O DOMADOR DE DRAGÕES


A noite passou sobre lentos pés negros. A hora do morcego cedeu lugar à hora da enguia, a hora da enguia à hora dos fantasmas. O príncipe mante­ve-se deitado na cama, fitando o teto, sonhando sem dormir, recordando, imaginando, remexendo-se sob a colcha de linho, com a mente febril cheia de pensamentos sobre fogo e sangue.

Por fim, desesperando do descanso, Quentyn Martell dirigiu-se ao aposento privado, onde se serviu de uma taça de vinho e a bebeu no escuro. O sabor foi um consolo doce na sua língua, portanto acendeu uma vela e serviu-se de outra. Vinho ajudar-me-á a dormir, disse a si próprio, mas sabia que isso era uma mentira.

Fitou a vela durante muito tempo, após o que pousou a taça e pôs a mão por cima da chama. Precisou de todas as migalhas de força de vontade que possuía para a baixar até que o fogo lhe tocasse na pele, e quando o fez puxou a mão com um grito de dor.

— Quentyn, estás doido?

Não, só assustado. Não quero arder.

— Gerris?

— Ouvi-te a andar por aí.

— Não conseguia dormir.

— Queimaduras são uma cura para isso? Leite quente e uma canção de embalar talvez te fossem mais úteis. Ou, melhor ainda, devia levar-te ao Templo das Graças e arranjar-te uma rapariga.

— Uma rameira, queres tu dizer.

— Chamam-lhes Graças. Têm várias cores. As vermelhas são as úni­cas que se fodem. — Gerris sentou-se do outro lado da mesa. — Se me pedires a opinião, as septãs, lá na terra, deviam adotar o costume. Reparaste que todas as septãs velhas parecem ameixas secas? É o que uma vida de castidade te faz.

Quentyn deitou um relance ao terraço, onde as sombras da noite ja­ziam densas entre as árvores. Ouvia o suave som da água a cair.

— Aquilo é chuva? As tuas rameiras já se terão ido embora.

— Nem todas. Há uns recantozinhos nos jardins do prazer, e elas fi­cam aí à espera todas as noites até que um homem as escolha. As que não forem escolhidas têm de ficar lá até ao Sol nascer, sentindo-se sós e abando­nadas. Podíamos consolá-las.

— O que tu queres dizer é que elas podiam consolar-me a mim.

— Isso também.

— Não é desse tipo de consolo que eu preciso.

— Discordo. Daenerys Targaryen não é a única mulher do mundo. Queres morrer donzel?

Quentyn não queria morrer de todo. Quero voltar para Yronwood e beijar ambas as tuas irmãs, casar com Gwyneth Yronwood, vê-la rebentarem beleza, ter um filho com ela. Quero cavalgarem torneios, fazer falcoaria e ca­çar, visitar a minha mãe em Norvos, ler alguns daqueles livros que o meu pai me manda. Quero que Cletus, Will e o Meistre Kedry estejam de novo vivos.

— Achas que Daenerys ficaria contente se ouvisse dizer que eu me tinha deitado com uma rameira qualquer?

— Talvez ficasse. Os homens têm um fraquinho por donzelas, mas as mulheres gostam de um homem que saiba o que fazer na cama. É outra espécie de esgrima. É preciso treinar para se ser bom.

A chacota picou. Quentyn nunca se sentira tão rapaz como quando se apresentara a Daenerys Targaryen, suplicando-lhe a mão. A ideia de se deitar com ela aterrorizava-o, quase tanto como os dragões o tinham ater­rorizado. E se não conseguisse dar-lhe prazer?

— Daenerys tem um amante — disse, em tom defensivo. — O meu pai não me mandou para cá para divertir a rainha no quarto. Sabes porque viemos.

— Não podes casar com ela. Tem marido.

— Ela não ama Hizdahr zo Loraq.

— Que tem o amor a ver com casamento? Um príncipe devia estar melhor informado. O teu pai casou por amor, diz-se. Quanta alegria obteve ele disso?

