Bran

A cadeia de montes projetava-se vivamente da terra, uma longa dobra de pedra e solo com a forma de uma garra. Árvores agarravam-se às suas vertentes inferiores, pinheiros, espinheiros e freixos, mas mais acima o terreno era nu, e a linha de cumeada definia-se bem contra o céu enevoado.

Sentiu que os rochedos elevados o chamavam. E lá subiu, a princípio a um trote fácil, e depois mais depressa e mais alto, devorando o declive com as fortes patas. Aves saltavam dos galhos por cima de sua cabeça quando passava por baixo correndo, abrindo caminho para o céu numa confusão de garras e asas. Conseguia ouvir o vento suspirar por entre as folhas, os esquilos chilreando uns para os outros, até o ruído que uma pinha fez ao cair no chão da floresta. Os cheiros eram uma canção à sua volta, uma canção que enchia o belo mundo verde.

Cascalho voou de debaixo de suas patas quando conquistou os últimos metros e chegou ao cume. O sol pendia, baixo, sobre os grandes pinheiros, enorme e vermelho, e por baixo dele as árvores e os montes prolongavam-se até perder de vista ou de odor. Muito acima, uma pipa voava em círculos, uma mancha escura contra o céu cor-de-rosa.

Príncipe. O som-de-homem entrou subitamente em sua cabeça, e no entanto ele conseguia sentir que aquilo estava certo. Príncipe do verde, príncipe da mata de lobos. Era forte, rápido e feroz, e tudo que vivia no belo mundo verde tinha medo dele.

Muito embaixo, na base da floresta, algo se moveu por entre as árvores. Uma imagem cinza, apenas vislumbrada e logo desaparecida, mas o suficiente para levá-lo a erguer as orelhas. Lá embaixo, ao lado de um riacho rápido e verde, outra silhueta surgiu e desapareceu, correndo. Lobos, compreendeu. Seus primos pequenos, à caça de alguma presa. Agora o príncipe via mais, sombras sobre velozes patas cinzentas. Uma matilha.

Ele também tivera uma matilha antes. Tinham sido cinco, e um sexto que ficava de lado. Em algum lugar, bem fundo em seu íntimo, alojavam-se os sons que os homens lhes tinham dado para distingui-los uns dos outros, mas não era pelos sons que os conhecia. Lembrava-se de seus odores, dos odores de seus irmãos e irmãs. Todos tinham odores parecidos, cheiravam a matilha, mas cada um deles também era diferente.

O príncipe sentia que o irmão zangado com os quentes olhos verdes estava próximo, embora não o visse já havia muitas caçadas. Mas com cada sol que se punha, ele distanciava-se mais, e tinha sido o último. Os outros estavam muito espalhados, como folhas sopradas pelo vento forte.

Mas às vezes conseguia senti-los, como se ainda estivessem com ele, escondidos de sua vista apenas por um pedregulho ou um pequeno bosque. Não era capaz de cheirá-los, nem de ouvir seus uivos noturnos, mas sentia a presença deles atrás de si... todos menos a irmã que tinham perdido. Sua cauda abaixava quando se lembrava dela. Agora quatro, não cinco. Quatro e mais um, o branco que não tem voz.

Aquela floresta pertencia a eles, as vertentes nevadas e os montes pedregosos, os grandes pinheiros verdes e carvalhos de folhas douradas, os impetuosos riachos e lagos azuis, emoldurados por dedos de gelo branco. Mas a irmã tinha abandonado as regiões selvagens para caminhar nos salões da rocha-de-homem, onde outros caçadores governavam, e, uma vez dentro desses salões, era difícil encontrar o caminho de volta. O príncipe lobo lembrava-se.

O vento mudou subitamente.

Veado, e medo, e sangue. O odor da presa despertou sua fome. O príncipe voltou a farejar o ar, virando-se, e então partiu, saltando ao longo da cumeada com a boca entreaberta. A outra vertente da serra era mais inclinada do que aquela por onde tinha subido, mas correu, com segurança, sobre pedras, raízes e folhas em putrefação, pela encosta abaixo e através das árvores, devorando o terreno em longas passadas. O cheiro o atraía, cada vez mais depressa.

A corça estava no chão e morria quando chegou até ela, cercada por oito de seus primos menores e cinza. As cabeças da matilha tinham começado a se alimentar, primeiro o macho e depois a sua fêmea, rasgando em turnos a carne da barriga vermelha da presa. Os outros esperavam pacientemente, todos menos a cauda da matilha, que vagueava num círculo cuidadoso, a alguns passos dos restantes, com a própria cauda entre as pernas. Seria o último animal a comer, e comeria o que quer que os irmãos lhe deixassem.

