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aos dez dias desta conversação, ainda o sol mal apontava no horizonte, salomão saía do cercado onde durante dois anos malvivera. a caravana era a que havia sido anunciada, o cornaca, que presidia, lá no alto, sentado nos ombros do animal, os dois homens para o ajudarem no que viesse a ser preciso, os outros que deveriam assegurar o abastecimento, o carro de bois com a dorna da água, que os acidentes do cami nho constantemente faziam ir e vir de um lado a outro, e um gigantesco carregamento de fardos de forragem variada, o pelotão de cavalaria que responderia pela segurança da viagem e a chegada de todos a bom porto, e, por fim, algo de que o rei não se tinha lem brado, um carro da intendência das forças armadas puxado por duas mulas. a hora, tão matutina, e o segredo com que havia sido organizada a saída, expli cavam a au-sência de curiosos e outras testemunhas, havendo que ressalvar, no entanto, a presença de uma carruagem do paço que se pôs em movimento na direcção de lisboa quando elefante e companhia desapareceram na primeira curva da estrada. dentro, iam o rei de portugal, dom joão, o terceiro, e o seu secretário de estado, pêro de alcáçova carneiro, a quem talvez não vejamos mais, ou talvez sim, por que a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a 27


encontrar-nos. es queci-me do significado do nome do cornaca, como era ele, estava perguntando o rei, Branco, meu se nhor, subhro significa branco, ainda que não o pare ça. numa câmara do palácio, na meia escuridão do dossel, a rainha dorme e tem um pesadelo.

Sonha que levaram o salomão de belém, sonha que pergun ta a todas as pessoas, Por que não me haveis avisado, mas, quando se decidir a acordar, a meio da manhã, não repetirá a pergunta nem saberá dizer se, por sua iniciativa, a fará alguma vez. Pode acontecer que dentro de dois ou três anos alguém, casualmente, pronuncie diante de si a palavra elefante, e então, sim, então a rainha de portugal, catarina de áustria, perguntará, Já que se fala de elefante, que é feito do salomão, ainda está em belém ou já o despacharam para viena, e quando lhe responderem que, embora estando em viena, o que sim está é numa espécie de jardim zoológico com outros animais selvagens, dirá, fazendo-se desentendida, Que sorte acabou por ter esse animal, a gozar a vida na cidade mais bela do mundo, e eu aqui, entalada entre hoje e o futuro, e sem esperança em nenhum dos dois. o rei, se estiver presente, fará de conta que não ouviu, e o secretário de estado, o mesmo pêro de alcáçova carneiro que já conhecemos, embora não seja pessoa de rezos, baste recordar o que disse da inquisição e sobretudo o que achou prudente calar, lançará uma súplica muda aos cens para que cubram o elefante com um espesso manto de olvido que lhe modifique as formas e o confunda, nas imaginações preguiçosas, com um dromedário qual-28


quer, bicho também de raro aspecto, ou com um qualquer camelo, a quem a fatalidade de carregar com duas bossas realmente não favorece, e muito menos lisonjeia a memória de quem se inte resse por estas insignificantes histórias. o passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de per correr como se de uma auto-estrada se tratasse, en quanto outros, pa-cientemente, vão de pedra em pe dra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas. Às vezes saem-lhes lacraus ou escolopendras, grossas roscas brancas ou crisálidas a ponto, mas não é impossível que, ao menos uma vez, apareça um elefante, e que esse elefante traga sobre os ombros um cornaca chamado subhro, nome que significa branco, palavra esta totalmente desajustada em relação à figura que, à vista do rei de portugal e do seu secretário de estado, se apresentou no cercado de belém, imunda como o elefante que deveria cui dar. Há razões para compreender aquele ditado que sabiamente nos avisa de que no melhor pano pode cair a nódoa, e isso foi o que sucedeu ao cornaca e ao seu elefante. Quando foram para ali lançados, a cu riosidade popular subiu ao ru-bro e a própria corte chegou a organizar selectas excursões a belém de fi dalgos e fidalgas, de damas e ca-valheiros para verem o paquiderme, mas em pouco tempo o interesse come çou a decair, e o resultado viu-se, as roupas india nas do cornaca transformaram-se em farrapos e os pêlos e as pintas do elefante quase vieram a desapa recer sob a crosta de sujidade acumu-lada durante dois anos. não é, porém, a situação de 29


