Jon

Emmett de Ferro era um jovem patrulheiro alto e magricela cuja resistência, força e habilidade com a espada eram o orgulho de Atalaialeste. Jon saía sempre de suas sessões hirto e dolorido, e no dia seguinte acordava coberto de hematomas, o que era exatamente o que queria. Nunca conseguiria se aperfeiçoar defrontando gente como Cetim, Cavalo ou mesmo Grenn.

Jon gostava de pensar que na maior parte dos dias batia tanto quanto apanhava, mas não naquele. Quase não tinha dormido na noite anterior, e após passar uma hora virando-se na cama, num desassossego, desistiu até de tentar, vestiu-se e percorreu o topo da Muralha até o sol nascer, lutando com a oferta de Stannis Baratheon. A falta de sono estava agora se fazendo sentir, e Emmett malhava nele sem misericórdia pátio afora, mantendo-o sobre os calcanhares com um longo golpe em arco após outro, e batendo nele de tempos em tempos com o escudo, para variar. O braço de Jon ficou dormente com os impactos, e a espada de treino sem gume parecia tornar-se mais pesada a cada momento.

Estava prestes a baixar a lâmina e pedir para pararem quando Emmett fez uma finta baixa e arremeteu por cima de seu escudo com um violento golpe direto que atingiu Jon num lado da cabeça. Cambaleou, com o elmo e a cabeça ressoando com a força do ataque. Durante meio segundo o mundo para lá de sua viseira foi uma mancha indistinta.

E então os anos desapareceram, e ele estava uma vez mais de volta a Winterfell, usando um casaco de couro almofadado em vez de cota de malha e placa de aço. Sua espada era feita de madeira, e era Robb quem o defrontava, e não Emmett de Ferro.

Tinham treinado juntos todas as manhãs, desde que tiveram idade suficiente para andar; Snow e Stark, rodopiando e golpeando-se pelos pátios de Winterfell, gritando e rindo, e às vezes chorando quando ninguém estava vendo. Quando lutavam não eram garotinhos, e sim cavaleiros e poderosos heróis. “Eu sou o Príncipe Aemon, o Cavaleiro do Dragão”, gritava Jon, e Robb gritava em resposta: “Bem, eu sou Florian, o Bobo”. Ou então Robb dizia: “Eu sou o Jovem Dragão”, e Jon respondia: “Eu sou Sor Ryam Redwyne”.

Naquela manhã tinha sido ele quem gritou primeiro.

– Eu sou o Senhor de Winterfell – gritou, como gritara cem vezes antes. Mas daquela vez, daquela vez, Robb respondeu:

– Você não pode ser Senhor de Winterfell, é um bastardo. A senhora minha mãe diz que nunca poderá ser Senhor de Winterfell.

Achava que tinha esquecido isso. Jon sentia sangue na boca, do golpe que sofrera.

No fim, Halder e Cavalo tiveram de afastá-lo de Emmett de Ferro, cada um dos homens segurando um de seus braços. O patrulheiro estava sentado no chão, atordoado, com o escudo meio feito em lascas, a viseira do elmo torta, e a espada a seis metros de distância.

– Jon, basta – Halder estava gritando –, ele caiu, você desarmou-o. Basta!

Não. Não basta. Nunca basta. Jon largou a espada.

– Desculpe – murmurou. – Emmett, está ferido?

Emmett de Ferro tirou seu elmo amassado.

– Houve alguma parte de rendo-me que não conseguiu entender, Lorde Snow? – Mas aquilo foi dito de forma amigável. Emmett era um homem amigável e adorava a canção das espadas. – Que o Guerreiro me proteja – gemeu –, agora sei o que Qhorin Meia-Mão deve ter sentido.

Aquilo foi demais. Jon libertou-se dos amigos e se retirou para o arsenal, sozinho. Ainda tinha os ouvidos ressoando do golpe que Emmett lhe dera. Sentou-se no banco e afundou a cabeça nas mãos. Por que estou tão zangado?, perguntou a si mesmo, mas era uma pergunta estúpida. Senhor de Winterfell. Poderia ser Senhor de Winterfell. Herdeiro de meu pai.

Mas não foi o rosto de Lorde Eddard que viu flutuando na sua frente; foi o da Senhora Catelyn. Com os seus profundos olhos azuis e a boca dura e fria, parecia-se um pouco com Stannis. Ferro, pensou, mas quebradiço. Ela o olhava daquela maneira como costumava olhá-lo em Winterfell, sempre que ele se sobrepunha a Robb nas espadas, nas somas, ou em qualquer outra coisa. Quem é você?, sempre lhe parecia que aquele olhar dizia. Este não é o seu lugar. Por que está aqui?

