DAENERYS


A colina era uma ilha pedregosa num mar de verdura.

Dany precisou de metade da manhã para descer. Quando chegou ao sopé estava sem fôlego. Doíam-lhe os músculos e sentia-se como se tivesse o início de uma febre. As rochas tinham-lhe esfolado as mãos, deixando-as em carne viva. Mas estão em melhor estado do que estavam, decidiu en­quanto arrancava uma bolha rebentada. Tinha a pele rosada e dorida e um fluido pálido e leitoso escorria-lhe das palmas estaladas das mãos, mas as queimaduras estavam a sarar.

A colina parecia mais alta ali em baixo. Dany começara a chamar-lhe Pedra do Dragão, o nome da antiga cidadela onde nascera. Não tinha recor­dações dessa Pedra do Dragão, mas não iria esquecer esta tão cedo. Ervas raquíticas e arbustos espinhosos cobriam-lhe as encostas inferiores; mais acima um emaranhado irregular de rocha nua projetava-se, íngreme e sú­bito, para o céu. Fora aí que, entre pedregulhos quebrados, arestas afiadas como navalhas e pináculos em forma de agulha, Drogon fizera o seu covil dentro de uma gruta pouco profunda. Quando vira pela primeira vez a co­lina, Dany apercebera-se de que o dragão já ali vivia há algum tempo. O ar cheirava lá a cinza, todas as rochas e árvores ao alcance da vista estavam chamuscadas e enegrecidas, o chão estava repleto de ossos queimados e quebrados, mas aquilo fora para ele um lar.

Dany conhecia a sedução do lar.

Dois dias antes, após trepar uma agulha de rocha, vira água para sul, um fio esguio que reluzira brevemente enquanto o Sol descia para o hori­zonte. Um curso de água, decidira. Pequeno, mas levá-la-ia a um ribeiro maior, e esse ribeiro desaguaria num riozinho qualquer, e todos os rios da­quela parte do mundo eram vassalos do Skahazadhan. Depois de descobrir o Skahazadhan bastar-lhe-ia segui-lo para jusante até à Baía dos Escravos.

Preferiria regressar a Meereen sobre asas de dragão, com certeza. Mas esse era um desejo que Drogon não parecia partilhar.

Os senhores dos dragões da antiga Valíria controlavam as suas montadas através de feitiços vinculadores e cornos encantados. Daenerys arranjava-se com uma palavra e um chicote. Montada no dorso do dra­gão, era frequente sentir-se como se estivesse outra vez a aprender a ca­valgar. Quando chicoteava a sua égua prateada no flanco direito, a égua ia para a esquerda, pois o primeiro instinto de um cavalo é fugir do perigo.

Quando dera com o chicote no lado direito de Drogon, ele virara para a direita, pois o primeiro instinto de um dragão é sempre atacar. Mas por vezes não parecia importar onde lhe batia; por vezes, ele ia para onde queria e levava-a consigo. Nem chicote nem palavras conseguiam desviar Drogon se ele não desejasse ser desviado. Acabara por ver que o chicote o aborrecia mais do que lhe doía; as suas escamas tinham-se tornado mais duras do que chifre.

E, por mais que o dragão voasse todos os dias, ao chegar a noite um instinto qualquer levava-o para o lar, para Pedra do Dragão. O lar dele, não o meu. O lar dela era em Meereen, com o marido e o amante. Era esse o seu lugar, certamente.

Continuara caminhar. Se olhar para trás estou perdida.

Memórias caminhavam com ela. Nuvens vistas de cima. Cavalos pe­quenos como formigas a trovejar pela erva fora. Uma lua prateada, qua­se suficientemente próxima para tocar. Rios a correr brilhantes e azuis lá em baixo, reluzindo ao sol. Voltarei eu a ver tais coisas? Sobre o dorso de Drogon sentia-se inteira. No céu, as aflições daquele mundo não podiam tocar-lhe. Como podia abandonar isso?

Mas já era tempo. Uma rapariga podia passar a vida a brincar, mas ela era uma mulher feita, uma rainha, uma esposa, uma mãe para milhares de pessoas. Os filhos precisavam dela. Drogon vergara perante o chicote, e ela tinha de fazer o mesmo. Tinha de voltar a pôr a coroa, e de regressar ao seu banco de ébano e aos braços do nobre esposo.

Hizdahr, o dos beijos tépidos.

O sol estava quente naquela manhã, o céu azul e sem nuvens. Isso era bom. A roupa de Dany pouco passava de trapos, e pouco calor lhe fornecia. Uma das sandálias tinha-lhe escorregado do pé durante o voo descontrola­do desde Meereen e deixara a outra perto da gruta de Drogon, preferindo ir descalça a meio calçada. Abandonara o tokar e os véus na arena, e a túnica interior de linho nunca fora feita para suportar os dias quentes e noites frias do mar dothraki. O suor, as ervas e a terra tinham-na enodoado, e Dany arrancara uma faixa da bainha para fazer uma ligadura para a canela. Devo parecer uma coisinha esfarrapada, e esfomeada, pensou, mas se os dias per­manecerem quentes não congelarei.

A estadia fora solitária, e passara a maior parte magoada e esfome­ada... mas apesar de tudo fora ali estranhamente feliz. Algumas dores, uma barriga vazia, noites enregeladas... que importa quando se pode voar? Fá-lo-ia tudo de novo.

