Arya

Sentia o buraco dentro de si todas as manhãs ao acordar. Não era fome, embora às vezes também houvesse isso. Era um lugar oco, um vazio onde o coração estivera, onde os irmãos e os pais tinham vivido. Sua cabeça também doía. Não tanto como a princípio, mas ainda doía bastante. Arya estava habituada a isso, porém, e pelo menos o galo estava desaparecendo. Mas o buraco dentro de si permanecia mesmo assim. O buraco nunca desaparecerá, dizia a si mesma quando ia dormir.

Em algumas manhãs, Arya não queria sequer acordar. Aninhava-se sob o manto com os olhos bem apertados e tentava voltar ao sono pela força da vontade. Se ao menos o Cão de Caça a deixasse em paz, dormiria todo o dia e toda a noite.

E sonhava. Essa era a melhor parte, os sonhos. Sonhava com lobos quase todas as noites. Uma grande alcateia de lobos, ela à frente. Era maior do que todos os outros, mais forte, mais ligeira, mais rápida. Era capaz de correr mais depressa do que cavalos e de vencer leões em luta. Quando arreganhava os dentes, até os homens fugiam dela, nunca tinha a barriga vazia por muito tempo, e o pelo mantinha-a quente mesmo quando o vento soprava frio. E os irmãos e irmãs acompanhavam-na, muitos e muitos mais, ferozes, terríveis e seus. Nunca a abandonariam.

Mas se as suas noites eram cheias de lobos, os dias pertenciam ao cão. Sandor Clegane obrigava-a a se levantar todas as manhãs, quer quisesse quer não. Amaldiçoava-a em sua voz arranhada, ou punha-a bruscamente de pé e sacudia-a. Uma vez tinha despejado um elmo cheio de água fria por cima de sua cabeça. Ela levantou-se repentinamente, cuspindo água e tremendo, e tentou chutá-lo, mas ele limitou-se a rir.

– Seque-se e dê de comer à merda dos cavalos – ele tinha dito, e ela obedeceu.

Agora tinham dois, o Estranho e uma égua palafrém alazã que Arya batizou de Covarde, porque Sandor disse que o animal provavelmente teria fugido das Gêmeas, tal como eles. Tinham-na encontrado vagueando sem cavaleiro pelo campo, na manhã seguinte ao massacre. Era um cavalo bastante bom, mas Arya não era capaz de amar um covarde. Estranho teria lutado. Apesar de tudo, cuidava da égua o melhor que sabia. Era melhor do que seguir montada no mesmo cavalo de Cão de Caça. E Covarde podia ter feito jus ao nome, mas também era jovem e forte. Arya achava que talvez fosse capaz de correr mais depressa do que Estranho, se fosse preciso.

Cão de Caça já não a vigiava tão atentamente como antes. Às vezes não parecia se importar se ela ficava ou se ia embora, e já não a atava num manto à noite. Uma noite, mato-o enquanto dorme, dizia a si mesma, mas não fazia isso. Um dia, vou embora com a Covarde, e ele não conseguirá me pegar, pensava, mas também não fazia isso. Para onde iria? Winterfell estava destruído. O irmão do avô estava em Correrrio, mas não a conhecia, tal como ela não o conhecia. A Senhora Smallwood talvez a acolhesse em Solar de Bolotas, mas talvez não. Além disso, Arya nem sequer tinha certeza de conseguir encontrar o Solar de Bolotas novamente. Às vezes pensava que podia voltar para a estalagem de Sharna, se as cheias não a tivessem levado. Podia ficar com o Torta Quente, ou talvez Lorde Beric a encontrasse ali. Anguy iria ensiná-la a usar um arco, e ela poderia cavalgar com Gendry e ser uma fora da lei, como Wenda, a Cerva Branca das canções.

Mas isso era uma estupidez, como um sonho que Sansa poderia ter. Torta Quente e Gendry tinham-na abandonado assim que puderam, e Lorde Beric e os fora da lei só queriam obter um resgate por ela, assim como o Cão de Caça. Nenhum deles a queria por perto. Nunca foram a minha alcateia, nem sequer o Torta Quente e o Gendry. Fui burra por pensar que sim, uma menininha estúpida, nem de longe uma loba.

Por isso ficava com o Cão de Caça. Viajavam todos os dias, sem nunca dormir duas vezes no mesmo local, evitando vilas, aldeias e castelos o melhor possível. Uma vez tinha perguntado a Sandor Clegane para onde iam.