Menos que pouca. Doran Martell e a sua esposa norvoshi tinham pas­sado metade do casamento separados e a outra metade a discutir. Fora a única coisa impetuosa que o pai fizera na vida, segundo se dizia, a única altura em que seguira o coração em vez da cabeça, e vivera para se arrepen­der.

— Nem todos os riscos levam à ruína — insistiu. — Este é o meu dever. O meu destino. — Tu supostamente és meu amigo, Gerris. Porque tens de troçar das minhas esperanças? Já tenho dúvidas suficientes sem que despejes azeite no fogo do meu medo. — Esta será a minha grande aventura.

— Homens morrem em grandes aventuras.

Não se enganava. Isso também estava nas histórias. O herói parte com os amigos e companheiros, enfrenta perigos, volta para casa triunfante. Só que alguns dos companheiros não regressam. Mas o herói nunca morre. Eu devo ser o herói.

— Só preciso de coragem. Queres que Dorne me recorde como um falhado?

— Não e provável que Dorne recorde nenhum de nós por muito tem­po.

Quentyn chupou o ponto queimado na palma da sua mão.

— Dorne recorda Aegon e as irmãs. Dragões não se esquecem assim tão facilmente. Também recordarão Daenerys.

— Se ela estiver morta, não.

— Está viva. — Tem de estar. — Está perdida, mas eu posso encon­trá-la. — E quando encontrar, olhará para mim como olha para o seu merce­nário. Depois de me mostrar digno dela.

— De cima de um dragão?

— Monto a cavalo desde os seis anos.

— E foste atirado ao chão duas ou três vezes.

— Isso nunca me impediu de voltar a subir para a sela.

— Nunca foste atirado ao chão de trezentos metros de altura — fez notar Gerris. — E é raro que os cavalos transformem os cavaleiros em ossos esturricados e cinzas.

Eu conheço os perigos.

— Não quero ouvir mais nada sobre isto. Tens a minha licença para te ires embora. Arranja um navio e corre para casa, Gerris. — O príncipe levantou-se, apagou a vela com um sopro e voltou a meter-se na cama e nos lençóis ensopados em suor. Devia ter beijado uma das gémeas Drinkwater, talvez as duas. Devia tê-las beijado enquanto pude. Devia ter ido a Norvos ver a minha mãe e o lugar que a deu à luz, para que soubesse que não a esque­ci. Ouvia a chuva a cair lá fora, tamborilando contra os tijolos.

Quando a hora do lobo chegou, a chuva estava a cair continuamente, precipitando-se numa torrente dura e fria que depressa transformaria as ruas de tijolo de Meereen em rios. Os três dorneses quebraram o jejum no frio que antecedia a aurora; uma refeição simples de fruta, pão e queijo, empurrada para baixo com leite de cabra. Quando Gerris fez tenção de se servir de uma taça de vinho, Quentyn impediu-o.

— Vinho não. Haverá tempo suficiente para beber depois.

— Espera-se — disse Gerris.

O grandalhão olhou para o terraço.

— Eu sabia que ia chover — disse, num tom sombrio. — Ontem à noite tive dor nos ossos. Doem-me sempre antes de chover. Os dragões não vão gostar disto. Fogo e água não se misturam, e isso é um facto. Acendes uma boa fogueira para cozinhar, deixa-la a arder bem, depois começa a cair chuva e quando dás por ti tens a lenha ensopada e as chamas mortas.

Gerris soltou uma gargalhadinha.

— Os dragões não são feitos de madeira, Arch.

— Alguns são. Aquele velho Rei Aegon, o excitadinho, construiu dra­gões de madeira para nos conquistar. Mas isso acabou mal.

Isto também pode acabar mal, pensou o príncipe. As loucuras e fa­lhanços de Aegon, o Indigno, não lhe diziam respeito, mas estava cheio de dúvidas e pressentimentos. A galhofa pouco natural dos amigos só estava a fazer com que lhe doesse a cabeça. Eles não compreendem. Podem ser dorneses, mas eu sou Dome. Daqui a anos, quando estiver morto, será esta a canção que cantarão sobre mim. Levantou-se de repente.

— Está na altura.

Os amigos puseram-se de pé. Sor Archibald emborcou o resto do seu leite de cabra e limpou o bigode de leite do lábio superior com as costas de uma grande mão.

