DAENERYS

A vela já quase se fora. Restavam menos de três centímetros, que se projetavam de um charco de cera quente derretida e deitavam a sua luz sobre a cama da rainha. A chama começara a vacilar.

Vai apagar-se não tarda muito, compreendeu Dany, e quando o fizer outra noite chegará ao fim.

A aurora chegava sempre cedo demais.

Ela não dormira, não pudera dormir, não quisera dormir. Nem sequer se atrevera a fechar os olhos, por temer que fosse manhã quando os voltasse a abrir. Se ao menos tivesse poder para tal, teria feito com que as noites que passavam juntos se prolongassem para sempre, mas o melhor que podia fazer era ficar acordada para tentar saborear todos os momentos de doçura antes de a alvorada os transformar em nada mais que memórias que se apagavam.

A seu lado, Daario Naharis dormia tão pacificamente como um bebé recém-nascido. Gabava-se de que tinha um dom para dormir, sorrindo daquela sua maneira arrogante. Em campo, segundo afirmava, era frequente dormir na sela para estar bem repousado no caso de deparar com uma batalha. Sol ou tempestade, não importava.

— Um guerreiro que não consegue dormir depressa deixa de ter força para combater — dissera. E também nunca era incomodado por pesadelos.

Quando Dany lhe disse como Serwyn do Escudo Espelhado era atormentado pelos fantasmas de todos os cavaleiros que matara, Daario limitara-se a rir. — Se aqueles que eu matei vierem incomodar-me, voltarei a matá-los a todos. — Ele tem uma consciência de mercenário, apercebera-se ela então.

O que equivale a dizer que não tem consciência alguma.

Daario estava deitado de barriga para baixo, com as leves colchas de linho enroladas em volta das longas pernas e a cara meio enterrada nas almofadas.

Dany percorreu-lhe as costas com a mão, seguindo a linha da espinha. A pele era lisa sob o seu toque, quase desprovida de pelos. A pele dele é seda e cetim. Adorava senti-lo sob os seus dedos. Adorava passar-lhe os dedos pelo cabelo, massajar-lhe as pernas para afastar a dor de um longo dia na sela, pegar-lhe na picha e senti-la a endurecer na palma da mão.

Se fosse uma mulher comum, de bom grado passaria toda a vida a tocar Daario, a percorrer-lhe as cicatrizes com os dedos e a obrigá-lo a contar-lhe como ficara com cada uma delas. Renunciaria à coroa se ele mo pedisse, pensou Dany… mas ele não o pedira, e nunca pediria. Daario podia sussurrar palavras de amor quando os dois eram como um só, mas sabia que era a rainha dos dragões que amava. Se eu renunciasse à coroa, ele não me quereria. Além disso, era frequente que os reis que perdiam as coroas perdessem também as cabeças, e Dany não via motivo para esse facto ser diferente para uma rainha.

A vela tremeluziu uma última vez e morreu, afogada na própria cera.

A escuridão engoliu a cama e os seus dois ocupantes, e encheu todos os cantos do aposento. Dany envolveu o seu capitão nos braços e encostou-se-lhe às costas. Bebeu o seu odor, saboreando o calor da carne, a sensação de ter a pele dele encostada à sua. Recorda, disse a si própria. Recorda a sensação que ele dava. Beijou-o no ombro.

Daario rolou para ela, de olhos abertos.

— Daenerys. — Fez um sorriso indolente. Aquele era outro dos seus talentos; despertava de repente, como um gato. — É a aurora?

— Ainda não. Ainda temos algum tempo.

— Mentirosa. Vejo os teus olhos. Conseguiria fazer isso se fosse noite cerrada? — Daario libertou-se da colcha com um pontapé e sentou-se. — Meia-luz. O dia chegará em breve.

— Não quero que esta noite acabe.

— Ah não? E porquê, minha rainha?

— Tu sabes.

— O casamento? — Ele riu-se. — Casa comigo em vez dele.

— Sabes que não posso fazer isso.

— És uma rainha. Podes fazer o que quiseres. — Fez deslizar uma mão ao longo da sua perna. — Quantas noites nos restam?

Duas. Só duas.

— Sabes tão bem como eu. Esta noite e a próxima, depois temos de pôr fim a isto.

— Casa comigo, e podemos ter todas as noites para sempre.

Se pudesse, casaria. Khal Drogo fora o seu sol-e-estrelas, mas estava morto há tanto tempo que Daenerys quase esquecera como era amar e ser amada. Daario ajudara-a a recordar. Estive morta e ele trouxe-me de volta à vida. Estava adormecida e ele despertou-me. O meu bravo capitão. Mesmo assim, nos últimos tempos tornara-se demasiado ousado. No dia em que regressara da sua última surtida, atirara a cabeça de um senhor yunkaita para junto dos seus pés e beijara-a no salão para todo o mundo ver, até que Barristan Selmy os separara. O Sor Avô estivera tão furioso que Dany temera que sangue pudesse ser derramado.

— Não podemos casar, meu amor. Sabes porquê.

Ele saltou da cama.

— Então casa com o Hizdahr. Eu dou-lhe um belo par de cornos como presente de casamento. Os homens ghiscariotas gostam de andar por aí com cornos. Fazem-nos com o cabelo, com pentes, cera e ferros. — Daario descobriu as bragas e vestiu-as. Não se incomodava com roupa interior.