Os amigos ainda estavam no pátio de treinos, mas Jon não se encontrava em estado de encará-los. Saiu do arsenal pelos fundos, descendo uma íngreme escada de pedra até os caminhos de minhoca, os túneis subterrâneos que ligavam as fortalezas e as torres do castelo. Foi uma caminhada curta até a casa de banhos, onde deu um mergulho frio para lavar o suor do corpo e depois se enfiou numa quente banheira de pedra. O calor levou um pouco da dor dos músculos e fez Jon pensar nas lagoas lamacentas de Winterfell, que fumegavam e borbulhavam no bosque sagrado. Winterfell, pensou. Theon deixou-o queimado e quebrado, mas eu poderia restaurá-lo. Certamente o pai teria desejado isso, e Robb também. Nunca teriam desejado que o castelo fosse abandonado à ruína.

“Você não pode ser Senhor de Winterfell, é um bastardo”, ouviu de novo Robb dizer. E os reis de pedra rosnavam para ele com línguas de granito. “Não pertence a Winterfell. Este não é o seu lugar.” Quando Jon fechou os olhos, viu a árvore-coração, com seus ramos claros, folhas vermelhas e rosto solene. Lorde Eddard sempre dizia que o represeiro era o coração de Winterfell... mas para salvar o castelo, Jon teria de arrancar esse coração até suas antigas raízes e entregá-lo ao faminto deus de fogo da mulher vermelha. Não tenho o direito, pensou. Winterfell pertence aos deuses antigos.

O som de vozes ecoando no teto abobadado trouxe-o de volta a Castelo Negro.

– Não sei – um homem estava dizendo, numa voz pesada de dúvidas. – Talvez se conhecesse melhor o homem... Lorde Stannis não tinha nada de muito bom a dizer dele, digo-lhe isso.

– Quando Stannis Baratheon teve muitas coisas boas a dizer de alguém? – voz pétrea de Sor Alliser era inconfundível. – Se permitirmos que Stannis escolha nosso Senhor Comandante, transformamo-nos em seus vassalos em tudo menos no nome. Não é provável que Tywin Lannister se esqueça disso, e você sabe que será Lorde Tywin quem vai ganhar no fim. Já derrotou Stannis uma vez, na Água Negra.

– Lorde Tywin é favorável a Slynt – disse Bowen Marsh, numa voz inquieta e ansiosa. – Posso lhe mostrar a carta dele, Othell. Chamou Slynt de “o nosso fiel amigo e servidor”.

Jon Snow ergueu-se de repente, e os três homens imobilizaram-se ao ouvir o som da água escorrendo.

– Senhores – disse, com fria cortesia.

– O que está fazendo aqui, bastardo? – perguntou Thorne.

– Tomando banho. Mas não deixem que eu estrague as suas maquinações. – Jon saiu de dentro da banheira, secou-se, vestiu-se e deixou-os conspirando. Lá fora, descobriu que não fazia nenhuma ideia de onde ir. Passou pelo esqueleto da Torre do Senhor Comandante, onde um dia tinha salvado o Velho Urso de um morto; passou pelo local onde Ygritte morreu com aquele sorriso triste no rosto; passou pela Torre do Rei, onde ele, Cetim e Dick Surdo Follard tinham esperado pelo Magnar e os seus Thenns; passou pelos restos empilhados e carbonizados da grande escada de madeira. O portão interior estava aberto, então Jon penetrou no túnel e começou a atravessar a Muralha. Sentia o frio à sua volta, o peso de todo o gelo por cima de sua cabeça. Passou pelo local onde Donal Noye e Mag, o Poderoso, tinham lutado e morrido juntos, atravessou o novo portão exterior, e saiu para a luz pálida e fria do sol.

Só então se permitiu parar, respirar, pensar. Othell Yarwyck não era um homem de fortes convicções, exceto naquilo que dizia respeito a madeira, pedra e argamassa. O Velho Urso sabia disso. Thorne e Marsh irão fazê-lo mudar de opinião, Yarwyck irá apoiar Lorde Janos, e Lorde Janos será escolhido Senhor Comandante. E isso deixa-me o quê, além de Winterfell?