O príncipe estava contra o vento, e os lobos não o detectaram até saltar para cima de um tronco caído a seis passos do local onde se alimentavam. A cauda foi a primeira a vê-lo, soltou um ganido de dar dó, e escapuliu para longe. Os irmãos da matilha viraram-se ao ouvir o ruído e mostraram os dentes, rosnando, todos menos as cabeças macho e fêmea.

O lobo gigante respondeu aos rosnidos com um grave rugido de aviso e lhes mostrou os dentes. Era maior do que os primos, com duas vezes o tamanho da magra cauda e vez e meia o dos dois líderes da matilha. Saltou para o meio deles, e três fugiram, fundindo-se com o arvoredo. Outro atacou-o, mordendo. Enfrentou diretamente o ataque, abocanhou a perna do lobo e atirou-o para o lado, ganindo e coxeando.

E então restava apenas a cabeça a enfrentar, o grande macho cinza com o focinho ensanguentado, recém-saído de dentro da macia barriga da presa. Havia também pelos brancos em seu focinho, que o identificava como um lobo velho, mas quando sua boca se abriu, uma saliva vermelha escorreu de seus dentes.

Ele não tem medo, pensou o príncipe, não tem mais medo do que eu. Seria uma boa luta. Atiraram-se um contra o outro.

Lutaram longamente, rolando juntos sobre raízes, pedras, folhas caídas e as entranhas espalhadas da presa, rasgando o pelo um do outro com dentes e garras, separando-se, rodeando-se e voltando a saltar para a luta. O príncipe era maior, e muito mais forte, mas o primo tinha uma matilha. A fêmea caminhava por perto, em volta deles, farejando e rosnando, e interpunha-se sempre que seu companheiro se afastava com um novo ferimento. De tempos em tempos, os outros lobos também intervinham, mordendo uma perna ou uma orelha quando o príncipe estava virado para o outro lado. Um deles irritou-o tanto que se virou numa fúria negra e rasgou a garganta do atacante. Depois disso, os outros mantiveram-se a distância.

E na hora em que a última luz se filtrava através de ramos verdes e dourados, o lobo velho deitou-se cansado na terra e rolou para expor a garganta e a barriga. Era a submissão.

O príncipe farejou-o e lambeu o sangue do pelo e da carne rasgada. Quando o lobo velho soltou um suave ganido, o lobo gigante afastou-se. Tinha agora muita fome, e a presa era sua.

– Hodor.

O súbito som fez com que parasse e rosnasse. Os lobos olharam-no com olhos verdes e amarelos, brilhando com a última luz do dia. Nenhum deles tinha ouvido aquilo. Era um estranho vento que soprava apenas em seus ouvidos. Enterrou os dentes na barriga da corça e rasgou um pedaço de carne.

– Hodor, hodor.

Não, pensou. Não, não quero. Era um pensamento de garoto, não de lobo gigante. A floresta escureceu ao seu redor, até só restarem as sombras das árvores, e os clarões dos olhos dos primos. E através deles e atrás desses olhos, viu o rosto sorridente de um homem grande, e uma adega de pedra, cujas paredes estavam manchadas de salitre. O rico e quente sabor do sangue desvaneceu-se em sua boca. Não, não, não, quero comer, quero comer, quero...

– Hodor, hodor, hodor, hodor, hodor – cantarolou Hodor enquanto o sacudia suavemente pelos ombros, de um lado para o outro, de um lado para o outro. Estava tentando ser gentil, tentava sempre, mas Hodor tinha dois metros e dez de altura e era mais forte do que pensava, e suas enormes mãos faziam os dentes de Bran tremer.

NÃO! – gritou, zangado. – Hodor, largue-me, estou aqui, estou aqui.

Hodor parou, parecendo desconcertado.

– Hodor?

A floresta e os lobos tinham desaparecido. Bran estava outra vez de volta à úmida adega de uma antiga torre de vigia qualquer que devia ter sido abandonada havia milhares de anos. Agora não era bem uma torre. As pedras caídas estavam mesmo tão cobertas de musgo e hera que quase não se viam até se estar bem em cima delas. Bran tinha chamado o lugar de Torre Arruinada; mas fora Meera quem encontrara a descida para a adega.