— Depois de eu estar casada, desejar-me será alta traição. — Dany puxou a colcha para tapar os seios.

— Então eu devo ser um traidor. — Enfiou uma túnica de seda azul pela cabeça e endireitou as pontas da barba com os dedos. Pintara-a de fresco por ela, deixando o púrpura e voltando ao azul que usava quando Dany o conhecera. — Cheiro a ti — disse, cheirando os dedos e sorrindo.

Dany adorava o modo como o dente de ouro do mercenário reluzia quando ele sorria. Adorava os pelos finos no seu peito. Adorava a força nos seus braços, o som do seu riso, o modo como ele a olhava sempre nos olhos e dizia o seu nome quando introduzia a picha nela.

— És lindo — deixou escapar, enquanto o via calçar e atar as botas de montar. Em certos dias ele deixava que ela lhe fizesse aquilo, mas naquele não, aparentemente. Isso também se acabou.

— Mas não sufi cientemente lindo para casar. — Daario tirou o cinturão da espada da cavilha onde o pendurara.

— Para onde vais?

— Para a tua cidade — disse ele — beber um ou dois barris e meter-me numa rixa. Passou-se demasiado tempo desde que matei um homem. Talvez deva ir à procura do teu noivo.

Dany atirou-lhe uma almofada.

— Deixa Hizdahr em paz!

— Às ordens da minha rainha. Vais conceder audiências hoje?

— Não. Amanhã serei uma mulher casada, e Hizdahr será rei. Ele que conceda audiências. Esta é a gente dele.

— Alguns são dele, alguns são teus. Aqueles que libertaste.

— Estás a repreender-me?

— Aqueles a que chamas teus filhos. Querem a mãe.

— Estás. Estás a repreender-me.

— Só um bocadinho, coração brilhante. Vais conceder audiências?

— Depois do casamento, talvez. Depois da paz.

— Esse depois de que falas nunca chega. Devias conceder audiência.

Os meus novos homens não acreditam que és real. Aqueles que vieram dos Aventados. Nascidos e criados em Westeros, a maioria, cheios de histórias sobre Targaryens. Querem ver um com os seus próprios olhos. O Sapo tem um presente para ti.

— O Sapo? — disse ela, aos risinhos. — E quem é ele?

O mercenário encolheu os ombros.

— Um rapaz dornês qualquer. É escudeiro do grande cavaleiro a que chamam Tripas Verdes. Disse-lhe que me podia dar o presente dele que eu o entregaria, mas ele não quis.

— Oh, um sapo esperto. “Dá-me o presente a mim.” — Atirou-lhe a outra almofada. — Eu tê-lo-ia chegado a ver?

Daario afagou o bigode dourado.

— Roubaria eu a minha querida rainha? Se fosse um presente digno de ti, eu próprio o teria depositado nas tuas mãos suaves.

— Como sinal do teu amor?

— Quanto a isso não digo nada, mas disse-lhe que to podia dar. Não queres transformar Daario Naharis em mentiroso, pois não?

Dany viu-se impotente para recusar.

— Como queiras. Traz o teu sapo à corte amanhã. Os outros também. Os de Westeros. — Seria bom ouvir o idioma comum vindo de alguém além de Sor Barristan.

— Às ordens da minha rainha. — Daario fez uma profunda vénia, sorriu e retirou-se, fazendo rodopiar o manto atrás de si.

Dany fi cou sentada entre a roupa amarrotada da cama, com os braços em volta dos joelhos, tão esquecida de si própria que nem ouviu quando Missandei entrou no aposento com pão, leite e fi gos.

— Vossa Graça? Não estais bem? No cerrado da noite esta ouviu-vos gritar.

Dany pegou num figo. Estava negro e gordo, ainda húmido de orvalho. Far-me-á Hizdahr alguma vez gritar?

— Foi o vento que ouviste gritar. — Deu uma dentada, mas a fruta perdera o sabor agora que Daario se fora. Suspirando, levantou-se e gritou a Irri que lhe trouxesse um roupão, após o que vagueou até ao terraço.

Tinha inimigos a toda a volta. Nunca havia menos do que uma dúzia de navios a seco na costa. Em alguns dias chegavam mesmo a uma centena, quando os soldados desembarcavam. Os yunkaitas até madeira traziam por mar. Atrás das valas que tinham aberto estavam a construir catapultas, balistas, grandes trabucos. Em noites sossegadas, conseguia ouvir os martelos a ressoar no ar quente e seco. Mas nada de torres de cerco. Nada de aríetes.

Eles não tentariam tomar Meereen de assalto. Iriam esperar por trás das suas linhas de cerco, atirando pedras contra ela até que a fome e a doença fizessem ajoelhar o seu povo.

Hizdahr trar-me-á paz. Tem de a trazer.

Nessa noite os cozinheiros assaram para ela um cabrito com tâmaras e cenouras, mas Dany só conseguiu comer um bocado. A ideia de lutar com Meereen uma vez mais deixava-a fatigada. O sono custou a chegar, mesmo quando Daario regressou, tão bêbado que mal conseguia manter-se em pé.

