I. INCITAÇÃO - 20 DE DEZEMBRO A 3 DE JANEIRO

Na Suécia, 18% das mulheres foram ameaçadas por um homem pelo menos uma vez na vida.

1. SEXTA-FEIRA 20 DE DEZEMBRO

O processo estava definitivamente encerrado e tudo que podia ser dito fora dito. Ele não duvidara um só instante que seria declarado culpado. A sentença fora pronunciada às dez da manhã desta sexta-feira e agora não restava senão ouvir a opinião dos jornalistas que aguardavam no corredor do tribunal.

Mikael Blomkvist os viu pela fresta da porta e deteve-se alguns segundos. Não tinha vontade de discutir o veredicto cuja cópia acabava de obter, mas as perguntas eram inevitáveis e ele sabia — melhor que ninguém — que elas deviam ser feitas e que era preciso respondê-las. Eis o que é ser um criminoso, pensou. Do outro lado do microfone. Endireitou-se, pouco à vontade, e tentou sorrir. Os repórteres o receberam e o cumprimentaram gentilmente, um pouco constrangidos.

— Vejamos... Aftonbladet, Expressen, TT, TV4 e... você de onde é?... Ah, sim, Dagens Industri. Parece que virei uma celebridade — constatou Mikael Blomkvist.

— Uma declaração, por favor, Super-Blomkvist! — disparou o enviado de um dos jornais vespertinos.

Mikael Blomkvist, cujo nome completo era Carl Mikael Blomkvist, forçou-se a não levantar os olhos para o céu como fazia todas as vezes que ouvia esse apelido. Certa vez, vinte anos antes, quando tinha vinte e três anos e iniciava-se na profissão de jornalista como substituto de férias de verão, Mikael Blomkvist descobrira por acaso uma gangue de assaltantes de bancos, autores de cinco ações violentas muito noticiadas naqueles últimos dois anos. Tratava-se, com toda a certeza, do mesmo grupo; sua especialidade era chegar de carro em cidades pequenas e assaltar um ou dois bancos com precisão militar. Usavam máscaras de borracha dos personagens de Walt Disney e foram batizados — segundo uma lógica policial não de todo absurda — de o Bando do Pato Donald. Os jornais, porém, preferiram chamá-los de os Irmãos Metralha, apelido um pouco mais sério, já que em duas ocasiões haviam disparado, sem escrúpulos, tiros de advertência, sem se importar com a segurança das pessoas, ameaçando transeuntes e curiosos.

O sexto ataque à mão armada ocorreu num banco de Östergötland, em pleno verão. Um repórter da rádio local achava-se no banco no momento do assalto e reagiu de acordo com as regras da profissão. Assim que os assaltantes deixaram o banco, ele correu até uma cabine telefônica e se comunicou com a rádio para transmitir ao vivo a informação.

Mikael Blomkvist passava alguns dias com uma amiga na casa de campo dos pais dela, não muito distante de Katrineholm. Quando a polícia o interrogou, ele não soube dizer exatamente por que fizera a ligação, mas no momento em que escutava as informações no rádio lembrou-se de quatro sujeitos numa casa de veraneio a poucas centenas de metros dali. Já os vira dois dias antes, quando passeava com a amiga: os sujeitos jogavam badminton no jardim.

Ele vira apenas quatro jovens louros e atléticos, de bermuda e peito nu, visivelmente adeptos do body-building, mas algo nesses jogadores de badminton o fizera olhar uma segunda vez — talvez porque jogassem, sob um sol escaldante, com uma energia e uma violência espantosas. Não parecia um jogo, e isso chamara a atenção de Mikael.

Não havia nenhum motivo racional para suspeitar que aqueles homens fossem os assaltantes do banco; no entanto, depois do flash na rádio, Mikael Blomkvist saiu para dar uma volta e se posicionou numa colina com vista para a casa, de onde constatou que tudo ali parecia vazio até o momento. Depois de uns quarenta minutos, ele viu o grupo chegar num Volvo e estacionar. Pareciam apressados, cada um carregava uma sacola, o que apenas podia significar que eles haviam saído para tomar banho em algum lugar. Mas um deles voltou ao carro e pegou um objeto, que se apressou a cobrir com o blusão do abrigo. Mesmo de seu posto de observação relativamente afastado, Mikael viu que se tratava de um rifle AK4, do tipo dos que ele mesmo manipulara havia não muito tempo durante seu ano de serviço militar. Foi o que o levou a chamar a polícia e a relatar suas observações. Começaram então três dias de uma intensa vigilância da casa, com Mikael na primeira fila, sustentado por copiosos honorários de freelance pagos por um dos jornais vespertinos. A polícia montou seu quartel-general num trailer estacionado no terreno da casa de campo onde Mikael passava férias.

O caso dos Irmãos Metralha deu a Mikael a incontestável condição de vedete, que ele tanto necessitava como jornalista iniciante. O reverso da celebridade foi que o outro jornal vespertino não pôde deixar de dar a manchete: "Super-Blomkvist resolve o mistério dos Metralha". O texto gozador, escrito por uma redatora não muito jovem, continha várias referências ao herói dos romances juvenis de Astrid Lindgren. Para completar, o jornal ilustrava o artigo com uma foto não muito clara, em que Mikael, de boca aberta e dedo indicador erguido, parecia dar instruções a um policial de uniforme. Na realidade, o que ele indicava nesse momento eram os sanitários no fundo do jardim.

A partir desse dia, para seu grande desespero, seus colegas jornalistas passaram a chamá-lo de Super-Blomkvist. Era um apelido pronunciado com um toque malicioso, nunca maldoso, mas também nunca verdadeiramente carinhoso. Ele não tinha nada contra a pobre Astrid Lindgren — adorava seus livros e as aventuras de seu jovem herói detetive —, porém detestava o apelido. Haviam sido necessários vários anos e méritos jornalísticos bem mais consistentes para que o apelido começasse a se diluir, e Mikael ainda hoje se contraía toda vez que o chamavam de Super-Blomkvist.

Assim, armou um sorriso tranquilo e olhou o enviado do jornal vespertino bem nos olhos.

— Você só precisa inventar alguma coisa. Não é o que costuma fazer quando escreve?

O tom não era áspero. Todos se conheciam um pouco, e os críticos mais ferrenhos de Mikael não tinham vindo. Ele já havia trabalhado com um dos rapazes que estavam ali; quanto à moça da Tv4, por pouco não transara com ela numa festa anos antes.

— Eles não acreditaram em você — constatou o Dagens Industri, que parecia ter enviado um foca.

— Pode-se dizer que sim — reconheceu Mikael. Dificilmente poderia responder outra coisa.

— Como está se sentindo?

Apesar da gravidade da situação, nem Mikael nem os jornalistas credenciados puderam deixar de esboçar um sorriso ao ouvir a pergunta. Mikael trocou um olhar com a moça da TV4. Como está se sentindo? Pergunta que os jornalistas sérios dizem ser a única que os repórteres esportivos sabem fazer ao Esportista Sem Fôlego que cruzou a linha de chegada. Mas ele voltou a ficar sério.

— É evidente que só posso lamentar que o tribunal não tenha chegado a outras conclusões — respondeu um tanto formal.

— Três meses de prisão e cento e cinquenta mil coroas por perdas e danos. Não é pouco — disse a moça da TV4.

— Sobreviverei.

— Você pretende se desculpar com Wennerström, apertar-lhe a mão?

— Não, nem imagino uma coisa dessas. Minha opinião sobre a moralidade do senhor Wennerström nos negócios não mudou muito.

— Então continua afirmando que ele é um escroque? — perguntou vivamente o Dagens Industri.

Uma declaração acompanhada de uma manchete potencialmente devastadora anunciava-se por trás da pergunta, e Mikael poderia ter pisado na casca de banana se o repórter não tivesse assinalado o perigo ao avançar o microfone com demasiada pressa. Ele refletiu sobre a resposta por alguns segundos.

O tribunal acabara de concluir que Mikael Blomkvist caluniara o financista Hans-Erik Wennerström. Ele fora condenado por difamação. O processo terminara e Mikael não pretendia recorrer. Mas o que aconteceria se, por imprudência, reiterasse suas acusações ao sair da sala do tribunal? Decidiu que não tinha vontade de saber.

— Julguei ter tido boas razões para publicar as informações de que eu dispunha. A opinião do tribunal foi outra e evidentemente sou obrigado a aceitar que o processo siga seu curso. Agora vamos discutir esse julgamento a fundo na redação da revista antes de decidir o que faremos. Não posso dizer mais nada.

— Mas você está esquecendo que nós, como jornalistas, devemos ter como provar nossas afirmações — disse a moça da TV4 com um tom de voz levemente cáustico. Ponto difícil de contestar. Eles haviam sido amigos. Ela exibia um rosto neutro, mas Mikael teve a impressão de vislumbrar uma sombra de decepção em seus olhos.

Ainda durante alguns dolorosos minutos, Mikael Blomkvist respondeu às perguntas. A que pairava no ar e que nenhum repórter decidia-se a fazer — talvez porque de tão incompreensível se tornava incômoda — era como Mikael pudera escrever um texto tão sem substância. Os repórteres ali presentes, com exceção do foca do Dagens Industri, eram todos veteranos, com grande experiência profissional. Para eles, a resposta a essa pergunta achava-se além do limite do compreensível.

A moça da TV4 pediu que ele ficasse em frente à porta do Palácio de Justiça e fez suas perguntas à parte, diante da câmera. Ela foi mais amável do que ele merecia, e Mikael deu declarações suficientes para satisfazer a todos os jornalistas. O caso renderia grandes manchetes — era inevitável —, mas ele se forçou a pôr na cabeça que não se tratava, de modo algum, do maior acontecimento do ano na mídia. Quando os repórteres conseguiram o que queriam, foram embora para suas respectivas redações.

Tinha a intenção de voltar a pé para casa, mas ventava muito naquele dia de dezembro e ele sentia frio. Ao sair sozinho do Palácio de Justiça, viu William Borg descer de um carro no qual permanecera durante a entrevista. Seus olhares se cruzaram, William Borg exibia um grande sorriso.

— Valeu a pena vir até aqui para vê-lo com esse documento na mão. Mikael não respondeu. William Borg e Mikael Blomkvist se conheciam havia quinze anos. Durante algum tempo trabalharam juntos como jornalistas substitutos na seção de economia de um diário matutino. Talvez pela falta de química entre os dois, esse período estabelecera uma hostilidade permanente entre eles. Aos olhos de Mikael, Borg era um jornalista execrável, um sujeito fatigante e vingativo, de espírito curto, que aborrecia os que estavam a sua volta com gracejos imbecis e que insinuava desprezo pelos jornalistas mais velhos, portanto mais experientes. Borg parecia ter particular aversão por jornalistas mulheres de uma certa idade. Eles discutiram uma primeira vez, depois outras, até que suas diferenças adquiriram um caráter profundamente pessoal.

No decorrer dos anos, Mikael e Borg haviam se cruzado com regularidade, mas só se indispuseram de fato no final dos anos 1990. Mikael escrevera um livro sobre jornalismo econômico e extraíra mais de uma citação absurda dos artigos assinados por Borg. Segundo Mikael, Borg era um presunçoso que entendera de maneira errada a maior parte das informações e elevara às nuvens empresas "pontocom" que não tardariam a sucumbir. Borg não gostou da crítica de Mikael e, quando se encontraram por acaso num bar em Söder, por pouco não chegaram às vias de fato. Borg abandonara o jornalismo e agora trabalhava como relações-públicas, recebendo um salário consideravelmente mais alto, numa empresa que, para completar, pertencia à esfera de interesses do industrial Hans-Erik Wennerström.

Eles se encararam por um bom tempo antes de Mikael virar as costas e ir embora. Vir ao Palácio com a única finalidade de tirar um sarro era bem típico de Borg.

Mikael tinha começado a caminhar quando o 40 chegou e ele subiu no ônibus, antes de mais nada para sair dali. Desceu em Fridhemsplan e ficou indeciso no abrigo de ônibus, sempre segurando na mão a cópia de sua sentença. Decidiu enfim ir a pé até o café Anna, ao lado da garagem da delegacia.

Menos de um minuto depois de pedir um caffè latte e um sanduíche, o noticiário do meio-dia começou pelo rádio. O assunto foi o terceiro, depois de um atentado suicida em Jerusalém e da notícia de que o governo formara uma comissão de inquérito para investigar aparentes cartéis ilícitos na construção civil.

O jornalista Mikael Blomkvist, da revista Millennium, foi condenado nesta sexta-feira a três meses de prisão por difamação contra o industrial Hans-Erik Wennerström. Num artigo sobre o suposto caso Minos, que há alguns meses chocou a opinião pública, Blomkvist acusava Wennerström de ter desviado fundos sociais, destinados a investimentos industriais na Polônia, para o tráfico de armas. Mikael Blomkvist também foi condenado a pagar cento e cinquenta mil coroas por perdas e danos. O advogado de Wennerström, Bertil Camnermarker, disse que seu cliente estava satisfeito com a sentença. "Trata-se de um caso de difamação particularmente grave", declarou.

A sentença ocupava vinte e seis páginas. Ela apresentava as razões pelas quais Mikael fora julgado culpado em quinze pontos, por difamação agravada contra o financista Hans-Erik Wennerström. Mikael constatou que cada uma das acusações que o condenavam custava dez mil coroas e seis dias de prisão. Sem contar as custas do processo e suas próprias custas com advogado. Ele não tinha sequer a coragem de começar a refletir sobre o tamanho da conta, mas também dizia a si mesmo que podia ter sido pior; o tribunal o inocentara em sete itens.