– Para longe – disse ele. – É tudo o que tem de saber. Agora não vale uma cusparada para mim, e não quero ouvir as suas lamúrias. Devia tê-la deixado correr para aquele maldito castelo.

– Devia mesmo – concordou ela, pensando na mãe.

– Se tivesse feito isso, estaria morta. Devia me agradecer. Devia cantar uma cançãozinha bonita para mim, como a sua irmã fez.

– Também bateu nela com um machado?

– Bati em você com a parte romba do machado, minha cachorra estúpida. Se a tivesse atingido com a lâmina, haveria pedaços de sua cabeça flutuando pelo Ramo Verde abaixo. Agora feche a merda da boca. Se eu tivesse algum juízo, dava você às irmãs silenciosas. Elas cortam a língua das garotas que falam demais.

Não era justo ele dizer aquilo. Tirando aquela vez, Arya quase nem sequer falava. Passavam-se dias inteiros sem que nenhum dos dois proferisse uma única palavra. Ela estava vazia demais para falar, e Cão de Caça tinha ira demais. Arya sentia a fúria nele; via-a em seu rosto, no modo como sua boca se comprimia e torcia, nos olhares que lhe lançava. Sempre que pegava o machado para cortar um pouco de lenha para uma fogueira, enchia-se de uma fúria fria, golpeando violentamente a árvore viva ou morta, ou o galho partido, até ficarem com vinte vezes mais lenha do que necessitavam. Às vezes, ficava tão dolorido e cansado depois de cortar a lenha que se deitava e adormecia sem sequer acender a fogueira. Arya detestava quando isso acontecia, e detestava-o também. Eram essas as noites em que fitava mais intensamente o machado. Parece terrivelmente pesado, mas aposto que seria capaz de brandi-lo. E não o golpearia com a parte romba.

Às vezes, em seus deslocamentos, vislumbravam outras pessoas; camponeses nos seus campos, guardadores de suínos com seus porcos, uma leiteira conduzindo uma vaca, um escudeiro levando uma mensagem por uma estrada sulcada. Também não queria falar com eles. Era como se vivessem em alguma terra distante e falassem uma língua estranha e estrangeira, nada tinham a ver com ela. E nem ela com eles.

Além disso, ser visto não era seguro. De tempos em tempos colunas de cavaleiros passavam pelas sinuosas estradas rurais, com as torres gêmeas de Frey esvoaçando à sua frente.

– À caça de nortenhos desgarrados – tinha dito Cão de Caça depois de uma dessas colunas ter passado. – Sempre que ouvir cascos, abaixe depressa a cabeça, pois não é provável que seja um amigo.

Um dia, num buraco na terra feito pelas raízes de um carvalho caído, deram de cara com outro sobrevivente das Gêmeas. O símbolo que trazia ao peito exibia uma donzela cor-de-rosa que dançava num rodopio de seda, e ele disse-lhes que era um homem de Sor Marq Piper; um arqueiro, embora tivesse perdido o arco. O ombro esquerdo estava todo inchado e torcido no local onde se juntava ao braço; um golpe de maça, disse, tinha partido seu ombro e enterrado profundamente a cota de malha em sua carne.

– E foi um nortenho – choramingou. – O símbolo dele era um homem ensanguentado, e viu o meu e fez uma piada, homem vermelho e donzela cor-de-rosa, talvez devessem se juntar. Eu bebi ao Lorde Bolton dele, ele bebeu a Sor Marq e bebemos juntos ao Lorde Edmure, à Senhora Roslin e ao Rei no Norte. E depois matou-me. – Os olhos dele tinham um brilho febril quando disse aquilo, e Arya viu que era verdade. O ombro estava inchado de forma grotesca, e pus e sangue tinham-lhe manchado todo o lado esquerdo. E também fedia. Cheira a cadáver. O homem implorou um trago de vinho.

– Se tivesse algum vinho, tinha-o bebido eu – disse-lhe Cão de Caça. – Posso dar-lhe água e misericórdia.

O arqueiro olhou-o longamente antes de dizer:

– É o cão de Joffrey.

– Agora sou um cão independente. Quer a água?

– Sim. – O homem engoliu em seco. – E a misericórdia. Por favor.