Sob as colchas, virou-se e remexeu-se, sonhando que Hizdahr estava a beijá-la… mas os lábios dele estavam azuis e magoados e, quando a penetrou, o seu membro viril estava frio como gelo. Dany sentou-se com o cabelo em desordem e a roupa da cama toda enxovalhada. O seu capitão dormia ao lado, mas ela estava só. Apeteceu-lhe sacudi-lo, acordá-lo, obrigá-lo a abraçá-la, a fodê-la, a ajudá-la a esquecer, mas sabia que se o fizesse ele se limitaria a sorrir, a bocejar e a dizer:

— Foi só um sonho, minha rainha. Dorme.

Em vez disso, envergou um roupão com capuz e saiu para o terraço.

Foi até ao parapeito e parou aí, olhando a cidade como fi zera meia centena de vezes. Esta cidade nunca será minha. Nunca será o meu lar.

A pálida luz rosada da aurora foi encontrá-la ainda no terraço, adormecida na relva, sob uma manta de fino orvalho.

— Prometi a Daario que concederia audiência hoje — disse Daenerys às suas aias quando a acordaram. — Ajudai-me a encontrar a coroa.

Oh, e roupa para vestir, qualquer coisa leve e fresca.

Fez a sua descida uma hora mais tarde.

— Ajoelhai todos para Daenerys Filha da Tormenta, a Não-Queimada, Rainha de Meereen, Rainha dos Ândalos e dos Roinares e dos Primeiros Homens, Khaleesi do Grande Mar de Erva, Quebradora de Correntes e Mãe de Dragões. — gritou Missandei.

Reznak mo Reznak fez uma vénia e um largo sorriso.

— Magnificência, tornais-vos mais bela todos os dias. Julgo que a perspetiva do casamento vos deu brilho. Oh, minha cintilante rainha!

Dany suspirou.

— Chamai o primeiro peticionário.

Passara-se tanto tempo desde a última vez que concedera audiência que a montanha de casos era quase avassaladora. O fundo do salão era uma multidão sólida, e rebentaram rixas por precedência. Como não podia deixar de ser, foi Galazza Galare quem avançou, de cabeça bem erguida, com a cara escondida por trás de um reluzente véu verde.

— Radiância, talvez fosse melhor que conversássemos em privado.

— Seria se eu tivesse tempo — disse Dany com simpatia. — Vou casar-me amanhã. — O seu último encontro com a Graça Verde não correra bem. — Que quereis de mim?

— Desejo falar convosco sobre o atrevimento de um certo capitão mercenário.

Ela atreve-se a dizer isto numa audiência aberta? Dany sentiu uma onda de fúria. Tem coragem, admito, mas se acha que vou tolerar outra repreensão não podia estar mais enganada.

— A traição de Ben Castanho Plumm chocou-nos a todos — disse — mas o vosso aviso chega tarde demais. E agora sei que quereis regressar ao vosso templo para rezar por paz.

A Graça Verde fez uma vénia.

— Rezarei também por vós.

Outra bofetada, pensou Dany, com a cor a subir-lhe à cara.

O resto foi um tédio que a rainha conhecia bem. Manteve-se sentada nas almofadas, à escuta, com um pé a bandear de impaciência. Jhiqui trouxe uma bandeja de figos e presunto ao meio-dia. Parecia não haver fim para os peticionários. Por cada par que mandava embora a sorrir, um saía de olhos vermelhos ou a resmungar.

O pôr-do-sol estava próximo quando Daario Naharis apareceu com os seus novos Corvos Tormentosos, os westorisianos que tinham vindo dos Aventados. Dany deu por si a deitar-lhes relances enquanto outro peticionário falava sem parar. Aquela é a minha gente. Sou a sua legítima rainha.

Eram um grupo com mau aspeto, mas isso era de se esperar de mercenários. O mais novo não podia ser um ano mais velho do que ela; o mais velho devia ter visto sessenta dias do seu nome. Alguns ostentavam sinais de riqueza: ouro e anéis, túnicas de seda, cinturões de espadas tachonados de prata. Saque. A maior parte das suas roupas eram de fabrico simples, e mostravam sinais de muito uso.

Quando Daario os fez avançar, viu que um deles era uma mulher, grande e loura e toda coberta de cota de malha.

— Linda Meris — chamou-lhe o seu capitão, embora linda fosse a última coisa que Dany lhe teria chamado. Tinha um metro e oitenta e era desprovida de orelhas, possuindo um nariz fendido, profundas cicatrizes em ambas as faces e os olhos mais frios que a rainha vira na vida. Quanto aos outros…

Hugh Hungerford era magro e melancólico, de pernas longas e cara comprida, vestido com roupa fina mas desbotada. O Teias era baixo e musculoso, com aranhas tatuadas na cabeça, peito e braços. O vermelhusco Orson Stone afirmava ser um cavaleiro, e o esgalgado Lucifer Long dizia o mesmo. O Will dos Bosques olhou-a lubricamente logo desde que ajoelhou. Dick Straw tinha olhos azuis violáceos, um cabelo branco como linho e um sorriso perturbador. A cara do Jack Cenoura estava escondida por trás de uma hirsuta barba cor de laranja e a sua fala era ininteligível.

— Ele arrancou metade da língua à dentada na sua primeira batalha

— explicou-lhe Hungerford.