Disse a si própria que Jhiqui e Irri estariam à espera no topo da sua pirâmide em Meereen. A querida escriba Missandei também, e todos os pequenos pajens. Trar-lhe-iam comida, e poderia banhar-se na piscina à sombra do diospireiro. Seria bom voltar a sentir-se limpa. Dany não preci­sava de um espelho para saber como estava suja.

E também estava faminta. Uma manhã encontrara cebolas silvestres a crescer a meio da encosta sul, e mais tarde nesse mesmo dia descobrira um legume folhoso e vermelho que podia ser uma espécie estranha de cou­ve. Fosse o que fosse, não a deixara doente. Tirando isso, e um peixe que apanhara na lagoa alimentada pela nascente que havia em frente da gruta de Drogon, sobrevivera o melhor possível com os restos do dragão, com ossos queimados e bocados de carne fumegante, meio esturricada e meio crua. Precisava de mais, bem o sabia. Um dia pontapeara um crânio ra­chado de ovelha com a parte lateral de um pé descalço e fizera-o rolar pela colina abaixo. E, ao vê-lo descer aos saltos a íngreme vertente até ao mar de erva lá em baixo, apercebera-se de que tinha de o seguir.

Dany pusera-se a caminho através da erva alta com um passo vivo. Sentia a terra quente entre os dedos dos pés. A erva era tão alta como ela. Nunca pareceu tão alta quando estava montada na minha prata, cavalgando ao lado do meu sol-e-estrelas, à cabeça do seu khalasar. Enquanto caminha­va ia batendo na coxa com o chicote do mestre de arena. Isso, e os trapos que levava às costas, eram tudo o que trouxera de Meereen.

Embora caminhasse através de um reino verde, não era o profundo e rico verde do verão. Até ali o outono fazia sentir a sua presença, e o in­verno não viria muito longe. A erva estava mais clara do que se lembrava, um verde pálido e doentio prestes a tornar-se amarelo. Depois disso viria o castanho. A erva estava a morrer.

O mar dothraki, o grande oceano de erva que se estendia da floresta de Qohor à Mãe das Montanhas e ao Ventre do Mundo, não era estranho a Daenerys Targaryen. Vira-o pela primeira vez quando ainda era rapariga, recém-casada com Khal Drogo e a caminho de Vaes Dothrak para ser apre­sentada às velhas do dosh khaleen. Ver toda aquela erva a estender-se na sua frente tirara-lhe o fôlego. O céu era azul, a erva era verde, e eu estava cheia de esperança. Sor Jorah, o seu rude velho urso, estivera então com ela. Tivera Irri, Jhiqui e Doreah para cuidarem de si, o seu sol-e-estrelas para a abraçar à noite, o filho a crescer dentro de si. Rhaego. Eu ia chamar-lhe Rhaego, e o dosh khaleen disse que ele seria o Garanhão Que Monta o Mundo. Não era tão feliz desde aqueles dias meio recordados em Bravos, quando vivera na casa com a porta vermelha.

Mas, no Deserto Vermelho, toda a sua alegria se transformara em cinzas. O seu sol-e-estrelas caíra do cavalo, a maegi Mirri Maz Duur assas­sinara Rhaego no seu ventre e Dany sufocara a concha vazia de Khal Drogo com as próprias mãos. Depois disso, o grande khalasar de Drogo estilhaça­ra-se. Ko Pono chamara a si próprio Khal Pono e levara muitos cavaleiros consigo, e também muitos escravos. Ko Jhaqo chamara a si próprio Khal Jhaqo e afastara-se com mais ainda. O seu companheiro de sangue Mago violara e assassinara Eroeh, uma rapariga que Daenerys salvara dele um dia. Só o nascimento dos dragões, entre o fogo e o fumo da pira funerária de Khal Drogo, poupara a própria Dany de ser arrastada de volta para Vaes Dothrak a fim de viver o resto dos seus dias entre as velhas do dosh khaleen.

O fogo queimou-me o cabelo, mas fora isso não me tocou. Acontecera o mesmo na Arena de Daznak. Disso conseguia lembrar-se, embora muito do que se seguira estivesse enevoado. Tanta gente, aos gritos e aos empur­rões. Lembrava-se de cavalos empinados, de uma carroça de comida a der­ramar melões enquanto se virava. Vinda de baixo, uma lança surgira a voar, seguida por um bando de dardos de besta. Um passara tão perto que Dany o sentira a raspar-lhe pelo rosto. Outros ricochetearam nas escamas de Drogon, alojaram-se entre elas, ou trespassaram a membrana das suas asas. Lembrava-se do dragão se torcer debaixo dela, estremecendo com os im­pactos, enquanto tentava desesperadamente agarrar-se ao dorso escamoso. Os ferimentos fumegavam. Dany vira um dos dardos romper em chamas súbitas. Outro caíra, solto pelo bater das asas do dragão. Lá em baixo, vira homens a rodopiar, envoltos em chamas, com as mãos no ar como que apa­nhados nas convulsões de alguma dança louca. Uma mulher com um tokar verde estendera as mãos para uma criança que chorava, puxando-a para os seus braços a fim de a proteger das chamas. Dany vira a cor com clareza, mas não a cara da mulher. Havia gente a espezinhá-las enquanto mulher e criança jaziam abraçadas nos tijolos. Alguns ardiam.

