TYRION


O curandeiro entrou na tenda a murmurar palavras de circunstância, mas uma baforada do ar nauseabundo e um olhar a Yezzan zo Qaggaz puseram fim a isso.

— A égua branca — disse o homem a Doces.

Que surpresa, pensou Tyrion. Quem teria adivinhado? Além de qual­quer homem com nariz, ou de mim com metade. Yezzan ardia de febre, contorcendo-se de vez em quando num charco dos próprios excrementos. A caca dele transformara-se num lodo castanho manchado de sangue... e cabia a Yollo e a Centava limpar o seu traseiro amarelo. Mesmo com ajuda, o amo de Tyrion era incapaz de levantar o seu peso; precisava de todas as suas forças em declínio para rolar sobre um lado.

— As minhas artes não servirão aqui — anunciou o curandeiro. — A vida do nobre Yezzan está nas mãos dos deuses. Mantende-o fresco, se puderdes. Há quem diga que isso ajuda. Trazei-lhe água. — Os atacados pela égua branca estavam sempre com sede, bebendo galões de água entre cagadelas. — Água limpa e fresca, tanta quanta ele queira beber.

— Água do rio não — disse Doces.

— De modo algum. — E com aquelas palavras, o curandeiro fugiu.

Nós também temos de fugir, pensou Tyrion. Era um escravo com um

colarinho dourado, provido de pequenas campainhas que tiniam alegre­mente a cada passo que dava. Um dos tesouros especiais de Yezzan. Uma honra indistinguível de uma condenação à morte. Yezzan zo Qaggaz gostava de manter os seus queridinhos por perto, portanto coubera a Yollo, Centa­va, Doces e aos outros tesouros servi-lo quando adoecera.

Pobre velho Yezzan. O senhor do sebo não era assim tão mau enquan­to amo. Doces tivera razão quanto a isso. Servindo nos seus banquetes no­turnos, Tyrion depressa ficara a saber que Yezzan era um dos principais lordes yunkaitas favoráveis à ideia de honrar o acordo de paz com Meereen. A maior parte dos outros estava só a ganhar tempo, à espera da chegada dos exércitos de Volantis. Alguns queriam assaltar imediatamente a cidade, para evitar que os volantenos lhes roubassem a glória e a melhor parte do saque. Yezzan não queria participar em tal coisa. E também não consentia em devolver os reféns de Meereen através de trabucos, como o mercenário Barba Sangrenta propusera.

Mas é mais do que muito o que pode mudar em dois dias. Dois dias antes, Amasseca estivera vigoroso e saudável. Dois dias antes, Yezzan não ouvia os cascos fantasmagóricos da égua branca. Dois dias antes, as frotas de Velha Volantis estavam dois dias mais longe. E agora...

— Yezzan vai morrer? — perguntou Centava, naquela sua voz de por-favor-diz-que-não-é-verdade.

— Todos nós vamos morrer.

— Da fluxão, quero eu dizer.

Doces dirigiu a ambos um olhar desesperado.

— Yezzan não pode morrer. — O hermafrodita afagou a testa do seu gargantuesco amo, puxando para trás o cabelo húmido de suor. O yunkaita gemeu, e outra inundação de água castanha jorrou-lhe pelas pernas abaixo. A roupa da cama estava manchada e fedia, mas não tinham maneira de o deslocar.

— Há amos que libertam os escravos quando morrem — disse Cen­tava.

Doces soltou um risinho abafado. Era um som sinistro.

— Só os favoritos. Libertam-nos das angústias do mundo, para acom­panharem o seu querido amo para a sepultura e servirem-no no além.

O Doces há de saber. A dele será a primeira garganta a ser cortada.

O rapaz-cabra interveio.

— A rainha prateada...

— ... está morta — insistiu Doces. — Esquece-a! O dragão levou-a para o outro lado do rio. Afogou-se no tal mar dothraki.

— Não nos podemos afogar em erva — disse o rapaz-cabra.

— Se fôssemos livres — disse Centava — podíamos encontrar a rai­nha. Ou pelo menos ir à procura dela.

Tu montada no teu cão e eu fia minha porca, a perseguir um dragão pelo mar dothraki. Tyrion coçou a cicatriz para evitar rir-se.

— Este dragão em particular já demonstrou gosto por porco assado. E anão assado é duplamente saboroso.

— Era só um desejo — disse Centava, com um ar melancólico. — Podíamos ir embora por mar. Voltou a haver navios, agora que a guerra acabou.

Acabou? Tyrion sentia-se inclinado a duvidar disso. Pergaminhos tinham sido assinados, mas as guerras não eram travadas com pergami­nhos.

— Podíamos viajar para Qarth — prosseguiu Centava. — O meu ir­mão sempre disse que as ruas lá são pavimentadas com jade. As muralhas da cidade são uma das maravilhas do mundo. Quando atuarmos em Qarth, ouro e prata choverão sobre nós, vais ver.

— Alguns daqueles navios que estão na baía são qartenos — fez-lhe

Tyrion lembrar. — Lomas Longstrider viu as muralhas de Qarth. Os livros dele chegam-me. Já fui tanto para leste quanto pretendo ir.

Doces deu pancadinhas na cara febril de Yezzan com um pano hú­mido.

— Yezzan tem de sobreviver. Senão morreremos todos com ele. A égua branca não leva todos os que a montam. O amo vai recuperar.

Aquilo era uma mentira descarada. Seria espantoso se Yezzan vivesse mais um dia. A Tyrion parecia que o senhor do sebo já estava a morrer da hedionda doença que trouxera de Sothoryos, fosse ela qual fosse. Aquilo só iria apressar-lhe o fim. Uma misericórdia, na verdade. Mas não o tipo de misericórdia que o anão desejava para si.