agora. tiran do a infalível poeira dos caminhos que já lhe vem sujando as patas até metade, salomão avança airoso e limpo como uma patena, e o cornaca, embora sem as coloridas roupas indianas, reluz no seu novo fato de trabalho que, ainda por cima, fosse por esquecimento, fosse por generosidade, não teve de pagar. escarranchado sobre o encaixe do pescoço com o tronco maciço de salomão, manejando o bastão com que conduz a montada, quer por meio de leves to ques quer com castigadoras pontoadas que fazem mossa na pele dura, o cornaca subhro, ou branco, prepara-se para ser a segunda ou terceira figura des ta história, sendo a primeira, por natural primazia e obrigado protagonismo, o elefante salomão, e vindo depois, disputando em valias, ora este, ora aquele, ora por isto, ora por aquilo, o dito subhro e o arquidu que. Porém, quem neste momento leva a voz cantan te é o cornaca. olhando a um lado e a outro a caravana, percebeu nela um certo desalinho, compreensível se levarmos em conta a diversidade de animais que a compõem, isto é, elefante, homens, cavalos, mulas e bois, cada um com a sua andadura própria, tanto natural como forçada, pois está claro que nesta viagem ninguém poderá ir mais depressa que o mais vagaro so, e esse, já se sabe, é o boi. os bois, disse subhro, subitamente alarmado, onde estão os bois. não se via sombra deles nem da pesada carga que arrastavam, a dorna cheia de água, os fardos de forragens. ficaram para trás, pensou, tranquilizando-se, não há outro remédio que esperar.

Preparava-se para se dei xar escorregar do elefante, 30


mas desistiu. Podia ter necessidade de voltar a subir, e não o conseguir. em princípio, era o próprio elefante que o levantava com a tromba e praticamente o depu-nha no assento. Contudo, a prudência mandava prever aquelas situações em que o animal, por má disposição, por irritação, ou só para contrariar, se negasse a prestar serviço de ascensor, e aí é que a escada entraria em acção, em bora fosse difícil de crer que um elefante enfadado aceitasse tornar-se num simples ponto de apoio e permitir, sem qualquer tipo de resistência, a subida do cornaca ou de quem quer que fosse. o valor da escada era meramente simbólico, como um relicário ao peito ou uma medalhinha com a figura de uma santa qualquer. neste caso, de toda a maneira, a es cada não podia valer-lhe, vinha no carro dos atrasados. Subhro chamou um dos seus ajudantes para que fosse avisar o comandante do pelotão de cavalaria de que teriam de esperar pelo carro de bois. o descanso faria bem aos cavalos, que, verdade se diga, também não haviam tido que esforçar-se muito, nem um só galope, nem um só trote, tudo em passinho curto desde lisboa. nada que se parecesse à expedição do estribeiro-mor a valladolid, ainda na memória de al guns dos que ali iam, veteranos dessa heróica cavalgada. os cavaleiros desmontaram, os homens de a pé sentaram-se ou deitaram-se no chão, não poucos aproveitaram para dormir. empoleirado no elefante, o cornaca dei-tou contas à viagem e não ficou satisfeito. a julgar pela altura do sol, deviam ter andado umas três horas, maneira de dizer demasiado conci liatória porque uma 31


parte não pequena desse tempo tinha-a gasto salomão a tomar banhos no tejo, alternando-os com vo-luptuosas chafurdices na lama, o que, por sua vez, era motivo, segundo a lógica ele fantina, para novos e mais prolongados banhos. era evidente que salomão estava excitado, nervoso, lidar com ele ia necessitar muita paciência, sobretudo não o tomar demasiado a sério.

devemos ter perdido uma hora com as traquinices do salomão, pensou o corna ca, e depois, passando duma reflexão sobre o tempo a uma meditação sobre o espa-

ço, Quanto caminho teremos feito, uma légua, duas, perguntou-se. Cruel dúvida, transcendente questão.