– Esteve longe tempo demais. – Jojen Reed tinha treze anos, era só quatro mais velho do que Bran. Jojen também não era muito maior do que ele, não mais do que cinco centímetros, ou talvez seis, mas tinha uma maneira solene de falar que fazia com que parecesse mais velho e mais sábio do que realmente era. Em Winterfell, a Velha Ama o chamara de “pequeno avô”.

Bran franziu a testa para ele.

– Queria comer.

– Meera voltará em breve com o jantar.

– Estou farto de rãs. – Meera era uma papa-rãs do Gargalo, por isso Bran supunha que não podia realmente culpá-la por apanhar tantas rãs, mesmo assim... – Queria comer a corça. – Por um momento, recordou o seu gosto, o sangue e a carne rica e crua, e sua boca encheu-se de água. Ganhei a luta pela presa. Ganhei.

– Marcou as árvores?

Bran corou. Jojen andava sempre lhe dizendo para fazer coisas quando abria o terceiro olho e colocava a pele de Verão. Arranhar a casca de uma árvore, ou pegar um coelho e trazê-lo na boca, ainda inteiro, empurrar algumas pedras para formar uma fila. Coisas estúpidas.

– Esqueci – disse.

– Você esquece sempre.

Era verdade. Ele pretendia fazer as coisas que Jojen pedia, mas assim que era lobo elas nunca pareciam importantes. Havia sempre coisas para ver e cheirar, um mundo verde inteiro onde caçar. E podia correr! Não havia nada melhor do que correr, exceto correr atrás de uma presa.

– Eu era um príncipe, Jojen – disse ele ao garoto mais velho. – Era o príncipe da floresta.

– Você é um príncipe – lembrou-lhe Jojen com suavidade. – Lembra-se disso, não é verdade? Diga-me quem é.

– Você sabe. – Jojen era seu amigo e professor, mas às vezes só tinha vontade de bater nele.

– Quero que diga as palavras. Diga-me quem é.

– Bran – ele falou, sem vontade. Bran, o Quebrado. – Brandon Stark. – O menino aleijado. – O Príncipe de Winterfell. – Do Winterfell incendiado e em ruínas, de seu povo disperso e assassinado. Os jardins de vidro estavam destruídos, e jorrava água quente das paredes rachadas, fumegando ao sol. Como se pode ser príncipe de um lugar que possivelmente nunca mais se verá?

– E quem é o Verão? – perguntou Jojen.

– Meu lobo gigante. – Sorriu. – Príncipe do verde.

– Bran, o garoto, e Verão, o lobo. São, então, dois?

– Dois – suspirou – e um só. – Detestava Jojen quando ficava assim estúpido. Em Winterfell queria que eu sonhasse os sonhos de lobo, e agora que sei como sonhá-los está sempre me chamando de volta.

– Lembre-se disso, Bran. Lembre-se de si, senão o lobo vai consumi-lo. Quando se juntam, não basta correr, caçar e uivar na pele de Verão.

Para mim, basta, pensou Bran. Gostava mais da pele de Verão do que da sua. De que serve ser um troca-peles, se não se pode usar a pele que quiser?

– Vai se lembrar? E da próxima vez, marque a árvore. Qualquer árvore, não importa qual, desde que o faça.

– Eu marcarei. Vou me lembrar. Podia voltar e fazer isso agora, se quiser. Dessa vez não me esquecerei. – Mas primeiro como a minha corça, e luto mais um pouco com aqueles pequenos lobos.

Jojen balançou a cabeça.

– Não. É melhor que fique e coma. Com a sua boca. Um warg não pode viver daquilo que seu animal consome.

Como é que você sabe?, pensou Bran, com ressentimento. Nunca foi um warg, não sabe como é.

De repente, Hodor ficou em pé, quase batendo com a cabeça no teto abobadado.

– HODOR! – gritou, correndo para a porta. Meera abriu-a antes de ele alcançá-la e entrou no refúgio do grupo. – Hodor, hodor – disse o enorme cavalariço, sorrindo.

Meera Reed tinha dezesseis anos, era uma mulher-feita, mas não era mais alta do que o irmão. “Todos os cranogmanos são pequenos”, ela havia dito um dia a Bran, quando lhe perguntara por que não era mais alta. De cabelos castanhos, olhos verdes, e reta como um rapaz, caminhava com uma graça flexível que Bran só podia observar e invejar. Meera usava uma adaga longa e afiada, mas a sua maneira preferida de lutar era com uma esguia lança de três dentes para caçar rãs numa mão e uma rede na outra.