— O curandeiro disse que ele precisa de água fresca. Nós tratamos

disso.

— Isso é bom da vossa parte. — Doces parecia estar num estado de entorpecimento. Era mais do que simples medo de lhe ser cortada a gargan­ta; ao contrário dos restantes tesouros de Yezzan, parecia realmente gostar do seu imenso amo.

— Centava, vem comigo. — Tyrion abriu a aba da tenda e empurrou-a para fora, para o calor de uma manhã meereenesa. O ar estava sufocante e opressivo, mas mesmo assim era um bem-vindo alívio do miasma de suor, caca e doença que enchia o interior do pavilhão palaciano de Yezzan.

— Água vai ajudar o amo — disse Centava. — Foi isso que o curan­deiro disse, deve ser verdade. Água fresca e doce.

— Água fresca e doce não ajudou o Amasseca. — Pobre velho Arnasseca. Os soldados de Yezzan tinham-no atirado para a carroça dos cadá­veres ao crepúsculo anterior, outra vítima da égua branca. Quando há ho­mens a morrer hora a hora, ninguém olha com muita atenção para mais um morto, em especial se é tão desprezado como o Amasseca. Os outros escravos de Yezzan tinham-se recusado a aproximar-se do capataz depois de começarem as cãibras, portanto coubera a Tyrion mantê-lo quente e levar-lhe bebida. Vinho aguado e limonada e uma bela sopa quente de rabo de cão, com fatias de cogumelo no caldo. Bebe tudo, Amassecazinha, que essa água de merda que te jorra do traseiro tem de ser substituída. A última pala­vra que o Amasseca dissera fora:

— Não.

As últimas palavras que ouvira tinham sido:

— Um Lannister paga sempre as suas dívidas.

Tyrion ocultara de Centava a verdade sobre aquilo, mas ela precisava de compreender como funcionavam as coisas com o amo.

— Se Yezzan sobreviver para ver o Sol nascer, eu fico de boca aberta.

Ela agarrou-lhe o braço.

— Que nos vai acontecer?

— Ele tem herdeiros. Sobrinhos. — Tinham vindo quatro com Yezzan de Yunkai, para comandar os seus soldados escravos. Um estava mor­to, abatido por mercenários Targaryen durante uma surtida. Os outros três, provavelmente, dividiriam entre si os escravos da enormidade amarela. Era muito menos seguro que algum dos sobrinhos partilhasse do gosto de Yezzan por aleijados, anormais e deformados. — Um deles talvez nos herde. Ou podemos acabar outra vez no leilão.

— Não. — Os olhos esbugalharam-se-lhe. — Isso não. Por favor.

— Também não é ideia que me atraia.

Alguns metros mais à frente, seis dos soldados escravos de Yezzan estavam acocorados na poeira, a atirar ossos e a passar um odre de vinho de mão em mão. Um era o sargento chamado Cicatriz, um brutamontes de mau temperamento com uma cabeça lisa como pedra e os ombros de um touro. E também é esperto como um touro, recordou Tyrion.

Bamboleou-se na direção deles.

— Cicatriz — ladrou — o nobre Yezzan precisa de água fresca e lim­pa. Leva dois homens e traz todos os baldes que consigam carregar. E despacha-te.

Os soldados interromperam o jogo. Cicatriz pôs-se em pé, com a tes­ta a franzir-se.

— Que foi que tu disseste, anão? Quem julgas tu que és?

— Sabes quem sou. Yollo. Um dos tesouros do teu amo. Agora faz o que te disse.

Os soldados riram-se.

— Vai lá, Cicatriz — troçou um — e despacha-te. O macaco de Ye­zzan deu-te uma ordem.

— Tu não dizes a soldados o que fazer — disse o Cicatriz.

— Soldados? — Tyrion fingiu confusão. — O que eu vejo são escra­vos. Usas uma coleira em volta do pescoço, tal como eu.

O violento estalo que Cicatriz lhe deu atirou-o ao chão e fendeu-lhe o lábio.

— A coleira é de Yezzan. Não é tua.

Tyrion limpou o sangue do lábio rachado com as costas da mão. Quando tentou levantar-se, uma perna cedeu debaixo de si e voltou a cair de joelhos. Precisou da ajuda de Centava para voltar a pôr-se em pé.

— O Doces disse que o amo tinha de beber água — disse, na sua melhor lamúria.

— O Doces pode ir foder-se. Foi feito para isso. Também não recebe­mos ordens desse anormal.

Pois não, pensou Tyrion. Mesmo entre escravos havia senhores e camponeses, como depressa aprendera. O hermafrodita era há muito o ani­mal de estimação do amo, estragado com mimos e favorecido, e os outros escravos do nobre Yezzan odiavam-no por isso.

Os soldados estavam habituados a receber ordens dos amos e dos capatazes. Mas o Amasseca estava morto, e Yezzan encontrava-se dema­siado doente para nomear um sucessor. E quanto aos três sobrinhos, esses corajosos homens livres haviam-se lembrado de assuntos urgentes longe dali assim que tinham começado a soar os cascos da égua branca.

— A á-água — disse Tyrion, com servilismo. — Água do rio não, disse o curandeiro. Água limpa e doce, do poço.

Cicatriz soltou um grunhido.

— Ide vós buscá-la. E despachai-vos.

— Nós? — Tyrion trocou um olhar impotente com Centava. — A água é pesada. Nós não somos tão fortes como vós. Podemos... podemos levar a carroça das mulas?

— Levai as vossas pernas.