Se estivéssemos ain da entre os antigos gregos e romanos, diríamos, com a tranquilidade que sempre confe-rem os saberes ad quiridos na vida prática, que as grandes medidas itinerárias eram, nessa época, o es-tádio, a milha e a légua. deixando em paz o estádio e a milha, com a sua divisão cm pés e passos, fixemo-nos na légua, que foi a palavra que subhro empregou, distância que também se compunha de passos e pés, mas que tem a enorme vantagem de nos colocar em terra conhecida. ora, ora, léguas toda a gente sabe o que são, dirão com o inevitável sorriso de ironia fácil os contemporâneos que nos couberam em sorte. a melhor resposta que podemos dar-lhes é a seguinte, Sim, também toda a gente o sabia na época em que viveu, mas só e unicamente na época em que viveu. a velha palavra légua, ou leuga, que, dir-se-ia, parecia igual para todos e por todos os tempos, por exemplo, fez uma longa viagem desde os sete mil e quinhentos pés 32


ou mil e quinhentos passos que teve entre os romanos e a baixa idade média até aos quilómetros e metros em que hoje dividimos a distância, nada me nos que cinco e cinco mil, respectivamente. encontraríamos casos similares em qualquer área de medição. e para não deixarmos a afirmação sem prova, contemplemos o almude, medida de capacidade que se dividia em doze canadas ou quarenta e oito quartilhos que em lisboa equivalia, números redondos, a dezasseis litros e meio, e, no porto, a vinte e cinco litros. e como se entendiam eles, perguntará o leitor curioso e amante do saber, e como nos entenderemos nós, pergunta, fugindo à resposta, quem à con versação trouxe este assunto de pesos e medidas. o qual, uma vez exposto com esta meridiana clareza, nos permitirá adoptar uma decisão absolutamente crucial, de certa maneira revolucionária, a saber, enquanto o cornaca e os que o acompanham, porque não teriam outra maneira de entender-se, irão conti nuar a falar de distâncias de acordo com os usos e costumes do seu tempo, nós, para que possamos per ceber o que ali se vai passando nesta matéria, usare mos as nossas modernas medidas itinerárias, sem ter de recorrer constantemente a fastidiosas tábuas de conversão. no fundo, será, como se num filme, des conhecido naquele século dezasseis, estivéssemos a colar legendas na nossa língua para suprir a ignorân cia ou um insuficiente conhecimento da língua falada pelos actores. teremos portanto neste relato dois dis cursos paralelos que nunca se encontrarão, um, este, que poderemos seguir sem dificulda-33


de, e outro que, a partir deste momento, entra no si-lêncio. interessan te solução.

todas estas observações, ponderações e cogita-

ções levaram o cornaca a descer finalmente do elefante, escorregando-lhe pela tromba, e a encami nhar-se com voluntarioso passo para o pelotão de cavalaria.

era fácil distinguir onde se encontrava o comandante.

Havia ali uma espécie de toldo que es taria protegendo do castigador sol de agosto uma personagem, logo a conclusão era facílima de tirar, se havia um toldo, havia um comandante debaixo dele, se havia um comandante, teria de haver um toldo para o tapar. o cornaca levava uma ideia que não sabia bem como introduzir na conversação, mas o comandante, sem o saber, faci-litou-lhe o traba lho, então esses bois, aparecem ou não aparecem, perguntou, Saiba vossa senhoria que ainda não os vejo, mas pelo tempo devem estar a chegar, esperemos que assim seja. o cornaca respirou fundo e disse com a voz rouca de emoção, Se vossa senhoria mo permite, tive uma ideia, Se já a tiveste não precisas da minha permissão, vossa senhoria tem razão, mas eu. o português, falo-o mal, diz lá então qual é a idéia, a nossa dificuldade está nos bois, Sim, ainda não apareceram, o que quero dizer a vossa senhoria é que o problema continuará mesmo depois de terem aparecido, Porquê, Porque os bois andam deva-gar por natureza, meu senhor, até aí, sei eu, e não preci sei de nenhum indiano, Se tivéssemos uma outra junta de bois e a engatássemos ao carro à frente da que está, andaríamos com certeza mais depressa e to-34