Os dorneses pareciam diferentes.

— Se aprouver a Vossa Graça — disse Daario — estes três são o Tripas Verdes, o Gerrold e o Sapo.

O Tripas Verdes era enorme e careca como um calhau, com braços sufi cientemente grossos para rivalizar até com Belwas, o Forte. Gerrold era um jovem alto e esguio com madeixas claras no cabelo e uns risonhos olhos verdes-azulados. Aquele sorriso conquistou o coração de muitas donzelas, aposto. O seu manto era feito de suave lã castanha forrada de sedareia, uma agradável peça de roupa.

Sapo, o escudeiro, era o mais jovem dos três, e o menos impressionante, um rapaz sério e entroncado, de cabelo e olhos castanhos. A cara era algo quadrada, com uma testa alta, um queixo pesado e um nariz largo. A barba rala nas bochechas e no queixo fazia com que parecesse um rapaz a tentar cultivar a primeira barba. Dany não viu nenhum indício do motivo por que lhe alguém lhe chamaria Sapo. Talvez consiga saltar até mais longe do que os outros.

— Podeis levantar-vos — disse. — Daario disse-me que viestes até nós desde Dorne. Os dorneses terão sempre boas-vindas na minha corte.

Lançassolar manteve-se leal ao meu pai quando o Usurpador lhe roubou o trono. Deveis ter enfrentado muitos perigos para chegar até mim.

— Demasiados — disse Gerrold, o bem-parecido com as madeixas no cabelo. — Éramos seis quando partimos de Dorne, Vossa Graça.

— Lamento as vossas perdas. — A rainha virou-se para o seu grande companheiro. — Tripas Verdes é um nome estranho.

— É um gracejo, Vossa Graça. Dos navios. Vim enjoado de Volantis até aqui. A cambalear e… bem, não devo dizer.

Dany soltou um risinho.

— Acho que consigo adivinhar, sor. É sor, não é? Daario disse-me que sois um cavaleiro.

— Se aprouver a Vossa Graça, todos os três somos cavaleiros.

Dany deitou uma olhadela a Daario e viu um clarão de ira passar-lhe pelo rosto. Ele não sabia.

— Eu tenho necessidade de cavaleiros — disse.

As suspeitas de Sor Barristan tinham despertado.

— É fácil afirmar-se a condição de cavaleiro aqui tão longe de Westeros. Estais preparados para defender essa vanglória com espada ou lança?

— Se for necessário — disse Gerrold — embora eu não afi rme que algum de nós se equipare a Barristan, o Ousado. Vossa Graça, peço-vos perdão, mas apresentámo-nos perante vós sob falsos nomes.

— Conheço outra pessoa que fez o mesmo — disse Dany — um homem chamado Arstan Barba-Branca. Então dizei-me os vossos verdadeiros nomes.

— De bom grado… mas se pudermos suplicar a indulgência da rainha, haverá algum lugar com menos olhos e ouvidos?

Jogos dentro de jogos.

— Como quiserdes. Skahaz, evacuai a corte.

O Tolarrapada rugiu ordens. Os seus Feras de Bronze fi zeram o resto, pastoreando os outros westerosianos e o resto dos peticionários do dia para fora da sala. Os conselheiros deixaram-se ficar.

— E agora — disse Dany — os vossos nomes.

O bonito e jovem Gerrold fez uma vénia.

— Sor Gerris Drinkwater, Vossa Graça. A minha espada é vossa.

O Tripas Verdes cruzou os braços ao peito.

— E o meu martelo de guerra também. Sou Sor Archibald Yronwood.

— E vós, sor? — perguntou a rainha ao rapaz chamado Sapo.

— Se aprouver a Vossa Graça, posso primeiro entregar-vos o meu presente?

— Se quiserdes — disse Daenerys, curiosa, mas quando o Sapo avançou, Daario Naharis pôs-se na sua frente e estendeu uma mão enluvada.

— Dá-me a mim o presente.

Sem expressão, o rapaz entroncado dobrou-se, desatou a bota e, de uma dobra oculta no interior, retirou um pergaminho amarelado.

— O teu presente é este? Uma coisa escrita? — Daario arrancou o pergaminho das mãos do dornês e desenrolou-o, franzindo os olhos aos selos e assinaturas. — Muito bonitos, todos os dourados e fitinhas, mas eu não leio os vossos gatafunhos de Westeros.

— Trazei-o à rainha — ordenou Sor Barristan. — Já.

Dany sentiu a fúria que pairava no salão.

— Eu sou só uma rapariguinha, e as rapariguinhas têm de receber os seus presentes — disse com ligeireza. — Daario, por favor, não deves provocar-me. Dá-mo cá.

O pergaminho estava escrito no idioma comum. A rainha desenrolou-o lentamente, estudando os selos e as assinaturas. Quando viu o nome de Sor Willem Derry, o coração bateu-lhe um pouco mais depressa. Leu o pergaminho até ao fim, depois voltou a lê-lo.

— Podemos saber o que diz, Vossa Graça? — perguntou Sor Barristan.