Depois, tudo isso se desvanecera, os sons tinham-se reduzido, as pes­soas encolheram, as lanças e as setas caíam de volta por baixo deles enquan­to Drogon esgatanhava o seu caminho para o céu. Levara-a para cima, para cima, e mais para cima, bem acima das pirâmides e das arenas, com as asas estendidas para capturar o ar quente que se erguia dos tijolos cozidos pelo sol da cidade. Se eu cair e morrer, terá na mesma valido a pena, pensara.

E voaram para norte, para lá do rio, com Drogon a planar em asas rasgadas e esfarrapadas através de nuvens que passavam a esvoaçar como os estandartes de algum exército fantasmagórico. Dany vislumbrara as costas da Baía dos Escravos e a velha estrada valiriana que avançava junto a elas através de areia e desolação até desaparecer a oeste. A estrada para casa. Depois passara a nada haver por baixo deles além de erva a ondular ao vento.

Esse primeiro voo foi há mil anos? Às vezes parecia que devia ter sido.

O Sol foi ficando mais quente à medida que foi subindo no céu, e não demorou muito a ficar com a cabeça a latejar. O cabelo de Dany estava a voltar a crescer, mas lentamente.

— Preciso de um chapéu — disse em voz alta. Em Pedra do Dragão tentara fazer um, entretecendo caules de erva como vira as mulheres dothraki fazer durante o tempo que passara com Drogo, mas ou estava a usar o tipo errado de erva ou simplesmente lhe faltava a perícia necessária. Os chapéus que fizera tinham-se-lhe feito em pedaços nas mãos. Volta a ten­tar, dissera a si própria. Sair-te-ás melhor da próxima vez. És do sangue do dragão, consegues fazer um chapéu. Tentara e voltara a tentar, mas a última tentativa não fora mais bem sucedida do que a primeira.

Foi só à tarde que Dany encontrou o ribeiro que vislumbrara do topo da colina. Era um riacho, um regato, um fio de água, mais estreito que o seu braço... e o seu braço tornara-se mais magro todos os dias que passara em Pedra do Dragão. Dany reuniu uma mancheia de água e molhou a cara com ela. Quando pôs as mãos em taça, os nós dos dedos enterraram-se-lhe na lama no fundo do ribeiro. Podia ter desejado água mais fria e mais lim­pa. .. mas não, se ia prender as esperanças a desejos, desejaria ser salva.

Ainda se agarrava à esperança de que alguém viria atrás dela. Sor Barristan podia vir à sua procura; era o primeiro da sua Guarda Real, ju­rara defender a sua vida com a dele. E o mar dothraki não era estranho aos seus companheiros de sangue, e as vidas deles estavam ligadas à sua. O marido, o nobre Hizdahr zo Loraq, talvez enviasse homens à sua procura. E Daario... Dany imaginou-o a cavalgar na sua direção através da erva alta, sorrindo, com o dente dourado a cintilar com a última luz do Sol poente.

Só que Daario fora entregue aos yunkaitas, um refém para assegurar que nenhum mal aconteceria aos capitães de Yunkai. Daario e Herói, Jhogo e Groleo, e três familiares de Hizdahr. Por aquela altura, certamente, todos os reféns teriam sido libertados. Mas...

Perguntou a si própria se as lâminas do seu capitão ainda estariam penduradas da parede ao lado da sua cama, à espera de que Daario re­gressasse e as fosse buscar. "Deixo as minhas meninas contigo", dissera ele. "Mantém-nas a salvo por mim, amada." E sentiu curiosidade de saber até que ponto os yunkaitas saberiam o quanto o seu capitão significava para ela. Fizera a Sor Barristan essa pergunta na tarde em que os reféns partiram.

— Eles devem ter ouvido os boatos — respondera o velho cavalei­ro. — Naharis pode até ter-se gabado do... do grande... apreço que Vossa Graça tem por ele. Se me perdoais por dizê-lo, a modéstia não é uma das virtudes do capitão. Ele tem grande orgulho da sua... da sua perícia com a espada.

Ele gaba-se de dormir comigo, queres tu dizer. Mas Daario não teria sido insensato ao ponto de proferir tal vanglória entre os seus inimigos. Não importa. Por esta altura os yunkaitas deverão estar em marcha para casa. Fora por isso que fizera tudo o que fizera. Pela paz.

Virou-se para trás, para o sítio de onde viera, para o local onde Pe­dra do Dragão se erguia nas estepes como um punho cerrado. Parece tão próxima. Caminho há horas, mas ainda parece que podia estender o braço e tocá-la. Não era tarde demais para regressar. Havia peixe na lagoa alimen­tada pela nascente junto da gruta de Drogon. Apanhara um no primeiro dia que lá passara, podia apanhar mais. E haveria restos, ossos esturricados ainda com bocados de carne agarrados, os restos da caça de Drogon.

Não, disse Dany a si própria. Se olhar para trás estou perdida. Podia viver durante anos entre as pedras cozidas pelo sol de Pedra do Dragão, montando Drogon de dia e roendo os seus restos ao cair da noite enquanto o grande mar de erva de dourado se ia tornando alaranjado, mas não fora para essa vida que nascera. Por isso voltou a virar costas à colina distante, e fechou os ouvidos à canção de voo e liberdade que o vento cantava enquan­to brincava entre as encostas pedregosas da colina. O riacho corria para sul-sueste, até onde conseguia determinar. Seguiu-o. Leva-me ao rio, é tudo o que te peço. Leva-me ao rio, e eu farei o resto.