A medida que lia o enunciado da sentença, uma sensação de peso cada vez mais desagradável ia se instalando em seu estômago. Ficou surpreso com isso. Desde o início do processo, sabia que só um milagre o livraria da condenação. Não tinha a menor dúvida a respeito e acostumara-se com a idéia. Permanecera com o espírito relativamente tranquilo durante os dois dias em que transcorrera o julgamento, e por onze dias esperou, sem sentir nada de especial, que o tribunal acabasse de refletir e formulasse o texto que ele segurava na mão. Mas só agora, encerrado o julgamento, é que o mal-estar se insinuara.

Mordeu um pedaço do sanduíche, mas o pão pareceu inchar dentro de sua boca. Teve dificuldade de engolir e o cuspiu no prato.

Era a primeira vez que Mikael Blomkvist era condenado por um delito — a primeira vez que se via acusado de alguma coisa ou chamado a comparecer em juízo. Pensando bem, a sentença era insignificante. Um delito peso-pena. Afinal, não se tratava de roubo à mão armada, de assassinato ou estupro. Mas, do ponto de vista financeiro, a condenação teria consequências. A Millennium não era nenhum carro-chefe do mundo da mídia, nem dotada de recursos ilimitados — a revista atuava com uma estreita margem de lucro —, mas a condenação também não era uma catástrofe. O problema é que Mikael era ao mesmo tempo um dos acionistas da Millennium e, estupidamente, redator e editor responsável pela publicação. Ele pretendia tirar do próprio bolso as cento e cinquenta mil coroas por perdas e danos, o que reduziria a zero sua poupança. A revista se encarregaria dos custos judiciais. Navegando com perspicácia, dava para seguir em frente.

Ocorreu-lhe vender o apartamento, mas essa hipótese ficou atravessada em sua garganta. No final dos felizes anos 1980, numa época em que tinha emprego fixo e um salário relativamente alto, adquirira um imóvel. Visitou uma porção de apartamentos e recusou todos, até encontrar uma água-furtada de sessenta e cinco metros quadrados, bem no começo da Bellmansgatan. O ex-proprietário havia começado a transformá-la em algo habitável, mas fora contratado por uma empresa de informática no exterior e Mikael adquiriu seu projeto de reforma por um preço irrisório.

Mikael não quis plantas desenhadas por arquitetos, preferiu ele mesmo terminar as obras, reservando dinheiro para a cozinha e o banheiro, e deixando o resto como estava. Em vez de substituir o piso e instalar divisórias para criar dois ambientes, poliu o assoalho, passou cal nas grosseiras paredes originais e cobriu os defeitos mais graves com algumas aquarelas de Emanuel Bernstone. O resultado foi um loft arejado, com um quarto atrás de uma estante de livros, um canto para refeições e uma sala com uma pequena cozinha americana. O apartamento tinha duas janelas de mansarda e outra triangular com vista para os telhados, para as águas do Riddarfjarden e para a cidade velha. Ele até podia avistar uma ponta do Slussen e do paço municipal. Levando em conta os preços de mercado, agora ele não podia mais pagar um apartamento como aquele, por isso tinha muita vontade de conservá-lo.

Mas o risco de perder o apartamento não era nada comparado à enorme bofetada profissional que sofrera, cujos danos levaria algum tempo para reparar, supondo que fossem reparáveis.

Era uma questão de confiança. Num futuro próximo, muitos redatores hesitariam em publicar artigos em sua revista. Ele ainda tinha amigos capazes de entender que fora vítima do azar e das circunstâncias, mas não poderia mais se dar ao luxo de cometer o menor erro.

O mais doloroso, porém, era a humilhação.

Tivera todos os trunfos na mão, mas perdera para uma espécie de gangster vestido de Armani. Um especulador safado. Um yuppie defendido por um advogado do jet-set que passou o processo inteiro rindo.

Como as coisas tinham dado tão errado?

O caso Wenneström, no entanto, começara de forma bastante promissora um ano e meio antes na cabine de um veleiro Mälar-30 amarelo, numa noite de São João. Tudo porque o acaso fizera um ex-colega seu jornalista, na época relações-públicas da prefeitura, alugar um Scampi, sem muito refletir, para impressionar a mais recente namorada, levando-a a um cruzeiro romântico de alguns dias pelo arquipélago de Estocolmo. A garota, que tinha vindo de Hallstahammar para estudar em Estocolmo, após certa resistência, concordou em ir, mas com a condição de que sua irmã e o namorado dela também fossem. O problema é que os três nunca tinham estado num veleiro, e o relações-públicas era um marujo mais entusiasmado que experiente. Três dias antes da partida, desesperado, ele chamou Mikael e o convenceu a ser o quinto tripulante, por ter mais experiência que ele em navegação.

A princípio reticente, Mikael acabou cedendo diante da oportunidade de ter pela frente alguns dias de descanso no arquipélago e da anunciada perspectiva de boa comida e companhia agradável. As promessas se revelaram falsas, e o cruzeiro acabou sendo uma catástrofe que superou seus piores pesadelos. Eles haviam navegado, a menos de dez nós, de Bullandö até o estreito de Furusund — bonito, é verdade, mas pouco excitante —, o que não impediu que a namorada do relações-públicas enjoasse desde o início. Sua irmã brigou com o namorado e ninguém mostrava o menor interesse em aprender o mínimo que fosse de navegação. Logo ficou evidente que esperavam que Mikael fizesse o barco funcionar, enquanto eles se limitavam a dar conselhos bem-intencionados porém totalmente inúteis. Após a primeira noite ancorado numa enseada de Ängsö, ele estava decidido a descer em Furusund e pegar o primeiro ônibus de volta para casa. Somente as súplicas desesperadas do relações-públicas o convenceram a permanecer a bordo.

Na manhã seguinte, por volta do meio-dia, cedo ainda para que encontrassem alguns lugares, eles atracaram ao cais dos visitantes em Arholma. Prepararam uma refeição e tinham acabado de comer quando Mikael avistou um M-30 com casco de poliéster entrando na enseada com apenas a vela mestra. O barco deu uma volta tranquila enquanto seu piloto procurava uma vaga no cais. Mikael deu uma olhada ao redor e constatou que o espaço entre o seu Scampi e um iate a estibordo era provavelmente o único lugar disponível, suficiente e na medida exata, para o estreito M-30. Foi até a proa e agitou o braço; o piloto do M-30 ergueu a mão em sinal de agradecimento e virou em direção ao cais. Um solitário que não usa o motor para atracar, observou Mikael. Ele ouviu o ruído da corrente da âncora e, segundos depois, a vela mestra foi arriada, enquanto o piloto saltava de um lado a outro para manter o leme em posição e, ao mesmo tempo, preparar a ancoragem na proa.

Mikael saltou para o cais e estendeu a mão para oferecer ajuda. O recém-chegado corrigiu a rota uma última vez e o barco veio com seu impulso colocar-se suavemente ao longo do Scampi. No momento em que o piloto lançou a amarra a Mikael, eles se reconheceram e sorriram, encantados.

— Olá, Robban — disse Mikael. — Se utilizasse o motor, evitaria arranhar outros barcos no porto.

— Olá, Micke. Eu disse a mim mesmo que conhecia esse cara. Sabe, eu teria usado o motor se tivesse conseguido fazê-lo funcionar. Essa droga pifou há dois dias perto de Rödöga.

Apertaram-se as mãos por cima da amurada.

Uma eternidade antes, no colégio de Kungsholmen nos anos 1970, Mikael Blomkvist e Robert Lindberg haviam sido companheiros, e até mesmo muito bons amigos. Como acontece com frequência entre velhos colegas de escola, a amizade acabou depois da conclusão do secundário. Cada um seguiu seu caminho e eles se viram raras vezes nos vinte anos seguintes. O último encontro antes deste, inesperado, no cais de Arholma, ocorrera sete ou oito anos atrás. Agora os dois se examinavam com curiosidade. Robert estava bronzeado, com cabelos emaranhados e uma barba de quinze dias.

De repente, Mikael recobrou o ânimo. Quando o relações-públicas e seu bando de imbecis partiram para dançar em volta do mastro de são João erguido diante do armazém, do outro lado da ilha, ele ficou na cabine do M-30 batendo papo com seu velho companheiro de colégio, em volta do tradicional arenque regado a aquavita.

À noite, em dado momento, depois de muitos tragos e de terem desistido de lutar contra os tristemente famosos mosquitos de Arholma e irem se refugiar na cabine, a conversa se transformou numa altercação amistosa sobre a moralidade e a ética no mundo dos negócios. Os dois tinham escolhido carreiras que, de um modo ou de outro, estavam focalizadas nas finanças do país. Robert Lindberg passara do colégio aos estudos de comércio e depois ao mundo financeiro. Mikael Blomkvist cursara a faculdade de jornalismo e dedicara grande parte de sua vida a denunciar negócios duvidosos justamente do mundo financeiro. A conversa girava em torno da imoralidade de alguns pára-quedas dourados (as famosas indenizações milionárias de demissão) surgidos ao longo dos anos 1990. Depois de ter valentemente defendido alguns dos mais espetaculares, Lindberg acabou admitindo, a contragosto, que no mundo das finanças provavelmente havia alguns especuladores corruptos disfarçados. Ele ficou sério de repente e olhou Mikael bem nos olhos.

— Já que você é jornalista investigativo e vasculha delitos econômicos, por que não escreve alguma coisa sobre Hans-Erik Wennerström?

— Não sabia que havia algo a escrever sobre ele.

— Pelo amor de Deus, que espécie de bisbilhoteiro você é? Então não conhece o programa CAI?

— Bem, era uma espécie de programa de apoio, nos anos 1990, para reabilitar a indústria dos ex-países do Leste Europeu. Foi extinto há alguns anos. Nunca escrevi nada a respeito.

— Isso, CAI, Comitê de Apoio Industrial. O projeto tinha o aval do governo, e a tramóia era gerenciada por representantes de uma dezena de grandes empresas suecas. O CAI obteve garantias do Estado para uma série de projetos firmados em acordos com os governos da Polônia e dos países bálticos. A confederação operária participava, para garantir que o movimento operário dos países do Leste Europeu se fortalecesse graças ao modelo sueco. Na teoria, o projeto significava um apoio baseado no princípio de ajuda ao desenvolvimento, e supostamente oferecia aos regimes do Leste Europeu uma possibilidade de sanear suas economias. Na prática, equivalia a conceder subvenções do Estado para que empresas suecas estabelecessem parcerias com empresas do Leste Europeu. Lembra daquele ministro cristão cretino? Era um defensor ardoroso do CAI. Falava-se de construir uma fábrica de papel na Cracóvia, de restabelecer a indústria metalúrgica em Riga, de montar uma usina de cimento em Tallinn, e por aí afora. O dinheiro era distribuído pelo conselho do CAI, exclusivamente formado por pesos pesados do mundo financeiro e industrial.

— Ou seja, dinheiro do contribuinte?

— Cerca de cinquenta por cento eram subvenções do Estado, o resto vinha dos bancos e da indústria. Mas não se pode realmente falar de uma atividade desinteressada. Os bancos e as empresas contavam com um lucro consistente, caso contrário não teriam por que se lançar no negócio.

— Qual era o montante desses fundos?

— Espere um minuto, escute. O CAI era constituído principalmente por empresas suecas sólidas, desejosas de penetrar no mercado do Leste Europeu. Empresas de peso, como ABB, Skanska e outras do gênero. Nada de capital especulativo, se entende o que quero dizer.

— Você está dizendo que a Skanska não faz especulação? Como explicar então a demissão de seu diretor-executivo, depois que um de seus rapazes perdeu meio bilhão especulando com títulos de curto prazo? E como não rir de seus negócios imobiliários histéricos em Londres e Oslo?

— Sim, claro, há cretinos em todas as empresas do mundo, mas você sabe o que estou querendo dizer. Trata-se de empresas que pelo menos produzem alguma coisa. A coluna vertebral da indústria sueca, como se diz.

— E Wenneström, onde ele entra no esquema?

— Wennerström é o curinga da história. Ou seja, um cara surgido do nada, sem nenhum passado na indústria pesada e que, na realidade, nada tem a ver com esse meio. Mas ele acumulou uma fortuna colossal na Bolsa e investiu em empresas estáveis. Entrou, por assim dizer, pela porta de serviço.

Mikael tornou a encher seu copo com a aquavita Reimersholms e inclinou-se para trás na cadeira, refletindo sobre o que sabia a respeito de Wennerström. Era magro. Nascido na região do Norrland, onde criou uma empresa de investimentos nos anos 1970, juntou algum dinheiro e se transferiu para Estocolmo, fazendo ali uma carreira fulgurante nos gloriosos anos 1980. Criou o Wennerströmgruppen, rebatizado de Wennerström Group quando foram abertos os escritórios de Londres e Nova York, e quando nos jornais a empresa começou a ser mencionada no mesmo nível que a Beijer. Negociando com ações, participações e operações rápidas, passou a figurar na imprensa VIP como um dos novos bilionários suecos, proprietário de um loft em Strandwägen, de uma suntuosa residência de verão em Värmdö e de um iate de vinte e três metros, comprado de uma ex-estrela do tênis em decadência. Um calculista esperto, certamente, mas os anos 1980 foram sobretudo a década dos calculistas e dos especuladores imobiliários, e Wennerström não se destacou mais que os outros. Pelo contrário, permaneceu de certo modo à sombra dos figurões. Não tinha a lábia de um Stenbeck nem se exibia na imprensa como Barnevik. Desprezando os bens imobiliários, focalizou seu interesse em investimentos maciços no ex-bloco do Leste Europeu. Quando, nos anos 1990, a bolha murchou e os empresários foram obrigados, um após outro, a recolher seus pára-quedas dourados, as empresas de Wennerström continuaram em ótimo estado. Nenhuma sombra de escândalo. A Swedish success story, foi assim que o Financial Times resumiu seu caso.