— É um pacto secreto — disse Dany — feito em Bravos quando eu era pequenina. Quem assinou por nós foi Sor Willem Darry, o homem que fez com que eu e o meu irmão desaparecêssemos de Pedra do Dragão antes dos homens do Usurpador conseguirem apanhar-nos. O Príncipe Oberyn Martell assinou por Dorne e o Senhor do Mar de Bravos assinou como testemunha. — Entregou o pergaminho a Sor Barristan, para o velho cavaleiro poder ler com os seus olhos. — Diz que a aliança deve ser selada com um casamento. Em troca da ajuda de Dorne para derrubar o Usurpador, o meu irmão Viserys deverá tomar a filha do Príncipe Doran, Arianne, como sua rainha.

O velho cavaleiro leu lentamente o pacto.

— Se Robert soubesse disto teria esmagado Lançassolar como esmagou Pyke, e cortado as cabeças do Príncipe Doran e da Víbora Vermelha…

e, provavelmente, a cabeça desta princesa dornesa também.

— Foi sem dúvida por isso que o Príncipe Doran decidiu manter o pacto em segredo — sugeriu Daenerys. — Se o meu irmão Viserys soubesse que tinha uma princesa dornesa à sua espera, teria partido para Lançassolar assim que tivesse idade para casar.

— Fazendo assim cair sobre si e sobre Dorne o martelo de guerra de Robert — disse o Sapo. — O meu pai conformou-se com esperar pelo dia em que o Príncipe Viserys encontrasse o seu exército.

— O vosso pai?

— O Príncipe Doran. — Voltou a cair sobre um joelho. — Vossa Graça, tenho a honra de ser Quentyn Martell, um príncipe de Dorne e o mais leal dos vossos súbditos.

Dany riu-se.

O príncipe dornês fi cou vermelho, enquanto a sua corte e conselheiros lhe dirigiam olhares confusos.

— Radiância? — disse Skahaz Tolarrapada, na língua ghiscariota. — Porque vos rides?

— Chamam-lhe sapo — disse ela — e acabámos de ficar a saber porquê. Nos Sete Reinos há histórias infantis sobre sapos que se transformam em príncipes encantados quando são beijados pelo seu verdadeiro amor. —

Sorrindo aos cavaleiros dorneses, voltou ao idioma comum. — Dizei-me, Príncipe Quentyn, estais encantado?

— Não, Vossa Graça.

— Temi isso mesmo. — Nem encantado nem encantador, infelizmente. Uma pena que o príncipe seja ele e não o dos ombros largos e cabelo cor de areia. — Mas viestes em busca de um beijo. Pretendeis casar comigo. É assim? O presente que me trazeis é a vossa doce pessoa. Em vez de Viserys e a vossa irmã, teremos de ser vós e eu a selar este pacto, se eu quiser Dorne.

— O meu pai esperou que pudésseis achar-me aceitável.

Daario Naharis soltou uma gargalhada escarninha.

— O que eu digo é que és um cachorrinho. A rainha precisa de um homem a seu lado, não de um rapazinho chorão. Não és marido adequado para uma mulher como ela. Quando lambes os lábios ainda te sabe ao leite da mamã?

Sor Gerris Drinkwater indignou-se ao ouvir aquelas palavras.

— Cuidado com a língua, mercenário. Estás a falar com um príncipe de Dorne.

— E com a sua ama-de-leite, parece-me. — Daario passou os polegares pelos cabos das espadas, e fez um sorriso perigoso.

Skahaz franziu o sobrolho, como só ele era capaz.

— Este rapaz pode servir para Dorne, mas Meereen precisa de um rei de sangue ghiscariota.

— Eu conheço este tal Dorne — disse Reznak mo Reznak. — Dorne é areia e escorpiões, e desoladas montanhas vermelhas a torrar ao sol.

Foi o Príncipe Quentyn que lhe respondeu.

— Dorne é cinquenta mil lanças e espadas, postas ao serviço da nossa rainha.

— Cinquenta mil? — troçou Daario. — Eu conto três.

— Basta — disse Daenerys. — O Príncipe Quentyn atravessou meio mundo para me oferecer este presente, não quero que seja tratado com descortesia. — Virou-se para os dorneses. — Seria bom que tivésseis chegado há um ano. Prometi casar com o nobre Hizdahr zo Loraq.

Sor Gerris disse:

— Não é tarde demais…

— Quem avaliará isso serei eu — disse Daenerys. — Reznak, as-segurai-vos de que ao príncipe e aos companheiros são dados aposentos adequados ao seu alto nascimento, e de que os seus desejos são satisfeitos.

— Como quiserdes, Radiância.

A rainha pôs-se em pé.

— Então por agora acabámos.

Daario e Sor Barristan seguiram-na pelas escadas até aos seus aposentos.

— Isto muda tudo — disse o velho cavaleiro.

— Isto nada muda — disse Dany enquanto Irri lhe tirava a coroa. — De que servem três homens?

— Três cavaleiros — disse Selmy.

— Três mentirosos — disse Daario em tom sombrio. — Enganaram-me.

— E também te compraram, não duvido. — Ele não se incomodou a negá-lo. Dany desenrolou o pergaminho e voltou a examiná-lo. Bravos. Isto foi feito em Bravos, enquanto morávamos na casa da porta vermelha. Porque seria que isso a fazia sentir-se tão estranha?