As horas passaram lentamente. O riacho virou para um lado e para o outro e Dany seguiu-o, batendo o tempo na perna com o chicote, tentando não pensar na distância que tinha de percorrer, ou no latejar na sua cabeça ou na barriga vazia. Dá um passo. Dá o próximo. Outro passo. E outro. Que outra coisa podia fazer?

Havia silêncio no seu mar. Quando o vento soprava, a erva suspirava quando os caules roçavam uns nos outros, sussurrando numa língua que só os deuses podiam compreender. De vez em quando o pequeno riacho gorgolejava onde fluía em volta de uma pedra. Lama esguichava entre os dedos dos seus pés. Insetos zumbiam à sua volta, preguiçosas libélulas e reluzentes vespas verdes e mosquitos que picavam, quase pequenos demais para serem vistos. Tentava esmagá-los de forma ausente quando pousavam nos braços. Uma vez deparou com uma ratazana que bebia do riacho, mas o animal fugiu quando ela apareceu, precipitando-se entre os caules para ir desaparecer na erva alta. Por vezes ouvia aves a cantar. O som punha-lhe a barriga a trovejar, mas não tinha redes com que os apanhar, e por enquanto ainda não deparara com ninhos. Em tempos sonhei que voava, pensou, e agora já voei e sonho roubar ovos. Aquilo fê-la rir.

— Os homens são loucos e os deuses ainda mais loucos são — disse à erva, e a erva murmurou o seu acordo.

Por três vezes nesse dia viu Drogon. Uma vez, o dragão estava tão longe que podia ter sido uma águia, entrando e saindo de nuvens distan­tes, mas Dany já conhecia o seu aspeto, mesmo quando não passava de um pontinho. Da segunda vez passou em frente do sol, com as asas negras abertas, e o mundo escureceu. Da última vez voou mesmo por cima dela, tão próximo que conseguiu ouvir o som das asas. Durante meio segundo, Dany pensou que o dragão andava a caçá-la, mas ele continuou a voar sem reparar nela e desapareceu algures para leste. Ainda bem, pensou.

O fim da tarde apanhou-a quase de surpresa. Enquanto o sol doura­va os distantes pináculos de Pedra do Dragão, Dany tropeçou num muro baixo de pedra, coberto de vegetação e quebrado. Talvez tivesse feito parte de um templo, ou do palácio do senhor da aldeia. Havia mais ruínas mais à frente — um velho poço, e alguns círculos na erva que assinalavam os locais onde em tempos se tinham erguido cabanas. Haviam sido construídas de lama e palha, calculou Dany, mas longos anos de vento e chuva tinham-nas transformado em nada. Dany encontrou oito antes de o Sol se pôr, mas podia ter havido mais longe, ocultas nas ervas.

O muro de pedra resistira melhor do que o resto. Embora em nenhum sítio tivesse mais de um metro de altura, o ângulo onde se encontrava com outro muro mais baixo ainda fornecia algum abrigo contra os elementos, e a noite aproximava-se rapidamente. Dany encaixou-se nesse canto, fazendo uma espécie de ninho arrancando mancheias da erva que crescia em volta das ruínas. Estava muito cansada, e tinham aparecido bolhas novas em am­bos os pés, incluindo um par de bolhas iguais nos miudinhos. Deve ser por causa da minha maneira de caminhar, pensou, entre risinhos.

Enquanto o mundo escurecia, Dany instalou-se e fechou os olhos, mas o sono recusou-se a vir. A noite estava escura, o chão era duro, a sua barriga estava vazia. Deu por si a pensar em Meereen, em Daario, seu amor, e em Hizdahr, seu esposo, em Irri e Jhiqui e na doce Missandei, em Sor Barristan, em Reznak e em Skahaz Tolarrapada. Temerão eles que eu esteja morta? Parti a voarás costas de um dragão. Julgarão que ele me comeu? Per­guntou a si própria se Hizdahr ainda seria rei. A sua coroa proviera dela, seria ele capaz de a conservar na sua ausência? Ele queria Drogon morto. Eu ouvi-o. "Matai-o," gritou, "matai a fera," e a expressão na sua cara era de luxúria. E Belwas, o Forte, estava de joelhos, a vomitar e a tremer. Veneno. Teve de ser veneno. Os gafanhotos com mel. Hizdahr insistiu comigo para que os comesse, mas Belwas comeu-os todos. Mas ela tornara Hizdahr seu rei, levara-o para a sua cama, abrira as arenas de combate por ele, não tinha nenhum motivo para a querer morta. No entanto, quem mais poderia ter sido? Reznak, o seu senescal perfumado? Os yunkaitas? Os Filhos da Har­pia?

À distância, um lobo uivou. O som fê-la sentir-se triste e solitária, mas não menos faminta. Quando a Lua se ergueu por cima das estepes, Dany mergulhou enfim num sono inquieto.

Sonhou. Todas as suas preocupações caíram para longe de si, e todas as suas dores também, e pareceu-lhe flutuar para cima, para o céu. Estava dc novo a voar, girando, rindo, dançando, enquanto as estrelas rodopiavam à sua volta e lhe murmuravam segredos ao ouvido.

— Para ires para norte tens de viajar para sul. Para chegares a oeste, tens de ir para leste. Para ires para a frente, tens de voltar para trás. Para tocares a luz tens de passar sob a sombra.

