poderosos pilares de granito marchavam dois a dois negrume adentro.

O sargento da Senhora Dustin ergueu a lanterna. Sombras deslizaram e alteraram-se. Uma pequena luz numa grande escuridão. Theon nunca

se sentira confortável nas criptas. Conseguia sentir os reis de pedra a fitá-lo com os seus olhos de pedra, os dedos de pedra enrolados nos cabos de espadas ferrugentas. Nenhum deles sentia qualquer apreço por nascidos no ferro. Uma sensação familiar de terror encheu-o.

— Tantos — disse a Senhora Dustin. — Sabeis os seus nomes?

— Soube em tempos… mas foi há muito tempo. — Theon apontou.

— Os deste lado foram Reis no Norte. Torrhen foi o último.

— O Rei Que Ajoelhou.

— Sim, senhora. Depois dele eram só senhores.

— Até ao Jovem Lobo. Onde está a tumba de Ned Stark?

— No fim. Por aqui, senhora.

Os passos do grupo ecoaram na abóbada quando avançaram entre as fileiras de pilares. Os olhos de pedra dos mortos pareceram segui-los, e os olhos dos seus lobos gigantes de pedra também. As caras despertaram ténues recordações. Alguns nomes voltaram-lhe à memória, de moto próprio, sussurrados na voz fantasmagórica do Meistre Luwin. O Rei Edrick Barba-de-Neve, que governara o Norte durante cem anos. Brandon, o Construtor Naval, que velejara para lá do sol-posto. Theon Stark, o Lobo Faminto.

O meu homónimo. O Lorde Beron Stark, que fi zera causa comum com o Rochedo Casterly para guerrear contra Dagon Greyjoy, Senhor de Pyke, nos dias em que os Sete Reinos eram governados em tudo menos no nome pelo feiticeiro bastardo a que os homens chamavam Corvo de Sangue.

— Aquele rei não tem a espada — observou a Senhora Dustin.

Era verdade. Theon não se lembrava de qual era o rei, mas a espada que devia ter na mão desaparecera. Riscos de ferrugem permaneciam para mostrar onde ela estivera. A cena inquietou-o. Sempre ouvira dizer que o ferro que havia na espada mantinha os espíritos dos mortos fechados no interior das suas tumbas. Se uma espada desaparecera…

Há fantasmas em Winterfell. E eu sou um deles.

Continuaram a caminhar. A cara de Barbrey Dustin parecia endurecer a cada passo. Ela não gosta mais deste lugar do que eu. Theon ouviu-se a dizer:

— Senhora, porque odiais os Stark?

Ela estudou-o.

— Pelo mesmo motivo porque vós os amais.

Theon tropeçou.

— Amá-los? Eu nunca… eu tomei este castelo das mãos deles, senhora. Mandei… mandei executar Bran e Rickon, montei as cabeças deles em espigões, eu…

— … cavalgastes para sul com Robb Stark, combatestes a seu lado no Bosque dos Murmúrios e em Correrrio, regressastes às Ilhas de Ferro como seu emissário para negociar com o vosso próprio pai. Vila Acidentada também enviou homens com o Jovem Lobo. Dei-lhe o mínimo de homens que me atrevi a dar, mas sabia que tinha de lhe dar alguns para não arriscar ser alvo da ira de Winterfell. Portanto tinha os meus olhos e ouvidos nessa hoste. Mantinham-me bem informada. Eu sei o que sois. Agora respondei à minha pergunta. Porque amais os Stark?

— Eu… — Theon apoiou uma mão enluvada a um pilar. — … eu queria ser um deles…

— E nunca pudestes sê-lo. Temos mais em comum do que julgais, senhor. Mas vinde.

Só um pouco mais à frente, três sepulturas estavam agrupadas muito juntas. Foi aí que pararam.

— O Lorde Rickard — observou a Senhora Dustin, estudando a figu-ra central. A estátua erguia-se acima deles; de cara longa, barbuda, solene.

Tinha os mesmos olhos de pedra dos outros, mas os dele pareciam tristes.

— Também lhe falta uma espada.

Era verdade.

— Alguém esteve cá em baixo a roubar espadas. A de Brandon também desapareceu.