Tinham passado por uma pequena lagoa pouco antes. Sandor deu a Arya o elmo e disse-lhe para enchê-lo, e ela caminhou penosamente até a borda da água. Lama esguichou sobre a ponta de suas botas. Usou a cabeça do cão como balde. Escorreu água pelos buracos para os olhos, mas o fundo do elmo ainda tinha ficado com muita.

Quando voltou, o arqueiro virou o rosto para cima e ela despejou a água na boca dele. Ele engoliu-a tão depressa quanto ela conseguia despejar, e aquilo que não conseguiu engolir escorreu por seu rosto, indo misturar-se com o sangue marrom que estava incrustado nos pelos que o cobriam, até que lágrimas de um tom claro de rosa pingaram de sua barba. Quando a água se esgotou, agarrou o elmo e lambeu o aço.

– Ótimo – disse. – Mas preferia que tivesse sido vinho. Queria vinho.

– Eu também. – Cão de Caça enfiou o punhal no peito do homem quase com ternura, com o peso do corpo empurrando a ponta através do sobretudo, da cota de malha e do almofadado que usava por baixo. Quando voltou a puxar a faca para fora, olhou para Arya. – É ali que fica o coração, garota. É assim que se mata um homem.

Essa é uma maneira.

– Devemos enterrá-lo?

– Por quê? – disse Sandor. – Ele não se importa, e nós não temos pá. Deixe-o para os lobos e os cães selvagens. Os seus irmãos e os meus. – Dirigiu-lhe um olhar duro. – Mas primeiro vamos roubá-lo.

Havia dois veados de prata na bolsa do arqueiro, e quase trinta moedas de cobre. O punhal do homem tinha uma bonita pedra cor-de-rosa no botão. Cão de Caça sopesou a faca e depois atirou-a a Arya. Ela pegou-a pelo cabo, enfiou-a no cinto e sentiu-se um pouco melhor. Não era a Agulha, mas era aço. O morto também tinha uma aljava de flechas, mas as flechas não tinham muita utilidade sem um arco. As botas eram grandes demais para Arya e pequenas demais para Cão de Caça, portanto deixaram-nas lá. Ela também ficou com seu capacete, embora lhe caísse quase até abaixo do nariz, e tivesse de incliná-lo para trás para poder enxergar.

– Ele também deveria ter um cavalo, senão não teria fugido – disse Clegane, olhando em volta –, mas acho que já desapareceu. Não há como dizer há quanto tempo ele está aqui.

Quando chegaram ao sopé das Montanhas da Lua, as chuvas tinham quase parado. Arya conseguia ver o sol, a lua e as estrelas, e parecia-lhe que se dirigiam para leste.

– Para onde vamos? – voltou a perguntar.

Daquela vez o Cão de Caça respondeu-lhe.

– Você tem uma tia no Ninho da Águia. Talvez queira resgatar esse seu corpinho magricela, embora só os deuses saibam por quê. Depois de acharmos a estrada de altitude, podemos segui-la até o Portão Sangrento.

A tia Lysa. A ideia deixou em Arya uma sensação de vazio. Era a mãe que desejava, não a irmã da mãe. Não conhecia melhor a tia Lysa do que o tio-avô Peixe Negro. Devíamos ter entrado no castelo. Na verdade não sabiam se a mãe estava morta, ou mesmo Robb. Não os tinham propriamente visto morrer, nem nada parecido. Talvez Lorde Frey os tivesse apenas capturado. Talvez estivessem acorrentados em sua masmorra, ou talvez os Frey estivessem levando-os para Porto Real, para que Joffrey pudesse cortar a cabeça deles. Não sabiam.

– Devíamos voltar – decidiu de repente. – Devíamos voltar para as Gêmeas e ir buscar a minha mãe. Ela não pode estar morta. Temos de ajudá-la.

– Achava que era a sua irmã quem tinha a cabeça cheia de canções – rosnou o Cão de Caça. – O Frey podia ter mantido a sua mãe viva para obter um resgate, isso é verdade. Mas não há uma chance nos sete infernos de eu conseguir arrancá-la sozinho do seu castelo.

– Sozinho não. Eu também iria.

Ele soltou um som que era quase uma gargalhada.

Isso ia fazer o velho mijar-se de susto.

– Você só tem medo de morrer! – disse ela com uma expressão de escárnio.

Agora Clegane riu mesmo.

– A morte não me assusta. Só o fogo. Agora veja se fica quieta, senão eu mesmo corto sua língua e poupo as irmãs silenciosas da chatice. Para nós é o Vale.