— Quaithe? — chamou Dany. — Onde estás, Quaithe?

Então viu. A máscara dela é feita da luz das estrelas.

— Lembra-te de quem és, Daenerys — murmuraram as estrelas, numa voz de mulher. — Os dragões sabem. Tu sabes?

Na manhã seguinte acordou perra, dorida e magoada, com formi­gas a rastejar pelos braços, pernas e cara. Quando se apercebeu do que eram, afastou ao pontapé os caules das ervas castanhas e secas que lhe tinham servido de cama e manta e lutou por se pôr em pé. Estava reple­ta de picadas, pequenos altos vermelhos, comichosos e inflamados. De onde vieram todas estas formigas? Dany sacudiu-as dos braços, pernas e barriga. Percorreu com uma mão o couro cabeludo, onde o cabelo arde­ra, e sentiu mais formigas na cabeça e uma a rastejar pela parte de trás do pescoço. Correu com elas e esmagou-as sob os pés descalços. Eram tantas...

Acabou por descobrir que o formigueiro ficava do outro lado do muro. Perguntou a si própria como teriam as formigas conseguido trepar o muro e encontrá-la. Para elas, aquelas pedras derrubadas deviam erguer-se tão altas como a Muralha de Westeros. A maior muralha no mundo inteiro, costumava dizer o irmão Viserys, tão orgulhoso como se tivesse sido ele a construí-la.

Viserys costumava contar-lhe histórias sobre cavaleiros tão pobres que tinham de dormir sob as antigas sebes que cresciam ao longo dos ca­minhos secundários dos Sete Reinos. Dany teria dado mais que muito por uma bela e densa sebe. De preferência uma que não tivesse um formigueiro.

O Sol só agora estava a nascer. Algumas estrelas brilhantes demora­vam-se no céu cor de cobalto. Talvez uma delas seja Khal Drogo, montado no seu garanhão de fogo nas terras da noite e sorrindo-me. Pedra do Dragão ainda estava visível acima da estepe. Parece tão próxima. Tenho de estar a léguas de distância por esta altura, mas parece que podia estar de volta numa hora. Desejou voltar a deitar-se, fechar os olhos e entregar-se ao sono. Não. Tenho de prosseguir. O riacho. Segue o riacho.

Dany gastou um momento para se assegurar das direções. Não seria bom caminhar na direção errada e perder o riacho.

— O meu amigo — disse em voz alta. — Se ficar perto do meu amigo não me perderei. — Teria dormido junto da água se se atrevesse, mas havia animais que desciam ao ribeiro à noite para beber. Vira os seus rastos. Dany daria fraca refeição para um lobo ou um leão, mas mesmo uma fraca refei­ção era melhor do que nada.

Depois de ter a certeza de qual o lado em que ficava o sul, contou os passos. O ribeiro surgiu aos oito. Dany pôs as mãos em taça para beber. A água fez-lhe doer a barriga, mas era mais fácil suportar as dores do que a sede. Não tinha outra bebida além do orvalho matinal que reluzia nas ervas altas, e não tinha comida nenhuma, a menos que quisesse comer a erva. Podia tentar comer formigas. As pequenas e amarelas eram pequenas de­mais para fornecer grande nutrição, mas havia na erva formigas vermelhas, e essas eram maiores.

— Estou perdida no mar — disse, enquanto coxeava ao lado do seu ribeirinho sinuoso — portanto talvez arranje uns caranguejos, ou um belo peixe gordo. — O chicote batia suavemente na sua coxa, uap uap uap. Um passo de cada vez, o ribeiro levá-la-ia para casa.

Logo após o meio-dia deparou com um arbusto que crescia junto do riacho, cujos ramos retorcidos estavam cobertos de bagas duras e verdes. Dany olhou-as desconfiada, após o que arrancou uma do ramo e a mor­discou. A polpa era ácida e dura, com um travo amargo que lhe pareceu familiar.

— No klialasar, usavam bagas como estas para dar sabor aos assados — decidiu. Dizê-lo em voz alta deixava-a mais segura do facto. A barriga trovejou e Dany deu por si a colher bagas com ambas as mãos e a atirá-las para dentro da boca.

Uma hora mais tarde, o estômago começou a doer-lhe tanto que não conseguiu prosseguir. Passou o resto desse dia a vomitar muco verde. Se ficar aqui, morrerei. Posso estar já a morrer. Iria o deus cavalo dos dothraki abrir a erva e reclamá-la para o seu klialasar estrelado, para poder percorrer as terras da noite com Khal Drogo? Em Westeros, os mortos da Casa Targaryen eram entregues às chamas, mas quem acenderia ali a sua pira? A minha carne irá alimentar os lobos e as gralhas, pensou, entriste­cida, e vermes abrirão buracos no meu ventre. Os seus olhos regressaram a Pedra do Dragão. Agora parecia mais pequena. Conseguia ver fumo a erguer-se do cume esculpido pelo vento, a milhas de distância. Drogon regressou da caça.

O pôr-do-sol foi encontrá-la de cócoras na erva, gemendo. Cada eva­cuação era mais líquida do que a anterior, e cheirava pior. Quando a Lua nasceu estava a cagar água castanha. Quanto mais bebia, mais cagava, mas quanto mais cagava mais sede tinha, e a sede levava-a a gatinhar até ao ria­cho para sugar mais água. Quando finalmente fechou os olhos, Dany não sabia se teria força suficiente para os voltar a abrir.