— Vou buscar o nosso vestuário de saltimbancos.

Regressou com a trouxa que tinham recebido do Príncipe Esfarrapa­do na segunda reunião. Lá dentro estavam três longos mantos com capuz feitos com uma miríade de pequenos quadrados de pano cosidos uns aos outros, três mocas, três espadas curtas, três máscaras de bronze polido. Um touro, uni leão e um macaco.

Tudo o que era necessário para se ser um Fera de Bronze.

— Eles talvez peçam uma senha — avisara-os o Príncipe Esfarrapa­do, quando lhes entregara a trouxa. — E cão.

— Tendes a certeza? — perguntara-lhe Gerris.

— A suficiente para apostar nisso uma vida.

O príncipe não se iludira quanto ao que ele queria dizer.

— A minha vida.

— E essa, sim.

— Como soubestes a senha?

— Calhou encontrarmos uns Feras de Bronze e Meris perguntou-lhes com lindeza. Mas um príncipe devia saber que não é boa ideia fazer per­guntas destas, dornês. Em Pentos temos um ditado. Nunca perguntes a um padeiro com que é feita a tarte. Limita-te a comer.

Limita-te a comer. Quentyn supunha que havia sabedoria naquilo.

— Eu serei o touro — anunciou Arch.

Quentyn entregou-lhe a máscara de touro.

— Para mim é o leão.

— O que faz de mim macaco. — Gerris encostou a máscara de maca­co à cara. — Como é que eles respiram com estas coisas?

— Limita-te a pô-la. — O príncipe não estava com disposição para brincadeiras.

A trouxa continha também um chicote; um perigoso bocado de cou­ro velho com cabo de latão e osso, suficientemente robusto para arrancar a pele a um boi.

— Para que serve isso? — perguntou Arch.

— Daenerys usou um chicote para intimidar a fera preta. — Quentyn enrolou o chicote e pendurou-o do cinto. — Arch, traz também o teu mar­telo. Podemos precisar dele.

Não era fácil entrar de noite na Grande Pirâmide de Meereen. As portas eram fechadas e trancadas todos os dias ao pôr-do-sol, e permane­ciam fechadas até à primeira luz da aurora. Estavam colocados guardas a todas as entradas, e mais guardas patrulhavam o terraço inferior, de onde podiam observar a rua. Anteriormente, esses guardas tinham sido Imacu­lados. Agora eram Feras de Bronze. E isso faria toda a diferença, esperava Quentyn.

O turno mudava quando o Sol nascia, mas a aurora ainda distava meia hora quando os três dorneses desceram pela escada dos criados. As paredes que os rodeavam eram feitas de tijolos de meia centena de cores, mas as sombras transformavam-nos a todos em cinzento até serem tocados pela luz do archote que Gerris transportava. Não encontraram ninguém na longa descida. O único som era o raspar das botas nos gastos tijolos sob os seus pés.

Os portões principais da pirâmide davam para a praça central de Me­ereen, mas os dorneses dirigiram-se a uma entrada lateral que abria para uma viela. Aquelas eram as portas que os escravos tinham usado em dias idos quando tratavam dos assuntos dos seus amos, as portas por onde o povo e os mercadores entravam e saíam e faziam as suas entregas.

As portas eram de bronze sólido, trancadas com uma pesada barra de ferro. À frente delas estavam dois Feras de Bronze, armados com mocas, lanças e espadas curtas. A luz do archote reluzia no bronze polido das suas máscaras; uma ratazana e uma raposa. Quentyn indicou com um gesto ao grandalhão para ficar para trás nas sombras. Ele e Gerris avançaram juntos.

— Chegastes cedo — disse a raposa.

Quentyn encolheu os ombros.

— Podemos ir-nos outra vez embora, se quiseres. Por mim, podes cumprir o meu turno. — Bem sabia que não soava nada como um ghiscariota; mas metade dos Feras de Bronze eram escravos libertados, com todos os tipos de línguas nativas, portanto o seu sotaque passava despercebido.

— Cumpro, o caralho — disse a ratazana.

— Dá-nos a senha de hoje — disse a raposa.