Um vento rodopiava contra a Muralha, puxando seu manto. Sentia o frio que vinha do gelo tal como o calor vem de uma fogueira. Jon puxou o capuz para cima e recomeçou a andar. A tarde encaminhava-se para o fim, e o sol estava baixo a oeste. Cem metros à frente ficava o acampamento onde o Rei Stannis confinou seus cativos selvagens dentro de um anel de valas, estacas afiadas, e altas cercas de madeira. Para a esquerda havia três grandes fossos para fogueiras, onde os vencedores tinham queimado os corpos de todos os membros do povo livre que tinham morrido à sombra da Muralha, fossem enormes gigantes cobertos de pelo, fossem pequenos homens de Cornopé. O terreno de matança ainda era uma desolação de mato chamuscado e piche endurecido, mas o povo de Mance deixou sinais de sua passagem por todo lado: uma pele rasgada que podia ter feito parte de uma tenda, um malho de gigante, a roda de uma biga, uma lança quebrada, uma pilha de estrume de mamute. No limite da floresta assombrada, onde as tendas tinham se erguido, Jon encontrou um toco de carvalho e sentou-se.

Ygritte queria que eu fosse um selvagem, Stannis quer que eu seja o Senhor de Winterfell. Mas o que eu quero? O sol engatinhou pelo céu e foi mergulhar atrás da Muralha, no local onde esta descrevia uma curva através dos montes a ocidente. Jon ficou observando, enquanto essa altíssima extensão de gelo adotava os tons vermelhos e rosados do poente. Preferiria ser enforcado como vira-casaca por Lorde Janos ou abjurar os meus votos, casar com Val e tornar-me Senhor de Winterfell? Parecia uma escolha fácil quando pensava nela nesses termos... se bem que, se Ygritte ainda fosse viva, pudesse ter sido ainda mais fácil. Val era uma estranha para ele. Não era de doer os olhos, com certeza, e tinha sido irmã da rainha de Mance Rayder, mesmo assim...

Teria de raptá-la se quisesse o seu amor, mas ela poderia me dar filhos. Eu poderia um dia segurar nos braços um filho de meu próprio sangue. Um filho era algo com que Jon Snow nunca se atrevera a sonhar, desde que decidira viver a sua vida na Muralha. Podia chamá-lo de Robb. Val gostaria de ficar com o filho da irmã, mas poderíamos criá-lo em Winterfell, e o filho da Goiva também. Sam nunca teria de contar a sua mentira. E também encontraríamos lugar para Goiva, e Sam poderia ir visitá-la uma vez por ano, ou algo assim. O filho de Mance e o de Craster cresceriam como irmãos, como aconteceu comigo e Robb.

Jon compreendeu então que desejava aquilo. Desejava-o tanto como jamais tinha desejado alguma coisa. Sempre o desejei, pensou, sentindo-se culpado. Que os deuses me perdoem. Era uma fome que trazia dentro de si, afiada como uma lâmina de vidro de dragão. Uma fome... conseguia senti-la. Era de comida que necessitava, de presas, de um veado vermelho que fedesse a medo ou de um grande alce, orgulhoso e desafiador. Desejava matar e encher a barriga de carne fresca e sangue quente e escuro. Sua boca começou a se encher de saliva ao pensar nisso.

Passou-se um longo momento até compreender o que estava acontecendo. Quando isso aconteceu, pôs-se em pé de um salto.

Fantasma? – virou-se para a floresta, e ali estava ele, saltando em silêncio do interior do ocaso verde, com a respiração saindo quente e branca de suas mandíbulas abertas. – Fantasma! – gritou, e o lobo gigante desatou a correr. Estava mais esguio do que antes, mas também estava maior, e o único som que fazia era o suave estalar de folhas mortas sob as patas. Quando se aproximou de Jon, saltou, e ambos lutaram entre a grama amarronzada e as longas sombras, enquanto as estrelas surgiam por cima deles. – Deuses, lobo, onde esteve? – disse Jon quando o Fantasma parou de lhe mordiscar o braço. – Achava que tinha morrido, como Robb e Ygritte e todos os outros. Não consegui senti-lo desde que escalei a Muralha, nem mesmo em sonhos. – O lobo gigante não tinha resposta a dar, mas lambeu o rosto de Jon com uma língua que era como lixa úmida, e seus olhos capturaram a última luz e brilharam como dois grandes sóis vermelhos.

