MILLENNIUM

STIEG LARSSON

OS HOMENS QUE NÃO AMAVAM AS MULHERES

Tradução

Paulo Neves

reimpressão


SUMÁRIO

Prólogo: sexta-feira 1º de novembro

I. Incitação (20 de dezembro a 3 de janeiro)

II. Análise das consequências (3 de janeiro a 17 de março)

III. Fusões (16 de maio a 14 de julho)

IV. Takeover hostil (11 de julho a 30 de dezembro)

Epílogo — acerto de contas: quinta-feira 27 de novembro a terça-feira 30 de dezembro

PRÓLOGOSEXTA-FEIRA 1º DE NOVEMBRO

Acontecia todos os anos, quase como um ritual. O homem que recebia a flor festejava naquele dia seus oitenta e dois anos. Ele abriu o envelope e retirou o papel de presente do embrulho. Depois pegou o telefone e digitou o número de um ex-inspetor de polícia que desde sua aposentadoria instalara-se na Dalecarlia, perto do lago Siljan. Os dois homens não só tinham a mesma idade mas haviam nascido no mesmo dia — o que, nessas circunstâncias, parecia irônico. O inspetor sabia que receberia esse telefonema após a passagem do carteiro por volta das onze da manhã, e tomava seu café enquanto aguardava. Nesse ano, o telefone tocou às dez e meia. Ele atendeu e foi direto ao assunto.

— Ela chegou, suponho. E então, qual é a flor deste ano?

— Não faço a menor idéia. Vou mandar identificá-la. Uma flor branca.

— Nenhuma carta, como sempre?

— Não. Apenas a flor. A moldura é a mesma do ano passado. Uma dessas molduras baratas do tipo faça-você-mesmo.

— Selo do correio?

— Estocolmo.

— Escrita?

— Como sempre, maiúsculas de imprensa. Letras retas e bem traçadas.

Haviam esgotado o assunto e ficaram em silêncio durante quase um minuto. O inspetor aposentado inclinou-se para trás na cadeira da cozinha e aspirou seu cachimbo. Sabia muito bem que não se esperava dele uma pergunta concisa ou um comentário perspicaz que lançassem uma nova luz sobre o caso. Essa época acabara havia anos, e a conversa entre os dois homens idosos tinha o caráter de um ritual em torno de um mistério que ninguém mais no mundo, a não ser eles, estava disposto a resolver.

O nome latino da planta era Leptospermum rubinette (Myrtaceae). Uma planta de mato, relativamente comum, com folhas pequenas que lembram as da urze, e uma flor branca de dois centímetros com cinco pétalas. Comprimento total: cerca de dez centímetros.

Era encontrada no mato e nas regiões montanhosas da Austrália, onde brotava sob a forma de grossos tufos de erva. Lá, chamavam-na desert snow. Mais tarde, uma especialista do jardim botânico de Uppsala constataria se tratar de uma planta rara, muito pouco cultivada na Suécia. Em seu relatório, a botânica escreveu que a planta era aparentada da murta de apartamento, seguidamente confundida com sua prima bem mais comum, a Leptospermum scoparium, abundante na Nova Zelândia. Segundo a especialista, a diferença consistia num número restrito de microscópicos pontos rosados na extremidade das pétalas, que davam à flor uma leve tonalidade rósea.

De maneira geral, a rubinette era uma flor particularmente insignificante. Não tinha valor comercial nem virtudes medicinais conhecidas, e não era alucinógena. Não comestível, inutilizável como condimento e desprovida de propriedade colorante. Contudo, tinha certa importância para os aborígenes da Austrália, que, por tradição, consideravam sagradas a região e a flora ao redor de Ayers Rock. Assim, a única finalidade dessa flor parecia ser valorizar agradavelmente o entorno com sua beleza caprichosa.

Em seu relatório, a botânica de Uppsala constatava que, se na Austrália a desert snow era pouco difundida, na Escandinávia, então, era raríssima. Ela própria nunca vira nenhum exemplar, mas, por informações obtidas com alguns colegas, sabia de tentativas de introdução da planta num jardim em Göteborg, e não se excluía a possibilidade de que jardineiros amadores e fanáticos da botânica a cultivassem em pequenas estufas pessoais. A principal dificuldade de sua aclimatação na Suécia era que ela exigia um clima suave e seco, e devia passar os seis meses do inverno protegida. Os solos calcários não lhe convinham e ela necessitava de uma irrigação subterrânea, diretamente absorvida pela raiz. Exigia conhecimento e habilidade no cultivo.

