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nessa mesma tarde, dois pombos-correios, um macho e uma fêmea, levantaram voo da basílica em direcção a trento levando a notícia do portentoso milagre. Porquê a trento e não a roma, onde se encontra a cabeça da igreja, perguntar-se-á. a resposta é fácil, porque em trento está em curso, desde mil quinhentos e quarenta e cinco, um concílio ecuménico em que, pelo que se vai sabendo, se prepara o contra-ataque contra lutero e os seus seguidores. Baste dizer que já foram promulgados decretos sobre a sagrada escritu-ra e a tradição, o pecado original, a justificação e os sacramentos em geral. Compreende-se portanto que a basílica de santo antónio, pilar da fé mais acendrada, necessite estar permanentemente instruída sobre o que se passa em trento, ali tão perto, a menos de vinte léguas de distância, um autêntico passeio à vol d’oiseau para pombos, que desde há anos andam em corrupio constante entre cá e lá. desta vez, porém, a primazia noticiosa tem-na pádua, pois não é todos os dias que um elefante se ajoelha solenemente à porta de uma basílica, dando assim testemunho de que a mensagem evangélica se dirige a todo o reino animal e que o lamentável afogamento daquelas centenas de porcos no mar da galileia foi apenas resultado da falta de experiência, quando ainda não estavam bem lubri-ficadas as rodas dentadas do mecanismo dos mila-181


gres. o que importa hoje são as extensas filas de fiéis que se vêm formando no acampamento para ver o elefante e beneficiar do negócio da venda de pêlos do animal que fritz rapidamente organizou para suprir a falta de pagamento que da tesouraria da basílica ingenuamente esperara. não censuremos o cornaca, outros que não fizeram tanto pela fé cristã nem por isso deixaram de ser abundantemente prebendados. amanhã se dirá que uma infusão de pêlo de elefante, três vezes ao dia, é o mais soberano dos remédios nos casos de diarreia aguda e que o dito pêlo, macerado em óleo de amêndoas, resolve, pela via de fricções enérgicas do couro-cabeludo, também três vezes ao dia, as mais desesperadas situações de alopecia. fritz não tem mãos a medir, no bolsinho que traz atado ao cinto as moedinhas já pesam, se o acampamento permanecesse aqui uma semana acabaria rico. os clientes não são apenas os de pádua, também está a vir gente de mestre e até mesmo de veneza. diz-se que os arquiduques não regressarão hoje, que talvez não regressem amanhã, que estão muito a seu gosto no palácio do doge, tudo motivos de alegria para fritz, que nunca julgou ter tantas razões para estar agradecido à casa dos habsburgos. Pergunta a si mesmo por que não lhe teria ocorrido nunca vender pêlos de elefante enquanto viveu na índia, e, em seu foro mais íntimo, pensa que, apesar da abundância exagerada de deuses, sub-deuses e demónios que as infestam, há muito menos superstições nas terras onde nasceu do que nesta parte da civilizada e cristianíssima europa, que é capaz de 182


comprar às cegas um pêlo de elefante e acreditar pia-mente nas patranhas do vendedor. ter de pagar pelos próprios sonhos deve ser o pior dos desesperos. afinal, contra os prognósticos do chamado jornal da ca-serna, o arquiduque regressou na tarde do dia seguinte, disposto a reempreender viagem tão cedo quanto fosse possível. a notícia do milagre havia chegado ao palácio do doge, mas de uma maneira bastante bara-lhada, resultado, desde o relato incompleto de alguma testemunha mais ou menos presencial até aos que simplesmente falaram por ou-vir dizer, das transmis-sões sucessivas de factos verdadeiros ou supostos, ocorridos ou imaginados, pois, como demasiado sabemos, quem conta um conto não passa sem lhe acrescentar um ponto, e às vezes uma vírgula. mandou o arquiduque chamar o intendente para que lhe acla-rasse o sucedido, não tanto o milagre em si, mas as razões que haviam levado ao seu cometimento. Sobre este aspecto particular da questão, faltavam conhecimentos ao intendente, de modo que foi decidido chamar o cornaca fritz, que, graças à natureza das suas funções, algo de mais substancial deveria saber. o arquiduque atacou sem rodeios o assunto, dizem-me que houve aqui um milagre durante a minha ausência, Sim, meu senhor, e que o fez solimão, assim é, meu senhor, Quer dizer, o elefante resolveu, por sua conta, ir ajoelhar-se à porta da basílica, eu não o diria dessa maneira, meu senhor, então como o dirias tu, perguntou o arquiduque, fui eu quem conduziu o solimão, Calculei que assim fosse, portanto essa informação é 183