Olhos vermelhos, percebeu Jon, mas não como os de Melisandre. O lobo tinha olhos de represeiro. Olhos vermelhos, boca vermelha, pelo branco. Sangue e osso, como uma árvore-coração. Este pertence aos deuses antigos. E só ele, entre todos os lobos gigantes, era branco. Tinham encontrado seis filhotes nas neves do fim do verão, ele e Robb; cinco que eram cinzentos, negros e castanhos, para os cinco Stark, e um branco, tão branco como a neve. Snow.

Então obteve a sua resposta.

Sob a Muralha, os homens da rainha estavam acendendo a sua fogueira noturna. Viu Melisandre emergir do túnel com o rei a seu lado, para liderar as preces que acreditava que manteriam a escuridão afastada.

– Vem, Fantasma – disse Jon ao lobo. – Comigo. Você tem fome, eu sei. Consegui sentir. – Correram juntos para o portão, dando uma volta larga em torno da fogueira noturna, na qual altas chamas enfiavam as garras na barriga negra da noite.

Os homens do rei encontravam-se em grande evidência nos pátios de Castelo Negro. Paravam quando Jon passava por eles, e ficavam olhando de boca aberta. Compreendeu que nenhum deles jamais tinha visto um lobo gigante, e Fantasma era duas vezes maior do que os lobos comuns que patrulhavam as suas florestas do sul. Enquanto se dirigia ao arsenal, Jon olhou casualmente para cima e viu Val em pé, na sua janela de torre. Lamento, pensou, não sou o homem que a raptará daí.

No pátio de treinos deparou com uma dúzia de homens do rei com archotes e longas lanças nas mãos. O sargento olhou para Fantasma e franziu a testa, e dois dos seus homens baixaram as lanças até que o cavaleiro que os liderava disse:

– Afastem-se e deixem-nos passar. – E, dirigindo-se a Jon, disse: – Está atrasado para o jantar.

– Então saia do meu caminho, sor – respondeu Jon, e foi o que o outro fez.

Ouviu o ruído antes mesmo de chegar ao pé das escadas; vozes alteradas, xingamentos, alguém esmurrando uma mesa. Jon entrou na adega praticamente sem ser notado. Os irmãos enchiam os bancos e as mesas, mas os que estavam em pé e aos gritos eram mais numerosos do que aqueles que se encontravam sentados, e ninguém comia. Não havia comida. O que está acontecendo aqui? Lorde Janos Slynt berrava qualquer coisa sobre vira-casacas e traições, Emmett de Ferro encontrava-se em pé sobre uma mesa com a espada desembainhada na mão, Hobb Três-Dedos amaldiçoava um patrulheiro da Torre Sombria... um homem qualquer de Atalaialeste bateu com o punho algumas vezes na mesa, exigindo silêncio, mas tudo que conseguiu foi somar esse ruído ao burburinho que ecoava sob o teto abobadado.

Pyp foi o primeiro a notar a presença de Jon. Sorriu ao ver Fantasma, levou dois dedos à boca e assobiou como só um filho de saltimbanco sabia assobiar. O som estridente cortou o clamor como uma espada. Enquanto Jon caminhava na direção das mesas, mais irmãos reparavam nele e ficavam quietos. Um silêncio espalhou-se pela adega, até que os únicos sons que se ouviram foram os calcanhares de Jon soltando estalidos do chão de pedra, e o suave crepitar da lenha na lareira.

Sor Alliser Thorne estilhaçou o silêncio.

– O vira-casacas finalmente agracia-nos com sua presença.

Lorde Janos estava ruborizado e tremendo.

– A fera – arquejou. – Olhem! A fera que arrancou a vida do Meia-Mão. Um warg caminha entre nós, irmãos. Um WARG! Esta... esta criatura não é digna de nos liderar! Este lobisomem não é digno de viver!

Fantasma mostrou as presas, mas Jon apoiou uma mão na cabeça dele.

– Senhor – disse –, quer me dizer o que está acontecendo aqui?

Meistre Aemon respondeu do outro lado da sala.

– Seu nome foi sugerido para Senhor Comandante, Jon.

Aquilo era tão absurdo que Jon teve de sorrir.

– Por quem? – disse, em busca dos amigos. Aquilo tinha de ser uma das brincadeiras de Pyp, com certeza. Mas Pyp encolheu os ombros, e Grenn balançou a cabeça. Foi Edd Doloroso Tollett quem se levantou.

– Por mim. Sim, fazer isso a um amigo é terrivelmente cruel, mas antes você do que eu.

Lorde Janos recomeçou a falar furiosamente.