— Teremos de fazer uma dúzia de viagens.

— Fazei uma centena de viagens. Estou-me a cagar.

— Só nós dois... não conseguiremos carregar toda a água de que o amo precisa.

— Leva o teu urso — sugeriu o Cicatriz. — Não presta para mais nada além de carregar água.

Tyrion recuou.

— É como dizeis, amo.

O Cicatriz sorriu. Amo. Oh, ele gostou disto.

— Morgo, traz as chaves. E tu enche os baldes e volta logo, anão. Sa­bes o que acontece a escravos que tentam fugir.

— Traz os baldes — disse Tyrion a Centava. Foi com o tal Morgo tirar Sor Jorah Mormont da sua jaula.

O cavaleiro não se adaptara bem à escravidão. Quando era chamado para fazer de urso e levar a bela donzela, mostrara-se carrancudo e pouco cooperante, arrastando-se sem vida pelo que tinha de fazer nas ocasiões em que sequer se dignava participar no espetáculo. Apesar de não ter tentado escapar nem respondido com violência aos seus captores, era mais frequen­te ignorar as ordens, ou responder com pragas resmungadas, do que obedecer-lhes. Nada disso deixara o Amasseca divertido, o qual tornara claro o seu desagrado confinando Mormont a uma jaula de ferro e mandando espancá-lo todas as noites quando o Sol se afundava na Baía dos Escravos. O cavaleiro absorvia os espancamentos em silêncio; os únicos sons eram as pragas resmungadas dos escravos que o espancavam e as batidas surdas das mocas contra a pele pisada e maltratada de Sor Jorah.

O homem é uma casca, pensou Tyrion, da primeira vez que viu o grande cavaleiro a ser espancado. Devia ter controlado a língua e deixado que Zahrina ficasse com ele. Podia ter sido um destino mais suave do que este.

Mormont saiu do acanhado confinamento da jaula dobrado e a olhar de viés, com os olhos negros e as costas cobertas com uma crosta de sangue seco. Tinha a cara tão pisada e inchada que mal parecia humano. Estava nu, à exceção de uma tanga, um bocado imundo de trapo amarelo.

— Vais ajudar a carregar água — disse-lhe Morgo.

A única resposta de Sor Jorah foi um olhar carrancudo. Há homens que prefeririam morrer livres a viver como escravos, suponho. O próprio Tyrion não fora atacado por tal enfermidade, felizmente, mas se Mormont assassinasse Morgo, os outros escravos talvez não fizessem essa distinção.

— Vinde — disse, antes de o cavaleiro fazer alguma coisa corajosa e estúpida. Afastou-se a bambolear-se, na esperança de que Mormont o se­guisse.

Os deuses foram bons, para variar. Mormont seguiu-o.

Dois baldes para Centava, dois para Tyrion e quatro para Sor Jorah, dois em cada mão. O poço mais próximo ficava a sul e a oeste da Prostitu­ta, pelo que partiram nessa direção, fazendo cantar alegremente as cam­painhas nas suas coleiras a cada passo. Ninguém lhes prestou a mínima atenção. Eram apenas escravos a ir buscar água para o seu amo. Usar uma coleira conferia certas vantagens, em particular se se tratasse de uma coleira dourada com o nome de Yezzan zo Qaggaz nela escrito. O tinir daquelas pequenas campainhas proclamava o seu valor perante qualquer um que ti­vesse ouvidos. Um escravo tinha apenas a importância do seu amo; Yezzan era o homem mais rico da Cidade Amarela, e trouxera seiscentos solda­dos escravos para a guerra, mesmo que se parecesse com uma monstruosa lesma amarela e cheirasse a mijo. As coleiras davam-lhes autorização para irem onde desejassem no interior do acampamento.

Até que Yezzan morra.

Os Senhores dos Tinidos tinham os seus soldados escravos a treinar no campo de treinos mais próximo. O tinir das correntes que os prendiam fazia uma desagradável música metálica enquanto marchavam pela areia em passo acertado e formavam com as suas longas lanças. Noutro local, equipas de soldados estavam a erguer rampas de pedra e areia por baixo das manganelas e balistas, inclinando-as para cima, para o céu, a fim de melhor defenderem o acampamento no caso de o dragão negro regressar. Vê-los a suar e a praguejar enquanto empurravam as pesadas máquinas para as rampas fez o anão sorrir. Viam-se também muitas bestas. Um em cada dois homens parecia ter uma nas mãos, com uma aljava cheia de dardos pendu­rada da anca.

Se alguém se tivesse lembrado de lhe perguntar, Tyrion podia ter-lhes dito para não se incomodarem com aquilo. A menos que algum daqueles longos dardos de ferro das balistas calhasse acertar num olho, não era pro­vável que o monstro de estimação da rainha fosse abatido por tais brinque­dos. Os dragões não são assim tão fáceis de matar. Se lhe fizerdes cócegas com isso, só o ireis deixar zangado.

Era nos olhos que um dragão era mais vulnerável. Nos olhos e no cérebro por trás deles. Não no baixo-ventre, como certas velhas lendas di­ziam. As escamas eram aí precisamente tão duras como as do dorso e flan­cos de um dragão. E pela garganta abaixo também não. Isso era uma lou­cura. Aqueles aspirantes a matadores de dragões, já agora, também podiam tentar apagar um incêndio com uma estocada de lança. "A morte sai pela boca de um dragão," escrevera o Septão Barth na sua História Não-Natural, "mas a morte não entra por aí."