Não parecia a Arya que ele realmente cortaria sua língua; estava apenas dizendo aquilo como o Olho-Vermelho costumava dizer que bateria nela até tirar sangue. Fosse como fosse, não iria pô-lo à prova. Sandor Clegane não era nenhum Olho-Vermelho. O Olho-Vermelho não cortava gente ao meio nem batia nela com machados. Nem mesmo com a parte romba dos machados.

Naquela noite adormeceu pensando na mãe e perguntando a si mesma se deveria matar Cão de Caça enquanto dormia e salvar ela mesma a Senhora Catelyn. Quando fechou os olhos, viu o rosto da mãe na parte de dentro das pálpebras. Ela está tão perto que quase conseguiria cheirá-la...

... e então conseguiu cheirá-la. O odor era tênue sob os outros cheiros, sob o musgo, a lama e a água e o fedor de juncos e homens em putrefação. Caminhou lentamente pelo terreno macio até a beira do rio e lambeu um pouco de água, após o que ergueu a cabeça para farejar. O céu estava cinza e pesado de nuvens; o rio, verde e cheio de coisas flutuantes. Os baixios estavam coalhados de mortos, alguns ainda em movimento quando a água os empurrava, outros encalhados nas margens. Os irmãos e irmãs formigavam em volta dos corpos, devorando a rica carne putrefata.

Também lá estavam os corvos, gritando contra os lobos e enchendo o ar de penas. O sangue deles era mais quente, e uma de suas irmãs abocanhou um ao levantar voo, apanhando-o por uma asa. Aquilo fez com que também desejasse um corvo. Queria sentir o sabor do sangue, ouvir os ossos se esmagando entre seus dentes, encher a barriga com carne quente em vez de fria. Tinha fome e havia carne por toda a volta, mas sabia que não podia comer.

O cheiro agora era mais forte. Levantou as orelhas e escutou os rosnados da alcateia, os guinchos de corvos irritados, o sussurro das asas e o som da água corrente. Ouviu sons de cavalos e os gritos dos vivos vindos de algum lugar a distância, mas não eram eles que importavam. Só o odor importava. Voltou a farejar o ar. Ali estava ele, e agora também via a sua origem, algo pálido à deriva no rio, virando-se quando roçava por um obstáculo submerso. Os juncos faziam reverências à sua frente.

Chapinhou ruidosamente pelos baixios e atirou-se em águas mais profundas, batendo as patas. A correnteza era forte, mas ela era mais. Nadou, seguindo o nariz. Os cheiros do rio eram ricos e úmidos, mas não eram esses que a atraíam. Nadou atrás do vivo sussurro rubro do sangue frio, do fedor enfastiante e doce da morte. Perseguiu-os como perseguira frequentemente um veado vermelho por entre as árvores, e por fim apanhou-os e suas mandíbulas fecharam-se em volta de um braço pálido. Sacudiu-o para obrigá-lo a se mexer, mas havia apenas morte e sangue em sua boca. Começava a se cansar, e foi com dificuldade que puxou o cadáver para a terra. Enquanto o arrastava para a margem lamacenta, um de seus irmãos menores veio investigar, com a língua saindo da boca. Teve de rosnar para afastá-lo, caso contrário ele teria comido. Só então parou para sacudir a água do pelo. A coisa branca jazia de bruços na lama, com a carne morta enrugada e pálida e sangue frio pingando de sua garganta. Levante-se, pensou. Levante-se, e venha comer e correr conosco.

O ruído de cavalos fez a loba virar a cabeça. Homens. Vinham contra o vento, e por isso não sentira o cheiro deles, mas agora estavam quase ali. Homens a cavalo, com asas pretas, amarelas e cor-de-rosa que batiam ao vento e longas garras brilhantes nas mãos. Alguns de seus irmãos mais novos mostraram os dentes para proteger a comida que tinham achado, mas ela mordeu-os até fugirem. Era essa a lei da natureza. Veados, lebres e corvos fugiam perante lobos, e lobos fugiam dos homens. Abandonou a captura fria e branca na lama para onde a arrastara, e fugiu, e não sentiu vergonha.

Quando a manhã chegou, Cão de Caça não precisou gritar ou sacudir Arya para que acordasse. Ela havia acordado antes dele, por uma vez, e até tinha dado água aos cavalos. Quebraram o jejum em silêncio, até que Sandor disse:

– Aquela conversa de sua mãe...