— Cão — disse o dornês.

Os dois Feras de Bronze trocaram um olhar. Durante três longos se­gundos, Quentyn teve receio de que algo tivesse corrido mal, de que de alguma forma a Linda Meris e o Príncipe Esfarrapado tivessem arranjado a senha errada. Depois a raposa grunhiu.

— Então é cão — disse. — A porta é vossa. — Quando se afastaram, o príncipe recomeçou a respirar.

Não tinham muito tempo. A verdadeira rendição apareceria em bre­ve, sem dúvida.

— Arch — chamou, e o grandalhão surgiu, com a luz dos archotes a brilhar na máscara de touro. — A barra. Depressa.

A barra de ferro era grossa e pesada, mas estava bem oleada. Sor Archibald não teve dificuldade em erguê-la. Enquanto a pousava apoiada numa das extremidades, Quentyn abriu as portas e Gerris atravessou-as, brandindo o archote.

— Trá-la já para dentro. Despacha-te.

A carroça do carniceiro estava lá fora, à espera na viela. O condutor deu com o chicote na mula e entrou com estrondo, fazendo as rodas re­forçadas a ferro ressoar ruidosamente nos tijolos. A carcaça esquartejada de um boi enchia a caixa da carroça, auxiliada por duas ovelhas mortas. Meia dúzia de homens entraram a pé. Cinco usavam os mantos e más­caras de Feras de Bronze, mas a Linda Meris não se incomodara com disfarces.

— Onde está o teu senhor? — perguntou a Meris.

— Não tenho senhor nenhum — respondeu ela. — Se vos referis ao vosso colega príncipe, está por perto, com cinquenta homens. Trazei o vos­so dragão cá para fora, e ele faz-vos sair em segurança, conforme prometi­do. Quem comanda aqui é o Caggo.

Sor Archibald estava a examinar a carroça do carniceiro com um olho amargo.

— Aquela carroça vai ser suficientemente grande para conter um dragão? — perguntou.

— Deve ser. Conteve dois bois. — O Mata-Cadáveres estava vestido de Fera de Bronze, com a cara marcada e cheia de cicatrizes escondida por trás de uma máscara em forma de cobra, mas o familiar arakh negro que trazia à anca denunciava-o. — Fomos informados de que estas feras são mais pequenas do que o monstro da rainha.

— O fosso abrandou-lhes o crescimento. — As leituras de Quentyn sugeriam que a mesma coisa ocorrera nos Sete Reinos. Nenhum dos dra­gões nascido e criado no Fosso dos Dragões de Porto Real se aproximara do tamanho de Vhagar ou de Meraxes, muito menos do Terror Negro, o monstro do Rei Aegon. — Trouxestes correntes suficientes?

— Quantos dragões tendes? — disse a Linda Meris. — Temos corren­tes suficientes para dez, escondidas por baixo da carne.

— Muito bem. — Quentyn sentia a cabeça leve. Nada daquilo parecia bem real. Num momento parecia um jogo, no seguinte um pesadelo qual­quer, como um sonho em que desse por si a abrir uma porta escura, saben­do que o horror e a morte esperavam do outro lado, mas mesmo assim im­potente para se pôr travão. Tinha as palmas das mãos escorregadias de suor. Limpou-as nas pernas e disse: — Haverá mais guardas à porta do fosso.

— Nós sabemos — disse Gerris.

— Temos de estar prontos para eles.

— Estamos — disse Arch.

Apareceu uma dor na barriga de Quentyn. Sentiu uma súbita neces­sidade de mover as tripas, mas sabia que não se atreveria a afastar-se agora.

— Então por aqui. — Raramente se sentira mais rapaz. No entanto eles seguiram-no; Gerris e o grandalhão, Meris e Caggo e os outros Aventados. Dois dos mercenários tinham tirado bestas de algum esconderijo na carroça.