Mais à frente, duas legiões de Nova Ghis enfrentavam-se, muralha de escudos contra muralha de escudos, enquanto sargentos com as cabeças cobertas por meios elmos de ferro com cristas de crina de cavalo gritavam ordens no seu incompreensível dialeto. A olho nu, os ghiscariotas pareciam mais formidáveis do que os soldados escravos yunkaitas, mas Tyrion culti­vava dúvidas. Os legionários podiam estar armados e organizados da mes­ma forma que os Imaculados... mas os eunucos não conheciam outra vida, ao passo que os ghiscariotas eram cidadãos livres que serviam por períodos de três anos.

A fila para o poço estendia-se ao longo de um quarto de milha.

Só havia uma mancheia de poços a um dia de marcha de Meereen, portanto a espera era sempre longa. A maior parte da hoste yunkaita tirava a sua água de beber do Skahazadhan, o que Tyrion já sabia ser péssima ideia mesmo antes do aviso do curandeiro. Os espertos tinham o cuidado de ficar a montante das latrinas, mas continuavam a estar a jusante da cidade.

O facto de haver bons poços a um dia de marcha da cidade só prova­va que Daenerys Targaryen ainda era uma inocente no que tocava às artes de cerco. Ela devia ter envenenado todos os poços. Assim, todos os yunkaitas estariam a beber do rio. Ver-se-ia quanto tempo duraria o cerco nesse caso. Tyrion não duvidava de que seria isso o que o senhor seu pai teria feito.

De todas as vezes que davam mais um passo, as campainhas nas co­leiras tilintavam vivamente. É um som tão feliz que me dá vontade de ar­rancar os olhos a alguém com uma colher. Por aquela altura Griff, o Pato e o Semimeistre deviam estar em Westeros com o seu jovem príncipe. Eu devia estar com eles... mas não, tinha de ter uma rameira. Matar parentes não era suficiente, precisava de cona e vinho para selar a minha ruína, e aqui estou do lado errado do mundo, a usar uma coleira de escravo com campainhazinhas douradas a anunciar a minha chegada. Se dançar mesmo da maneira certa talvez consiga fazer soar "As Chuvas de Castamere."

Não havia melhor lugar para ouvir as últimas notícias e boatos do que em volta do poço.

— Eu sei o que vi — estava a dizer um velho escravo com uma fer­rugenta coleira de ferro quando Tyrion e Centava avançaram fila fora — e vi aquele dragão a arrancar braços e pernas, a partir homens ao meio, a queimá-los até os fazer em cinza e ossos. As pessoas desataram a fugir, ten­tando sair daquela arena, mas eu tinha ido ver um espetáculo e, por todos os deuses de Ghis, foi o que vi. Estava lá em cima no púrpura, de modo que não achei que o dragão me fosse arranjar problemas.

— A rainha subiu para cima do dragão e voou — insistiu uma mu­lher alta e castanha.

— Tentou — disse o velho — mas não se conseguiu agarrar. As bestas feriram o dragão, e segundo ouvi dizer a rainha foi atingida mesmo en­tre as lindas tetas cor-de-rosa. Foi nessa altura que caiu. Morreu na sarjeta, esmagada debaixo das rodas de uma carroça. Conheço uma rapariga que conhece um homem que a viu morrer.

Naquela companhia, o silêncio era a maior parte da sabedoria, mas Tyrion não conseguiu conter-se.

— Não foi encontrado nenhum cadáver — disse.

O velho franziu o sobrolho.

— Que sabes tu disso?

— Eles estavam lá — disse a mulher castanha. — São eles, os anões combatentes, aqueles que justaram para rainha.

O velho semicerrou os olhos, como que a vê-lo e a Centava pela pri­meira vez.

— Fostes vós que montastes os porcos.

A nossa fama precede-nos. Tyrion esboçou uma vénia cortês, e absteve-se de fazer notar que um dos porcos era na verdade um cão.

— A porca que montei é na verdade minha irmã. Temos o mesmo nariz, não vês? Um feiticeiro enfeitiçou-a, mas se lhe deres um grande beijo húmido ela transforma-se numa bela mulher. A pena é que, depois de a conheceres, vais querer voltar a beijá-la para que volte a ser porca.

Romperam gargalhadas a toda a volta deles. Até o velho se lhes jun­tou.

— Então viste-a — disse o rapaz ruivo atrás deles. — Viste a rainha. É tão linda como dizem?

Vi uma rapariga esguia com cabelo prateado enrolada num tokar, po­dia ter-lhes dito Tyrion. Tinha a cara velada, e não cheguei a aproximar-me o suficiente para a ver bem. Estava a montar um porco. Daenerys Targaryen estivera sentada no camarote do dono ao lado do seu rei ghiscariota, mas os olhos de Tyrion tinham sido atraídos para o cavaleiro de armadura branca e dourada que estava a seu lado. Apesar de ter as feições ocultas, o anão teria reconhecido Barristan Selmy em qualquer lado. Illyrio tinha razão sobre isso, pelo menos, lembrava-se de ter pensado. Mas irá Selmy reconhecer-me? E que fará se reconhecer?

Quase revelara a sua identidade ali e naquele momento, mas algo o impedira; cautela, cobardia, instinto, chamai-lhe o que quiserdes. Não con­seguia imaginar Barristan, o Ousado, a acolhê-lo com outra coisa que não fosse hostilidade. Selmy nunca aprovara a presença de Jaime na sua precio­sa Guarda Real. Antes da rebelião, o velho cavaleiro julgara-o demasiado novo e insuficientemente experimentado; depois, tinha sido ouvido a dizer que o Regicida devia trocar aquele manto branco por um negro. E os seus crimes eram piores. Jaime matara um louco. Tyrion trespassara com um dardo as virilhas do seu próprio progenitor, um homem que Sor Barristan conhecera e servira durante anos. Podia ter arriscado mesmo assim, mas nessa altura Centava dera-lhe uma pancada no escudo e o momento passa­ra, para nunca regressar.

