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enquan to ele falava, subhro pensava no que faria o elefan te, se se lembraria de algo similar ao que havia sido a despedida dos carregadores, mas a verdade é que as repetições decepcionam quase sempre, perdem a graça, nota-se que lhes falta espontaneidade, e, se a espontaneidade falta, falta tudo. melhor seria que simplesmente nos separássemos, pensou o cornaca. o elefante, porém, não estava de acordo. Quando o discurso terminou e o capitão se aproximou de subhro para o abraçar, salomão deu dois passos em frente e tocou com o extremo da tromba, essa espécie de lábio palpitante, o ombro do militar. a despedida dos carre gadores havia sido, digamos, mais cenográ-

fica, mas esta, talvez porque os soldados estejam habituados a outro tipo de adeuses, tipo Honrai a pátria, que a pátria vos contempla, tocou-lhes as cordas sensíveis, e não foi um nem dois que tiveram de enxugar, en vergonhados, as lágrimas às mangas do casaco ou da jaqueta, ou como quer que se chamasse na época a essa peça do vestuário militar. o cornaca acompanhou salomão na revista, dando-se também ele por despedido. não era homem para permitir que se lhe desmandasse o coração em público, mesmo quando, como agora, lágrimas invisíveis lhe deslizam pela cara abaixo. a coluna pôs-se em movimento, levan do o carro de bois à frente, acabou-se, não os volta remos a ver neste teatro, a vida é assim, os actores aparecem, logo saem do palco, porque o próprio, o comum, o que sempre virá a acontecer mais tarde ou mais cedo, é debitarem as falas que aprenderam e sumirem-se 144


pela porta do fundo, a que dá para o jardim. adiante o caminho faz uma curva, os solda dos detêm os cavalos para levantarem um braço e acenarem o último adeus.

Subhro imita-lhes o gesto e salomão deixa sair da garganta o seu barrito mais sentido, é tudo quanto se lhes permite fazer, este pano caído não se levantará mais.

o terceiro dia amanheceu chuvoso, o que abor-receu especialmente o arquiduque, porquanto, não lhe faltando pessoal para organizar da maneira mais funcional e efectiva a caravana, tinha feito questão de ser ele a decidir em que lugar do cortejo deve ria marchar o elefante. era simples, exactamente à frente do coche que o transportaria a ele e à arquiduquesa. Um privado de confiança rogou-lhe que atendesse ao facto conhecido de que os elefantes, tal como, por exemplo, os cavalos, defecam e urinam em movimento, o espectáculo iria ofender inevita velmente a sensibilidade de suas altezas, antecipou 0 privado fazendo cara da mais profunda inquieta ção cívica, ao que o arquiduque respondeu que não se preocupasse com o assunto, sempre haveria gente na caravana para limpar o caminho de cada vez que se produzissem tais deposi-

ções naturais. o mau era a chuva. ao elefante, histori-camente acostumado à monção, tanto assim que tinha dado pela falta dela nos últimos dois anos, não se lhe alterariam nem os humores nem o ritmo dos passos, o problema, realmente a requerer solução, era o arquiduque. Compreende-se. atravessar meia espanha atrás de um elefante para o qual havia sido bordada aquela que talvez fosse a mais bela gualdrapa do mun-145


do e não poder usá-la porque a chuva a danificaria seria mente a ponto de não servir nem para um pálio de aldeia, seria a pior das decepções do seu arquidu-cado. ora, maximiliano não daria um passo enquanto solimão não estivesse devidamente tapado, com os enfeites da gualdrapa refulgindo ao sol. eis portanto o que ele disse, esta chuva terá de parar alguma vez, vamos esperar que escampe. e assim foi. durante duas horas a chuva não cessou, mas ao cabo des se tempo o céu começou a clarear, nuvens havia-as, mas menos escuras, e de repente deixou de chover, o ar tornou-se mais leve, transparente à primeira luz do sol, enfim descoberto. de tão contente que ficou, o arquiduque permitiu-se dar uma palmada inten cionalmente bre-jeira na coxa da arquiduquesa. Re tomada a compos-tura, mandou vir um ajudante-de-campo a quem deu ordem de galopar até à cabeça da coluna, onde brilhavam os couraceiros, Que ar ranquem imediatamente, disse, temos de recuperar o tempo perdido. neste entretanto, os criados res ponsáveis, com grande esforço, já tinham trazido a imensa gualdrapa e, seguindo as indicações de fritz, estenderam-na sobre o poderoso dorso de solimão. vestido com um traje que em qualidade de tecidos e luxo de confecção deixava a perder de vista o que havia trazido de lisboa e que tanto afec-tara o equi líbrio do erário público local, fritz foi içado para o cachaço de solimão, donde, para a frente e para trás, podia desfrutar da imponente visão da caravana em toda a sua extensão. acima dele ninguém viajava ali, nem sequer o arquiduque de áustria com todo o 146


seu poder. Capaz de mudar os nomes a um homem e a um elefante, mas com os olhos à altura da mais comum das pessoas, era levado dentro de um coche onde os perfumes não conseguiam disfarçar de todo os maus cheiros exteriores.