– Quem tem fome? – perguntou ela, erguendo a caça que trazia: duas pequenas trutas prateadas e seis gordas rãs verdes.

– Eu tenho – disse Bran. Mas não de rãs. Em Winterfell, antes de terem acontecido todas as coisas más, os Walder costumavam dizer que comer rãs deixava os dentes verdes e fazia crescer musgo debaixo dos braços. Perguntou a si mesmo se os Walder estariam mortos. Não tinha visto seus cadáveres em Winterfell... mas foram muitos cadáveres, e não tinham procurado dentro das construções.

– Nesse caso, teremos de lhe dar comida. Me ajuda a limpar a caça, Bran?

Ele assentiu. Era difícil se aborrecer com Meera. Ela era muito mais alegre do que o irmão e parecia sempre saber como fazê-lo sorrir. Nada nunca a assustava ou a fazia se zangar. Bem, exceto Jojen, às vezes... Jojen Reed conseguia assustar quase qualquer um. Vestia-se todo de verde, tinha olhos escuros como musgo e sonhos verdes. Aquilo que Jojen sonhava tornava-se realidade. Exceto que sonhou que eu morria, e não morri. Mas tinha morrido, de certo modo.

Jojen mandou Hodor buscar lenha e fez uma pequena fogueira, enquanto Bran e Meera limpavam os peixes e as rãs. Usaram o elmo de Meera como panela, cortando a caça em pequenos cubos e juntando um pouco de água a ela e algumas cebolas silvestres, que Hodor achara, para fazer um guisado de rãs. Enquanto comia, Bran decidiu que não era tão bom quanto corça, mas também não era ruim.

– Obrigado, Meera – disse. – Minha Senhora.

– Não tem de quê, Vossa Graça.

– De manhã – anunciou Jojen –, é melhor que prossigamos.

Bran viu Meera ficar tensa.

– Teve um sonho verde?

– Não – admitiu o irmão.

– Então por que temos de ir embora? – quis saber a irmã. – A Torre Arruinada é um bom lugar para nós. Não há aldeias por perto, a floresta está cheia de caça, há peixe e rãs nos riachos e lagos... quem é que vai nos encontrar aqui?

– Este não é o lugar em que devemos estar.

– Mas é seguro.

– Parece seguro, eu sei – disse Jojen –, mas por quanto tempo? Houve uma batalha em Winterfell, vimos os mortos. Batalhas significam guerras. Se algum exército nos pegar desprevenidos...

– Podia ser o exército de Robb – disse Bran. – Robb voltará em breve do sul, eu sei que sim. Ele voltará com todos os seus vassalos e botará os homens de ferro para correr.

– Seu meistre não disse nada de Robb quando o encontramos à beira da morte – recordou-lhe Jojen. – Homens de ferro na Costa Pedregosa, ele disse, e: a leste, o Bastardo de Bolton. Fosso Cailin e Bosque Profundo caíram, o herdeiro de Cerwyn morreu, tal como o castelão de Praça de Torrhen. Guerra por todo o lado, disse ele, cada homem contra o vizinho.

– Já fizemos esse caminho antes – disse a irmã. – Você quer seguir na direção da Muralha e de seu corvo de três olhos. Isso está muito certo, mas a Muralha fica muito longe e Bran não tem outras pernas que não sejam as de Hodor. Se estivéssemos a cavalo...

– Se fôssemos águias, poderíamos voar – disse Jojen em tom cortante –, mas não temos asas, assim como não temos cavalos.

– Há cavalos que podemos obter – disse Meera. – Até mesmo nas profundezas da mata de lobos há lenhadores, caseiros, caçadores. Alguns devem ter cavalos.

– E se tiverem, vamos roubá-los? Somos ladrões? A última coisa de que precisamos é de homens nos perseguindo.

– Poderíamos comprá-los – disse ela. – Negociar por eles.

– Olhe para nós, Meera. Um rapaz aleijado com um lobo gigante, um gigante simplório e dois cranogmanos a mil léguas do Gargalo. Seremos reconhecidos. E a notícia vai se espalhar. Enquanto Bran permanecer morto, estará a salvo. Vivo, transforma-se numa presa para todos os que o querem morto de verdade e para sempre. – Jojen dirigiu-se à fogueira para avivar as brasas com um graveto. – Em algum ponto, ao norte, o corvo de três olhos nos espera. Bran precisa de um professor mais sábio do que eu.