Em tese, o fato de essa planta ser rara na Suécia devia facilitar o rastreamento da origem desse exemplar, mas, concretamente, era uma tarefa impossível. Não existiam nem registros a consultar nem licenças a examinar. Ninguém sabia quantos horticultores amadores podiam ter importado aleatoriamente uma planta tão difícil — poucas pessoas ou até mesmo centenas de apaixonados por flores podiam ter tido acesso às sementes e às plantas. Qualquer jardineiro poderia tê-las comprado de um colega sem nota fiscal, ou por correspondência, ou de algum jardim botânico na Europa. Ela podia até mesmo ter entrado na Suécia com alguém que estivesse retornando de uma viagem à Austrália. Ou seja, identificar esses cultivadores entre os milhões de suecos proprietários de uma pequena estufa ou de um vaso de flores no peitoril da janela era uma tarefa destinada ao fracasso.

Ela não passava de mais um número na série de flores inexplicáveis que chegavam todos os anos, sempre num grande envelope acolchoado, no dia 1º de novembro. A espécie mudava de ano para ano, mas eram sempre flores lindas e em geral bastante raras. Como sempre, a flor estava prensada em um vidro, cuidadosamente fixada sobre papel de desenho e emoldurada no formato 29 por 16.

O mistério dessas flores nunca fora divulgado à imprensa e só era conhecido por um círculo limitado. Três décadas antes, a chegada anual da flor fora objeto de análises — do laboratório criminológico do Estado, de peritos em impressões digitais e grafologistas, de criminologistas formados e de um certo número de familiares e amigos do destinatário. Agora, os atores desse drama não eram mais que três: o velho herói aniversariante, o policial aposentado e, naturalmente, a pessoa desconhecida que enviava o presente. Como pelo menos os dois primeiros haviam atingido uma idade mais que respeitável, chegava o momento de se preparar para a inelutável diminuição, em breve, desse círculo de iniciados.

O policial aposentado era um veterano fortalecido pela profissão. Nunca esquecera sua primeira ocorrência: a detenção de um bêbado — um mecânico ferroviário —, violento e disposto a colocar sua vida ou a de qualquer um em jogo. Ao longo de sua carreira, o policial pusera na prisão gatunos, homens que batiam na mulher, vigaristas, ladrões de carro e motoristas embriagados. Confrontara-se com assaltantes, ladrões, traficantes, estupradores e um dinamitador com uma certa dose de problemas mentais. Participara de nove inquéritos sobre crimes e assassinatos. Em cinco deles, o próprio culpado, atormentado pelo remorso, chamara a polícia para confessar o assassinato da mulher, do irmão ou de algum outro familiar. Três casos haviam exigido investigações; dois tiveram seu desfecho depois de alguns dias e um, com o auxílio da Polícia Federal, passados dois anos.

O nono inquérito não tinha bases policiais sólidas, isto é, os investigadores sabiam quem era o assassino, mas as provas eram tão insignificantes que o procurador decidiu deixar o caso em suspenso. Para grande prejuízo do inspetor, o caso acabou prescrevendo. No todo, porém, ele deixara atrás de si uma carreira impressionante e, claro, deveria se sentir satisfeito pelo trabalho realizado.

Mas ele não estava nada satisfeito.

Para o inspetor, o caso das flores secas era um espinho que continuava encravado — o inquérito frustrante, jamais resolvido, ao qual indiscutivelmente dedicara mais tempo.

A situação era duplamente absurda porque, após milhares de horas de reflexão, tanto em serviço como em seu tempo livre, ele não estava sequer seguro de ter havido um crime.

Os dois homens sabiam que a pessoa que colara a flor seca utilizara luvas, porém não havia impressões nem na moldura nem no vidro. Sabiam que era impossível descobrir o remetente. Sabiam que a moldura era vendida em lojas de fotografias ou em papelarias do mundo inteiro. Simplesmente não havia como seguir a menor pista. E o selo do correio sempre mudava; com mais frequência era de Estocolmo, mas três vezes foi de Londres, duas de Paris, duas de Copenhague, uma de Madri, uma de Bonn e uma vez, a mais intrigante, de Pensacola, nos Estados Unidos. Enquanto todas as outras cidades eram capitais, Pensacola era um nome tão desconhecido que o inspetor foi obrigado a procurar a cidade num atlas.

* * *

Depois de desligar o telefone, o homem que festejava seus oitenta e dois anos permaneceu imóvel por um longo momento, contemplando a bela mas insignificante flor cujo nome ainda não conhecia. Em seguida ergueu os olhos para a parede acima da escrivaninha. Havia ali quarenta e três flores penduradas, prensadas sob o vidro e emolduradas, formando quatro fileiras de dez flores e uma fileira inacabada de quatro. Na fileira superior, faltava um quadro. O número 9 estava vazio. A desert snow ia ser o número 44.

Pela primeira vez, no entanto, ocorreu algo que quebrou a rotina de todos aqueles anos. De repente, de forma inesperada, ele começou a chorar. Ele mesmo se surpreendeu com essa súbita efusão sentimental depois de quase quarenta anos.


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