das dispensáveis, o que eu quero é saber em que cabe-

ça nasceu a ideia, eu, meu senhor, só tive de ensinar o elefante a ajoelhar-se à minha ordem, e a ti, quem te deu a ordem para que o fizesses, meu senhor, não me está permitido falar do assunto, alguém to proibiu, não posso dizer que mo tenham proibido expressa-mente, mas ao bom entendedor meia palavra basta, Quem foi que proferiu essa meia palavra, meu senhor, terás motivos para te arrependeres amargamente se não responderes sem mais quês à pergunta, foi um padre da basílica, explica-te melhor, disse que neces-sitavam um milagre e que esse milagre podia ser solimão a fazê-lo, e tu, que disseste, Que solimão não estava habituado a fazer milagres e que o intento podia correr mal, e o padre, ameaçou-me que teria fortes motivos para me arrepender se não obedecesse, quase as mesmas palavras que vossa alteza acabou de usar, e que se passou depois, levei o resto da manhã a ensinar o solimão a ajoelhar-se a um sinal meu, não foi nada fácil, mas acabei por consegui-lo, És um bom cornaca, vossa alteza confunde-me, Queres um conselho, Sim, meu senhor, aconselho-te a que não fales lá fora desta conversação entre nós, assim farei, meu senhor, Para que não tenhas motivos de arrependimento, Sim, meu senhor, não o esquecerei, vai-te e tira da cabeça de solimão essa ideia parrana de andar a fazer milagres ajoelhando-se à porta das igrejas, de um milagre deveria esperar-se muito mais, por exemplo, que crescesse uma perna onde outra tivesse sido cortada, imagina a quantidade de prodígios destes que 184


poderiam fazer-se directamente no campo de batalha, Sim, meu senhor, vai-te. Sozinho, o arquiduque come-

çou a pensar que talvez tivesse falado em demasia, que a difusão destas suas palavras, se o cornaca desse com a língua nos dentes, não traria nenhum benefício à delicada política de equilíbrio que tem andado a manter entre a reforma de lutero e a reacção conciliar já a caminho. no fim de contas, como dirá henrique quarto de frança num futuro que não vem longe, paris vale bem uma missa. ainda assim, uma pungente me-lancolia transparece no delgado rosto de maximiliano, talvez porque poucas coisas na vida doam mais que a consciência de haver traído os ideais da juventude. o arquiduque disse a si mesmo que já levava idade suficiente para não chorar o leite derramado, que os úberes pletóricos da igreja católica ali estavam, como de costume, à espera de mãos habilidosas que os ordenhassem, e os factos, até agora, haviam mostrado que as arquiducais mãos não eram de todo des-providas desse mungidor talento diplomático, sob condição de que a dita igreja antevisse que o resultado do negócio da fé viria a ser, com o tempo, vantajoso para os seus interesses. fosse como fosse, a história do falso milagre do elefante passava as marcas do tolerável, os da basílica, pensou, perderam a cabeça, tendo um santo como aquele, homem para fazer dos cacos de um cântaro um cântaro novo ou, estando em pádua, ir pelos ares a lisboa para salvar o pai da forca, e logo vão pedir a um cornaca que lhes empreste o elefante para simular um milagre, ah lutero, lutero, 185


quanta razão tinhas. tendo assim desabafado, o arquiduque mandou chamar o intendente, a quem ordenou que dispusesse a partida para a manhã seguinte, direitos a trento em uma só etapa se for possível ou dormindo uma vez mais no caminho, se outro remé-