Sonhou com o irmão morto.

Viserys tinha precisamente o aspeto que tivera da última vez que vira. Tinha a boca torcida em angústia, o cabelo estava queimado, e a cara mostrava-se negra e fumegante onde o ouro derretido lhe escorrera pela testa e bochechas e para dentro dos olhos.

— Tu estás morto — disse Dany.

Assassinado. Embora os lábios dele não chegassem a mexer-se, sem que soubesse como ela conseguia ouvir a sua voz, sussurrando-lhe ao ouvi­do. Não chegaste a fazer luto por mim, irmã. É duro morrer sem ser chorado

— Em tempos amei-te.

Em tempos, disse ele, com tanta amargura que a fez estremecer. Tu estavas destinada a ser minha mulher, a dar-me filhos com cabelo prateado e olhos purpúreos, para manter o sangue do dragão puro. Tomei conta de ti. Ensinei-te quem eras. Alimentei-te. Vendi a coroa da nossa mãe para te manter alimentada.

— Magoavas-me. Assustavas-me.

Só quando despertavas o dragão. Eu amava-te.

— Tu vendeste-me. Traíste-me.

Não. A traidora foste tu. Viraste-te contra mim, contra o teu próprio sangue. Eles enganaram-me. O cavalo do teu marido e os seus selvagens fedo­rentos. Eram aldrabões e mentirosos. Prometeram-me uma coroa dourada, e deram-me isto. Tocou o ouro derretido que lhe escorria pela cara, e fumo ergueu-se do seu dedo.

— Podias ter obtido a tua coroa — disse-lhe Dany. — O meu sol-e-estrelas tê-la-ia conquistado para ti, se ao menos tivesses esperado.

Esperei o suficiente. Esperei a vida inteira. Era o rei deles, o seu legítimo rei. Riram-se de mim.

— Devias ter ficado em Pentos com o Magíster Illyrio. O Khal Drogo tinha de me apresentar ao dosh khaleen, mas não era preciso que viesses conosco. Essa decisão foi tua. Foi esse o teu erro.

Queres despertar o dragão, sua putinha estúpida? O khalasar de Drogo era meu. Eu comprei-lho, cem mil guerreiros. Paguei por eles com a tua vir­gindade.

— Tu nunca compreendeste. Os dothraki não compram nem ven­dem. Dão presentes e recebem-nos. Se tivesses esperado...

Eu esperei. Pela minha coroa, pelo meu trono, por ti. Todos aqueles anos, e tudo o que obtive foi uma panela de ouro derretido. Porque foi a ti que eles deram os ovos de dragão? Deviam ter sido meus. Se eu tivesse tido um dragão, teria ensinado ao mundo o significado do nosso lema. Viserys desatou a rir, até que o queixo lhe caiu da cara, a fumegar, e sangue e ouro derretido lhe escorreram da boca.

Quando despertou, arquejante, tinha as coxas luzidias de sangue.

Por um momento não se apercebeu do que era. O mundo tinha ape­nas começado a clarear, e a erva alta restolhava suavemente ao vento. Não, nor favor, deixai-me dormir um pouco mais. Estou tão cansada. Tentou vol­tar a enterrar-se sob a pilha de erva que arrancara quando se fora deitar. Al­guns dos caules pareceram-lhe húmidos. Teria voltado a chover? Sentou-se, com medo de se ter sujado enquanto dormia. Quando trouxe os dedos à cara, sentiu neles o cheiro do sangue. Será que estou a morrer? Depois viu o pálido crescente de Lua, flutuando bem alto acima da erva, e ocorreu-lhe que aquilo não passava do seu sangue de lua.

Se não estivesse tão doente e assustada, isso podia ter sido para ela um alívio. Mas em vez disso desatou a tremer violentamente. Esfregou os dedos na terra e agarrou uma mancheia de erva para se limpar entre as per­nas. O dragão não chora. Estava a sangrar, mas era só sangue de mulher. No entanto, a Lua ainda é só um crescente. Como pode ser? Tentou lembrar-se da última vez que sangrara. Na última Lua cheia? Na outra antes? Na ante­rior a essa? Não, não pode ter sido assim há tanto tempo.

— Eu sou do sangue do dragão — disse à erva, em voz alta.

Foste, sussurrou a erva em resposta, até acorrentares os teus dragões na escuridão.

— Drogon matou uma rapariguinha. O nome dela era... o nome dela... — Dany não se conseguia lembrar do nome da criança. Isso entris­teceu-a tanto que podia ter chorado, se todas as suas lágrimas não tivessem sido queimadas. — Eu nunca terei uma rapariguinha. Era a Mãe dos Dra­gões.

Sim, disse a erva, mas viraste-te contra os teus filhos.

Dany tinha a barriga vazia, os pés magoados e com bolhas, e pare­cia-lhe que as dores de barriga tinham piorado. Tinha as tripas cheias de serpentes que se contorciam e lhe mordiam as entranhas. Agarrou uma mancheia de lama e água com mãos trémulas. Ao meio-dia a água estaria tépida, mas ao frio da madrugada estava quase fresca, e ajudava-a a manter os olhos abertos. Quando molhou a cara, viu mais sangue nas suas coxas. A bainha esfarrapada de túnica interior estava manchada com ele. Ver tanto vermelho assustou-a. Sangue da Lua, é só o meu sangue da Lua, mas não se lembrava de alguma vez ter tido um fluxo tão abundante. Poderá ser da água? Se fosse da água, estava perdida. Tinha de beber, senão morreria de sede.