– Não importa – disse Arya numa voz sem vida. – Eu sei que está morta. Vi-a num sonho.

Cão de Caça observou-a por um longo momento, e depois assentiu. Nada mais foi dito sobre o assunto. Continuaram a viagem na direção das montanhas.

Nas colinas mais elevadas, chegaram a uma minúscula aldeia isolada rodeada por árvores-sentinela de um cinza-esverdeado e grandes pinheiros marciais azuis, e Clegane decidiu arriscar entrar.

– Precisamos de comida – afirmou – e de um telhado sobre a cabeça. Não é provável que eles saibam o que aconteceu nas Gêmeas, e com um pouco de sorte não vão me reconhecer.

Os aldeões estavam construindo uma paliçada de madeira em volta de suas casas, e quando viram a largura dos ombros de Cão de Caça, ofereceram-lhes comida e abrigo, e até dinheiro em troca de trabalho.

– Se também houver vinho, aceito – rosnou-lhes ele. Por fim, acabou se contentando com cerveja, e todas as noites bebia até adormecer.

Mas o seu sonho de vender Arya à Senhora Arryn morreu ali nas colinas.

– Há geada acima de nós e neve nos passos de altitude – disse o ancião da aldeia. – Se não congelar ou passar fome, os gatos-das-sombras vão pegá-lo, ou então serão os ursos das cavernas. E também há os clãs. Os Homens Queimados andam destemidos desde que Timett Zarolho voltou da guerra. E há meio ano, Gunthor, filho de Gurn, desceu com os Corvos de Pedra até uma aldeia a menos de treze quilômetros daqui. Levaram todas as mulheres e todos os restos de cereais e mataram metade dos homens. Agora têm aço, espadas boas e camisas de cota de malha, e vigiam a estrada de altitude... os Corvos de Pedra, as Serpentes de Leite, os Filhos da Névoa, todos eles. Talvez possa levar alguns com você, mas no fim vão matá-lo e ir embora com a sua filha.

Não sou filha dele, podia ter gritado Arya, se não se sentisse tão cansada. Agora não era filha de ninguém. Não era ninguém. Nem Arya, nem a Doninha, nem Nan, nem Arry, nem a Pombinha, nem sequer Cabeça de Caroço. Era apenas uma garota qualquer que corria de dia com um cão e à noite sonhava com lobos.

A aldeia era sossegada. Tinham colchões de palha sem muitos piolhos, a comida era simples mas satisfazia e o ar cheirava a pinheiros. Mesmo assim, Arya depressa decidiu que a detestava. Os aldeões eram covardes. Nenhum deles sequer olhava para a cara do Cão de Caça, pelo menos não por muito tempo. Algumas das mulheres tentaram enfiá-la num vestido e obrigá-la a bordar, mas não eram a Senhora Smallwood, e Arya nem quis ouvir falar do assunto. E havia uma garota que decidiu segui-la, filha do ancião da aldeia. Tinha a idade de Arya, mas não passava de uma criança; chorava se esfolasse um joelho, e carregava uma estúpida boneca de trapos para todo lado. A boneca tinha sido feita para se assemelhar a um homem de armas, mais ou menos, e por isso a menina chamava-a de Sor Soldado e gabava-se de como ele a mantinha a salvo.

– Vá embora – disse-lhe Arya meia centena de vezes. – Deixe-me em paz. – Mas ela não deixava, e Arya acabou por lhe tirar a boneca, rasgá-la, enfiar um dedo na barriga e puxar os trapos que a enchiam. – Agora parece mesmo um soldado! – disse, antes de atirar a boneca em um riacho.

Depois daquilo a garota deixou de importuná-la, e Arya passou a gastar os dias tratando da Covarde e do Estranho ou passeando pela floresta. Por vezes achava um pedaço de madeira e praticava seus trabalhos de agulha, mas então recordava o que havia acontecido nas Gêmeas e batia com ele numa árvore até que se partisse.

– Talvez devêssemos ficar aqui por algum tempo – disse-lhe Cão de Caça depois de uma quinzena. Estava bêbado de cerveja, mas mostrava-se mais pensativo do que sonolento. – Nunca chegaremos ao Ninho da Águia, e os Frey ainda devem andar à caça de sobreviventes nas terras fluviais. Parece que por aqui precisam de quem saiba manejar uma espada, com os ataques desses clãs. Podíamos descansar e talvez achar uma maneira de fazer chegar uma carta à sua tia.