É natural que se queira saber se toda esta caravana vai a caminho de viena. esclareçamos já que não.

Uma boa parte dos que vão viajando aqui em grande estado não irá mais longe que o porto de mar da vila de rosas, junto à fronteira francesa. aí se despedirão dos arquiduques, assistirão provavelmente ao em barque, e sobretudo observarão com preocupação que consequências terá o súbito carregamento das quatro toneladas brutas de solimão, se o tombadilho do barco aguentará tanto peso, enfim, se não irão regressar a valladolid com uma história de naufrá gio para contar. os mais agoireiros prevêem danos causa-dos à navegação e à segurança do barco pelo elefante, assustado com o balancear da embarcação, inseguro, incapaz de manter-se em equilíbrio nas pernas, não quero nem pensar, diziam compungidos aos seus mais próximos, lisonjeando-se a si mesmos com a possibilidade de virem a poder dizer, eu bem avisei. esquecem os empata-festas que este elefante veio de longe, da índia remota, desafiando impávido as tormentas do Índico e do atlântico, e ei-lo aqui, firme, decidido, como se não tivesse feito outra coi sa na vida senão navegar. Por enquanto, porém, só se trata de andar. e quanto. Uma pessoa olha o mapa e fica logo cansada.

e, no entanto, parece que tudo ali está perto, por as-147


sim dizer, ao alcance da mão. a explicação, evidente-mente, encontra-se na escala. É fácil de aceitar que um centímetro no mapa equivalha a vinte quilómetros na realidade, mas o que não costumamos pensar é que nós próprios sofre mos na operação uma redução dimensional equiva lente, por isso é que, sendo já tão mínima coisa no mundo, o somos infinitamente menos nos mapas. Seria interessante saber, por exemplo, quanto medi ria um pé humano àquela mesma escala.

ou a pata de um elefante. ou a comitiva toda do arquiduque maximiliano de áustria.

não passaram mais de dois dias e o cortejo já perdeu uma boa parte do seu esplendor. a persistente chuva que caiu na manhã da partida teve uma acção nefasta nos panejamentos dos coches e carruagens, mas também nas indumentárias daqueles que, por dever do cargo, tiveram de arrostar com a intempérie por mais ou menos tempo. agora a caravana avança por uma região onde parece não ter chovido desde o princípio do mundo. a poeira começa a levantar-se logo à passagem dos couraceiros, a quem a chuva também já não havia poupado, pois uma couraça não é uma caixa hermética, as partes que a compõem nem sempre se ajustam bem umas às outras e as ligações feitas por correias deixam folgas por onde as espadas e as lanças podem penetrar quase sem obstáculo, afinal, todo aquele esplendor, orgulhosamente exibido em figueira de castelo rodrigo, não serve de muito na vida prática. depois vem uma fila enorme de carros, galeras, coches e carruagens de todos os tipos e 148


finalidades, as carroças de carga, os esquadrões da criadagem, e tudo isto levanta pó que, por falta de vento, ficará suspenso no ar até que a tarde se feche.

desta vez não se cumpriu o preceito de que a velocidade do mais lento determinará a velocidade geral.

os dois carros de bois que trazem a forragem e a água para o elefante foram relegados para o couce do cortejo, o que significa que de vez em quando é necessário mandar parar tudo para que o conjunto possa reconstituir-se. o que aborrece e irrita toda a gente, a começar pelo arquiduque, que já mal disfarça a sua contrariedade, é a sesta obrigatória de solimão, esse descanso de que mais ninguém beneficia a não ser ele, mas de que, afinal, todos acabam por aproveitar-se, embora insistam nas suas críticas, di zendo, assim nunca mais chegaremos. a primeira vez que a caravana se deteve e começou a correr a notícia de que a causa era a necessidade de descanso de solimão, o arquiduque mandou chamar fritz para perguntar-lhe quem mandava ali, a pergunta não foi exactamente assim, um arquiduque de áustria nun ca se rebaixaria a admitir que pudesse haver quem mandasse mais que ele onde quer que estivesse, mas, tal como a deixámos formulada, numa expressão de tom decididamente popular, a única resposta consen tânea com a situa-