— Ele odiaria isso. — Ela descalçou a luva e tocou o joelho da estátua, pele pálida contra pedra escura. — O Brandon amava a sua espada. Adorava amolá-la. “Quero-a sufi cientemente afi ada para rapar os pintelhos de uma mulher,” costumava ele dizer. E como adorava usá-la. “Uma espada ensanguentada é uma coisa linda,” disse-me ele uma vez.

— Conhecíei-lo — disse Theon.

A luz da lanterna nos olhos dela fez com que parecessem estar em fogo.

— O Brandon foi criado em Vila Acidentada com o velho Lorde Dustin, o pai daquele com que me casei mais tarde, mas passou a maior parte do tempo a cavalgar pelos Regatos. Adorava cavalgar. Nisso, a irmã mais nova saiu a ele. Um par de centauros, aqueles dois. E o senhor meu pai ficava sempre feliz por fazer de anfi trião do herdeiro de Winterfell. O

meu pai tinha grandes ambições para a Casa Ryswell. Teria entregado a minha virgindade a qualquer Stark que passasse por lá, mas não houve necessidade. O Brandon nunca se coibiu de tomar o que queria. Agora sou velha, uma coisa seca, viúva há tempo a mais, mas ainda me lembro do meu sangue de donzela na picha dele na noite em que me possuiu.

Acho que Brandon também gostou da cena. Uma espada ensanguentada é uma coisa linda, pois. Doeu, mas foi uma doce dor. Mas no dia em que soube que Brandon ia casar com Catelyn Tully… não houve nada de doce nessa dor. Ele nunca a quis, garanto-vos. Disse-me isso mesmo na última noite que passámos juntos… mas Rickard Stark também tinha grandes ambições. Ambições meridionais, que não seriam promovidas se o seu herdeiro se casasse com a filha de um dos seus vassalos. Depois disso, o meu pai nutriu alguma esperança de me casar com o irmão de Brandon, Eddard, mas Catelyn Tully também fi cou com esse. Restou-me o jovem Lorde Dustin, até Ned Stark mo tirar.

— A rebelião de Robert…

— Eu e o Lorde Dustin ainda não estávamos casados há meio ano quando Robert se revoltou e Ned Stark convocou os vassalos. Supliquei ao meu marido para não ir. Tinha familiares que podia enviar em seu lugar.

Um tio afamado pela sua perícia com um machado, um tio-avô que combatera na Guerra dos Reis dos Nove Dinheiros. Mas ele era um homem e estava cheio de orgulho, nada serviria a menos que liderasse pessoalmente os recrutas de Vila Acidentada. Dei-lhe um cavalo no dia em que partiu, um garanhão vermelho com uma crina fogosa, o orgulho das manadas do senhor meu pai. O meu senhor jurou que voltaria para casa a cavalo nele quando a guerra chegasse ao fim. O Ned Stark devolveu-me o cavalo quando aqui parou de regresso a Winterfell. Disse-me que o meu senhor tinha tido uma morte honrosa, que o seu corpo fora deixado em repouso à sombra das montanhas vermelhas de Dorne. Mas trouxe os ossos da irmã para norte, e ali jaz ela… mas garanto-vos, os ossos do Lorde Eddard nunca repousarão ao lado dos dela. Pretendo dá-los aos meus cães para os roerem.

Theon não compreendeu.

— Os… os ossos dele…?

Os lábios dela torceram-se. Foi um sorriso feio, um sorriso que lhe fez lembrar os de Ramsay.

— Catelyn Tully enviou os ossos de Eddard Stark para norte antes do Casamento Vermelho, mas o vosso tio de ferro capturou o Fosso Cailin e fechou o caminho. Tenho estado de atalaia desde então. Se esses ossos alguma vez saírem dos pântanos, não irão mais longe do que Vila Acidentada. — Atirou um último olhar demorado ao retrato de Eddard Stark. — Já fizemos aqui o que viemos fazer.

A tempestade de neve continuava em plena fúria quando saíram das criptas. A Senhora Dustin manteve-se em silêncio durante a subida, mas quando voltaram a parar à sombra das ruínas da Primeira Torre, estremeceu e disse:

— Faríeis bem em não repetir nada do que eu posso ter dito lá em baixo. Está entendido?

Estava.

— Dominar a língua ou perdê-la.

— O Roose treinou-vos bem. — E deixou-o ali.


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