Deu por si a lembrar-se do pesadelo. Às vezes existe verdade em sonhos. Poderia Hizdahr zo Loraq estar a trabalhar para os feiticeiros, seria esse o significado do sonho? Poderia o sonho ter sido uma transmissão?

Estariam os deuses a dizer-lhe para pôr Hizdahr de parte e para se casar com aquele príncipe dornês? Algo lhe titilou a memória.

— Sor Barristan, quais são as armas da Casa Dorne?

— Um sol em esplendor, trespassado por uma lança.

O filho do sol. Foi percorrida por um arrepio.

— Sombras e murmúrios. — Que mais dissera Quaithe? A égua branca e o filho do sol. Também havia um leão e um dragão. Ou será que o dragão sou eu? — Cuidado com o senescal perfumado. — Disso lembrava-se. —

Sonhos e profecias. Porque têm de ser sempre adivinhas? Detesto isto. Oh, deixai-me, sor. Amanhã é o dia do meu casamento.

Nessa noite, Daario possuiu-a de todas as maneiras que um homem pode possuir uma mulher, e ela entregou-se-lhe de boa vontade. Da última vez, enquanto o Sol nascia, usou a boca para voltar a entesá-lo, como Doreah lhe ensinara tanto tempo antes, e depois montou-o com tal violência que o ferimento que ele sofrera recomeçou a sangrar e, durante um doce segundo, deixou de conseguir distinguir se era ele que estava dentro dela ou ela que estava dentro dele.

Mas quando o Sol se ergueu sobre o dia do seu casamento, Daario Naharis fez o mesmo, vestindo a roupa e afi velando o cinturão da espada com as reluzentes libertinas douradas.

— Para onde vais? — perguntou-lhe Dany. — Proíbo-te de fazeres hoje uma surtida.

— A minha rainha é cruel — disse o seu capitão. — Se não puder matar os teus inimigos, como hei de divertir-me enquanto estás a casar-te?

— Ao cair da noite não terei inimigos.

— Ainda é só a alvorada, querida rainha. O dia é longo. Há tempo suficiente para uma última surtida. Quero trazer-te a cabeça de Ben Castanho Plumm como presente de casamento.

— Não quero cabeças — insistiu Dany. — Uma vez trouxeste-me flores.

— Hizdahr que te traga flores. Ele não é homem para se baixar e colher um dente-de-leão, é certo, mas tem criados que ficarão contentes por o fazer por ele. Tenho a tua licença para me ir embora?

— Não. — Queria que ele ficasse e a abraçasse. Um dia ele partirá e não regressará, pensou. Um dia um arqueiro qualquer acertará com uma seta no seu peito, ou dez homens cairão sobre ele com lanças, espadas e machados, dez candidatos a heróis. Cinco deles morreriam, mas isso não tornaria a sua dor mais fácil de suportar. Um dia perdê-lo-ei, como perdi o meu sol-e-estrelas. Mas por favor, deuses, hoje não. — Volta para a cama e beija-me. — Ninguém a beijara como Daario Naharis. — Sou a tua rainha e ordeno-te que me fodas.

Pretendera brincar, mas os olhos de Daario endureceram perante as suas palavras.

— Foder rainhas é trabalho para um rei. O teu nobre Hizdahr pode tratar disso, depois de vos casardes. E se ele se revelar demasiado bem nascido para trabalho tão suado, tem criados que ficarão contentes por também fazer isso por ele. Ou talvez possas chamar o rapaz dornês para a tua cama, e também o amigo bonito dele, porque não? — E saiu do quarto a passos largos.

Ele vai fazer uma surtida, compreendeu Dany, e se conseguir a cabeça de Ben Plumm vai entrar no banquete nupcial com ela e atirar-ma aos pés.

Que os Sete me salvem. Porque não poderia ele ser mais bem-nascido?

Quando o mercenário se foi embora, Missandei trouxe à rainha uma refeição simples de queijo de cabra e azeitonas, com passas de sobremesa.

— Vossa Graça precisa de mais do que vinho para quebrar o jejum.

Sois uma coisinha tão pequenina, e hoje ireis decerto precisar das vossas forças.

Aquilo fez Daenerys rir, por vir de uma rapariga tão pequena. Dependia tanto da pequena escriba que era frequente esquecer-se de que Missandei acabara de fazer onze anos. Partilharam a comida no terraço.

Enquanto Dany mordiscava uma azeitona, a rapariga naatena fitou-a com olhos que eram como ouro derretido e disse:

— Não é tarde demais para lhes dizerdes que decidistes não casar.

Mas é, pensou a rainha, com tristeza.

— O sangue de Hizdahr é antigo e nobre. A nossa união juntará os meus libertos ao seu povo. Quando nos tornarmos um só, a nossa cidade fará o mesmo.

— Vossa Graça não ama o nobre Hizdahr. Esta pensa que preferiríeis ter outro homem como marido.

Hoje não posso pensar em Daario.

— Uma rainha ama quem deve, não quem quer. — O apetite abandonara-a. — Leva esta comida daqui — disse a Missandei. — Está na altura de tomar banho.

Mais tarde, enquanto Jhiqui a secava, Irri aproximou-se com o seu tokar. Dany invejou as calças largas de sedareia e os coletes pintados das aias dothraki. Estariam muito mais frescas do que ela com o tokar, com a sua pesada fímbria de pequenas pérolas.