— Caminha — ordenou Dany a si própria. — Segue o ribeiro, e ele levar-te-á ao Skahazadhan. Será aí que Daario te encontrará. — Mas preci­sou de todas as suas forças só para voltar a pôr-se em pé, e quando o fez só logrou ficar ali, febril e a sangrar. Levantou os olhos para o céu azul e vazio, semicerrando-os ao sol. Metade da manhã já se foi, compreendeu, conster­nada. Obrigou-se a dar um passo, e depois outro, e depois viu-se de novo a caminhar, seguindo o pequeno riacho.

O dia foi ficando mais quente, e o sol batia-lhe na cabeça e nos restos queimados do cabelo. Água chapinhava contra as solas dos pés. Estava a caminhar no riacho. Há quanto tempo estaria a fazer isso? A mole lama castanha era agradável entre os dedos dos pés, e ajudava a aliviar-lhe as bolhas. No ribeiro ou fora dele, tenho de continuar a caminhar. A água corre para baixo. O ribeiro levar-me-á ao rio, e o rio levar-me-á para casa.

Só que não o faria, não propriamente.

Meereen não era o seu lar, e nunca o seria. Era uma cidade de ho­mens estranhos com deuses estranhos e cabelos mais estranhos ainda, de esclavagistas envoltos em tokars fimbriados, onde a graça era conquistada através da prostituição, a carnificina era arte e cão era um acepipe. Meereen seria sempre a cidade da harpia, e Daenerys não podia ser uma harpia.

Nunca, disse a erva, com o áspero tom de voz de Jorah Mormont. Fos­tes avisada, Vossa Graça. Deixai esta cidade em paz, disse eu. A vossa guerra é em Westeros, disse-vos eu.

A voz não era mais do que um suspiro, mas de alguma forma Dany sentia que ele estava a caminhar logo atrás de si. O meu urso, pensou, o meu velho, querido urso, que me amava e me traiu. Sentira tantas saudades dele. Desejou ver a sua cara feia, envolvê-lo nos braços e encostar-se ao seu peito, mas sabia que, se se virasse, Sor Jorah desapareceria.

— Estou a sonhar — disse. — Um sonho acordado, um sonho so­nâmbulo. Estou sozinha, e perdida.

Perdida porque vos deixastes ficar num lugar onde nunca estivestes des­tinada a estar, murmurou Sor Jorah tão suavemente como o vento. Sozinha porque me afastastes do vosso lado.

— Tu traíste-me. Deste informações sobre mim, por ouro.

Pelo lar. O que sempre desejei foi o meu lar.

— E a mim. Também me desejaste. — Dany vira-o nos seus olhos.

Desejei, sussurrou a erva, tristemente.

— Beijaste-me. Não disse que o podias fazer mas fizeste-o. Vendeste-me aos meus inimigos, mas quando me beijaste foi a sério.

Dei-vos bons conselhos. Poupai as lanças e as espadas para os Sete Rei­nos, disse-vos eu. Deixai Meereen para os meereeneses e ide para oeste, disse eu. Não me quisestes dar ouvidos.

— Eu tinha de tomar Meereen, caso contrário veria os meus filhos passar fome durante a marcha. — Dany ainda via o rasto de cadáveres que deixara para trás durante a travessia do Deserto Vermelho. Não era algo que desejasse voltar a ver. — Tinha de tomar Meereen para alimentar o meu povo.

Tomastes Meereen, disse-lhe ele, mas mesmo assim demoraste-vos.

— Para ser uma rainha.

Vós sois uma rainha, disse o seu urso. Em Westeros.

— A viagem é tão longa — protestou ela. — Estava cansada, Jorah. Estava farta de guerra. Queria descansar, rir, plantar árvores e vê-las crescer. Não passo de uma rapariguinha.

Não. Sois do sangue do dragão. Os sussurros estavam a tornar-se mais ténues, como se Sor Jorah estivesse a deixar-se ficar mais para trás. Os dra­gões não plantam árvores. Lembrai-vos disso. Lembrai-vos de quem sois, do que fostes feita para fazer. Lembrai-vos do vosso lema.

— Fogo e Sangue — disse Daenerys à erva oscilante.

Uma pedra virou-se sob o seu pé. Caiu sobre um joelho e gritou de dor, esperando contra a esperança que o seu urso pegasse nela e a ajudasse a pôr-se em pé. Quando virou a cabeça para o procurar, tudo o que viu foi um fio de água castanha... e a erva, ainda a mexer-se levemente. O vento, disse a si própria, o vento sacode os caules efá-los oscilar. Só que não esta­va a soprar vento algum. O sol brilhava no alto, o mundo estava imóvel e quente. Mosquitos enxameavam no ar, e uma libélula flutuava por cima do riacho, dardejando de um lado para o outro. E a erva estava a mexer-se, quando não tinha nenhuma razão para se mexer.

Procurou na água às apalpadelas, descobriu uma pedra do tamanho do punho, arrancou-a da lama. Era fraca arma, mas melhor do que uma mão vazia. Pelo canto do olho, Dany viu a erva mover-se outra vez, à sua direita. A erva oscilou e fez uma profunda vénia, como se estivesse peran­te um rei, mas nenhum rei lhe apareceu. O mundo estava verde e vazio. O mundo estava verde e silencioso. O mundo estava amarelo, moribundo. Devia levantar-me, disse a si própria. Tenho de caminhar. Tenho de seguir o ribeiro.