dos ao mesmo, a ideia parece-me boa, mas onde vamos nós arranjar uma junta de bois, Há por aí al deias, meu comandante. o comandante franziu a testa, não podia negar que haveria por ali aldeias, podia-se comprar uma junta de bois. Comprar, perguntou-se, nada disso, requisitam-se os bois em nome do rei e à volta de valladolid deixamo-los cá, em tão bom estado como espero que estejam agora. ouviu-se um clamor, os bois tinham aparecido final mente, os homens aplaudiam e até o elefante levan tou a tromba e soltou um barrito de satisfação. a má vista não lhe permitia distinguir os fardos de forra gens lá ao longe, mas na imensa caverna do seu estô mago ecoavam os protestos de que eram mais do que horas de comer. isto não significa que os elefantes devam alimentar-se a horas certas como aos seres hu manos se diz que lhes convém pelo bem que faz à saúde. Por assombroso que pareça, um elefante ne cessita diariamente cerca de duzentos litros de água e entre cento e cinquenta e trezentos quilos de vege tais. não podemos portanto imaginá-lo de guardana po ao pescoço, sentado à mesa, fazendo as suas três refeições diárias, um elefante come o que pode, quan to pode e onde pode, e o seu princípio é não deixar nada para trás que possa vir a fazer-lhe falta depois. foi preciso esperar ainda quase meia hora antes que o carro de bois chegasse.

neste meio-tempo, o comandante deu ordem de bivacar, mas foi necessário procurar para tal um sítio menos castigado pelo sol, antes que militares e paisanos se vissem transforma dos em torresmos. Havia a uns 35


quinhentos metros uma pequena mata de choupos e foi para lá que se encaminhou a companhia. as sombras eram ralas, mas melhor esse pouco que permanecer a assar sob a in clemente chapa do astro-rei. os homens que tinham vindo para trabalhar, e a quem até agora não se lhes tinha ordenado grande coisa, para não dizer nada de nada, traziam a sua comida nos alforges ou nos bar retes, o mesmo de sempre, um grosso pedaço de pão, umas sardinhas secas, umas passas de figo, um naco de queijo de cabra, daquele que quando endurece fica como uma pedra, e que, em rigor, não se deixa mastigar, vamo-lo roendo paciente-mente, com a van tagem de desfrutar por mais tempo do sabor do man jar. Quanto aos militares, lá tinham o seu arranjo. Um soldado de cavalaria que, de espada desembainhada ou lança em riste, galopa à carga contra o inimigo, ou que simplesmente vai levar um elefante a valladolid, não tem que se preocupar com os assuntos de intendência. não lhe interessa perguntar donde veio a comida nem quem a preparou, o que conta é que a malga venha cheia e o caldo não seja de todo intragável. dispersos, em grupos, já toda a gente está ocupada nas suas actividades masticatorias e deglu tivas, só falta salomão. Subhro, o cornaca, mandou levar dois fardos de forragens para onde ele está es perando a vez, desatá-los e deixá-lo tranquilo, Se for necessário, leva-se-lhe outro fardo, disse. esta descrição, que a muitos parecerá despicienda pela excessiva pormenorização a que deliberadamente recorremos, tem um fim útil, o de activar a mente de 36


subhro para que chegue a uma conclusão optimista sobre o futuro da viagem, Uma vez que, pensou ele finalmente, salomão terá de comer pelo menos três ou quatro fardos por dia, o peso da carga ir-se-á alivian-do, e se, ainda por cima, conseguirmos a tal junta de bois, então, por muitas montanhas que nos sal tem ao caminho não vai haver quem nos apanhe. Com as boas ideias, e às vezes também com as más, passa-se o mesmo que se passava com os átomos de demócrito ou com as cerejas da cesta, vêm engan chadas umas nas outras. ao imaginar os bois a pu xar o carro por uma ladeira empinada, subhro perce beu que tinha sido cometido um erro na composição original da caravana e que esse erro não havia sido corrigido durante todo o tempo que a caminhada ha via durado, falta de que se considerava responsável. os trinta homens que tinham vindo como ajudas, subhro deu-se ao trabalho de os contar um por um, não tinham feito nada desde a saída de lisboa, salvo aproveitar a manhã para um passeio ao campo. Para desatar e arrastar os fardos de forragens seriam mais que suficientes os auxiliares directos, e, em caso de necessidade, ele próprio poderia dar uma mão. Que fazer então, mandá-los para trás, livrar-me deste peso, perguntou-se subhro. a ideia seria boa se não houvesse outra melhor. o pensamento abriu um sor riso resplandecente na cara do cornaca. deu um grito a chamar os homens, reuniu-os diante de si, alguns ainda vinham a mastigar o último figo seco, e disse-lhes, a partir de agora, divididos em dois grupos, vocês aí e vocês aí, passam a dar ajuda ao 37