— Ajudai-me a enrolar isto à minha volta, por favor. Não consigo lidar sozinha com todas estas pérolas.

Devia estar ardente de expectativa com o casamento e a noite que se seguiria, bem o sabia. Lembrou-se da noite do primeiro casamento, quando Khal Drogo lhe tirara a virgindade sob as estrelas estrangeiras. Lembrou-se 134

de quão assustada estivera, de quão excitada também. Seria também assim com Hizdahr? Não. Eu não sou a rapariga que era, e ele não é o meu sol-e-estrelas.

Missandei voltou a sair do interior da pirâmide.

— Reznak e Skahaz suplicam a honra de acompanhar Vossa Graça ao Templo das Graças. Reznak ordenou que o vosso palanquim fosse preparado.

Os meereeneses raramente andavam a cavalo no interior das muralhas da sua cidade. Preferiam palanquins e liteiras, abertas ou fechadas, transportadas aos ombros dos seus escravos.

— Os cavalos emporcalham as ruas — dissera-lhe um homem de Zakh — os escravos não. — Dany libertara os escravos, mas palanquins e liteiras ainda coalhavam as ruas como antes, e nenhuma flutuava magicamente pelo ar.

— O dia está quente demais para ficar trancada num palanquim — disse Dany. — Manda selar a minha prata. Não irei ter com o senhor meu esposo às costas de carregadores.

— Vossa Graça — disse Missandei — esta lamenta imenso, mas não podeis montar vestida com um tokar.

A pequena escriba tinha razão, como acontecia tantas vezes. O tokar não era uma peça de vestuário que se destinasse ao dorso de cavalos. Dany fez uma careta.

— É como dizes. Mas o palanquim não. Sufocaria por trás dessas cortinas. Manda preparar uma liteira coberta. — Se tinha de usar as suas orelhas de abano, então que todos os coelhos a vissem.

Quando Dany fez a sua descida, Reznak e Skahaz deixaram-se cair sobre os joelhos.

— Vossa Reverência brilha com tal brilho que cegará qualquer homem que se atreva a olhá-la — disse Reznak. O senescal usava um tokar de samito castanho com fímbria dourada. — Hizdahr zo Loraq é muito afortunado convosco… e vós com ele, se posso ter a ousadia de o dizer. Esta união salvará a nossa cidade, vereis.

— Rezamos para que sim. Quero plantar as minhas oliveiras e vê-las dar frutos. — Importará que os beijos de Hizdahr não me agradem? A paz irá agradar-me. Serei eu uma rainha, ou só uma mulher?

— Hoje as multidões serão densas como moscas. — O Tolarrapada trazia vestida uma camisa negra pregueada e uma placa de peito musculada, e tinha debaixo de um braço um elmo de bronze com a forma da cabeça de uma serpente.

— Deverei ter medo de moscas? Os vossos Feras de Bronze manter-me-ão a salvo de todo o mal.

Era sempre lusco-fusco no interior da base da grande pirâmide. Paredes com nove metros de espessura abafavam o tumulto das ruas e mantinham o calor no exterior, por conseguinte lá dentro estava fresco e escuro.

A sua escolta estava a formar no interior dos portões. Os estábulos dos cavalos, mulas e burros ficavam junto das paredes ocidentais, os dos elefantes junto das orientais. Dany adquirira três desses estranhos e enormes animais com a sua pirâmide. Faziam-lhe lembrar mamutes sem pelos e cinzentos, embora as suas presas tivessem sido cortadas curtas e douradas e os olhos fossem tristes.

Foi encontrar Belwas, o Forte, a comer uvas, enquanto Barristan Selmy observava um moço de estrebaria que prendia uma correia em volta do seu cavalo malhado cinzento. Os três dorneses estavam com ele, a conversar, mas interromperam-se quando a rainha apareceu. O príncipe caiu sobre um joelho.

— Vossa Graça, tenho de suplicar-vos. As forças do meu pai fraquejam, mas a sua devoção à vossa causa é tão forte como sempre. Se as minhas maneiras ou a minha pessoa vos desagradaram, o pesar é meu, mas…

— Se quereis agradar-me, sor, ficai feliz por mim — disse Daenerys.

— Este é o dia do meu casamento. Na Cidade Amarela dançarão, não duvido. — Suspirou. — Erguei-vos, meu príncipe, e sorri. Um dia regressarei a Westeros, para reclamar o trono do meu pai, e procurarei ajuda em Dorne.

Mas neste dia, os yunkaitas têm a minha cidade rodeada de aço. Eu posso morrer antes de ver os meus Sete Reinos. Hizdahr pode morrer. Westeros pode ser engolido pelas vagas. — Dany beijou-o na cara. — Vinde. Está na altura de me casar.

Sor Barristan ajudou-a a subir para a liteira. Quentyn voltou a juntar-se aos outros dorneses. Belwas, o Forte, berrou uma ordem para os portões serem abertos, e Daenerys Targaryen foi levada em direção ao sol.

Selmy pôs-se a seu lado no cinzento malhado.

— Dizei-me — disse Dany enquanto a procissão virava para o Templo das Graças — se o meu pai e a minha mãe tivessem sido livres para seguir os corações, com quem se teriam casado?