Através da erva soou um suave tinido prateado.

Campainhas, pensou Dany, sorrindo, lembrando-se de Khal Drogo, do seu sol-e-estrelas, e das campainhas que entrançava no cabelo. Quando o Sol nascer a ocidente e se puser a oriente, quando os mares secarem e as mon­tanhas forem sopradas pelo vento como folhas, quando o meu ventre voltara ganhar vida e eu der à luz um filho vivo, Khal Drogo voltará para mim.

Mas nenhuma dessas coisas acontecera. Campainhas, voltou Dany a pensar. Os seus companheiros de sangue tinham-na encontrado.

— Aggo — sussurrou. — Jhogo. Rakharo. — Poderia Daario ter vin­do com eles?

O mar verde abriu-se. Um cavaleiro surgiu. A sua trança era negra e brilhante, a sua pele tão escura como cobre polido, os olhos da forma de amêndoas amargas. Campainhas cantavam no seu cabelo. Usava um cinto de medalhões e um colete pintado, com um arakh a uma anca e um chicote na outra. Um arco de caça e uma aljava cheia de setas estavam pendurados da sua sela.

Um cavaleiro, e sozinho. Um batedor. Era um dos que avançavam à frente do khalasar para encontrar a caça e a boa erva verde, e farejar inimi­gos onde quer que se pudessem esconder. Se a encontrasse ali, iria matá-la, violá-la ou escravizá-la. Na melhor das hipóteses, enviá-la-ia às velhas do dosh khaleen, para onde as boas khaleesi deviam ir quando os seus khals morriam.

Mas ele não a vira. A erva ocultava-a, e ele estava a olhar para outro sítio. Dany seguiu os seus olhos, e ali voava a sombra, com asas bem aber­tas. O dragão estava a quilómetro e meio de distância, mas apesar disso o batedor manteve-se imóvel até que o seu garanhão começou a relinchar de medo. Então despertou, como que de um sonho, fez a montada dar meia volta e precipitou-se a galope através da erva alta.

Dany observou-o a partir. Quando o som dos seus cascos se desva­neceu em silêncio, desatou a gritar. Chamou até ficar rouca... e Drogon veio, resfolegando nuvenzinhas de fumo. A erva vergou debaixo dele. Dany saltou-lhe para as costas. Fedia a sangue, a suor e a medo, mas nada disso importava.

— Para ir em frente tenho de voltar para trás — disse. As pernas nuas apertaram-se em volta do pescoço do dragão. Deu-lhe com os calcanhares, e Drogon atirou-se ao céu. Perdera o chicote, pelo que usou as mãos e os pés e virou-o para nordeste, na direção que o batedor seguira. Drogon foi de uma forma bastante pronta; talvez lhe cheirasse ao medo do cavaleiro.

Numa dúzia de segundos ultrapassaram o dothraki, enquanto ele ga­lopava muito abaixo. À esquerda e à direita, Dany vislumbrou lugares onde a erva estava queimada e feita em cinzas. Drogon já antes veio por aqui, compreendeu. Como uma cadeia de ilhas cinzentas, as marcas da sua caça salpicavam o verde mar de erva.

Uma vasta manada de cavalos surgiu debaixo deles. Também havia cavaleiros, uma vintena ou mais, mas viraram-se e fugiram assim que vi­ram o dragão. Os cavalos quebraram e fugiram quando a sombra caiu so­bre eles, correndo pela erva até ficarem com os flancos brancos de espuma, rasgando o terreno com os cascos... mas por mais rápidos que fossem, não conseguiam voar. Depressa, um cavalo começou a ficar para trás relativa­mente aos outros. O dragão desceu sobre ele a rugir, e de repente o pobre animal ficou em chamas, mas sem que Dany soubesse como continuou a correr, gritando a cada passo, até que Drogon aterrou em cima dele e lhe quebrou a coluna. Dany agarrou-se ao pescoço do dragão com todas as suas forças para evitar deslizar de cima dele.

A carcaça era pesada demais para o dragão a levar para o covil, por­tando Drogon consumiu ali a presa, abocanhando a carne esturricada en­quanto as ervas ardiam à volta deles, com o ar pesado com o fumo sopra­do pelo vento e o cheiro a pelagem queimada de cavalo. Dany, faminta, deixou-se cair de cima do dragão e comeu com ele, arrancando bocados de carne fumegante do cavalo morto com mãos nuas e queimadas. Em Meereen fui uma rainha vestida de seda, mordiscando tâmaras recheadas e car­neiro com mel, recordou. Que pensaria o meu nobre esposo se me pudesse ver agora? Hizdahr ficaria horrorizado, sem dúvida. Mas Daario...

Daario rir-se-ia, cortaria um bocado de carne de cavalo com o seu arakh e acocorar-se-ia para comer a seu lado.

Enquanto o céu ocidental ficava da cor de uma nódoa negra, ouviu o som de cavalos que se aproximavam. Dany levantou-se, limpou as mãos à túnica interior esfarrapada, e foi pôr-se ao lado do seu dragão.

Foi assim que Khal Jhaqo a encontrou, quando meia centena de guer­reiros a cavalo emergiram do fumo soprado pelo vento.


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