– Como, Jojen? – perguntou a irmã. – Como?

– A pé – respondeu ele. – Um passo de cada vez.

– A estrada de Água Cinzenta até Winterfell nunca mais acabava, e nós estávamos montados. Você quer que percorramos um caminho mais longo a pé, sem sequer sabermos onde termina. Para lá da Muralha, você diz. Não estive lá, assim como você, mas sei que Para-lá-da-Muralha é um lugar grande, Jojen. Há muitos corvos com três olhos ou só há um? Como é que o encontramos?

– Ele talvez nos encontre.

Antes que Meera pudesse pensar em uma resposta, ouviram o som; o uivo distante de um lobo, ecoando na noite.

– Verão? – perguntou Jojen, escutando.

– Não. – Bran conhecia a voz de seu lobo gigante.

– Tem certeza? – perguntou o pequeno avô.

– Absoluta. – Naquele dia, Verão tinha se afastado muito, e não voltaria antes da alvorada. Jojen talvez sonhe verde, mas não distingue um lobo de um lobo gigante. Perguntou a si mesmo por que motivo todos escutavam tanto Jojen. Não era um príncipe como Bran, nem era grande e forte como Hodor, nem tão bom caçador quanto Meera, e, no entanto, de algum modo, era sempre Jojen quem lhes dizia o que fazer.

– Deveríamos roubar cavalos, como Meera quer – disse Bran –, e ir até os Umber, lá em cima na Última Lareira. – Refletiu por um momento. – Ou podíamos roubar um barco e descer o Faca Branca até a cidade de Porto Branco. É aquele gordo do Lorde Manderly que governa lá, ele foi amigável na festa das colheitas. Queria construir navios. Talvez tenha construído alguns, e poderíamos navegar até Correrrio e trazer Robb para casa com todo o seu exército. Então não importaria quem soubesse que eu estou vivo. Robb não deixaria que alguém nos fizesse mal.

– Hodor! – exclamou Hodor. – Hodor, hodor.

Mas ele foi o único que gostou do plano de Bran. Meera limitou-se a sorrir para ele e Jojen franziu a testa. Nunca escutavam o que ele queria, apesar de Bran ser um Stark e, além disso, um príncipe, e os Reed do Gargalo serem vassalos dos Stark.

– Hoooodor – disse Hodor, se balançando. – Hooooooodor, hoooooooodor, hoDOR, hoDOR, hoDOR. – Às vezes gostava de fazer aquilo, dizer o seu nome de diversas maneiras, uma vez, e outra, e outra. Outras vezes, ficava tão calado que dava para esquecer que ele estava ali. Com Hodor nunca se sabia. – HODOR, HODOR, HODOR! – gritou.

Ele não vai parar, compreendeu Bran.

– Hodor – disse –, por que não vai até lá fora treinar com a espada?

O cavalariço tinha se esquecido de sua espada, mas agora se lembrara.

– Hodor! – exclamou. Foi buscar a arma.

Tinham três espadas mortuárias que trouxeram das criptas de Winterfell quando Bran e o irmão Rickon se esconderam dos homens de ferro de Theon Greyjoy. Bran ficou com a espada do tio Brandon; Meera, com aquela que encontrara sobre os joelhos do avô, Lorde Rickard. A lâmina de Hodor era muito mais velha, um enorme e pesado pedaço de ferro, embotado por séculos de negligência e cheio de pontos de ferrugem. Podia passar horas e horas a brandi-la. Perto das pedras tombadas, havia uma árvore apodrecida que ele tinha quase desfeito em pedaços.

Mesmo depois de o gigante sair conseguiam ouvi-lo através das paredes, berrando “HODOR!” enquanto lançava estocadas e dava pancadas em sua árvore. Felizmente, a mata de lobos era enorme, e não era provável que houvesse alguém por perto para ouvir.

– Jojen, o que você quis dizer com aquilo do professor? – perguntou Bran. – Meu professor é você. Sei que não cheguei a marcar a árvore, mas marco da próxima vez. Meu terceiro olho está aberto, como você queria...

– Está tão escancarado que temo que possa cair através dele, e viver o resto de seus dias como um lobo na floresta.

– Não cairei, prometo.

– O garoto promete. O lobo vai se lembrar? Corre com o Verão, caça com ele, mata com ele... mas se curva mais à vontade dele do que ele se curva à sua.