— Foi em 1992 que Wennerström, de repente, recorreu ao CAI. Ele precisava de ajuda financeira. Apresentou um projeto que aparentemente atendia gente interessada na Polônia: tratava-se de estabelecer um setor de fabricação de embalagens para a indústria alimentícia.

— Quer dizer, uma fábrica de latas de conserva?

— Não exatamente, mas algo do tipo. Não faço a menor idéia das pessoas que ele conhecia no CAI, mas saiu de lá com sessenta milhões de coroas no bolso, sem problema.

— A história começa a me interessar. Deixe-me adivinhar: ninguém mais voltou a ver a cor desse dinheiro.

— Errado — disse Robert Lindberg.

E sorriu como quem sabe das coisas, antes de beber as últimas gotas de sua aquavita.

— O que se passou depois foi o clássico em matéria de balanço financeiro. Wennerström de fato montou uma fábrica de embalagens na Polônia, mais precisamente em Lodz. A empresa chamava-se Minos. O CAI recebeu alguns relatórios entusiasmados em 1993. E então, em 1994, a Minos faliu de repente.

Robert Lindberg bateu o copo vazio na mesa, com um golpe seco, para sublinhar a que ponto a empresa afundara.

— O problema do CAI é que não havia procedimentos bem definidos para avaliar os relatórios sobre os projetos. Lembre-se do espírito da época. Todo mundo estava otimista com a queda do muro de Berlim. Iam introduzir a democracia, a ameaça de uma guerra nuclear não existia mais e os bolchevistas se tornavam verdadeiros capitalistas da noite para o dia. O governo queria ancorar a democracia no Leste Europeu. Todos os capitalistas desejavam contribuir para a construção da nova Europa.

— Eu nunca soube de capitalistas propensos à caridade.

— Acredite, era o sonho tropical de todo capitalista. Agora a Rússia e os países do Leste Europeu são os maiores mercados depois da China. Os industriais não hesitavam em ajudar o governo, sobretudo quando as empresas só precisavam contribuir com uma parte ínfima dos gastos. Somando tudo, o CAI abocanhou mais de trinta bilhões de coroas do contribuinte. O dinheiro voltaria sob a forma de ganhos futuros. No papel, o CAI era uma iniciativa governamental, mas a influência da indústria era tão grande que, na prática, o conselho do CAI desfrutava de uma completa liberdade de ação.

— Entendo. Mas há material para um artigo também sobre esse ponto?

— Calma. Quando os projetos começaram, não havia problema de financiamento. A Suécia ainda não conhecia o choque das taxas de juros. O governo estava feliz de poder pedir, através do CAI, uma contribuição sueca importante em favor da democracia do Leste Europeu.

— Era um governo de direita.

— Não misture política com isso. Trata-se de dinheiro, e pouco importa saber se são os socialistas ou os moderados que indicam os ministros. Então, com os cofres cheios, surgiram os problemas de câmbio, e em seguida aqueles novos democratas imbecis — lembra-se da Nova Democracia? — começaram a se lamentar, achando que faltava transparência às atividades do CAI. Um deles confundiu o CAI com a Swedish International Development Authority, imaginando um projeto de desenvolvimento para boas obras, como a ajuda à Tanzânia. Na primavera de 1994, uma comissão foi encarregada de investigar o CAI. A essa altura, já se faziam críticas a vários projetos, mas um dos primeiros a ser investigados foi o da Minos.

— E Wennerström não conseguiu justificar a utilização dos fundos.

— Pelo contrário. Wennerström apresentou um excelente relatório financeiro, mostrando que mais de cinquenta e quatro milhões de coroas haviam sido investidas na Minos. Mas alegou que os problemas estruturais de um país a reboque como a Polônia eram grandes demais para que uma fábrica de embalagens moderna pudesse dar certo, e ela acabou desbancada pela concorrência de um projeto alemão similar. Os alemães estavam comprando tudo no bloco do Leste Europeu.

— Você disse que ele obteve sessenta milhões de coroas.

— Isso mesmo. O dinheiro do CAI funcionava na forma de empréstimos sem juros. A idéia, evidentemente, era que as empresas reembolsassem uma parte depois de alguns anos. Mas a Minos faliu e o projeto fracassou. Wennerström não podia ser responsabilizado. É aqui que entram as garantias do Estado: a dívida de Wennerström foi apagada. Ele simplesmente não precisou reembolsar o dinheiro perdido na falência da Minos e conseguiu demonstrar que perdera a mesma quantia do próprio bolso.

— Deixa eu ver se entendi bem toda essa história. Além de fornecer bilhões do contribuinte, o governo oferecia diplomatas para abrir portas. A indústria recebia o dinheiro e o utilizava para investir em joint ventures que lhe permitiam, em seguida, acumular um lucro recorde. Em outras palavras, as negociatas de sempre. Alguns enchem os bolsos enquanto outros pagam a conta, e conhecemos bem os atores dessa peça.

— Meu Deus, como você é cínico! Os empréstimos deviam ser devolvidos ao Estado.

— Você disse que não corriam juros. Isso significa que os contribuintes não receberam nenhum dividendo pelo que pagaram. Wennerström obteve sessenta milhões e investiu cinquenta e quatro. O que fez com os outros seis milhões?

— No momento em que ficou evidente que os projetos do CAI passariam a ser controlados, Wennerström enviou um cheque de seis milhões para reembolsar a diferença. Assim o caso estava resolvido do ponto de vista jurídico.

Robert Lindberg calou-se e lançou um olhar inquieto a Mikael.

— Wennerström certamente desviou um pouco de dinheiro do CAI, mas, comparado ao meio bilhão que desapareceu da Skanska ou à história do pára-quedas dourado de um bilhão do diretor da ABB — coisas que realmente revoltaram as pessoas —, não me parece um caso realmente digno de uma reportagem — constatou Mikael. — Os leitores, hoje, estão fartos de textos sobre especuladores incompetentes da Bolsa, mesmo aqueles que operam com fundos públicos. Há algo mais na sua história?

— Ela está apenas começando.

— Como você ficou sabendo desses negócios do Wennerström na Polônia?

— Eu trabalhei no Banco do Comércio nos anos 1990. Adivinhe quem conduziu as investigações como representante do banco no CAI?

— Entendo. Continue.

— Bem... resumindo: o CAI recebeu uma explicação de Wennerström. Documentos foram redigidos. O dinheiro restante foi reembolsado. Esse retorno de seis milhões foi esperto. Se alguém chega na sua casa insistindo em te dar um saco de milho, você diz que aquele é um bom sujeito, não é mesmo?

— Vamos aos fatos.

— Mas, meu velho, o fato é exatamente esse. O CAI ficou satisfeito com o relatório do Wennerström. O investimento fracassou, mas não havia nada a dizer sobre a maneira como fora conduzido. Examinamos faturas, transferências e um monte de papelada. Tudo estava minuciosamente justificado. Eu acreditei. Meu chefe acreditou. O CAI acreditou e o governo nada teve a acrescentar.

— E onde é que a coisa tropeça?

— A história entra agora na sua fase sensível — disse Lindberg com um tom de voz subitamente fúnebre. — Levando em conta que você é jornalista, o que vou dizer agora é off the record.

— Espere aí. Você não pode começar a me contar falcatruas e depois me dizer que não posso divulgá-las.

— Claro que posso. Tudo que contei até agora é de conhecimento público. Você mesmo pode consultar o relatório, se quiser. Concordo que escreva sobre o resto da história — que ainda não contei —, mas quero ser tratado como fonte anônima.

— Ah, melhor assim, porque, na terminologia habitual, off the record significa que obtive uma informação confidencial, mas que não tenho o direito de escrever sobre ela.

— Pouco importa a terminologia. Escreva o que quiser, contanto que eu seja sua fonte anônima. Estamos de acordo?

— Claro — respondeu Mikael.

Considerando o que houve depois, sua resposta foi naturalmente um erro.

— Bem, esse caso Minos aconteceu há dez anos, logo após a queda do Muro e quando os bolcheviques começaram a virar capitalistas frequentáveis. Eu era um dos que investigavam Wennerström, e sempre tive uma puta impressão de que toda a história estava mal contada.

— E por que não disse nada na época?

— Discuti com o meu chefe. A questão é que não havia nada de sólido. Todos os papéis estavam em ordem. Nada mais fiz que pôr minha assinatura no final do relatório. Mas em seguida, sempre que eu topava com o nome de Wennerström na imprensa, Minos me vinha à lembrança.

— E aí?

— Acontece que alguns anos mais tarde, em meados dos anos 1990, meu banco fez alguns negócios com Wennerström. Na verdade, altos negócios. E a coisa não foi muito bem.

— Ele roubou vocês?

— Não, eu não diria isso. As duas partes lucraram. Tratava-se de... Não sei bem como explicar. É que agora começo a falar do homem que me contratou e isso não me agrada. Mas a impressão que ficou — a impressão geral e duradoura, como dizem — não foi nada positiva. Na mídia, Wennerström é apresentado como um considerável oráculo da economia. É disso que ele vive. É seu capital de confiança.

— Entendo o que quer dizer.

— Eu tinha a impressão de que o sujeito era simplesmente um blefe. Que não tinha nenhum dom especial para as finanças. Ao contrário, achei-o de uma estupidez assombrosa em certas áreas, embora estivesse cercado de alguns jovens tubarões de fato astutos como conselheiros. Eu o detestava cordialmente.

— Continue.

— Há cerca de um ano, fui à Polônia por outro motivo. Nossa delegação jantou com alguns investidores de Lodz e na minha mesa estava o prefeito. Discutimos sobre o quanto era difícil repor a economia da Polônia nos trilhos et cetera, e mencionei o projeto Minos. O prefeito me pareceu totalmente perplexo por um momento — como se nunca tivesse ouvido falar de Minos —, depois lembrou que era um pequeno negócio de merda que dera em nada. Despachou o assunto com um sorrisinho, dizendo que — reproduzo exatamente suas palavras — se isso fosse tudo que os investidores suecos sabiam fazer, nosso país entraria em falência rapidamente. Está me acompanhando?

— Essa declaração revela que o prefeito de Lodz é um homem sensato. Mas continue.

— Essa declaração, como você diz, não parou de me azucrinar. No dia seguinte, eu tinha uma reunião de manhã, mas estava com a tarde livre. Só para remexer na merda, resolvi visitar, numa pequena aldeia perto de Lodz, a fábrica abandonada da Minos, situada dentro de uma granja com latrinas no pátio. A grande fábrica Minos era um depósito arruinado prestes a desabar, um velho hangar com telhas onduladas, montado pelo Exército Vermelho nos anos 1950. Encontrei um guarda no local que falava algumas palavras em alemão, e soube que um de seus primos trabalhara na fábrica. O primo morava quase ali ao lado e fomos até a casa dele. O guarda serviu de intérprete. Está interessado em ouvir o que ele disse?

— É óbvio que sim.

— A Minos começou a funcionar nó outono de 1992. Ela tinha quinze empregados, quando muito, na maior parte mulheres velhas. O salário equivalia a cento e cinquenta coroas por mês. No começo não havia máquinas, os empregados se ocupavam fazendo a limpeza do local. No início de outubro chegaram três máquinas de cartonagem compradas em Portugal. Estavam velhas, deterioradas e totalmente ultrapassadas. No ferro-velho, não valeriam mais que algumas notas de mil. Funcionavam, é verdade, mas pifavam a todo instante. Evidentemente não havia peças de reposição, de modo que a Minos sofria de eternas paradas de produção. Em geral era um empregado que consertava as máquinas, como podia.

— Agora está começando a parecer uma matéria de verdade — reconheceu Mikael. — O que a Minos fabricava realmente?

— Em 1992 e na primeira metade de 1993, as clássicas embalagens de sabão em pó, caixas de ovos e coisas do gênero. Depois passaram a produzir sacos de papel. Mas sempre faltava matéria-prima e o volume de produção era mínimo.

— Nada que correspondesse a um investimento gigantesco.

— Fiz as contas. O custo total do aluguel em dois anos equivale a quinze mil coroas. Os salários podem ter chegado a cento e cinquenta mil no máximo — e estou sendo generoso. Compra de máquinas e meios de transporte... uma caminhonete que entregava as caixas de ovos... vamos pôr uns duzentos e cinquenta mil. Mais taxas de autorização, alguns custos de viagem — aparentemente, só uma pessoa veio da Suécia algumas vezes para visitar a aldeia. Digamos que todo o negócio custou menos de um milhão. Num dia do verão de 1993, o contramestre foi até a fábrica, anunciou que ela seria fechada e, algum tempo depois, um caminhão húngaro recolheu e levou embora a maquinaria. Bye-bye, Minos.

Durante o processo, Mikael recordara várias vezes essa noite de São João.