Depois dos estábulos, o piso térreo da Grande Pirâmide transforma­va-se num labirinto, mas Quentyn Martell passara por ali com a rainha e lembrava-se do caminho. Passaram sob três enormes arcos de tijolo, depois desceram uma íngreme rampa de pedra que levava às profundezas, atraves­saram as masmorras e salas de tortura e passaram por um par de profundas cisternas de pedra. Os seus passos ecoavam ocamente nas paredes, com a carroça do carniceiro a trovejar atrás deles. O grandalhão tirou um archote de uma arandela de parede para iluminar o caminho.

Por fim, um par de pesadas portas de ferro ergueu-se na frente de­les, corroído pela ferrugem e ameaçador, fechado com uma corrente com elos grossos como o braço de um homem. O tamanho e espessura daquelas portas bastou para levar Quentyn Martell a questionar a sensatez do que estava a fazer. Ainda pior, ambas as portas tinham claramente sido amolgadas por algo que, no interior, tentava sair. O espesso ferro estava estalado e a abrir-se em três pontos, e o canto superior da porta da esquerda parecia parcialmente derretido.

Quatro Feras de Bronze estavam de guarda à porta. Três tinham nas mãos lanças longas; o quarto, o sargento, estava armado com espada curta e punhal. A sua máscara fora trabalhada para tomar a forma de uma cabeça de basilisco. Os outros três estavam mascarados de insetos.

Gafanhotos, apercebeu-se Quentyn.

— Cão — disse.

O sargento ficou hirto.

Foi o bastante para Quentyn Martell compreender que algo correra mal.

— Apanhai-os — coaxou, no preciso momento em que a mão do basilisco saltou para a espada curta.

Era rápido, aquele sargento. O grandalhão era-o mais. Atirou o ar­chote ao gafanhoto mais próximo e pegou no martelo de guerra, a lâmina do basilisco mal saíra da sua bainha de couro quando o espigão do martelo se esmagou contra a têmpora do homem, atravessando o fino bronze da sua máscara e a pele e o osso que havia por baixo. O sargento cambaleou meio passo para o lado antes de os joelhos se dobrarem sob o seu corpo e se afundar no chão, todo a tremer de forma grotesca.

Quentyn fitou-o, petrificado, com a barriga às cambalhotas. A sua arma continuava ainda na respetiva bainha. Nem sequer estendera a mão para ela. Os seus olhos estavam presos ao sargento que morria a estrebu­char na sua frente. O archote caído estava no chão, apagando-se, fazendo todas as sombras saltar e torcer-se numa monstruosa caricatura dos estre­mecimentos do morto. O príncipe só viu a lança do gafanhoto vir na sua direção quando Gerris colidiu com ele fazendo-o cair de lado. A ponta da lança roçou na bochecha da cabeça de leão que usava. Mesmo assim o gol­pe foi tão violento que quase lhe arrancou a máscara. Ter-me-ia acertado em cheio na garganta, pensou o príncipe, entontecido.

Gerris praguejou quando os gafanhotos se aproximaram dele, rodeando-o. Quentyn ouviu o som de pés em corrida. Depois, os mercená­rios saíram a correr das sombras. Um dos guardas deitou-lhes um relance apenas longo o suficiente para Gerris penetrar na zona defendida pela sua lança. Enfiou a ponta da espada sob a máscara de bronze, trespassando a garganta do homem que a usava, no momento em que do peito do segundo gafanhoto brotava um dardo de besta.

O último gafanhoto deixou cair a lança.

— Rendo-me. Rendo-me.

— Não. Morres. — Caggo cortou a cabeça do homem com um movi­mento de arakh, e o aço valiriano cortou carne, osso e cartilagem como se não passassem de banha. — Demasiado barulho — protestou. — Qualquer homem com ouvidos deve ter ouvido isto.

— Cão — disse Quentyn. — A senha do dia devia ser cão. Porque não nos deixaram eles passar? Foi-nos dito...

— Foi-vos dito que o vosso plano era uma loucura, esquecestes-vos? — disse a Linda Meris. — Fazei o que viestes fazer.

Os dragões, pensou o Príncipe Quentyn. Sim. Viemos buscar os dra­gões. Sentiu-se doente. Que estou eu a fazer aqui? Pai, porquê? Quatro ho­mens mortos em outros tantos segundos, e para quê?