– Eu só me esqueço – protestou Bran. – Só tenho nove anos. Serei melhor quando for mais velho. Nem mesmo Florian, o Bobo, e o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão, eram grandes guerreiros quando tinham nove anos.

– Isso é verdade – disse Jojen – e seria uma coisa sensata a dizer, se os dias ainda fossem mais longos... mas não são. É uma criança de verão, eu sei. Diga-me o lema da Casa Stark.

O Inverno está chegando. – Bastava dizê-lo para que Bran sentisse frio.

Jojen acenou solenemente com a cabeça.

– Sonhei com um lobo alado, preso à terra por correntes de pedra, e fui a Winterfell para libertá-lo. Já não tem as correntes, mas ainda não voa.

– Então me ensina você. – Bran ainda temia o corvo de três olhos que às vezes assombrava seus sonhos, bicando sem parar a pele entre os seus olhos e dizendo-lhe para voar. – É um vidente verde.

– Não – disse Jojen –, sou só um garoto com sonhos. Os videntes verdes eram mais do que isso. Eram também wargs, assim como você, e os maiores de todos podiam usar a pele de qualquer animal que voasse, nadasse ou caminhasse, e eram também capazes de olhar através dos olhos dos represeiros, e de ver a verdade que está por trás do mundo.

“Os deuses concedem muitos dons, Bran. Minha irmã é uma caçadora. Foi-lhe dada a capacidade de correr com rapidez e de ficar tão imóvel que parece ter desaparecido. Tem ouvidos e olhos aguçados, uma mão firme com a rede e a lança. Sabe respirar lama e voar entre as árvores. Eu não seria mais capaz de fazer essas coisas do que você. A mim, os deuses deram os sonhos verdes, e a você... você poderia ser mais do que eu, Bran. É o lobo alado, e não há como dizer quão longe ou alto poderia voar... se tivesse alguém que lhe ensinasse. Como eu poderia ajudá-lo a dominar um dom que não compreendo? No Gargalo, recordamos os Primeiros Homens, e os filhos da floresta, que eram seus amigos... mas tanto foi esquecido, e houve tanto que nunca soubemos.”

Meera pegou na mão de Bran.

– Se ficarmos aqui, sem incomodar ninguém, ficará a salvo até que a guerra termine. Mas não aprenderá, exceto o que meu irmão pode lhe ensinar, e você ouviu o que ele disse. Se deixarmos este lugar para procurar refúgio na Última Lareira ou Para-lá-da-Muralha, arriscamo-nos a ser capturados. Você é apenas um garoto, eu sei, mas também é o nosso príncipe, o filho de nosso senhor e o verdadeiro herdeiro de nosso rei. Juramos lealdade a você em nome da terra e da água, do bronze e do ferro, do gelo e do fogo. O risco é seu, Bran, tal como o dom. A escolha também deve ser sua, creio eu. Somos seus servos e estamos às suas ordens. – Ela sorriu. – Pelo menos nisso.

– Quer dizer – disse Bran – que vão fazer o que eu disser? Mesmo?

– Sim, meu príncipe – respondeu a garota –, portanto, reflita bem.

Bran tentou pensar em todos os detalhes, como o pai poderia ter feito. Os tios do Grande-Jon, Hother Terror-das-Rameiras e Mors Papa-Corvos, eram homens violentos, mas achava que se mostrariam leais. E os Karstark, eles também. O pai dizia sempre que Karhold era um castelo forte. Estaríamos a salvo com os Umber ou os Karstark.

Ou podiam ir para sul, até o gordo Lorde Manderly. Em Winterfell, ele riu muito, e nunca pareceu olhar para Bran com piedade demais, como faziam os outros senhores. O Castelo Cerwyn ficava mais perto do que Porto Branco, mas Meistre Luwin havia dito que Cley Cerwyn estava morto. Os Umber, os Karstark e os Manderly também podem estar mortos, compreendeu. Tal como ele ficaria, se fosse pego pelos homens de ferro ou pelo Bastardo de Bolton.

Se ficassem ali, escondidos por baixo da Torre Arruinada, ninguém os encontraria. Permaneceria vivo. E aleijado.

Bran percebeu que estava chorando. Bebê imbecil, pensou consigo mesmo. Fosse para onde fosse, para Karhold, para Porto Branco ou para a Atalaia da Água Cinzenta, seria um aleijado quando lá chegasse. Fechou as mãos em punho.

– Quero voar – disse-lhes. – Por favor. Levem-me ao corvo.

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