De modo geral, a conversa transcorrera como uma discussão entre dois colegas, em tom de camaradagem, exatamente como nos tempos de colégio. Adolescentes, eles haviam compartilhado os fardos que se carrega nessa idade. Adultos, eram na verdade estranhos um para o outro, seres totalmente diferentes. Durante a noitada, Mikael refletiu que não conseguia de fato se lembrar do que os havia aproximado no colégio. Lembrava-se de Robert como um rapaz taciturno e reservado, tímido ao extremo com as meninas. Adulto, ele era... bem, um talentoso alpinista do universo bancário. Para Mikael, não havia dúvida que seu colega tinha opiniões diametralmente opostas à sua própria concepção de mundo.

Mikael quase nunca bebia a ponto de se embriagar, mas esse encontro fortuito transformara um cruzeiro malsucedido numa noitada agradável, em que o nível da garrafa de aquavita se aproximava aos poucos do fundo. Justamente porque a conversa teve esse tom ginasiano, de início ele não levou a sério o relato de Robert sobre Wennerström, mas no final seus instintos jornalísticos despertaram. De repente, escutava atentamente a história de Robert, e as objeções naturais apareceram.

— Espere um pouco — disse Mikael. — Wennerström é uma estrela entre os investidores da Bolsa. Se não estou enganado, ele deve ser bilionário...

— O capital do Grupo Wennerström é de cerca de duzentos bilhões. Você deve estar querendo saber por que um bilionário roubaria as pessoas por uns magros cinquenta milhões, quase um dinheiro de bolso.

— O que quero saber antes de mais nada é por que ele arriscaria tudo com uma fraude tão evidente.

— Não sei se se pode dizer que se trata de uma fraude evidente, já que o conselho do CM, os representantes dos bancos, o governo e os auditores do Parlamento aceitaram as contas apresentadas por Wennerström.

— Mesmo assim é uma soma ridícula.

— Certo. Mas veja: o Grupo Wennerström é uma empresa de investimentos que lida com qualquer coisa que possa dar lucro a curto prazo — imóveis, títulos, opções, moedas... Wennerström entrou em contato com o CAI em 1992, no momento em que o mercado estava a ponto de atingir o fundo. Lembra do outono de 1992?

— E acha que posso esquecer? Eu tinha feito empréstimos a taxas variáveis para comprar meu apartamento, quando os juros do Banco da Suécia atingiram quinhentos por cento em outubro. Tive que arcar com juros de dezenove por cento durante um ano.

— Não foi fácil! — disse Robert sorrindo. — Também perdi um bocado naquele ano. E Hans-Erik Wennerström — como todos os outros no mercado — enfrentava os mesmos problemas. A empresa tinha bilhões aplicados em contratos de diferentes tipos, mas muito pouca liquidez. E aí fica impossível conseguir facilmente novos empréstimos. Numa situação dessas, em geral se vendem alguns imóveis para lamber as feridas — só que em 1992 não havia ninguém para comprar imóveis.

Cash-flow problem.

— Exatamente. E Wennerström não era o único a enfrentar esse tipo de problema. Qualquer homem de negócios...

— Não diga homem de negócios. Chame como quiser, mas qualificá-los de homens de negócios é ofender uma categoria profissional séria.

— ... qualquer investidor da Bolsa, então, tinha cash-flow problems... Considere as coisas assim: Wennerström obteve sessenta milhões de coroas. Devolveu seis, e somente depois de três anos. Os gastos com a Minos dificilmente ultrapassaram um milhão. Mas os juros de sessenta milhões durante três anos representam uma boa quantia. Dependendo da maneira como foi investido, o dinheiro do CAI pode ter sido dobrado ou multiplicado por dez. E aí não estamos mais falando de bagatelas. A propósito, um brinde ao nosso encontro!


2. SEXTA-FEIRA 20 DE DEZEMBRO

Dragan Armanskij tinha cinquenta e seis anos e nascera na Croácia. Seu pai era um judeu armênio da Bielo-Rússia. A mãe, uma muçulmana bósnia de ascendência grega. Como ela é que se encarregara de sua educação cultural, na idade adulta ele se viu incluído no grande grupo que a mídia define como muçulmanos. Estranhamente, os serviços de imigração o registraram como sérvio. O passaporte estabelecia que ele era cidadão sueco, e a foto mostrava um rosto quadrado com poderosas mandíbulas, um fundo de barba escuro e cabelos grisalhos nas têmporas. Frequentemente chamavam-no de árabe, embora não houvesse a menor gota de sangue árabe em seu passado. Por outro lado, era um autêntico cruzamento do tipo que os aficionados por biologia racial descreveriam, sem a menor hesitação, como matéria humana inferior.

Seu rosto lembrava vagamente o de um gangster de filme americano. Na realidade, ele não era um traficante de drogas nem um assassino mafioso; era um economista de talento que começara como assistente da Milton Security no início dos anos 1970, e três décadas mais tarde chefiava todas as operações como diretor-executivo.

O interesse por questões de segurança crescera aos poucos até se transformar em fascínio. Era como um jogo de estratégia — identificar situações de ameaça, desenvolver contra-estratégias e sempre se antecipar aos espiões industriais, aos vigaristas e aos fraudadores. Tudo começou quando descobriu a maneira como tinha se dado um engenhoso golpe contra um cliente, com o auxílio de uma contabilidade sutilmente maquiada. Conseguiu apontar, num grupo de umas doze pessoas, quem estava por trás da manipulação, e hoje, decorridos trinta anos, lembra-se de como ficou surpreso ao se dar conta de que o desvio só ocorrera porque a empresa em questão omitira alguns pontos nos processos de segurança. Desde então, passou de simples contador a responsável pelo desenvolvimento da empresa, e mais tarde a especialista em crimes financeiros. Cinco anos depois, já fazia parte da direção e, passados dez anos, tornou-se — não sem alguma relutância — diretor-executivo. Agora a relutância havia muito se acalmara. Durante seus anos de chefia, tinha transformado a Milton Security numa das empresas de segurança mais competentes e mais consultadas da Suécia.

A Milton Security contava com trezentos e oitenta funcionários trabalhando em tempo integral e com mais de trezentos freelancers, remunerados por tarefa. Uma pequena empresa, portanto, se comparada com a Falck ou com a Svensk Bevakningstjänts, o Serviço de Proteção Sueco. Quando Armanskij entrou na empresa, ela ainda se chamava Companhia de Vigilância Geral Johan Fredrik Milton e sua clientela era formada por centros comerciais que tinham necessidade de controladores e seguranças musculosos. Sob sua direção, a empresa passou a se chamar Milton Security, nome mais propício para um ambiente internacional, e investiu em tecnologia de ponta. Houve uma renovação de pessoal; guardas-noturnos em fim de carreira, fetichistas do uniforme e estudantes apenas interessados em bicos foram substituídos por pessoas mais competentes. Armanskij contratou ex-policiais já de uma certa idade como chefes de operações, cientistas políticos especializados em terrorismo internacional, em proteção pessoal e em espionagem industrial e, principalmente, técnicos em telecomunicações e informática. A empresa deixou Solna e a periferia para se instalar em prédios mais prestigiosos do Slussen, no centro de Estocolmo.

No começo dos anos 1990, a Milton Security estava pronta para oferecer um novo tipo de sistema de segurança a um círculo exclusivo de clientes, sobretudo empresas de médio porte com volume de negócios extremamente elevado, e novos-ricos — astros do rock em evidência, investidores da Bolsa e chefes de empresas "pontocom". Grande parte da atividade estava centrada na oferta de proteção pessoal e soluções de segurança para empresas suecas no exterior, sobretudo no Oriente Médio. Essas atividades representavam atualmente cerca de setenta por cento do volume de negócios. Durante o reinado de Armanskij, o volume de negócios passou de quarenta milhões de coroas para cerca de dois bilhões. Vender segurança era um ramo extremamente lucrativo.

A atividade estava distribuída em três áreas principais: consultoria em segurança, que consistia na identificação de perigos possíveis ou imaginados; medidas preventivas, que em geral consistiam na instalação de câmeras de vigilância custosas, alarmes contra roubo ou incêndio, sistemas eletrônicos de bloqueio e equipamentos de informática; e, por fim, a proteção pessoal de indivíduos ou empresas que se julgavam vítimas de ameaças, reais ou imaginárias. Este último mercado mais que quadruplicara na última década, e nos últimos anos surgira um novo tipo de clientela: mulheres ricas querendo proteger-se de um ex-namorado ou marido, ou de molestadores desconhecidos que as teriam visto na televisão e se teriam fixado em sua blusa colante ou no batom de seus lábios. Além disso, a Milton Security trabalhava em parceria com empresas que gozavam da mesma boa reputação que ela em outros países europeus e nos Estados Unidos, encarregando-se da segurança de personalidades internacionais em visita à Suécia, como uma célebre atriz americana em filmagem durante dois meses em Trollhättan, cujo agente achou que seu status exigia que ela estivesse acompanhada de seguranças em seus raríssimos passeios em volta do hotel.

Uma quarta área, bem mais restrita, que ocupava apenas alguns funcionários de tempo em tempo, era constituída pelas chamadas IP, isto é, as investigações pessoais. Armanskij não era um adepto incondicional desse setor de atividade. Além de ser menos lucrativo, era um ramo delicado, que exigia do funcionário mais discernimento e habilidade do que conhecimento em técnica de telecomunicações ou em instalação discreta de aparelhos de vigilância. As investigações pessoais eram aceitáveis quando se tratava de simples informações sobre a solvência de alguém, de verificar o currículo de um futuro colaborador ou a conduta de um empregado suspeito de deixar vazar informações sobre sua empresa ou de se entregar a uma atividade criminosa.

Nesses casos, as IP caíam no âmbito operativo.

Mas a toda hora os clientes vinham lhe apresentar problemas de ordem pessoal que tendiam a trazer consequências indesejadas. Quero saber quem é o vagabundo com quem minha filha está saindo... Acho que minha mulher está me traindo... O rapaz é legal, mas está se envolvendo com más companhias... Estão me chantageando... Na maioria das vezes, Armanskij respondia com um não categórico. Se a filha era maior de idade, ela tinha o direito de sair com o vagabundo que quisesse, e na sua opinião a infidelidade devia ser resolvida entre os cônjuges. Por trás de todas essas demandas, havia armadilhas dissimuladas que podiam potencialmente conduzir a escândalos e causar problemas jurídicos para a Milton Security, razão pela qual Dragan Armanskij exercia um controle rigoroso sobre essas missões, que, além do mais, só geravam rendimentos modestos no volume total de negócios da empresa.

O assunto desta manhã, por azar, era justamente uma investigação pessoal, e Dragan Armanskij arrumou o vinco da calça antes de se inclinar para trás na sua confortável poltrona do escritório. Com ceticismo, contemplou Lisbeth Salander, sua colaboradora trinta e dois anos mais jovem, e pela milésima vez constatou que ninguém parecia mais mal instalada que ela numa prestigiosa empresa de segurança. Seu ceticismo era ao mesmo tempo refletido e irracional. Aos olhos de Armanskij, Lisbeth Salander era indiscutivelmente a researcher mais competente que ele encontrara em todos os seus anos naquele ramo. Durante os quatro anos em que trabalhava para ele, Lisbeth Salander não havia falhado em uma única missão nem produzido um só relatório medíocre.

Ao contrário, o que ela realizava podia ser classificado como fora de série. Armanskij estava convencido de que Lisbeth Salander possuía um dom único. Qualquer um era capaz de obter informações bancárias ou efetuar um controle fiscal, mas Salander tinha imaginação e trazia sempre algo mais do que era esperado. Ele realmente nunca entendeu como ela conseguia; às vezes sua capacidade de obter informações parecia magia pura. Familiarizada ao extremo com os arquivos administrativos, ela sabia desencavar as informações mais obscuras. Tinha sobretudo a capacidade de se infiltrar na pele da pessoa investigada. Se houvesse merda a revelar, atingia o alvo como um míssil programado.

Sem dúvida, ela possuía o dom.

Seus relatórios podiam se revelar uma verdadeira catástrofe para a pessoa detectada por seu radar. Armanskij nunca se esqueceu de uma missão que uma vez lhe dera, uma investigação de rotina sobre um pesquisador da indústria farmacêutica que estava prestes a se associar a uma empresa. O trabalho, que devia durar uma semana, prolongava-se. Depois de quatro semanas de silêncio e de várias chamadas que ela ignorou, Salander apareceu com um relatório especificando que o objeto da pesquisa era a pedofilia. Duas vezes, pelo menos, o sujeito recorrera a uma prostituta de treze anos em Tallinn, e havia indícios de que estava interessado na filha menor de idade da companheira com quem vivia.

Salander tinha qualidades que em alguns momentos levavam Armanskij à beira do desespero. Quando descobriu que o homem era pedófilo, ela não telefonou para avisar Armanskij, não correu até seu escritório para terem uma conversa. Ao contrário: sem indicar por uma palavra sequer que o relatório continha informações explosivas de proporções quase nucleares, colocou-o certa noite sobre a mesa, no momento em que Armanskij se preparava para deixar o escritório e voltar para casa. Ele levou consigo o relatório e só o abriu mais tarde, no momento em que, finalmente descontraído, dividia uma garrafa de vinho com a mulher diante da tevê, na sua casa de campo em Lidingö.