– Isso, isso é um ultraje. Nós devíamos enforcar esse rapaz. Sim! Enforquem-no, enforquem-no por ser um vira-casacas e warg, juntamente com o amigo Mance Rayder. Senhor Comandante? Não aceitarei isso, não admitirei isso!

Cotter Pyke pôs-se em pé.

Você não admite isso? Pode ser que tenha treinado aqueles homens de manto dourado para lamber a merda do seu cu, mas agora está usando um manto preto.

– Qualquer irmão pode pôr qualquer nome à nossa consideração, desde que o homem tenha proferido seus votos – disse Sor Dennis Mallister. – Tollett está inteiramente no seu direito, senhor.

Uma dúzia de homens começou a falar ao mesmo tempo, cada um tentando sobrepor sua voz à dos outros, e não tardou muito até que metade da sala estivesse de novo aos gritos. Daquela vez foi Sor Alliser Thorne quem saltou para cima da mesa e ergueu as mãos exigindo silêncio.

Irmãos! – gritou – Não lucramos nada com isso. Sugiro que votemos. Este rei que ocupou a Torre do Rei colocou homens em todas as portas para se assegurar de que não comamos nem saiamos até que a escolha seja feita. Que seja! Votaremos, e votaremos de novo, a noite inteira se necessário, até termos o nosso comandante... mas antes de depositarmos os penhores, creio que nosso Primeiro Construtor tem algo a nos dizer.

Othell Yarwyck levantou-se lentamente, de cenho franzido. O grande construtor esfregou seu queixo protuberante e disse:

– Bem, vou retirar o meu nome. Já houve dez oportunidades de me escolherem, e não o fizeram. Não o suficiente de vocês, pelo menos. Eu ia dizer que aqueles que estavam depositando um penhor por mim deviam escolher Lorde Janos...

Sor Alliser fez um aceno.

– Lorde Slynt é a melhor escolha...

– Não tinha acabado, Alliser – protestou Yarwyck. – Lorde Slynt comandou a Patrulha da Cidade em Porto Real, todos sabemos, e era Senhor de Harrenhal...

– Ele nem sequer viu Harrenhal – gritou Cotter Pyke.

– Bem, isso é verdade – disse Yarwyck. – Seja como for, agora que estou aqui em pé, não me lembro por que foi que pensei que Slynt seria uma escolha assim tão boa. Isso seria como dar um chute na boca do Rei Stannis, e não vejo como é que isso nos é útil. Pode ser que o Snow seja melhor. Está há mais tempo na Muralha, é sobrinho de Ben Stark e serviu o Velho Urso como escudeiro. – Yarwyck encolheu os ombros. – Escolham quem quiserem, desde que não seja eu. – E sentou-se.

Jon viu que Janos Slynt, que já estava vermelho, ficara roxo, mas Sor Alliser Thorne tinha empalidecido. O homem de Atalaialeste estava de novo batendo na mesa com o punho, mas agora gritava pelo caldeirão. Alguns de seus amigos adotaram o grito.

Caldeirão! – rugiram eles, como um só. – Caldeirão, caldeirão, CALDEIRÃO!

O caldeirão estava no canto junto à lareira, uma enorme coisa negra de fundo redondo, com duas enormes alças e uma tampa pesada. Meistre Aemon disse algo a Sam e Clydas, e eles agarraram as alças e arrastaram o caldeirão para a mesa. Alguns dos irmãos já estavam fazendo fila junto aos barris de penhores quando Clydas tirou a tampa e quase a deixou cair em cima do pé. Com um grito roufenho e um bater de asas, um enorme corvo saltou de dentro do caldeirão. Voou para cima, talvez em busca das vigas, ou de uma janela por onde escapar, mas não havia vigas no porão e também não havia janelas. O corvo estava encurralado. Crocitando ruidosamente, voou aos círculos pela sala, uma, duas, três vezes. E Jon ouviu Samwell Tarly gritar:

– Eu conheço aquela ave! É o corvo de Lorde Mormont!

O corvo pousou na mesa mais próxima de Jon. “Snow”, crocitou. Era uma ave velha, suja e enlameada. “Snow”, voltou a dizer, “Snow, snow, snow”. Caminhou até a borda da mesa, abriu de novo as asas e voou para o ombro de Jon.

Lorde Janos Slynt sentou-se tão pesadamente que fez tum, mas Sor Alliser encheu a adega com uma gargalhada zombeteira.

– Sor Porquinho pensa que somos todos tolos, irmãos – disse. – Ele ensinou à ave este truquezinho. Todos eles dizem snow, é só ir à colônia e escutar com seus ouvidos. A ave de Mormont sabia mais palavras além dessa.