dio não houver. Respondeu o intendente que a alternativa lhe parecia mais prudente, pois a experiência havia mostrado que não se podia contar com solimão para provas de velocidade, É mais um corredor de fundo, rematou, para logo prosseguir, abusando da credulidade da gente, o cornaca tem estado a vender pêlos do elefante para mezinhas curativas que não vão curar ninguém, diz-lhe da minha parte que se não acaba já com o negócio terá razões para lamentá-lo durante o tempo de vida que lhe restar, que certamente não será muito, as ordens de vossa alteza serão imediatamente cumpridas, é preciso pôr cobro à trapaça, a história dos pêlos de elefante está a desmora-lizar a caravana, em especial os couraceiros calvos, Quero este assunto resolvido, não posso impedir que a fama do milagre de solimão nos persiga durante toda a viagem, mas ao menos que não se diga que a casa de habsburgo tira proveito das malfeitorias de um cornaca metido a embusteiro, cobrando o imposto sobre o valor acrescentado como se de uma operação comercial coberta pela lei se tratasse, Corro a resolver o caso, meu senhor, o cornaca não ficará a rir-se, é uma pena precisarmos tanto dele para conduzir o elefante até viena, mas espero que lhe sirva de emenda o que aconteceu, vai, apaga-me esse fogo antes que al-186


guém comece a queimar-se nele. Bem vistas as coisas, fritz não merecia tão severos juízos. está bem que se acuse e denuncie o delinquente, mas uma justiça bem entendida deverá ter sempre em consideração as ate-nuantes, a primeira das quais, no caso do cornaca, seria reconhecer que a ideia do enganoso milagre não foi sua, que foram os padres da basílica de santo antó-

nio quem tramou o embuste, sem o qual nunca teria passado pela cabeça de fritz a ideia de explorar o sistema piloso do causante do aparente prodígio para enriquecer-se. tanto o nobre arquiduque como o seu serviçal intendente tinham a obrigação de lembrar-se, para reconhecimento dos seus pecados maiores e menores, uma vez que ninguém neste mundo está isento de culpas, e eles menos que muitos, daquele famoso ditado sobre a trave e o argueiro, que, adaptado às novas circunstâncias, ensina que é mais fácil ver a trave em relação a pádua e à basílica de santo antónio, e assim decidiram manifestá-lo levantando em frente da catedral onde se vinham reunindo desde há anos os cardeais, os bispos e os teólogos, uma armação sumá-

ria que figurava a milagreira criatura. firmando melhor a vista, o arquiduque notou que no dorso do elefante havia umas portinholas grandes, uma espécie de alçapões que imediatamente lhe fizeram recordar aquele famosíssimo cavalo de tróia, embora fosse mais do que evidente que na barriga da estátua não haveria espaço suficiente nem para uma esquadra de infantes, a não ser que fossem liliputianos, e então nunca poderiam ser tal, uma vez que a palavra ainda 187


não existia. Para tirar-se de dúvidas, o desassossegado arquiduque deu ordem ao intendente para que fosse averiguar que demónios estava fazendo ali aquele mal ensamblado mostrengo que tanta inquietação lhe estava causando. o intendente foi por notícias e voltou com elas. não havia motivo para sustos. o elefante fora feito para festejar a passagem de maximiliano de áustria pela cidade de trento, e a sua outra finalidade, que realmente a tinha, seria servir de suporte para os fogos-presos que ao cair da noite irromperiam da respectiva carcaça. Respirou aliviado o arquiduque, afinal o feito do elefante não merecera em trento qualquer especial consideração, salvo talvez a de vir a acabar reduzido a cinzas, pois havia fortes probabilidades de que os rastilhos do fogo-de-artifício acabassem por pegar à madeira, proporcionando aos assistentes um final que muito anos mais tarde, infalivelmente, viria a receber o qualificativo de wagneriano. assim sucedeu. depois de um vendaval de cores, em que o amarelo do sódio, o vermelho do cálcio, o verde do cobre, o azul do potássio, o branco do magnésio, o dou-rado do ferro, obraram prodígios, em que as estrelas, os repuxos, as vagarosas candeias e as cascatas de luminárias jorraram do interior do elefante como de uma inesgotável cornucópia, a festa acabou em uma grande fogueira que não poucos trentinos aproveitaram para aquecer as mãos, enquanto solimão, abrigado sob um alpendre construído adrede, ia dando conta do seu segundo fardo de forragem. aos poucos a fogueira foi-se convertendo em ardente brasido, mas 188


o frio não deixou que ele durasse muito, as brasas transformaram-se rapidamente em cinzas, porém, nesta altura, terminado o espectáculo principal, já o arquiduque e a arquiduquesa se haviam retirado. a neve começou a cair.

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