— Fogo e sangue — sussurrou — sangue e fogo. — O sangue estava a acumular-se a seus pés, ensopando o chão de tijolo. O fogo estava do outro lado daquelas portas. — As correntes... não temos chave...

Arch disse:

— Eu tenho a chave. — Brandiu com violência e rapidez o macha­do de guerra. Voaram centelhas quando a cabeça do machado atingiu a fechadura. E depois outra vez, outra vez, outra vez. À quinta, a fechadura estilhaçou-se, e as correntes caíram num retinir tão ruidoso que Quentyn teve a certeza de que meia pirâmide tinha de o ter ouvido.

— Trazei a carroça. — Os dragões estariam mais dóceis depois de serem alimentados. Eles que se empanturrem de carneiro esturricado.

Archibald Yronwood agarrou nas portas de ferro e separou-as. As dobradiças ferrugentas soltaram um par de gritos, para todos aqueles que tivessem continuado a dormir depois da quebra da fechadura. Uma vaga de um súbito calor assaltou-os, carregada com cheiros a cinza, enxofre e carne queimada.

Atrás das portas tudo era negro, uma carrancuda escuridão infer­nal que parecia viva e ameaçadora, faminta. Quentyn conseguia sentir que havia algo nessas trevas, enrolado e à espera. Guerreiro, dá-me co­ragem, rezou. Não queria fazer aquilo, mas não via outra maneira. Por que outro motivo me teria Daenerys mostrado os dragões? Ela quer que eu lhe prove o que valho. Gerris entregou-lhe um archote. Atravessou as portas.

O verde é Rhaegal, o branco Viserion, lembrou a si próprio. Usa os seus nomes, comanda-os, fala-lhes com calma mas severidade. Domina-os, como Daenerys dominou Drogon na arena. A rapariga estivera sozinha, vestida de farrapos de seda, mas sem medo. Não posso ter medo. Ela fê-lo, eu também posso. O principal era não mostrar medo. Os animais conse­guem cheirar o medo, e os dragões... Que sabia ele sobre dragões? Que sabe qualquer homem sobre dragões? Há mais de um século que desapareceram do mundo.

A borda do fosso estava logo em frente. Quentyn avançou lentamen­te, movendo o archote de um lado para o outro. As paredes, o chão e o teto bebiam a luz. Calcinados, compreendeu. Tijolos calcinados até ficarem negros, a desfazerem-se em cinzas. O ar foi-se tornando mais quente a cada passo que dava. Começou a suar.

Dois olhos ergueram-se na sua frente.

Eram de bronze, mais brilhantes do que escudos polidos, brilhando com o seu próprio calor, ardendo por trás de um véu de fumo que se er­guia das narinas do dragão. A luz do archote de Quentyn cobriu escamas verdes escuras, o verde do musgo na floresta profunda ao lusco-fusco, logo antes de a última luz se desvanecer. Depois, o dragão abriu a boca e a luz e o calor cobriram-nos. Por trás de uma paliçada de dentes negros aguçados vislumbrou o brilho da fornalha, o tremeluzir de um fogo adormecido cem vezes mais brilhante do que o seu archote. A cabeça do dragão era maior do que a de um cavalo, e o pescoço prolongava-se sem fim, desenrolando-se como uma grande serpente enquanto a cabeça se erguia, até aqueles dois brilhantes olhos de bronze o olharem de cima.

Verdes, pensou o príncipe, as escamas dele são verdes.

— Rhaegal — disse. A voz prendeu-se-lhe na garganta, e o que saiu foi um coaxar quebrado. Sapo, pensou. Estou a transformar-me outra vez no Sapo. — A comida — coaxou, lembrando-se. — Trazei a comida.

O grandalhão ouviu-o. Arch arrancou uma das ovelhas da carroça pegando-lhe em duas das patas, rodopiou e atirou-a ao fosso.

Rhaegal apanhou-a no ar. A sua cabeça deu uma volta rápida, e uma lança de chamas irrompeu de entre as maxilas, uma tempestade turbilhonante de fogo amarelo e cor de laranja, trespassado de veios verdes. A ove­lha já ardia antes de começar a cair. Antes de a carcaça fumegante ter tempo de atingir os tijolos, os dentes do dragão fecharam-se à sua volta. Um halo de chamas ainda tremeluzia em volta do corpo. O ar fedia a lã a arder e a enxofre. Fedor de dragão.