O rosto de Arya tornou-se sombrio ao ouvir aquilo. Não queria ficar, mas também não havia para onde ir. Na manhã seguinte, quando Cão de Caça saiu para abater árvores e carregar troncos, voltou a enfiar-se na cama.

Mas quando o trabalho terminou e a grande paliçada de madeira ficou pronta, o ancião da aldeia deixou claro que não havia lugar para eles.

– Quando chegar o inverno, vamos ter dificuldade em alimentar os nossos – explicou. – E você... um homem como você traz sangue consigo.

A boca de Sandor comprimiu-se.

– Então sabe quem eu sou.

– Sim. Os viajantes não chegam aqui, é verdade, mas vamos ao mercado e a feiras. Sabemos do cão do Rei Joffrey.

– Quando esses Corvos de Pedra vierem visitá-los, podem ficar felizes por ter um cão.

– Pode ser que sim. – O homem hesitou, mas depois reuniu coragem. – Mas dizem que perdeu o estômago para a luta na Água Negra. Dizem...

– Eu sei o que eles dizem. – A voz de Sandor soava como duas serras roçando uma na outra. – Pague-me, e vamos embora.

Quando partiram, Cão de Caça tinha uma bolsa cheia de moedas de cobre, um odre de cerveja amarga e uma espada nova. Era uma espada muito velha, a bem da verdade, embora fosse nova para ele. Trocara-a pelo machado que tinha pego nas Gêmeas, aquele que usara para criar o galo na cabeça de Arya. A cerveja desapareceu em menos de um dia, mas Clegane amolava a espada todas as noites, amaldiçoando o homem de quem a obtivera por cada entalhe e mancha de ferrugem que encontrava. Se ele perdeu o estômago para a luta, por que é que se importa se a espada está afiada? Não era uma pergunta que Arya se atrevesse a fazer, mas pensava muito nela. Seria por isso que ele tinha fugido das Gêmeas e a levado consigo?

De volta às terras fluviais, descobriram que as chuvas tinham se atenuado e que as águas da cheia tinham começado a baixar. Cão de Caça dirigiu-se para o sul, de volta ao Tridente.

– Vamos para Correrrio – disse a Arya enquanto assavam uma lebre que tinha matado. – O Peixe Negro talvez queira comprar uma loba.

– Ele não me conhece. Nem sequer saberá se eu sou realmente eu. – Arya estava farta de se dirigir a Correrrio. Parecia que estava se dirigindo para Correrrio havia anos, sem nunca chegar lá. Sempre que se dirigia para Correrrio acabava num lugar pior qualquer. – Ele não vai lhe dar nenhum resgate. Provavelmente só vai enforcá-lo.

– É livre para tentar. – E virou o espeto.

Ele não fala como alguém que tenha perdido o estômago para a luta.

– Eu sei para onde podemos ir – disse Arya. Ainda lhe restava um irmão. Jon vai me querer, mesmo que mais ninguém queira. Vai me chamar de “irmãzinha” e despentear meus cabelos. Mas era uma longa viagem, e não lhe parecia que conseguisse chegar lá sozinha. Nem sequer tinha sido capaz de chegar a Correrrio. – Podíamos ir para a Muralha.

A gargalhada de Sandor foi um meio rosnido.

– A pequena loba quer se juntar à Patrulha da Noite, é?

– Meu irmão está na Muralha – disse ela obstinadamente.

A boca dele torceu-se.

– A Muralha fica a mil léguas daqui. Precisaríamos lutar contra a merda dos Frey só para chegar ao Gargalo. Nesses pântanos há lagartos-leões que comem lobos todos os dias no café da manhã. E se conseguíssemos chegar ao norte com a pele intacta, há homens de ferro em metade dos castelos e milhares de malditos nortenhos também.

– Tem medo deles? – perguntou ela. – Perdeu o estômago para lutar?

Por um momento pensou que Cão de Caça ia bater nela. Mas a lebre já estava corada, com a pele crocante e gordura borbulhando quando pingava na fogueira. Sandor tirou-a do espeto, abriu-a ao meio com suas grandes mãos e atirou metade para o colo de Arya.

– Não há nada de errado com o meu estômago – disse enquanto arrancava uma pata –, mas estou cagando para você e para o seu irmão. Eu também tenho um irmão.

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