Como sempre, o relatório era de uma minúcia quase científica, com notas de rodapé, citações e indicações exatas das fontes. As primeiras páginas reconstituíam o passado do objeto, sua formação, carreira e situação econômica. Somente na página 24, num parágrafo intermediário, é que Salander soltava a bomba das escapadas a Tallinn, no mesmo tom objetivo utilizado para dizer que ele morava numa casa de campo em Sollentuna e que dirigia um Volvo azul-marinho. Para sustentar suas afirmações, ela remetia a um anexo volumoso, com fotografias da menor de idade em companhia do objeto. A foto fora tirada no corredor de um hotel em Tallinn e a mão dele estava debaixo da blusa da menina. Além disso, Lisbeth Salander conseguira, não se sabe como, encontrar a menina e convencê-la a prestar um depoimento detalhado, gravado em fita cassete.

O relatório desencadeou exatamente o caos que Armanskij queria evitar. Para começar, ele foi obrigado a tomar dois comprimidos que o médico receitara para sua úlcera de estômago. Depois, convocou o pesquisador farmacêutico para uma conversa sinistra e breve. Para terminar — e apesar dos veementes desmentidos deste —, viu-se obrigado a transmitir imediatamente as informações à polícia. O que significava que a Milton Security corria o risco de se envolver num processo de acusações e contra-acusações. Se o dossiê não fosse aceito ou se o homem fosse absolvido, a empresa podia ser processada por difamação. Desastre total!

No entanto, não era a surpreendente falta de emoção em Lisbeth Salander que mais o perturbava. A época exigia investimento na imagem, e a imagem da Milton era a de uma estabilidade conservadora. E Lisbeth Salander correspondia tão pouco a essa imagem quanto uma escavadeira num salão náutico.

Armanskij teve dificuldade de se habituar ao fato de seu melhor cão de caça ser uma jovem pálida, de uma magreza anoréxica, com cabelos quase raspados e piercings no nariz e nas sobrancelhas. Tinha a tatuagem de uma vespa no pescoço e uma faixa tatuada ao redor do bíceps do braço esquerdo. Nas poucas vezes em que Lisbeth usara uma regata, Armanskji constatara que ela também tinha uma tatuagem maior na omoplata, representando um dragão. Originalmente ruiva, tingira os cabelos de preto. Parecia estar sempre chegando de uma semana de farra na companhia de uma banda de heavy-metal.

Ela não sofria de distúrbios alimentares — Armanskij estava convencido disso. Ao contrário, parecia consumir qualquer tipo de comida. Simplesmente nascera magra, com uma ossatura fina que indicava um aspecto frágil e delicado de menina, com mãos pequenas, tornozelos estreitos e seios que mal despontavam sob as roupas. Tinha vinte e quatro anos, mas parecia ter catorze.

A boca era larga, o nariz pequeno e as maçãs do rosto altas, o que lhe dava um vago ar oriental. Tinha movimentos rápidos e aracnídeos, e quando trabalhava no computador seus dedos voavam excitados sobre as teclas. O corpo não se prestava a uma carreira de modelo, mas, com uma maquiagem adequada, um primeiro plano de seu rosto não faria má figura num cartaz publicitário. Embora às vezes passasse nos lábios um repugnante batom preto, e apesar das tatuagens e dos piercings, ela era... digamos... atraente. De um modo totalmente incompreensível.

O fato de Lisbeth Salander trabalhar para Dragan Armanskij era, em si, assombroso. Ela não era o tipo de mulher com quem ele cruzava habitualmente, muito menos a quem pensaria oferecer trabalho.

Ele lhe oferecera um emprego no escritório depois que Holger Palmgren, um advogado semi-aposentado que cuidava dos assuntos pessoais do velho J. F. Milton, os informara que Lisbeth Salander era uma moça perspicaz, apesar do seu comportamento um pouco perturbado. Palmgren pedira que Armanskij desse uma oportunidade à menina, o que ele prometera, a contragosto. Palmgren era desses homens que um não só faz redobrar esforços, de modo que o mais simples era dizer sim imediatamente. Armanskij sabia que Palmgren se encarregava de crianças problemáticas e de outras insignificâncias sociais do gênero, mas que possuía, apesar de tudo, um bom julgamento.

Ele se arrependeu no instante em que viu Lisbeth Salander.

Ela não só parecia perturbada — aos olhos dele, ela era o próprio sinônimo da perturbação — como também abandonara a escola e não tinha nenhum tipo de estudo superior.

Nos primeiros meses, ela trabalhou em tempo integral, ou melhor, quase em tempo integral; só de vez em quando aparecia no trabalho. Preparava o café, cuidava da correspondência e tirava fotocópias. O problema é que não dava a mínima para os horários normais do escritório ou os métodos de trabalho.

Em compensação, tinha uma grande capacidade de irritar os funcionários. Era chamada de a moça de dois neurônios, um para respirar, o outro para se manter de pé. Nunca falava de si mesma. Os colegas que tentavam iniciar uma conversa raramente obtinham uma resposta e logo desistiam. As tentativas de brincar com ela nunca davam certo — ou porque contemplava o gracejador com grandes olhos inexpressivos, ou porque reagia com uma irritação manifesta.

Logo ganhou a reputação de irascível, de mudar drasticamente de humor se enfiasse na cabeça que alguém estava zombando dela, comportamento bastante comum num ambiente de trabalho. Sua atitude não encorajava confidências nem amizade, e ela rapidamente se tornou um fenômeno ocasional que vagava como um gato perdido pelos corredores da Milton. Consideravam-na totalmente irrecuperável.

Depois de um mês de confusões ininterruptas, Armanskij chamou-a à sua sala com a intenção de despedi-la. Ela ouviu passivamente a enumeração de seus erros, sem objeções e sem sequer levantar a sobrancelha. Ele terminou por dizer que ela não tinha a atitude correta, e estava a ponto de lhe sugerir outro emprego, no qual soubessem tirar proveito da sua competência, quando foi interrompido no meio de uma frase. Pela primeira vez, ela não falou apenas com palavras esparsas.

— Olha, se é um criado que o senhor quer, procure alguém na agência de empregos temporários. Quanto a mim, posso descobrir qualquer coisa sobre qualquer pessoa, e se quer me usar apenas para separar a correspondência, então o senhor é um idiota.

Armanskij ainda lembrava o quanto ficou mudo de cólera e de surpresa, enquanto ela continuava, sem prestar atenção nele.

— Há na sua empresa um sujeito que dedicou três semanas a escrever um relatório completamente nulo sobre esse yuppie que estão pensando em recrutar como presidente do conselho administrativo de uma "pontocom", o senhor sabe do que estou falando. Fotocopiei ontem à noite o relatório de merda dele e, se não estou enganada, é esse que está aí na sua mesa.

Armanskij pôs os olhos no relatório e, o que não era de seu feitio, elevou o tom de voz.

— Você não está autorizada a ler relatórios confidenciais.

— Provavelmente não, mas as rotinas de segurança na sua empresa deixam um pouco a desejar. Segundo suas instruções, ele mesmo deve tirar a fotocópia, mas ele me passou o relatório antes de sair para o almoço. Aliás, há algumas semanas o relatório anterior que ele tinha feito ficou esquecido na cantina.

— Como assim, esquecido? — exclamou Armanskij, chocado.

— Não se preocupe. Guardei-o no cofre dele.

— Ele te passou a combinação do seu cofre pessoal? — perguntou Armanskij, sufocado.

— Não exatamente. Mas anotou num papel que deixa sobre sua mesa de trabalho, com a senha do computador. Mas o ponto aonde quero chegar é que o relatório que ele fez, esse seu detetive particular de araque, não tem o menor valor. Ele não descobriu que o cara tem dívidas monumentais, que cheira coca mais que um aspirador, e que sua companheira precisou se refugiar no SOS-Mulheres porque ele a espancou.

Depois, silêncio. Armanskij não disse nada durante alguns minutos, distraído em folhear o relatório. Ele era apresentado com competência, escrito numa prosa compreensível e carregada de referências, fontes e declarações de amigos e conhecidos do objeto. Por fim, levantou os olhos e pronunciou duas palavras:

— Prove isso.

— Quanto tempo me dá?

— Três dias. Se não conseguir provar suas afirmações até sexta-feira ao meio-dia, está despedida.

Três dias depois, ela entregou um relatório com referências de fontes igualmente explícitas, que transformavam o agradável jovem yuppie numa pessoa não confiável. Armanskij leu o relatório várias vezes durante o fim de semana e passou parte da segunda-feira numa contraverificação pouco entusiasmada de algumas daquelas afirmações. Antes mesmo de começar o controle, sabia que as informações se revelariam exatas.

Armanskij estava perplexo e irritado consigo mesmo por tê-la manifestamente julgado mal. Achou-a estúpida, talvez até um pouco retardada. Não esperava que uma menina que falhara nos estudos e que não tinha sequer notas no final do colégio pudesse escrever um relatório não somente correto do ponto de vista linguístico mas que apresentava também observações e informações que o faziam se perguntar como ela as tinha obtido.

Ele sabia que ninguém na Milton Security poderia conseguir um trecho do diário confidencial de um médico do SOS-Mulheres. Quando lhe perguntou como procedera, só obteve uma resposta evasiva. Ela disse que não pretendia queimar suas fontes. Aos poucos, ficou claro para Armanskij que Lisbeth Salander também não tinha a intenção de discutir seus métodos de trabalho, nem com ele nem com qualquer pessoa. Isso o inquietou, mas não o bastante para resistir à tentação de pô-la à prova.

Refletiu sobre esse ponto durante alguns dias.

Lembrou-se das palavras de Holger Palmgren quando a enviou. Todo mundo deve ter sua chance. Pensou em sua própria educação muçulmana, que lhe ensinara que o dever para com Deus era ajudar os excluídos. Embora ele não acreditasse em Deus e nunca tivesse posto os pés numa mesquita desde a adolescência, tinha a impressão de que Lisbeth Salander era alguém que precisava de ajuda e de um apoio sólido. Na verdade, ele não realizara muitas ações desse gênero em sua vida.

* * *

Em vez de despedi-la, convocou Lisbeth Salander para uma conversa particular, na qual tentou entender qual era realmente o problema daquela moça complicada. Sua convicção de que ela sofria de um distúrbio sério se reforçou, mas ele descobriu que por trás de seu perfil problemático escondia-se uma pessoa inteligente. Achava-a frágil e complicada, mas também começava — não sem espanto — a gostar dela.

Nos meses seguintes, Armanskij pôs Lisbeth Salander debaixo de suas asas. Se fosse sincero consigo mesmo, diria que se encarregava dela como de um pequeno projeto social. Dava-lhe tarefas de pesquisa simples e procurava instruí-la sobre a melhor maneira de proceder. Ela escutava com paciência, ia embora e realizava a missão totalmente à sua maneira. Ele pediu ao responsável pelos serviços técnicos da Milton para dar-lhe um curso básico de informática; Salander permaneceu sem protestar em sua cadeira durante toda uma tarde, antes que o responsável, um pouco deslumbrado, viesse relatar que ela parecia ter mais conhecimentos de informática que a maioria dos funcionários da empresa.

Armanskij rapidamente percebeu que, apesar das conversas sobre plano de carreira, ofertas de desenvolvimento interno e outros meios de persuasão, Lisbeth Salander não tinha a intenção de se adaptar às rotinas da Milton. Isso o colocou diante de um dilema complicado.

Ela continuava sendo um elemento de irritação para os colegas. Armanskij tinha consciência de que não aceitaria tais horários aleatórios de outro colaborador, e que numa situação normal lhe teria dado um ultimato, exigindo uma mudança. Imaginava também que, se desse um ultimato a Lisbeth Salander ou ameaçasse despedi-la, ela apenas encolheria os ombros. Portanto, teria ou que se separar dela, ou aceitar que ela não funcionava como as pessoas normais.

O maior problema para Armanskij, porém, é que ele não conseguia definir seus sentimentos em relação à moça. Ela era como uma comichão desconfortável, repulsiva e atraente ao mesmo tempo. Não se tratava de atração sexual — pelo menos não de algum tipo que Armanskij quisesse reconhecer.

As mulheres que ele cobiçava eram geralmente louras e opulentas, com lábios carnudos que atiçavam sua imaginação. Além do mais, estava casado havia vinte anos com uma finlandesa chamada Ritva, que, mesmo tendo passado dos cinquenta, ainda satisfazia essas exigências. Ele nunca fora infiel — digamos que vivera só alguns raros momentos que a mulher poderia interpretar mal se ficasse sabendo —, tinha um casamento feliz e duas filhas da idade de Salander. Seja como for, não se interessava por meninas sem peito que de longe podiam ser confundidas com rapazes magricelas. Não era seu estilo.

Não obstante, começou a pegar-se em flagrante delito tendo sonhos acordados com Lisbeth Salander, e admitiu que não era totalmente indiferente à presença dela. Mas a atração, dizia Armanskij a si mesmo, vinha do fato de Salander ser para ele uma criatura exótica. Ele poderia ter se enamorado também do quadro de uma ninfa grega. Salander representava uma vida irreal que o fascinava mas que ele não podia compartilhar — e que de todo modo ela o impedia de compartilhar.

Um dia, Armanskij estava no terraço de um café na praça Stortorget, na cidade velha, quando Lisbeth Salander chegou e instalou-se numa mesa na outra ponta do terraço. Estava acompanhada de três moças e de um rapaz, todos vestidos de forma semelhante. Armanskij a observou com curiosidade. Parecia tão reservada como no escritório, mesmo assim sorriu quando uma das moças, de cabelo roxo, lhe contou alguma coisa.