— Julgava que eram dois — disse o grandalhão.

Viserion. Sim. Onde está Viserion? O príncipe baixou o archote para atirar alguma luz para as sombras, lá em baixo. Viu o dragão verde a dila­cerar a carcaça fumegante da ovelha, atirando chicoteadas laterais com a longa cauda enquanto comia. Uma grossa coleira de ferro estava visível em volta do seu pescoço, com um metro de corrente quebrada dela pendura­da. Elos estilhaçados estavam espalhados pelo chão do fosso entre os ossos enegrecidos; bocados de metal retorcido, parcialmente derretido. Rhaegal estava acorrentado à parede e ao chão da última vez que aqui estive, recor­dou o príncipe, mas Viserion estava pendurado do teto. Quentyn recuou um passo, ergueu o archote, inclinou a cabeça para trás.

Por um momento, viu apenas os arcos enegrecidos de tijolos lá em cima, calcinados por fogo de dragão. Uma pequena cascata de cinza captu­rou-lhe o olhar, traindo movimento. Algo claro, meio oculto, mexendo-se. Ele fez para si uma gruta, compreendeu o príncipe. Uma toca no tijolo. As fundações da Grande Pirâmide eram maciças e grossas para suportar o peso da enorme estrutura que tinham em cima; até as paredes interiores eram três vezes mais grossas do que a muralha exterior de qualquer castelo. Mas Viserion escavara nelas um buraco para si, com chamas e garras, um buraco suficientemente grande para nele dormir.

E acabámos de acordá-lo. Via o que parecia ser uma enorme ser­pente branca a desenrolar-se dentro da parede, onde ela se curvava para se transformar em teto. Mais cinza caiu lentamente, e um bocado de tijolo a desfazer-se caiu também. A serpente separou-se em pescoço e cauda, e depois surgiu a longa cabeça provida de chifres do dragão, com os olhos a brilhar no escuro como brasas douradas. As asas do animal rufaram, esten­dendo-se.

Todos os planos de Quentyn tinham fugido da sua cabeça. Ouviu Caggo Mata-Cadáveres a gritar aos seus mercenários. As correntes, ele está a mandar buscar as correntes, pensou o príncipe dornês. O plano fora ali­mentar as feras e acorrentá-las quando estivessem entorpecidas, tal como a rainha fizera. Um dragão, ou dois, de preferência.

— Mais carne — disse Quentyn. Depois de os animais estarem ali­mentados, tornar-se-ão indolentes. Vira isso acontecer com serpentes, em Dorne, mas ali, com aqueles monstros... — Trazei... trazei...

Viserion atirou-se do teto, abrindo asas de couro pálidas, estendendo-as bem. A corrente quebrada que lhe pendia do pescoço oscilou violen­tamente. A sua chama iluminou o fosso, ouro pálido trespassado de verme­lho e laranja, e o ar viciado explodiu numa nuvem de cinza quente e enxofre enquanto as asas brancas batiam e voltavam a bater.

Uma mão pegou no ombro de Quentyn. O archote caiu-lhe da mão, a rodopiar, ricocheteou no chão e depois caiu ao fosso, ainda a arder. Deu por si a encarar um macaco de bronze. Gerris.

— Quent, isto não vai resultar. Eles são demasiado selvagens, são...

O dragão caiu entre os dorneses e a porta com um rugido que teria feito fugir cem leões. A sua cabeça moveu-se de um lado para o outro en­quanto inspecionava os intrusos; dorneses, Aventados, Caggo. A fera di­rigiu o último e mais longo dos olhares para a Linda Meris, farejando. A mulher, apercebeu-se Quentyn. Ele sabe que ela é do sexo feminino. Está á procura de Daenerys. Quer a mãe, e não compreende porque não está aqui.

Quentyn soltou-se da mão de Gerris.

— Viserion — chamou. O branco é Viserion. Durante meio segundo temeu ter-se enganado. — Viserion — voltou a chamar, procurando aos apalpões o chicote que lhe pendia do cinto. Ela intimidou o preto com um chicote. Tenho de fazer o mesmo.