carro de bois, puxando e empurrando, está visto que a carga é demasiada para os animais, que além disso são vaga rosos por natureza, de dois em dois quilómetros os grupos revezam-se, este será o vosso principal traba lho até chegarmos a valladolid. Houve um murmúrio que tinha todo o ar de descontentamento, mas subhro fez de conta que não ouvira, e continuou, Cada gru po será governado por um capataz, que, além de res ponder perante mim pelos bons resultados do trabalho, terá de manter a disciplina e desenvolver o es-pírito de coesão sempre necessários a qualquer tarefa co lectiva. a linguagem não devia ter agradado aos ou-vintes, pois o murmúrio repetiu-se. muito bem, disse subhro, se alguém não estiver satisfeito com as ordens que acabo de dar, dirija-se ao comandante, ele é a su-prema autoridade aqui, como representante do rei. o ar pareceu ter arrefecido de repente, o murmúrio foi substituído por um arrastar contrafeito de pés. Subhro perguntou, Quem se propõe para capataz. levantaram-se três mãos hesitantes, e o cornaca pre cisou, dois capatazes, não três. Uma das mãos enco lheu-se, desapareceu, as outras permaneceram le vantadas. tu e tu, apontou subhro, escolham os vossos homens, mas façam-no de uma maneira equitativa, a fim de que as forças dos dois grupos fiquem equili bradas, e agora toca a dispersar, necessito falar com o comandante. antes, porém, ainda foi obrigado a atender um dos seus auxiliares, que se tinha aproxi mado para in-formar que haviam aberto outro fardo de forragem, mas que salomão parecia satisfeito e, segundo todos 38


os indícios, com vontade de dormir, não admira, comeu bem e esta costuma ser a hora da sua sesta, o pior é que bebeu quase toda a água da dorna, depois de ter comido tanto, é natural, Podía mos levar os bois até ao rio, deve haver por aí um caminho, ele não beberia, a água, a esta altura do rio, ainda é salgada, Como sabe, perguntou o auxi liar, Salomão banhou-se uma quantidade de vezes, a última aqui perto, e nunca mergulhou a tromba para beber, Se a água do mar chega até onde estamos, isso mostra o pouco que andámos, É certo, mas, a partir de hoje, podes ter a certeza de que iremos mais de pressa, palavra de cornaca. deixando atrás este sole ne compromisso, subhro foi à procura do comandan te. encontrou-o a dormir à sombra de um choupo mais ramalhudo, com aquele sono leve que distingue o bom soldado, pronto a saltar sobre as suas armas ao mínimo ruído suspeito. faziam-lhe guarda dois militares que, com um gesto imperativo, mandaram parar subhro. este fez sinal de que havia compreen dido e sentou-se no chão, à espera. o comandante acordou meia hora depois, espreguiçou-se e bocejou, tornou a bocejar, tornou a espreguiçar-se, até que se sentiu efectivamente acordado para a vida.

mesmo assim teve de afirmar-se segunda vez para ver que o cornaca estava ali, Que queres agora, perguntou em voz rouca, não me digas que tiveste outras ideias, Saiba vossa senhoria que sim, dize lá, dividi os homens em dois grupos, que, de dois em dois quilómetros, alternadamente, passarão a ajudar os bois, quinze homens de cada vez a empurrar o carro, vai-se no-39


tar a diferença, Bem pensado, não há dúvida, vejo que o que trazes em cima dos ombros te serve para alguma coisa, quem vai ficar a ganhar são os meus cavalos, que poderão trotar de vez em quando, em lugar de irem naquela pasmaceira de passo de para da, Saiba vossa senhoria que também pensei nisso, e pensaste em mais alguma coisa, leio-to na cara, perguntou o comandante, Saiba vossa senhoria que sim, vamos lá ver, a minha ideia é que deveríamos organizar-nos em função dos hábitos e necessidades do salomão, agora mesmo, repare vossa senhoria, está a dormir, se o acordássemos ficaria irritado e só nos daria trabalhos, mas como pode ele dormir, se está em pé, perguntou incrédulo o comandante, as vezes deita-se para dormir, mas o normal é que o faça em pé, Creio que nunca entenderei os elefantes, Saiba vossa senhoria que eu vivo com eles quase desde que nasci e ainda não consegui entendê-los, e isso por quê, talvez porque o elefante seja muito mais que um elefante, Basta de conversa, É que ainda tinha uma outra ideia para apresentar, meu comandante, outra ideia, riu o militar, afinal tu não és um corna ca, és uma cornucópia, favores de vossa senhoria, Que mais é que produziste nessa tua cabeça privile giada, Pensei que iríamos bem organizados se vossa senhoria fosse atrás com os soldados a fechar a cara vana, indo à frente o carro de bois por ser ele que marca o passo do andamento, depois eu com o ele fante, a seguir, os de a pé, e o carro da intendência, muito bem, a isso se chama uma ideia, assim me pareceu, Uma ideia estúpida, quero eu di-40