— A rainha viu-nos justar — estava Centava a dizer aos outros escra­vos da fila — mas foi só nessa altura que a vimos.

— Deveis ter visto o dragão — disse o velho.

Gostaria de o ter visto. Os deuses nem sequer lhe tinham concedido essa mercê. Enquanto Daenerys Targaryen levantava voo, o Amasseca esta­va a prender ferros em volta dos tornozelos dos anões, para se assegurar de que não tentariam fugir no caminho de regresso para junto do seu amo. Se ao menos o capataz se tivesse retirado depois de os ter entregado no mata­douro, ou se tivesse fugido como o resto dos esclavagistas quando o dragão descera do céu, os dois anões podiam ter-se afastado, livres. Ou fugido, o mais certo, com as nossas campainhinhas a retinir.

— Houve um dragão? — disse Tyrion, com um encolher de ombros. — Tudo o que sei é que não foram encontradas rainhas mortas.

O velho não estava convencido.

— Ah, encontraram cadáveres às centenas. Arrastaram-nos para a arena e queimaram-nos, apesar de metade já estarem esturricados. Se ca­lhar não a reconheceram, queimada, ensanguentada e esmagada. Se calhar reconheceram mas decidiram dizer que não, para vos manter, aos escravos, calmos.

Nós, os escravos? — disse a mulher castanha. — Tu também usas uma coleira.

— A coleira de Ghazdor — vangloriou-se o velho. — Conheço-o des­de que nasceu. Sou quase como um irmão para ele. Escravos como tu, o refugo de Astapor e Yunkai, lamuriam-se acerca de serem livres, mas eu não daria a minha coleira à rainha dos dragões nem mesmo se ela se ofere­cesse para me mamar a pica por ela. O homem que tem o amo certo está melhor.

Tyrion não discutiu com cie. A coisa mais insidiosa na servidão era a facilidade com que as pessoas se habituavam a ela. Parecia-lhe que a vida da maioria dos escravos não era assim tão diferente da vida de um criado em Rochedo Casterly. Sim, alguns donos de escravos e os seus capatazes eram brutais e cruéis, mas o mesmo se podia dizer de alguns senhores de Westeros e dos seus intendentes e beleguins. A maior parte dos yunkaitas tratavam os escravos com bastante decência, desde que executassem as suas tarefas e não causassem problemas... e aquele velho com a coleira ferru­genta, com a sua feroz lealdade ao Lorde Bochechas de Baloiço, seu amo, não era nem um pouco atípico.

— Ghazdor, o de Grande Coração? — disse Tyrion, com simpatia. — O nosso amo Yezzan falou frequentemente na sua inteligência. — O que Yezzan realmente dissera andara mais perto de: Eu tenho mais inteligência na nádega esquerda do que Ghazdor e os irmãos têm entre todos. Achou prudente omitir as palavras realmente proferidas.

O meio dia chegou e partiu antes de ele e Centava chegarem ao poço, de onde um escravo escanzelado e perneta tirava água. Olhou-os descon­fiado e de viés.

— É sempre o Amasseca que vem buscar a água de Yezzan, com qua­tro homens e uma carroça de mulas. — Voltou a deixar cair o balde no poço. Ouviu-se um suave chapinhar. O perneta deixou que o balde se en­chesse e depois começou a içá-lo. Os seus braços estavam queimados pelo sol e a pelar, tinham um ar descarnado, mas eram só músculo.

— A mula morreu — disse Tyrion. — O Amasseca também, pobre homem. E agora o próprio Yezzan montou a égua branca, e seis dos seus soldados estão de caganeira. Podes-me dar dois baldes cheios?

— Como queiras. — Aquilo foi o fim das conversas de circunstância. O que estás a ouvir são cascos? A mentira sobre os soldados pôs o velho perneta a mexer-se muito mais depressa.

Voltaram para trás, com cada um dos anões a transportar dois baldes cheios de água doce até à borda, e Sor Jorah com dois baldes em cada mão. O dia estava a ficar mais quente, o ar tornava-se denso e húmido como lã molhada, e os baldes pareciam ir ficando mais pesados a cada passo. Uma longa caminhada em cima de pernas curtas. A água sacolejava nos baldes a cada passo, esparrinhando em volta das pernas, enquanto as campainhas tocavam uma canção de marcha. Se eu soubesse que daria nisto, pai, talvez te tivesse deixado vivo. A meia milha para leste, uma coluna escura de fumo estava a erguer-se de onde uma tenda fora incendiada. A queimar os mortos da noite passada.

— Por aqui — disse Tyrion, sacudindo a cabeça para a direita.

Centava dirigiu-lhe um olhar confuso.

— Não foi por aí que viemos.

— Não queremos respirar aquele fumo. Está cheio de humores ma­lignos. — Não era mentira. Não por inteiro.

Centava depressa ficou arquejante, a lutar com o peso dos seus baldes.

— Preciso de descansar.

— Como quiseres. — Tyrion pousou os baldes de água no chão, gra­to pela paragem. Tinha fortes cãibras nas pernas, por isso arranjou para si uma pedra prometedora e sentou-se nela para massajar as coxas.

— Eu podia fazer-te isso — ofereceu-se Centava.

— Eu sei onde estão os nós. — Por mais que tivesse acabado por gos­tar da rapariga, ainda se sentia desconfortável quando ela o tocava. Virou-se para Sor Jorah. — Mais alguns espancamentos, e ficarás mais feio do que eu, Mormont. Diz-me, resta em ti algum combate?