O corvo inclinou a cabeça e olhou para Jon. “Grão?”, disse com ar esperançoso. Quando não obteve nem grão nem uma resposta, soltou um cuorc e resmungou: “Caldeirão? Caldeirão? Caldeirão?”.

E o resto foram pontas de flecha, uma torrente de pontas de flecha, um dilúvio de pontas de flecha, pontas de flecha suficientes para afogar as últimas pedras e conchas, e também todas as moedas de cobre.

Quando a contagem terminou, Jon deu por si rodeado. Alguns deram-lhe tapinhas nas costas, enquanto outros se dobravam para ajoelhar perante si como se fosse um senhor de verdade. Cetim, Owen Idiota, Halder, Sapo, Bota Extra, Gigante, Mully, Ulmer da Mata de Rei, Donnel Doce Hill e meia centena de outros comprimiram-se ao seu redor. Dywen bateu seus dentes de madeira e disse:

– Pela bondade dos deuses, nosso Senhor Comandante ainda usa cueiros.

Emmett de Ferro disse:

– Espero que isso não queira dizer que já não posso dar-lhe uma surra daquelas da próxima vez que treinarmos, senhor. – Hobb Três-Dedos quis saber se ele continuaria comendo com os homens ou se iria querer as refeições enviadas para o aposento privado. Até Bowen Marsh se aproximou para dizer que ficaria feliz por continuar sendo Senhor Intendente se fosse essa a vontade de Lorde Snow.

– Lorde Snow – disse Cotter Pyke –, se estragar isto, eu arranco seu fígado e como-o cru com cebolas.

Sor Denys Mallister foi mais cortês.

– Foi coisa difícil, aquela que o jovem Samwell me pediu – confessou o velho cavaleiro. – Quando Lorde Qorgyle foi eleito, eu disse a mim mesmo: “Não importa, ele está na Muralha há mais tempo do que você, a sua hora chegará”. Quando foi Lorde Mormont, pensei: “Ele é forte e feroz, mas é velho, a sua hora ainda pode chegar”. Mas você pouco mais é do que um rapaz, Lorde Snow, e agora tenho de retornar à Torre Sombria sabendo que a minha hora nunca virá. – Deu um sorriso cansado. – Não me faça morrer arrependido. Seu tio era um grande homem. O senhor seu pai e o pai dele também. Esperarei do senhor precisamente o mesmo.

– Sim – disse Cotter Pyke. – E pode começar por dizer àqueles homens do rei que está feito, e que queremos a porcaria do jantar.

Jantar”, gritou o corvo. “Jantar, jantar.

Os homens do rei saíram da porta quando lhes falaram da eleição, e Hobb Três-Dedos e meia dúzia de ajudantes dirigiram-se a trote para as cozinhas a fim de ir buscar a comida. Jon não esperou para comer. Atravessou o castelo, perguntando a si mesmo se estaria sonhando, com o corvo ao ombro e Fantasma logo atrás. Pyp, Grenn e Sam seguiram-no, tagarelando, mas quase não ouviu uma palavra até que Grenn sussurrou:

Sam conseguiu isso.

E Pyp disse:

– Sam conseguiu isso! – Pyp tinha trazido consigo um odre de vinho, e bebeu um longo trago e entoou: – Sam, Sam, Sam, o feiticeiro, Sam, o prodígio, Sam, Sam, o homem maravilha, ele conseguiu. Mas quando foi que escondeu o corvo no caldeirão, Sam, e como, com os sete infernos, podia ter certeza de que ele voaria para o Jon? Se o pássaro tivesse decidido empoleirar-se na cabeça gorda de Janos Slynt, teria estragado tudo.

– Não tive nada a ver com o corvo – insistiu Sam. – Quando voou de dentro do caldeirão, quase me molhei todo.

Jon soltou uma gargalhada, meio espantado por ainda se lembrar de como se fazia.

– São todos um bando de idiotas loucos, sabem disso?

– Nós? – disse Pyp. – Chama a nós de idiotas? Não fomos nós que fomos escolhidos como o nonocentésimo nonagésimo oitavo Senhor Comandante da Patrulha da Noite. É melhor que tome algum vinho, Lorde Snow. Acho que vai precisar de muito vinho.

Então Jon Snow tirou o odre da mão de Pyp e bebeu um gole. Mas só um. A Muralha era sua, a noite era escura, e tinha um rei a enfrentar.

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