zer, Porquê, perguntou subhro, melindrado, sem se dar conta da gravíssima falta de educação, uma autêntica ofensa, que a interpelação directa representava, Porque eu e os meus soldados iríamos a comer a poeira que as patas de vocês todos fossem levantando, ah, que vergonha, deveria ter pensado nisso e não pensei, rogo a vossa senhoria, por todos os santos da corte do céu, que me perdoe, assim poderemos fazer uma ga-lopada de vez em quando e esperar lá à frente que vo-cês cheguem, Sim, meu senhor, é a solução perfei ta, permitis que me retire, perguntou subhro, ainda tenho duas questões a tratar contigo, a primeira é que se voltas a perguntar-me porquê, no tom em que o fizeste agora, darei ordem para que te dêem uma boa ração de chicote no lombo, Sim senhor, murmurou subhro, de cabeça baixa, a segunda tem que ver com essa tua cabecinha e com a viagem que ainda mal co-meçou, se nesse bestunto ainda tens uns restos de ideias aproveitáveis, apreciaria saber se é de tua vontade que fiquemos aqui eternamente, até à consuma-

ção dos séculos, Salomão ainda dorme, meu comandante, então agora quem governa aqui é o elefante, perguntou o militar entre irritado e divertido, não, meu comandante, decerto recordareis ter-vos dito que nos deveríamos organizar em função, confesso que não sei de onde me saiu esta palavra, dos hábitos e necessidades de salomão, Sim, e quê, perguntou o comandante, que já perdia a paciência, É que, meu comandante, salomão, para estar bem, para que possamos entregá-lo com boa saúde ao arquiduque de 41


áustria, terá de descansar nas horas de calor, de acordo, respondeu o comandante, levemente perturbado com a referência ao arquiduque, mas a verdade é que ele não tem feito outra coisa em todo o santo dia, este dia não conta, meu comandante, foi o primeiro, e já se sabe que no primeiro dia as coisas sempre correm mal, então, que fazemos, dividimos os dias em três partes, a primeira, desde manhã cedo, e a terceira, até ao sol-pôr, para avançarmos o mais depressa que pu-dermos, a segunda, esta em que estamos, para comer e descan sar, Parece-me um bom programa, disse o comandante, optando pela benevolência. a mudança de tom ani mou o cornaca a expressar a inquietação que o viera atormentando durante todo o dia, meu comandante, há algo nesta viagem que não entendo, Que é que não entendes, em todo o caminho não nos cruzá-

mos com ninguém, em minha modesta opinião não é normal, estás enganado, cruzámo-nos com bastantes pessoas, tanto de uma direcção como da outra, Como, se eu não as vi, perguntou subhro com os olhos arre-galados de espanto, estavas a dar banho ao elefante, Quer dizer que de cada vez que salomão se estava ba-nhando passaram pessoas, não me faças repetir, estranha coincidência, até parece que salomão não quer que o vejam, Pode ser, sim, mas agora, estando nós aqui acampados há não poucas horas, também não passou ninguém, aí a razão é outra, a gente vê o elefante de longe, como uma abantesma, e volta para trás ou mete por atalhos, se calhar julgam que é algum en-viado do diabo, Sinto a cabeça a doer-me, até cheguei 42


a pensar que el-rei nosso senhor tivesse mandado despejar os caminhos, não és assim tão importante, cornaca, eu, não, mas salomão, sim. o comandante preferiu não responder ao que parecia o princípio de uma nova dis cussão e disse, antes que te vás quero fazer-te uma pergunta, Sou todo ouvidos, lembras-te de teres invo cado há bocado todos os santos da corte do céu, Sim, meu comandante, Quer isso dizer que és cristão, pen sa bem antes de responderes, mais ou menos, meu comandante, mais ou menos.

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