O grande cavaleiro ergueu dois olhos enegrecidos e olhou-o como poderia olhar um bicho.

— O suficiente para te partir o pescoço, Duende.

— Ótimo. — Tyrion pegou nos baldes. — Então vamos por aqui.

Centava enrugou a testa.

— Não. É para a esquerda. — Apontou. — Aquela ali é a Prostituta.

— E aquela ali é a Irmã Malvada. — Tyrion acenou com a cabeça na outra direção. — Confia em mim — disse. — O meu caminho é mais rápi­do. — E pôs-se a andar, com as campainhas a tilintar. Centava segui-lo-ia, bem o sabia.

Por vezes invejava os lindos sonhozinhos da rapariga. Fazia-lhe lem­brar Sansa Stark, a noiva criança que desposara e perdera. Apesar dos hor­rores que sofrera, permanecia de algum modo crédula. Devia ter mais juízo. É mais velha do que Sansa. E é uma anã. Age como se se tivesse esquecido dis­so, como se fosse bem nascida e linda de se ver, em vez de uma escrava numa coleção de aberrações. A noite era frequente que Tyrion a ouvisse rezar. Um desperdício de palavras. Se houver alguns deuses à escuta, são deuses mons­truosos, que nos atormentam por prazer. Quem mais faria um mundo como este, tão cheio de servidão, sangue e dor? Quem mais nos daria a forma que eles deram? Por vezes apetecia-lhe esbofeteá-la, abaná-la, gritar-lhe, fazer qualquer coisa para a despertar dos seus sonhos. Ninguém nos vai salvar, queria gritar-lhe. O pior ainda está para vir. Mas sem que entendesse por­quê nunca conseguira dizer as palavras. Em vez de lhe dar um bom e duro tabefe naquela sua cara feia para lhe arrancar as vendas dos olhos, dava por si a apertar-lhe o ombro ou a dar-lhe um abraço. Cacia toque é una mentira. Paguei-lhe com tanta moeda falsa, que quase se acha rica.

Até lhe escondera a verdade sobre a Arena de Daznak.

Leões. Eles iam soltar leões contra nós. Isso teria sido requintadamente irónico. Talvez tivesse tempo para uma curta gargalhada amarga antes de ser feito em pedaços.

Ninguém chegou a informá-lo do fim que estivera planeado para eles, não com todas as palavras, mas não fora difícil deduzi-lo, lá em baixo sob os tijolos da Arena de Daznak, no mundo oculto sob os bancos, no do­mínio escuro dos lutadores de arena e dos criados que cuidavam deles, dos rápidos e dos mortos — os cozinheiros que os alimentavam, os ferreiros que os armavam, os barbeiros-cirurgiões que os sangravam, os barbeavam e lhes ligavam os ferimentos, as rameiras que lhes prestavam servicinhos antes e depois das lutas, os transportadores de cadáveres que arrastavam os perdedores para fora das areias com correntes e ganchos de ferro.

A cara do Amasseca dera a Tyrion a primeira indicação. Depois do espetáculo, ele e Centava tinham regressado à cave iluminada por archotes onde os lutadores se reuniam antes e depois dos seus combates. Alguns afiavam as armas; outros faziam sacrifícios a estranhos deuses, ou embota­vam os nervos com leite de papoila antes de saírem para morrer. Aqueles que tinham combatido e vencido jogavam aos dados a um canto, rindo como só homens que tinham acabado de encarar a morte e sobrevivido conseguiam rir.

O Amasseca estava a pagar com prata uma aposta perdida a um ho­mem da arena quando vira Centava com Trincão pela trela. A confusão nos seus olhos desaparecera em meio segundo, mas não antes de Tyrion se aperceber do que queria dizer. O Amasseca não nos esperava de volta. Olha­ra outras caras em volta. Nenhum deles nos esperava de volta. Estávamos destinados a morrer ali fora. A última peça caíra no lugar quando ouvira um tratador a queixar-se ruidosamente ao mestre da arena.

— Os leões têm fome. Já não comem há dois dias. Disseram-me para não os alimentar, e não alimentei. A rainha devia pagar pela carne.

— Leva-lhe o assunto da próxima vez que ela conceder audiência — atirara-lhe em resposta o mestre da arena.

Nem agora Centava suspeitava. Quando falava da arena, a sua preo­cupação principal era que pouca gente se tinha rido. Eles ter-se-iam mijado a rir se os leões tivessem sido soltos, quase lhe dissera Tyrion. Mas em vez disso apertara-lhe o ombro.

Centava parou de súbito.

— Estamos a ir na direção errada.

— Não estamos. — Tyrion pôs os baldes no chão. As pegas tinham aberto profundos sulcos nos seus dedos. — As tendas que queremos são aquelas ali.

— Os Segundos Filhos? — Um estranho sorriso fendeu a cara de Sor Jorah. — Se julgas que vais encontrar ajuda ali, não conheces o Ben Casta­nho Plumm.

— Oh, mas conheço. Eu e o Plumm jogámos cinco jogos de cyvasse. O Ben Castanho é astuto, tenaz, não destituído de inteligência... mas cauteloso. Gosta de deixar o oponente correr os riscos enquanto ele fica sentadinho com todas as opções em aberto, reagindo à batalha à medida que ela toma forma.

— Batalha? Que batalha? — Centava afastou-se dele. — Temos de voltar. O amo precisa de água limpa. Se demorarmos demasiado seremos chicoteados. E a Porca Bonita e o Trincão estão lá.