Armanskij perguntou-se como Salander reagiria se ele chegasse ao escritório com cabelos verdes, um jeans rasgado e um blusão de couro com rebites e pingentes. Seria aceito como um dos seus? Talvez — ela parecia aceitar tudo ao redor com um ar de tanto faz, não estou nem aí —, mas o mais provável é que zombasse dele.

Ela estava de costas e não olhou uma única vez para o lado dele, parecendo ignorar que ele estivesse ali. Mas Armanskij sentiu-se estranhamente perturbado pela presença dela quando, passado um momento, levantou-se para sair de mansinho e ela virou a cabeça, o mirou bem nos olhos, como se soubesse o tempo todo que ele estava ali e o tivesse sob vigilância. Seu olhar o atingiu tão de repente que ele o sentiu como um ataque; fingiu não vê-la e deixou o terraço com passos rápidos. Ela não o chamou, mas o seguiu com os olhos, e esse olhar não cessou de arder em suas costas até ele dobrar a esquina.

Ela raramente ria. Armanskij, no entanto, tinha a impressão de haver notado um abrandamento nela. Seu humor era seco e eventualmente acompanhado de um leve sorriso irônico.

Às vezes, Armanskij sentia-se tão provocado pela falta de resposta emocional de Lisbeth Salander que tinha vontade de sacudi-la e abrir uma passagem nessa carapaça para conquistar sua amizade ou pelo menos seu respeito.

Numa única ocasião, quando fazia nove meses que ela trabalhava para ele, tentou discutir esses sentimentos com ela. Foi numa noite de dezembro, na festa de Natal da Milton Security, e dessa vez ele bebera bastante. Nada de inconveniente se passou — ele apenas tentou dizer que gostava muito dela. Sobretudo, quis explicar que tinha um instinto de proteção por ela e que, se um dia ela precisasse de alguma coisa, podia procurá-lo com toda a confiança. Tentou mesmo abraçá-la — amigavelmente, é claro.

Ela se desvencilhou desse abraço desajeitado e foi embora da festa. Não apareceu mais no escritório nem atendia o celular. Dragan Armanskij viveu sua ausência como uma tortura — quase como uma punição pessoal. Não tinha ninguém com quem dividir seus sentimentos, e pela primeira vez compreendeu, com uma lucidez aterradora, o poder devastador que Lisbeth Salander tinha sobre ele.

Três semanas depois, numa noite de janeiro, quando Armanskij fazia hora extra para verificar o balancete do ano, Salander voltou. Entrou na sala suavemente como um fantasma e de súbito ele a percebeu junto à porta, observando-o dali da penumbra. Não tinha a menor idéia de quanto tempo fazia que ela estava ali.

— Quer café? — ela perguntou, estendendo-lhe um copinho da máquina de café expresso da cantina.

Sem dizer uma palavra, ele pegou o copinho e sentiu ao mesmo tempo alívio e temor quando ela fechou a porta com a ponta do pé e instalou-se na poltrona dos visitantes, olhando-o bem nos olhos. A seguir, fez a pergunta tabu de tal modo que ele nem pôde despachá-la com um gracejo nem contorná-la.

— Dragan, você sente tesão por mim?

Armanskij ficou como que paralisado, refletindo como um louco sobre que resposta dar. Seu primeiro impulso foi negar, com ar ofendido. Depois, viu o olhar dela e entendeu que, pela primeira vez, ela perguntava alguma coisa. Uma pergunta séria e, se ele tentasse se safar com um gracejo, ela tomaria aquilo como um insulto pessoal. Ela queria falar com ele, e ele se perguntou há quanto tempo ela estava reunindo coragem para fazer essa pergunta. Depositando a caneta bem devagar sobre a mesa, ele se reclinou na poltrona e, por fim, conseguiu relaxar.

— O que a faz supor isso? — perguntou.

— A maneira como me olha e a maneira como não me olha. E às vezes em que esteve a ponto de estender a mão para me tocar e se conteve.

Ele sorriu de repente.

— Eu tinha a impressão de que você morderia a minha mão se eu tocasse um dedo em você.

Ela não sorriu. Esperava.

— Lisbeth, sou seu chefe e, mesmo que estivesse atraído por você, nunca faria um gesto.

Ela continuava esperando.

— Entre nós, sim, houve momentos em que me senti atraído. Não consigo explicar, mas aconteceu. Por uma razão que eu mesmo não entendo, gosto imensamente de você. Mas não é nada físico.

— Melhor assim. Porque nunca haverá nada entre nós.

Armanskij soltou uma risada. Mesmo dando a informação mais negativa que um homem podia receber, Salander acabava de lhe falar, de certa maneira, com intimidade. Ele buscou as palavras apropriadas.

— Lisbeth, entendo que não esteja interessada em um velho com mais de cinquenta anos.

— Não estou interessada num velho com mais de cinquenta anos que é meu chefe. — Ela ergueu a mão. — Espere, deixe-me falar. Às vezes você é tacanho e insuportável com esse seu jeito de burocrata, mas o fato é que também é um homem atraente e... eu também posso me sentir... Só que você é meu chefe, eu conheci sua mulher, quero conservar esse emprego na firma, e a pior coisa que eu poderia fazer seria ter um caso com você.

Amanskij ficou em silêncio, ele mal ousava respirar.

— Estou perfeitamente consciente do que fez por mim, e não sou uma ingrata. Aprecio de verdade que tenha passado por cima dos preconceitos e tenha me dado uma chance aqui. Mas não o quero como amante e você não é meu pai.

Ela se calou. Depois de um momento, Armanskij suspirou, desamparado.

— O que quer de mim então?

— Quero continuar trabalhando para você. Se acha isso conveniente. Ele assentiu com a cabeça e em seguida respondeu com a maior franqueza possível.

— Realmente, tenho muita vontade que trabalhe para mim. Mas também quero que sinta alguma forma de amizade e de confiança por mim.

Ela concordou com a cabeça.

— Você não é uma pessoa que incite à amizade — ele disparou de repente. Ela se contraiu um pouco, porém ele prosseguiu, inexorável. — Entendi que não quer que se envolvam com a sua vida e tentarei não fazer isso. Mas tudo bem se continuo a gostar de você?

Salander refletiu por um bom tempo. Sua resposta, então, foi se levantar, contornar a mesa e abraçá-lo. Ele ficou paralisado. Somente quando ela o soltou, ele pegou sua mão.

— Podemos ser amigos? — ele perguntou. Ela concordou com a cabeça mais uma vez.

Foi a única ocasião em que ela lhe mostrara ternura e a única em que o tocara. Um momento de que Armanskij se lembrava sempre com emoção.

Quatro anos haviam transcorrido agora, e ela quase nada revelara a Armanskij sobre sua vida pessoal ou sobre seu passado. Uma vez, ele direcionou a ela sua própria competência na arte da investigação. Teve também uma longa conversa com Holger Palmgren — que não pareceu surpreso de ouvi-lo —, e o que acabou por saber em nada contribuiu para aumentar sua confiança. Nunca discutiu esse assunto com ela, nunca fez a menor alusão nem lhe deu a entender que vasculhara sua vida privada. Em vez disso, ocultou sua inquietação e reforçou a vigilância.

Antes que essa memorável noitada terminasse, Salander e Armanskij chegaram a um acordo. Ela passaria a trabalhar para ele como freelancer. Receberia um pequeno pagamento mensal fixo, quer realizasse ou não missões; os verdadeiros rendimentos viriam das faturas que apresentasse em cada missão. Trabalharia como bem entendesse; em contrapartida, ela se comprometeria a nunca fazer nada que prejudicasse ou criasse problemas para a Milton Security.

De acordo com Armanskji, era uma solução vantajosa para a empresa, para ele mesmo e para Salander. Ele restringiu o penoso serviço das IP a um único funcionário fixo, um colaborador muito jovem que desempenhava corretamente as tarefas rotineiras e cuidava das informações sobre solvência. Todas as missões complicadas e duvidosas, ele reservou a Salander e a outros freelancers que — se as coisas saíssem mal — eram seus próprios patrões e pelos quais a Milton Security não precisava responder. Como ele lhe passava missões com frequência, ela obtinha rendimentos confortáveis. Rendimentos que até poderiam ser bem mais elevados, porém ela trabalhava somente quando tinha vontade, segundo o princípio de que, se Armanskij não gostasse, bastava dispensá-la.

Armanskij a aceitou tal como era, com a condição de que não devia se encontrar com os clientes. Quase nunca havia exceções a essa regra, mas o caso que hoje se apresentava era, infelizmente, uma delas.

Naquele dia, Lisbeth Salander vestia uma camiseta preta com uma imagem do E. T. exibindo dentes ferozes e as palavras I am also an alien. Usava saia preta com a bainha desfeita, uma jaqueta curta de couro também preta e ralada, cinto com rebites, botas Doc. Martens e meias com listas transversais vermelhas e verdes, subindo até os joelhos. A maquiagem indicava que talvez fosse daltônica. Ou seja, apresentava-se com o maior esmero.

Armanskij suspirou e dirigiu o olhar à terceira pessoa presente na sala — um visitante de aspecto antiquado e óculos com lentes espessas. O advogado Dirch Frode tinha sessenta e oito anos e insistira para se encontrar com o autor do relatório, a fim de lhe fazer algumas perguntas. Armanskij tentou evitar o encontro recorrendo a falsos expedientes, dizendo que Salander estava gripada, que estava viajando e às voltas com outros trabalhos. Frode respondera despreocupadamente que não tinha pressa — o caso não era urgente e ele podia esperar mais alguns dias sem problema. Armanskij praguejou em voz baixa e não achou outra saída senão reuni-los. Agora Frode observava Lisbeth Salander com evidente fascínio. Salander respondeu com um olhar furioso, sua expressão indicando claramente que não nutria a menor simpatia por ele.

Armanskij suspirou mais uma vez e olhou para o dossiê que ela depositara em cima da mesa, com o título Carl Mikael Blomkvist. O nome era acompanhado de um número de registro, meticulosamente escrito na capa. Ele pronunciou o nome em voz alta. Frode saiu de seu estado de enfeitiçamento e voltou os olhos para Armanskij.

— Bem, o que pode me dizer sobre Mikael Blomkvist? — perguntou.

— Esta é a senhorita Salander, que redigiu o relatório. — Armanskji hesitou um segundo e prosseguiu com um sorriso destinado a transmitir confiança a Frode, mas que sobretudo pedia desculpas desamparadas. — Não se surpreenda com a juventude dela. É sem dúvida nossa melhor investigadora.

— Estou certo disso — respondeu Frode com uma voz seca que indicava o contrário. — Conte-me o que ela descobriu.

Evidentemente o advogado não fazia a menor idéia de que comportamento adotar com Lisbeth Salander e procurava pisar um terreno mais seguro dirigindo a pergunta a Armanskij, como se ela não estivesse na sala. Salander aproveitou a ocasião para fazer uma grande bola com seu chiclete. Antes que Armanskij tivesse tempo de responder, ela falou ao chefe como se Frode não existisse.

— Pode ver com o seu cliente se ele deseja a versão longa ou a resumida?

Na mesma hora Frode percebeu a gafe que cometera. Seguiu-se um breve e penoso silêncio, então ele se virou para Lisbeth Salander e tentou corrigir o erro adotando um tom gentilmente paternal.

— Eu ficaria muito grato, senhorita, se pudesse me fazer um resumo do que descobriu.

Salander parecia uma fera cruel das savanas espreitando Dirch Frode para devorá-lo. Havia em seu olhar um ódio tão intenso e inesperado que Frode sentiu um arrepio nas costas. Rapidamente o rosto dela suavizou-se. Frode se perguntou se o que vira naquele olhar fora imaginação. Quando ela começou a falar, seu tom de voz era o de um funcionário de Estado.

— Antes de mais nada, permita-me dizer que essa missão não foi especialmente complicada, a não ser pelo fato de que a descrição das tarefas a cumprir era bastante vaga. O senhor queria que bisbilhotássemos por toda parte para descobrir tudo a respeito dele, mas esqueceu de indicar se buscava algo em particular. Razão pela qual chegamos a uma espécie de amostra de sua vida. O relatório contém cento e noventa e três páginas, mas cento e vinte são, na verdade, cópias de artigos que ele escreveu ou recortes de imprensa nos quais aparece. Blomkvist é uma figura pública com poucos segredos e não tem muito a esconder.

— Mas então ele tem segredos? — perguntou Frode.

— Todo mundo tem segredos — ela respondeu, imperturbável. — Trata-se apenas de descobrir quais.

— Sou todo ouvidos.

— Mikael Blomkvist nasceu em 18 de janeiro de 1960, portanto logo completará quarenta e três anos. Nasceu em Borlänge, mas nunca morou lá. Seus pais, Kurt e Anita Blomkvist, tinham cerca de trinta e cinco anos quando ele nasceu; atualmente os dois são falecidos. O pai era instalador de máquinas e devia se deslocar bastante; a mãe nunca foi senão dona de casa, pelo que entendi. A família mudou-se para Estocolmo quando Mikael começou a escola. Ele tem uma irmã três anos mais nova, ela se chama Annika e é advogada. Tem também tios e primos... E esse café, vem ou não vem?

A última frase era dirigida a Armanskij, que sem demora abriu a garrafa térmica que ele pedira para a reunião. Com um gesto, convidou Salander a continuar.