— Foi há muito tempo. Vossa Graça não os conhecerá.

— Mas vós sabeis. Dizei-me.

O velho cavaleiro inclinou a cabeça.

— A rainha vossa mãe sempre esteve consciente do seu dever. — Estava bonito na armadura dourada e prateada, com o manto branco a escorrer-lhe dos ombros, mas soava como um homem cheio de dores, como se cada palavra fosse uma pedra que tinha de transmitir. — Mas em rapariga… esteve em tempos enamorada de um jovem cavaleiro oriundo das terras da tempestade que usou o seu favor num torneio e a nomeou rainha do amor e da beleza. Uma coisa breve.

— Que aconteceu a esse cavaleiro?

— Pôs de parte a lança no dia em que a senhora vossa mãe casou com o vosso pai. Depois tornou-se muito piedoso, e consta ter dito que só a Donzela podia substituir a Rainha Rhaella no seu coração. A sua paixão era impossível, claro. Um cavaleiro com terras não é um consorte adequado para uma princesa de sangue real.

E Daario Naharis é só um mercenário, indigno até de calçar as esporas douradas de um cavaleiro com terras.

— E o meu pai? Houve alguma mulher que ele amasse mais que à sua rainha?

Sor Barristan mexeu-se na sela.

— Não… amar não. Desejar talvez seja uma palavra mais correta, mas… foi só mexericos de cozinha, os murmúrios de lavadeiras e moços de estrebaria…

— Quero saber. Nunca conheci o meu pai. Quero saber tudo sobre ele. O bom e… o resto.

— Às vossas ordens. — O cavaleiro branco escolheu as palavras com cuidado. — O Príncipe Aerys… em jovem, enamorou-se de uma certa senhora de Rochedo Casterly, uma prima de Tywin Lannister. Quando ela e Tywin se casaram, o vosso pai bebeu demasiado vinho no banquete de casamento, e ouviram-no dizer que era uma grande pena que o direito do senhor à primeira noite tivesse sido abolido. Um gracejo ébrio, não passou disso, mas Tywin Lannister não era homem para esquecer tais palavras ou o… excesso de familiaridade que o vosso pai mostrou quando os noivos foram levados para a cama. — A cara de Sor Barristan enrubesceu. — Já disse demasiado, Vossa Graça. Eu…

— Graciosa rainha, folgo encontrar-vos! — Outro cortejo pusera-se ao lado do dela, e Hizdahr zo Loraq estava a sorrir-lhe da sua liteira. O meu rei.

Dany perguntou a si própria onde estaria Daario Naharis, o que andaria ele a fazer. Se isto fosse uma história, ele chegaria a galope mesmo na altura em que estivéssemos a chegar ao templo, para desafi ar Hizdahr pela minha mão.

Lado a lado, o seu cortejo e o de Hizdahr zo Loraq avançaram lentamente por Meereen, até que por fim o Templo das Graças se ergueu na frente deles, com as cúpulas douradas a relampejar ao sol. Como é belo, tentou a rainha dizer a si própria, mas dentro de si havia uma rapariguinha tola que não conseguia evitar olhar em volta em busca de Daario. Se ele te amasse viria levar-te à espadeirada, como Rhaegar levou a sua rapariga nortenha, insistia a rapariga em si, mas a rainha sabia que isso era uma loucura. Mesmo se o seu capitão fosse suficientemente louco para tentar fazê-lo, os Feras de Bronze abatê-lo-iam antes de se aproximar a menos de cem metros dela.

Galazza Galare aguardava-os à porta do templo, rodeada pelas irmãs de branco, de rosa e de vermelho, de azul, de dourado e de púrpura. Há menos do que havia. Dany procurou Ezzara e não a viu. Será que a fluxão sangrenta até a ela levou? Embora a rainha tivesse deixado os astapori passar fome do lado de fora das suas muralhas para evitar que a fluxão sangrenta se espalhasse, estava na mesma a espalhar-se. Muitos tinham sido atingidos; libertos, mercenários, Feras de Bronze, até dothraki, embora por enquanto nenhum dos Imaculados tivesse sido tocado. Rezou para que o pior tivesse passado.

As Graças apresentaram uma cadeira de marfim e uma bacia dourada. Segurando delicadamente o tokar a fim de não pisar as suas fímbrias, Daenerys Targaryen sentou-se no sumptuoso assento de veludo da cadeira e Hizdahr zo Loraq pôs-se de joelhos, descalçou-lhe as sandálias e lavou-lhe os pés enquanto cinquenta eunucos cantavam e dez mil olhos observavam.

Tem umas mãos gentis, matutou ela, enquanto óleos tépidos e odoríferos lhe escorriam por entre os dedos. Se também tiver um coração gentil, posso acabar por gostar dele com o tempo.

Depois ficou com os pés limpos, Hizdahr secou-os com uma toalha suave, voltou a calçar-lhe as sandálias e ajudou-a a pôr-se em pé. De mãos dadas, seguiram a Graça Verde para dentro do templo, onde o ar estava pesado de incenso e os deuses de Ghis estavam envoltos em sombras nos seus nichos.

Quatro horas mais tarde voltaram a sair como marido e mulher, presos pelos pulsos e tornozelos com correntes de ouro amarelo.



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