— O Doces assegurar-se-á de que tratem deles — mentiu Tyrion. O mais certo era que o Cicatriz e os amigos se banqueteassem em breve com presunto e bacon e um saboroso estufado de cão, mas Centava não precisa­va de ouvir isso. — O Amasseca está morto e Yezzan moribundo. Pode ser noite antes que alguém dê pela nossa falta. Nunca teremos uma oportuni­dade melhor do que agora.

Não. Sabes o que eles fazem quando apanham escravos que ten­tam fugir. Tu sabes. Por favor. Nunca nos deixarão sair do acampamento.

— Nós não saímos do acampamento. — Tyrion pegou nos baldes. Arrancou a um vivo passo, sem olhar para trás. Mormont pôs-se a seu lado. Passado um momento ouviu o som de Centava a apressar-se atrás dele, descendo uma ladeira arenosa que terminava num círculo de tendas an­drajosas.

O primeiro guarda apareceu quando se aproximavam das linhas de cavalos; um esguio lanceiro cuja barba castanha-avermelhada o identifica­va como tyroshi.

— Que quereis daqui? E que tendes nesses baldes?

— Água — disse Tyrion — se te aprouver.

— Cerveja aprazer-me-ia mais. — Uma ponta de lança picou-o nas costas; um segundo guarda, surgido de trás deles. Tyrion ouviu Porto Real na voz dele. Escumalha do Fundo das Pulgas.

— 'Tás perdido, anão? — quis saber o guarda.

— Estamos aqui para nos juntarmos à vossa companhia.

Um balde escorregou da mão de Centava e virou-se. Metade da água tinha-se derramado antes de ela conseguir voltar a endireitá-lo.

— Já temos suficientes bobos nesta companhia. Porque haveríamos de querer mais três? — O tyroshi deu uma pancada na coleira de Tyrion com a ponta da sua lança, fazendo retinir a pequena campainha de ouro.

— O que eu vejo é um escravo fugido. Três escravos fugidos. De quem é a coleira?

— Da Baleia Amarela. — Aquilo viera de um terceiro homem, atraído pelas vozes; uma figurinha magricela de barba por fazer com dentes man­chados de vermelho pela folhamarga. Um sargento, compreendeu Tyrion pelo modo como os outros dois se lhe submeteram. Tinha um gancho onde a mão direita devia estar. Se não é a sombra bastarda e mais maldosa de Bronn, eu sou Baelor, o Adorado. — Estes são os anões que o Ben tentou comprar — disse o sargento aos lanceiros, semicerrando os olhos — mas o grande... é melhor trazê-lo também. Todos os três.

O tyroshi fez um gesto com a lança. Tyrion avançou. O outro merce­nário — um jovem, pouco mais que um rapaz, com penugem nas boche­chas e cabelo da cor da palha seca — meteu Centava debaixo de um braço.

— Ooh, o meu tem tetas — disse, rindo-se. Enfiou uma mão sob a túnica de Centava, só para ter a certeza.

— Limita-te a trazê-la — ordenou o sargento.

O jovem pôs Centava ao ombro. Tyrion foi à frente, o mais depressa que as pernas atrofiadas permitiam. Sabia para onde estavam a ir: a grande tenda do outro lado da fogueira, com paredes de lona pintada rachadas e desbotadas por anos de sol e chuva. Alguns mercenários viraram-se para os ver passar, e uma seguidora de acampamentos soltou um risinho trocista, mas ninguém se mexeu para interferir.

Dentro da tenda, depararam com bancos de acampar e uma mesa de montar, um suporte para lanças e alabardas, um chão coberto de tapetes puídos de meia dúzia de cores dissonantes e três oficiais. Um era magro e elegante, com uma barba pontiaguda, uma espada de espadachim e um gi­bão fendido cor-de-rosa. Outro era rechonchudo, estava a perder o cabelo e tinha manchas de tinta nos dedos e uma pena numa mão.

O outro era o homem que procurava. Tyrion fez uma vénia.

— Capitão.

— Apanhámo-los a entrar no acampamento. — O jovem deixou cair Centava no tapete.

— Fugidos — declarou o tyroshi. — Com baldes.

— Baldes? — disse o Ben Castanho Plumm. Quando ninguém adian­tou uma explicação, disse: — De volta aos vossos postos, rapazes. E nem uma palavra sobre isto a ninguém. — Depois de se irem embora, sorriu a Tyrion. — Vieste para outro jogo de cyvasse, Yollo?

— Se quiserdes. Eu realmente gosto de vos derrotar. Ouvi dizer que sois duplamente traidor, Plumm. Um homem cá dos meus.

O sorriso do Ben Castanho não lhe chegou aos olhos. Estudou Tyrion como um homem estudaria uma serpente falante.

— Porque estás aqui?

— Para realizar os vossos sonhos. Tentastes comprar-nos no leilão. Depois tentastes ganhar-nos ao cyvasse. Nem mesmo quando eu tinha na­riz era suficientemente bonito para provocar uma tal paixão... exceto em alguém que calhasse conhecer o meu verdadeiro valor. Bem, aqui estou, livre para ser apanhado. Agora sede amigo, mandai buscar o vosso ferreiro e tirai-nos estas coleiras. Estou farto de tilintar quando faço xixi.

— Não quero problemas com o teu nobre amo.

— Yezzan tem assuntos mais urgentes com que se preocupar do que três escravos em falta. Está a montar a égua branca. E porque haveriam eles de pensar procurar-nos aqui? Tendes espadas suficientes para desencorajar qualquer um que venha meter o nariz por cá. Um pequeno risco por um grande ganho.

O palerma do gibão fendido e cor-de-rosa silvou.