— Em 1966, portanto, a família se mudou para Estocolmo. Moravam em Lilla Essingen. Blomkvist cursou a escola primária e secundária em Bromma, depois fez o colegial em Kungsholmen. Suas notas de final de curso foram excelentes, encontrará cópias delas no dossiê. Quando estava no colégio, fazia música, tocava baixo num grupo de rock, os Bootstrap, que teve até um compacto tocado no rádio, no verão de 1979. Depois do colégio, trabalhou como vigia no metrô, juntou dinheiro para viajar ao exterior. Esteve fora um ano, passeando principalmente pela Ásia — Índia, Tailândia e uma breve estadia na Austrália. Começou a estudar jornalismo em Estocolmo quando tinha vinte e um anos, mas interrompeu o curso ao cabo de um ano para prestar o serviço militar no regimento de caçadores, em Kiruna. Uma espécie de unidade de machos, da qual saiu com notas 10-9-9, o que é um bom resultado. Depois do serviço militar, formou-se jornalista e começou a trabalhar. Até onde devo ir com os detalhes?

— Conte tudo que lhe pareça essencial.

— Certo. Ele é sobretudo o tipo primeiro da classe. Até hoje tem sido um jornalista talentoso. Nos anos 1980, fez uma série de serviços temporários, primeiro na imprensa do interior, depois em Estocolmo. A lista está no dossiê.

Mas se tornou realmente conhecido com a história dos Irmãos Metralha — o bando de assaltantes que ele ajudou a prender.

— Super-Blomkvist.

— Ele detesta esse apelido, o que é compreensível. Eu deixaria alguém de olho roxo se me chamassem de Píppi Meialonga numa manchete de jornal.

Ela lançou um olhar sombrio para Armanskij, que engoliu em seco. Mais de uma vez, ele pensara em Lisbeth Salander justamente como Píppi Meialonga, e felicitou-se por nunca haver soltado esse gracejo. Fez sinal para que ela prosseguisse, agitando o indicador no ar.

— Uma fonte diz que até então ele queria ser repórter criminal, chegou mesmo a fazer um trabalho temporário nessa seção num jornal vespertino, mas o que o tornou famoso foi sua atuação como investigador político e econômico. Trabalhou principalmente como freelancer e teve um único emprego fixo num jornal vespertino, no final dos anos 1980. Pediu demissão em 1990, quando participou da criação da revista mensal Millennium. Ela começou como zebra, sem um editor de peso que a bancasse. A tiragem aumentou, hoje está em torno de vinte e um mil exemplares. A redação está instalada na Götgatan, a poucas ruas daqui.

— Uma publicação de esquerda.

— Tudo depende de como se define esquerda. A Millennium é tida como uma revista de crítica à sociedade, mas algo me diz que os anarquistas a vêem como uma publicação pequeno-burguesa do mesmo filão da Arena ou da Ordfront, enquanto a União dos Estudantes Moderados provavelmente pensa que a redação é composta de bolchevistas. Nada indica que Blomkvist tenha exercido uma atividade política, mesmo durante a onda esquerdista do seu tempo de colégio. Quando estava na faculdade de jornalismo, viveu com uma militante sindicalista que hoje ocupa uma cadeira no Parlamento pelo partido da esquerda. O rótulo de esquerdista se deve sobretudo ao fato de ele ter se especializado, como jornalista econômico, em reportagens que revelaram a corrupção e negócios suspeitos no mundo empresarial. Ele fez algumas descrições devastadoras de empresários e políticos, sem dúvida nenhuma bem merecidas, e está na origem de um bom número de demissões e processos jurídicos. O mais conhecido é o caso Arboga, que resultou na demissão forçada de um político conservador e na sentença de um ano de prisão dada a um ex-tesoureiro municipal, por desvio de verba. Denunciar delitos dificilmente pode ser considerado uma atitude de esquerda.

— Entendo o que quer dizer. E o que mais?

— Ele escreveu dois livros. Um sobre o caso Arboga e outro sobre jornalismo econômico, intitulado Os templários e publicado há três anos. Não li, mas, a julgar pelas críticas, o livro é bastante controvertido e suscitou muitos debates na mídia.

— E quanto a dinheiro?

— Ele não é rico, mas não tem do que se queixar. Suas declarações de renda estão anexadas ao dossiê. Tem pouco mais de duzentas e cinquenta mil coroas no banco, aplicadas num plano de aposentadoria e num fundo de poupança. Dispõe de cerca de cem mil coroas na conta corrente, que usa para as despesas normais, viagens et cetera. Possui um apartamento que comprou financiado e já terminou de pagar. Sessenta e cinco metros quadrados na Bellmansgatan. Não fez empréstimos nem dívidas.

Salander levantou um dedo.

— Ele possui ainda um outro bem: uma propriedade rural em Sandhamn. É uma cabana de vinte e cinco metros quadrados, que funciona como casa de férias, situada à beira-mar, na parte mais atraente da aldeia. Ao que parece foi comprada por um dos tios nos anos 1940, quando os simples mortais ainda podiam se oferecer esse tipo de coisa, e foi por causa da herança que a cabana passou a pertencer a Blomkvist. Ele e a irmã dividiram os bens, ela ficou com o apartamento dos pais em Lilla Essingen e Mikael Blomkvist com a cabana. Não sei quanto ela vale hoje, com certeza alguns milhões, mas ele não parece querer vendê-la e vai para lá com bastante frequência.

— Seus rendimentos?

— É co-proprietário da Millennium, mas retira apenas doze mil coroas de salário mensal. Compensa com atividades de freelancer; no final, a soma é variável. Atingiu um pico há três anos, quando recebeu muitas solicitações da mídia, o que lhe rendeu cerca de quatrocentas e cinquenta mil coroas no ano. No ano passado, seus honorários não foram além de cento e vinte mil.

— Ele vai ter que pagar cento e cinquenta mil por perdas e danos, mais as custas do advogado e coisas desse tipo — constatou Frode. — Pode-se dizer que a soma será elevada, sem esquecer que ele não terá rendimentos enquanto estiver cumprindo a pena de prisão.

— O que significa que sairá sem nada no bolso — observou Salander.

— Ele é honesto? — perguntou Dirch Frode.

— E o seu capital de confiança, por assim dizer. Ele insiste em se apresentar como um sólido guardião da moral no mundo das empresas, e seguidamente é convidado a ir à televisão para comentar diversos casos.

— Certamente não restará muita coisa desse capital após o julgamento de hoje — disse Frode com ar pensativo.

— Não estou muito por dentro do que se exige de um jornalista, mas depois dessa bofetada certamente vai demorar muito até o Super-Blomkvist receber o Grande Prêmio de Jornalismo. Ele se queimou magistralmente — constatou Salander com lucidez. — Mas se me permite uma reflexão pessoal...

Armanskij abriu bem os olhos. Nos anos em que Lisbeth Salander vinha trabalhando para ele, nunca emitira a menor reflexão pessoal numa investigação sobre um indivíduo. Para ela, contavam apenas os fatos brutos, mas hoje abria uma exceção.

— Não competia à minha missão examinar o caso Wennerström, mas acompanhei o processo e confesso que fiquei perplexa. Todo o caso parece muito mal contado, e é totalmente... totalmente improvável que Mikael Blomkvist publicasse algo a tal ponto sem fundamento.

Salander coçou o queixo. Frode parecia aguardar com paciência. Armanskij se perguntou se estava enganado ou se Salander não sabia realmente como prosseguir. A Salander que ele conhecia nunca se mostrava indecisa nem hesitante. Por fim ela se decidiu.

— Isto ficará fora do relatório... realmente não mergulhei no caso Wennerström, mas acho que o Super-Blomkvist... perdão, Mikael Blomkvist, caiu numa armadilha. Acho que há nessa história algo bem diferente daquilo que a sentença indica.

Dessa vez, foi Dirch Frode que se ergueu de repente na poltrona. O advogado examinou Salander com atenção e Armanskij notou que, pela primeira vez desde o início da exposição, ele mostrava um interesse que ia além da simples polidez. De início, Armanskij achou que o caso Wennerström representava aparentemente algo bem preciso para Frode. Mas logo se corrigiu. Na verdade, o caso Wennerström não interessa a Frode foi somente quando Salander insinuou que Blomkvist se deixou pegar que Frode reagiu.

— O que está querendo dizer exatamente?

— Simples especulação, mas estou convencida de que alguém o enganou.

— E o que a faz supor isso?

— Tudo no passado de Blomkvist indica que ele é um jornalista muito prudente. Todas as revelações passíveis de controvérsia que ele fez sempre foram muito bem documentadas. Assisti a uma sessão do julgamento. Ele não forneceu argumentos contraditórios; pareceu ter abandonado a luta, o que não combina com seu caráter. A acreditar no tribunal, ele fabricou uma história sobre Wennerström sem nenhuma prova e a publicou como se fosse um jornalista camicase, e esse não é de modo algum o estilo de Blomkvist.

— O que aconteceu, na sua opinião?

— Posso apenas especular. Blomkvist acreditou na sua história, mas algo aconteceu no caminho e a informação se revelou falsa. Isso significa que a fonte era alguém em quem ele confiava, ou então que alguém deliberadamente lhe passou informações erradas, o que me parece complicado e inverossímil. A alternativa pode ser ele ter sido exposto a uma ameaça tão grave que preferiu jogar a toalha e passar por um imbecil incompetente em vez de entrar na luta. Mas, como eu disse, são só especulações.

Salander se preparava para prosseguir seu relato, quando Dirch Frode a interrompeu com um gesto. Ficou um momento silencioso tamborilando com a ponta dos dedos no braço da cadeira, antes de se voltar novamente para ela com alguma hesitação.

— Se quiséssemos contratá-la para desvendar o caso Wennerström... quais seriam suas chances de descobrir alguma coisa?

— Não sei dizer. Talvez não haja nada para descobrir.

— Mas aceitaria tentar? Ela encolheu os ombros.

— Não cabe a mim decidir. Trabalho para Dragan Armanskij e é ele quem decide que tarefas deseja me atribuir. Depois, depende do tipo de informação que o senhor quer descobrir.

— Deixe-me pôr as coisas assim... Presumo que esta conversa seja confidencial, não? — Armanskij assentiu com a cabeça. — Nada sei sobre esse caso, mas sei, de forma incontestável, que Wennerström foi desonesto em outros contextos. Esse caso teve um impacto enorme na vida de Mikael Blomkvist e eu gostaria de saber se suas especulações poderiam conduzir a algum lugar.

A conversa tomara um rumo inesperado e Armanskij imediatamente ficou alerta. O que Dirch Frode pedia era que a Milton Security aceitasse investigar um caso judiciário já julgado, no qual talvez tivesse ocorrido alguma forma de ameaça ilícita contra Mikael Blomkvist e no qual a Milton potencialmente se arriscava a entrar em colisão com o exército de advogados de Wennerström. Armanskij não estava nem um pouco tentado pela idéia de lançar Lisbeth Salander em tal situação, como um míssil descontrolado.

Não se tratava apenas de preocupação com a tarefa. Salander já dissera claramente que não queria ver Armanskij desempenhando o papel de pai adotivo angustiado, e depois do acordo que fizeram ele evitava comportar-se como tal, mas interiormente nunca deixaria de se preocupar com ela. Às vezes, surpreendia-se comparando Salander com as próprias filhas. Considerava-se um bom pai que não interferia inutilmente na vida das filhas, mas sabia que jamais aceitaria que elas se comportassem ou vivessem como Lisbeth Salander.

No fundo do seu coração croata — ou bósnio, talvez, ou armênio —, ele nunca conseguira se libertar de uma convicção de que a vida de Salander era uma corrida rumo ao desastre. A seus olhos, ela se oferecia como vítima ideal para alguém com más intenções, e ele temia ser despertado uma manhã com a notícia de que alguém lhe fizera mal.

— O custo de uma investigação como essa pode ser muito alto — disse Armanskij com prudência, para sondar a seriedade da proposta de Frode.

— Precisamos apenas fixar um teto — replicou Frode, perspicaz. — Não estou pedindo o impossível, mas é evidente que sua colaboradora, como você afirmou, é competente.

— Salander? — disse Armanskij, erguendo uma sobrancelha em direção a ela.

— Não tenho nenhum outro trabalho em andamento.

— Certo. Mas eu gostaria que chegássemos a um acordo sobre algumas formalidades. Vamos ouvir o resto do relatório.

— Não há muita coisa mais, exceto detalhes sobre a vida privada dele. Em 1986 casou-se com uma tal Monica Abrahamsson, e no mesmo ano tiveram uma filha chamada Pernilla, hoje com dezesseis anos. O casamento não durou muito, em 1991 eles se divorciaram. Abrahamsson voltou a se casar, mas parece que os dois continuam tendo boas relações. A filha mora com a mãe e não vê Blomkvist com muita frequência.

* * *

Frode pediu uma segunda xícara de café e voltou-se outra vez para Salander.

— Há pouco você deu a entender que todo mundo tem segredos. Descobriu algum?

— Eu quis dizer que as pessoas têm coisas que consideram privadas e que não costumam expor. Blomkvist parece apreciar o convívio com as mulheres. Teve várias histórias de amor e muitas ligações ocasionais. Em suma, tem uma vida sexual intensa. No entanto, existe uma pessoa em sua vida já há muitos anos e o relacionamento deles é bastante incomum.

— Em que sentido?

— Ele tem um relacionamento sexual com Erika Berger, diretora da Millennium; filha da alta sociedade, de mãe sueca e pai belga radicado na Suécia. Berger e Blomkvist se conheceram na faculdade de jornalismo e desde então têm uma ligação mais ou menos constante.