O dragão conhecia o seu nome. A cabeça virou-se e o seu olhar de­morou-se no príncipe dornês durante três longos segundos. Pálidos fogos ardiam por trás dos brilhantes punhais negros dos dentes. Os olhos eram lagos de ouro derretido, e fumo erguia-se das suas narinas.

— Para baixo — disse Quentyn. Depois tossiu e voltou a tossir. O ar estava pesado de fumo e o fedor a enxofre era sufocante.

Viserion perdeu o interesse. O dragão voltou a virar-se para os Aven­tados e saltou na direção da porta. Talvez conseguisse cheirar o sangue dos guardas mortos ou a carne na carroça do carniceiro. Ou talvez só agora tivesse visto que o caminho estava aberto.

Quentyn ouviu os mercenários gritar. Caggo estava a pedir as correntes e a Linda Meris gritava com alguém que se afastasse. O dragão des­locava-se desajeitadamente no chão, como um homem a rastejar sobre os joelhos e os cotovelos, mas era mais rápido do que o príncipe dornês teria julgado possível. Quando o Aventado foi demasiado lento a sair-lhe do ca­minho, Viserion soltou outro rugido. Quentyn ouviu o retinir de correntes, o profundo trum de uma besta.

— Não — gritou — não, não, não — mas era tarde demais. Só teve tempo de pensar o idiota quando o dardo ricocheteou no pescoço de Vi­serion para ir desaparecer nas sombras. Uma linha de fogo cintilou na sua esteira; sangue de dragão, a brilhar, dourado e vermelho.

O besteiro procurava desajeitadamente outro dardo quando os den­tes do dragão se fecharam em volta do seu pescoço. O homem usava a más­cara de um Fera de Bronze, o temível retrato de um tigre. Quando deixou cair a arma para tentar separar as maxilas de Viserion, chamas pingaram da boca do tigre. Os seus olhos rebentaram com o suave som de rolhas a saltar, e o bronze à volta deles começou a escorrer. O dragão arrancou um bocado de carne, principalmente do pescoço do mercenário, após o que o devorou enquanto o cadáver queimado caía ao chão.

Os outros Aventados estavam a recuar. Nem a Linda Meris tinha es­tômago para tanto. A cabeça chifruda de Viserion moveu-se de um lado para o outro, entre eles e a presa, mas passado um momento esqueceu os mercenários e dobrou o pescoço para arrancar outra dentada do morto. Daquela vez foi uma perna.

Quentyn deixou que o chicote se desenrolasse.

— Viserion — chamou, daquela vez mais alto. Era capaz de fazer aquilo, era capaz de fazer aquilo, o pai enviara-o até aos distantes confins da terra para aquilo, não lhe falharia. — VISERION! — Fez estalar o chicote no ar com um estrondo que ecoou nas paredes enegrecidas.

A cabeça clara ergueu-se bem alto. Os grandes olhos dourados estrei­taram-se. nuvenzinhas de fumo saídas das narinas do dragão espiralaram para cima.

— Para baixo — ordenou o príncipe. Não podes deixar que ele cheire o teu medo. — Para baixo, para baixo, para baixo. — Fez a ponta do chicote descrever um círculo no ar e atirou uma chicotada ao focinho do dragão. Viserion silvou.

Então um vento quente esbofeteou-o, ouviu o som de asas de couro e o ar ficou cheio de cinzas e faúlhas e um monstruoso rugido ecoou nos tijo­los crestados e enegrecidos e ouviu os amigos a gritar descontroladamente. Gerris gritava o seu nome, uma e outra vez, e o grandalhão berrava:

— Atrás de ti, atrás de ti, atrás de ti,

Quentyn virou-se e pôs o braço esquerdo em frente da cara para proteger os olhos do vento de fornalha. Rhaegal, fez lembrar a si próprio, o verde é Rhaegal.

Quando ergueu o chicote, viu que estava a arder. A sua mão também. Todo ele, todo ele estava a arder.

Oh, pensou. Depois desatou a gritar.



Загрузка...