— Eles trouxeram a doença para o meio de nós. Para as nossas ten­das. — Virou-se para Ben Plumm. — Corto-lhe a cabeça, capitão? Pode­mos atirar o resto para a fossa das latrinas. — Puxou por uma espada, uma esguia lâmina de espadachim com o cabo cravejado de jóias.

— Tem cuidado com a minha cabeça — disse Tyrion. — Não queres que nenhum do meu sangue te caia em cima. O sangue transporta a doen­ça. E vais querer ferver a nossa roupa, ou então queimá-la.

— Tenho cá uma ideia de a queimar contigo ainda lá dentro, Yollo.

— O meu nome não é esse. Mas vós sabeis disso. Sabeis disso desde que me vistes pela primeira vez.

— Se calhar sei.

— E eu também vos conheço, senhor — disse Tyrion. — Sois menos púrpura e mais castanho do que os Plumm da pátria, mas a menos que o vosso nome seja uma mentira, sois um homem do oeste, pelo sangue ainda que não pelo nascimento. A Casa Plumm está ajuramentada a Rochedo Casterly, e acontece que eu conheço um pouco da sua história. O vosso ramo brotou de um caroço cuspido para o outro lado do mar estreito, sem dúvida. Um filho mais novo de Viserys Plumm, aposto. Os dragões da rai­nha gostavam de vós, não gostavam?

Aquilo pareceu divertir o mercenário.

— Quem te disse isso?

— Ninguém. A maior parte das histórias sobre dragões que se ouve contar são alimento para parvos. Dragões falantes, dragões a proteger ouro e pedras preciosas, dragões com quatro patas e barrigas tão grandes como elefantes, dragões a trocar enigmas com esfinges... tudo disparates. Mas também há verdades nos velhos livros. Eu não só sei que os dragões da rainha se tornaram vossos amigos, como sei porquê.

— A minha mãe dizia que o meu pai tinha uma gota de sangue de dragão.

— Duas gotas. Ou isso, ou uma pica de metro e oitenta. Conheceis essa história? Eu conheço. Ora bem, vós sois um Plumm esperto, portanto sabeis que esta minha cabeça vale uma senhoria... em Westeros, a meio mundo de distância. Quando a levardes até lá, só restarão ossos e larvas. A minha querida irmã negará que a cabeça é minha e roubar-vos-á a prome­tida recompensa. Vós sabeis como as rainhas são. Umas putéfias volúveis, todas elas, e Cersei é a pior.

O Ben Castanho coçou a barba.

— Nesse caso podia entregar-te vivo e a espernear. Ou enfiar a tua cabeça num frasco e conservá-la em salmoura.

— Ou juntar-vos a mim. Essa é a jogada mais sensata. — Sorriu. — Eu nasci segundo filho. Esta companhia é o meu destino.

— Os Segundos Filhos não têm lugar para saltimbancos — disse o espadachim de cor-de-rosa em tom de escárnio. — Nós precisamos é de combatentes.

— Eu trouxe-vos um. — Tyrion indicou Mormont com um polegar.

— Essa criatura? — riu-se o espadachim. — Um feio brutamontes, mas não bastam as cicatrizes para fazer um Segundo Filho.

Tyrion rolou os seus olhos desiguais.

— Lorde Plumm, quem são estes vossos dois amigos? O rosadinho é aborrecido.

O espadachim enrugou um lábio enquanto o tipo com a pena soltou um risinho, divertido com a insolência. Mas foi Jorah Mormont quem for­neceu os nomes deles.

— O Tinteiros é o tesoureiro da companhia. O pavão chama a si pró­prio Kasporio, o Astucioso, se bem que Kasporio, o Asqueroso, fosse mais adequado. Um tipo desagradável.

A cara de Mormont podia estar irreconhecível no estado em que se encontrava, mas a sua voz não mudara. Kasporio dirigiu-lhe um olhar sur­preendido, enquanto as rugas em volta dos olhos de Plumm se engelharam de divertimento.

— Jorah Mormont? És tu? Menos orgulhoso do que quando desapa­receste. Ainda temos de te chamar sor?

Os lábios inchados de Sor Jorah torceram-se num sorriso grotesco.

— Dá-me uma espada, e podes chamar-me o que quiseres, Ben.

Kasporio recuou.

— Tu... ela mandou-te embora...

— Voltei. Chama-me parvo.

Um parvo apaixonado. Tyrion pigarreou.

— Podeis falar dos velhos tempos mais tarde... depois de eu acabar de explicar porque é que a minha cabeça vos seria mais útil em cima dos ombros. Ireis descobrir, Lorde Plumm, que eu posso ser muito generoso para com os meus amigos. Se duvidais do que digo, perguntai a Bronn. Per­guntai a Shagga, filho de Dolf. Perguntai a Timett, filho de Timett.

— E quem vêm a ser esses? — perguntou o homem chamado Tin­teiros.

— Bons homens que puseram as espadas ao meu serviço e prospe­raram grandemente com ele. — Encolheu os ombros. — Oh, muito bem, menti na parte do "bons." São uns bastardos sedentos de sangue, como vós.

— Talvez — disse o Ben Castanho. — Ou talvez tenhas acabado de inventar uns quantos nomes. Shagga, dizes tu? Isso é nome de mulher?

— As mamas dele são suficientemente grandes. Da próxima vez que nos encontrarmos hei de espreitar-lhe para baixo das bragas para ter a cer­teza. Aquilo ali é um tabuleiro de cyvasse? Trazei-lo cá, e jogamos o tal jogo. Mas primeiro, acho eu, uma taça de vinho. Tenho a garganta seca como osso velho, e estou a ver que tenho bastante para dizer.


Загрузка...