ção deveria ser meter-se fritz, de vergonha, pelo chão abaixo. tivemos ocasião de ve rificar, porém, ao longo destes dias, que subhro não é homem para se assustar facilmente, e agora, neste seu novo avatar, é difícil, se não impossível, imagi ná-lo calado por um ataque de 149


timidez, com o rabo entre as pernas, dizendo, dê-me as suas ordens, meu senhor. a resposta dele foi exemplar, Se o arquidu que de áustria não fez delegação da sua autoridade, o mando absoluto pertence-lhe por direito, tradição e reconhecimento dos seus súbditos naturais ou adqui ridos, como é o meu caso, falas como um letrado, Sou simplesmente um cornaca que fez algumas lei turas na vida, Que se passa com solimão, que é isso de que tem de descansar durante a primeira parte da tarde, São costumes da índia, meu senhor, estamos em espanha, não na índia, Se vossa alteza conhecesse os elefantes como eu tenho a pretensão de conhecer, saberia que para um elefante indiano, dos africanos não falo, não são da minha competência, qualquer lugar em que se encontre é índia, uma índia que, seja o que for que suceda, sempre permanecerá intacta dentro dele, tudo isso é muito bonito, mas eu tenho uma longa viagem por diante e esse elefante faz-me perder três ou quatro horas por dia, a partir de hoje solimão descansará uma hora, e basta, Sinto-me um miserável por não poder estar de acordo com vossa alteza, mas, creia em mim e na minha experiência, não bastará, veremos. a ordem foi dada, mas cance lada logo ao segundo dia. É preciso ser-se lógico, di zia fritz, assim como não estou a contar que alguém tenha a ideia de reduzir a um terço a quantidade de forragem e água de que solimão necessita para viver, também não posso consentir sem protesto que se lhe roube a maior parte do seu justo descanso, sem o qual também não poderia sobreviver ao esforço titâ nico 150


que todos os dias se lhe exige, é certo que um elefante na selva indiana anda muitos quilómetros desde a manhã até ao anoitecer, mas está na terra que é sua, não num descampado como este, sem uma sombra a que possa acolher-se um gato. não nos es quecemos de que quando fritz se chamava subhro não levantou qualquer objecção à redução do repou so de salomão de quatro para duas horas, mas es ses tempos eram outros, o comandante da cavalaria portuguesa era um homem com quem se podia falar, um amigo, não um arquiduque autoritário como este, que, além de ser genro de carlos quinto, não se vê que outros méritos possua. fritz estava a ser injus to, ao menos deveria ser obrigado a reconhecer que nunca ninguém havia tratado a solimão como este arquiduque de aústria de repente tão mal estimado. a gualdrapa, por exemplo.

nem sequer na índia os ele fantes pertencentes aos ra-jás eram mimados assim. fosse como fosse, o arquiduque não estava conten te, havia demasiada rebelião no ar que se respirava. Castigar a fritz pelos seus atrevimentos dialécticos estaria mais do que justificado, mas o arquiduque sa bia perfeitamente que não iria encontrar em viena outro cornaca. e se, por milagre, existisse essa rara avis, seria indispensável um pe-ríodo de compenetra ção mútua entre o elefante e o novo tratador, sem o que haveria que temer o pior do comportamento de um animal daquela corpulência, cujo cérebro, para qualquer ser humano, incluindo os arquiduques, não passava de uma aposta em que as esperanças de ga nhar se apresentavam como pratica-151


mente nulas. o elefante, em realidade, era um ser outro. tão outro que nada tinha que ver com este mundo, governava-se por regras que não se inseriam em nenhum códi go moral conhecido, a ponto de, como logo se viu, lhe ser indiferente viajar à frente ou atrás do coche arquiducal. na verdade, os arquiduques já não po diam suportar mais o espectáculo repetido das de jecções de solimão, além de terem de receber nos seus delicados narizes, habituados a outros aromas, os fétidos odores que delas se desprendiam. no fun do, a quem o arquiduque queria castigar era a fritz, agora relegado para uma posição secundária depois de durante uns dias ter aparecido aos olhos de toda a gente como uma das grandes figuras da comitiva. viaja à mesma altura que antes, mas do coche do ar quiduque não poderá ver nunca mais que a parte tra seira. fritz suspeita que está a ser castigado, mas não pode pedir justiça, porque a mesma justiça, ao deter minar a mudança de sítio do elefante na caravana, não fazia mais que impedir as moléstias sensoriais por ele causadas ao arquiduque maximiliano e a sua esposa maria, filha de carlos quinto. Resolvido este problema, o outro resolveu-se também, e foi nessa mesma noite. animada pela relegação do elefante à qualidade de mero seguidor, maria pediu ao marido que se livrassem daquela gualdrapa, Creio que levá-la às costas é uma punição que o pobre solimão não merece, e além disso, além disso, quê, perguntou o arquiduque, Com aquela es-pécie de paramento de igreja às costas, um animal tão grande, tão imponen te, passado o primeiro efeito da 152


surpresa, torna-se rapidamente ridículo, grotesco, e pior ainda irá sen do quanto mais olharmos para ele, a ideia foi minha, disse o arquiduque, mas penso que tens razão, vou mandar a gualdrapa ao bispo de valladolid, ele lhe encontrará destino, provavelmente, se em espanha ficássemos, voltaríamos a ver, bajo pa-lio, um general dos mais bem vistos pela santa madre igreja.

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