— Não parece tão incomum — observou Frode.

— Certamente não. Mas Erika Berger é casada com o artista plástico Lars Beckman, um sujeito ligeiramente famoso, que espalhou uma porção de instalações horrorosas em lugares públicos.

— Ou seja, ela é infiel.

— Não. Beckman sabe do relacionamento deles. É um ménage à trois, aparentemente aceito pelas partes. Às vezes ela dorme na casa de Blomkvist, às vezes na casa do marido. Não sei bem como a coisa funciona, mas sem dúvida foi o que fez acabar o casamento de Blomkvist e de Monica Abrahamsson.


3. SEXTA-FEIRA 20 DE DEZEMBRO — SÁBADO 21 DE DEZEMBRO


Erika Berger levantou as sobrancelhas quando um Mikael Blomkvist visivelmente morto de frio chegou à redação já no final da tarde. O escritório da Millennium ficava na Götgatan, na parte alta da rua, um andar acima da sede do Greenpeace. O aluguel, na verdade, era um pouco superior aos recursos da revista, mas Erika, Mikael e Christer julgavam que deviam conservar o local.

Ela olhou seu relógio: cinco e dez. Já havia algum tempo que escurecera em Estocolmo. Achando que ele voltaria mais cedo, ela o esperara para o almoço.

— Desculpe o atraso — ele falou, antes que ela tivesse tempo de dizer alguma coisa. — Eu queria ficar sozinho, não estava com vontade de falar. Saí andando por aí para pensar.

— Ouvi a sentença pelo rádio. Uma moça da TV4 telefonou, queria uma declaração minha.

— E o que você disse?

— Mais ou menos o que já tínhamos decidido, que vamos estudar o veredicto detalhadamente antes de nos pronunciarmos. Ou seja, não disse nada. E a minha opinião continua a mesma: acho que não é uma boa estratégia nos colocarmos numa posição de fraqueza e perdermos o apoio da mídia. A tevê deve abordar o assunto hoje à noite.

Abatido, Blomkvist assentiu com a cabeça.

— Como está se sentindo?

Ele encolheu os ombros e deixou-se cair em sua poltrona preferida em frente à janela da sala de Erika. A peça era escassamente mobiliada: uma mesa de trabalho, uma estante funcional e móveis de escritório baratos. Foram comprados na Ikea, com exceção de duas poltronas confortáveis e extravagantes, e de uma pequena mesa baixa — uma concessão à minha educação, como ela costumava gracejar. Quando queria fazer uma pausa Erika geralmente se instalava numa das poltronas, com os pés recolhidos. Mikael olhava pela janela. Embaixo, na penumbra, pedestres apressados galopavam pela Götgatan. A histeria das compras de Natal chegava à reta final.

— Suponho que vai passar — disse ele. — Mas neste momento é como se eu acabasse de levar uma tremenda surra.

— Sim, é mais ou menos isso, e o mesmo vale para todos nós. Janne Dahlman foi embora hoje de manhã para casa.

— Imagino que ele não tinha ilusões quanto à sentença.

— Não é exatamente o homem mais otimista que eu já conheci. Mikael assentiu com a cabeça. Janne Dahlman era secretário de redação da Millennium havia nove meses. Entrou quando o caso Wennerström estava começando e viu-se numa redação em crise. Mikael tentou lembrar a conversa que tiveram, ele e Erika, quando decidiram contratá-lo. Era um jovem competente, sua passagem pela TT o familiarizara com as assessorias de imprensa, e trabalhara como temporário em jornais vespertinos e na rádio. Mas não era alguém pronto para enfrentar tempestades. Durante o ano que terminava, Mikael se arrependeu várias vezes de ter contratado Dahlman, que tinha uma tendência profundamente irritante de ver tudo sob os aspectos mais negativos.

— Teve notícias do Christer? — perguntou Mikael sem desviar o olhar da rua.

Christer Malm, responsável pela ilustração e diagramação da Millennium, era co-proprietário da revista com Erika e Mikael, e no momento estava no exterior, viajando com o namorado.

— Ele telefonou, te mandou um abraço.

— Ele vai ter de ficar no meu lugar como editor.

— Espere aí, Micke, você deveria saber que um editor responsável leva muitos socos no nariz, faz parte do jogo.

— Sim, eu sei. Mas acontece que eu é que redigi o texto que foi publicado na revista da qual eu sou o redator-chefe, ou, mais exatamente, o editor responsável. Isso muda tudo. Isso se chama erro de avaliação.

Erika Berger sentiu que a ansiedade que o acompanhara o dia todo estava a ponto de explodir. Antes do julgamento, nas últimas semanas, Mikael Blomkvist estivera mal-humorado, mas ela não o sentira tão tristonho e resignado como parecia estar agora, no momento da derrota. Ela contornou a mesa de trabalho, sentou-se de pernas abertas sobre os joelhos dele e passou os braços em volta de seu pescoço.

— Mikael, escute. Sabemos bem como tudo aconteceu. Sou tão responsável quanto você. Temos que enfrentar essa tempestade.

— Não há tempestade para enfrentar. Essa sentença significa que levei um tiro na nuca, que estou morto do ponto de vista da mídia. Não posso continuar dirigindo a Millennium. A credibilidade da revista está em jogo, é preciso reduzir os prejuízos. Você sabe tão bem quanto eu.

— Se acha que pretendo deixá-lo assumir o erro sozinho, então você nunca entendeu, nesses anos todos, como eu funciono.

— Sei exatamente como você funciona, Ricky. Você é de uma lealdade cega com seus colegas. Se pudesse se lançar contra os advogados de Wennerström, faria isso até também perder sua credibilidade. Precisamos ser mais inteligentes.

— E acha inteligente abandonar o navio como se eu tivesse te despedido?

— Já falamos sobre isso centenas de vezes. Se a Millennium deve sobreviver, cabe a você comandar. Christer é um cara ótimo, um sujeito que entende de fotografia e diagramação, mas enfrentar bilionários não é o forte dele. É preciso que eu desapareça da Millennium por algum tempo como publisher, jornalista e membro da equipe; você fica no meu lugar. Wennerström sabe que eu sei o que ele faz, e estou convencido de que, enquanto eu estiver ligado à revista, fará o possível para afundá-la. Não podemos permitir isso.

— Mas por que então não contar o que se passou? Ou vai ou racha!

— Porque não podemos provar nada e porque neste momento não tenho credibilidade nenhuma. Wennerström ganhou esse round. Ponto final.

— Está bem, eu despeço você. E o que vai fazer em seguida?

— Preciso de um tempo, só isso. Estou completamente esgotado, entrei de cabeça na parede, como se diz. Vou cuidar de mim durante algum tempo. Depois veremos.

Erika estreitou Mikael com força nos braços e encostou a cabeça no peito dele. Ficaram em silêncio por alguns minutos.

— Quer companhia esta noite? — ela perguntou. Mikael assentiu com a cabeça.

— Eu já tinha avisado Lars que dormiria na sua casa hoje.

A única fonte de luz do quarto era a iluminação da rua que entrava pela janela. Erika adormecera pouco depois das duas da manhã e Mikael, ainda acordado, observava o perfil dela na penumbra. A colcha a cobria até a cintura e ele observou os seios erguendo-se e abaixando-se num ritmo lento. Estava apaziguado e a bola de angústia no estômago se dissolvera. Erika produzia esse efeito nele, sempre fora assim. E ele sabia que produzia exatamente o mesmo efeito nela.

Vinte anos, pensou. Fazia vinte anos que ele e Erika mantinham uma ligação. E ele esperava que continuassem fazendo amor por mais vinte anos ainda. Pelo menos. Nunca haviam tentado a sério esconder essa relação, mesmo quando ela criou situações um pouco ambíguas com os outros. Ele sabia que as pessoas em volta falavam e faziam perguntas, às quais tanto Erika quanto ele davam respostas evasivas, sem se preocupar com os comentários.

Conheceram-se numa festa na casa de amigos comuns. Ambos estavam no segundo ano da faculdade de jornalismo e cada um, na época, tinha um parceiro regular. De início foi só uma paquera divertida, se é que as lembranças eram exatas. Depois, levaram mais longe o jogo de sedução mútua e, antes de se separar, trocaram os números de telefone. Os dois sabiam que iam se reencontrar na cama e, menos de uma semana depois, executaram esse plano sem que os respectivos parceiros soubessem.

Mikael tinha certeza de que não se tratava de amor — pelo menos não do amor tradicional, que acaba num domicílio comum, em compromissos comuns, árvore de Natal e crianças. Algumas vezes, nos anos 1980, chegaram a pensar em alugar um apartamento juntos. Mikael teria gostado. Mas Erika sempre desistia no último instante, argumentando que não daria certo e que não deviam arriscar destruir sua relação se apaixonando um pelo outro.

Sabiam que a relação se baseava no sexo, e Mikael várias vezes se perguntou se era possível sentir mais desejo por uma mulher do que o que sentia por Erika. A relação funcionava como uma verdadeira droga.

Às vezes viam-se com tanta frequência que tinham a impressão de ser um casal; outras vezes transcorriam semanas, meses, entre cada encontro. Mas, como os alcoólatras atraídos pela prateleira de bebidas após um período de abstinência, retornavam sempre um para o outro em busca de mais.

A coisa, evidentemente, não funcionava. Uma relação como essa só podia ser uma fonte de dor. Erika e ele haviam deixado pelo caminho promessas não cumpridas e ligações frustradas — o próprio casamento de Mikael acabou porque ele não conseguiu se manter afastado de Erika. Nunca mentiu à mulher sobre a existência desse caso, mas ela pensou que, com o casamento e o nascimento da filha, ele terminaria. Além do mais, praticamente na mesma época, Erika se casou com Lars Beckman. Mikael também pensou que o caso terminaria e, nos primeiros anos do casamento dela, ele e Erika só se viram profissionalmente. Aí veio a Millennium e, menos de uma semana depois, todas as resoluções vieram abaixo quando, no final de um dia de trabalho, os dois fizeram amor selvagemente em cima da mesa de Erika. Seguiu-se um período difícil, no qual Mikael queria viver com a família e ver a filha crescer, ao mesmo tempo que, contra a vontade, era atraído para Erika como se não conseguisse mais comandar seus atos. O que, evidentemente, era só uma questão de força de vontade, como Lisbeth Salander bem percebeu: foi essa perpétua infidelidade que levou Monica a querer acabar com o casamento.

O estranho é que Lars Beckman parecia aceitar totalmente a ligação deles. Erika sempre foi clara sobre sua relação com Mikael e imediatamente informou o marido quando os dois recomeçaram. Talvez só uma alma de artista pudesse suportar isso, um artista voltado à sua criação, ou talvez voltado somente a si mesmo, que não reagia quando sua mulher dormia na casa de outro homem ou até mesmo interrompia as férias para passar uma semana com o amante na cabana em Sandhamn. Mikael não gostava muito de Lars e nunca entendeu por que Erika havia se ligado a ele. Mas apreciava que Lars aceitasse que ela pudesse amar dois homens ao mesmo tempo.

Ele suspeitava que Lars considerava que a ligação da mulher trazia uma excitação extra ao casamento. Mas nunca abordou esse assunto com Erika.

Mikael não conseguia dormir e por volta das quatro da manhã levantou-se. Instalou-se na cozinha e mais uma vez leu o veredicto do começo ao fim.

A leitura do dossiê lhe permitia enxergar com mais clareza, e ele percebia o quanto o encontro em Arholma tinha a ver com o destino. Nunca conseguiu descobrir se Robert Lindberg revelara a fraude de Wennerström apenas como uma boa história durante uma conversa entre dois tragos, ou se a intenção fora de fato fazê-la vir a público.

Espontaneamente, Mikael pendia a favor da primeira possibilidade, mas também era possível imaginar que Robert, por razões altamente particulares ou profissionais, desejasse atingir Wennerström e aproveitou a oportunidade de ter um jornalista disposto a escutá-lo numa cabine fechada. Robert talvez tivesse bebido um pouco, o que não o impediu de cravar os olhos em Mikael no instante decisivo da história, quando evocou as palavras mágicas que o transformariam numa fonte anônima. Com isso, Robert tinha a certeza de que Mikael podia divulgar o que quisesse, mas nunca se permitiria revelar o nome de seu informante.

No entanto Mikael estava certo de uma coisa: se o encontro em Arholma tinha sido organizado por um conspirador com o objetivo de atrair sua atenção, a atuação de Robert fora perfeita. Só que o encontro em Arholma acontecera por puro acaso.

Robert não tinha a menor idéia da extensão do desprezo de Mikael por gente como Hans-Erik Wennerström. Depois de anos de observação, Mikael estava convencido de que não havia um único diretor de banco ou dono de empresa célebre que não fosse também um escroque.

Mikael nunca ouvira falar de Lisbeth Salander e ignorava completamente o relatório que ela fizera naquele dia, mas, se o tivesse lido, teria balançado a cabeça em concordância quando ela afirmou que a aversão dele pelos tubarões das finanças não era um mero acesso de radicalismo de esquerda. Mikael não era um desinteressado de política, mas encarava os ismos políticos com a maior desconfiança. Na única eleição em que votou — as legislativas de 1982 —, escolhera sem muita convicção os socialdemocratas simplesmente porque para ele nada podia ser pior do que mais três anos com um moderado como Gösta Bohman nas finanças, um centrista como Thorbjörn Fälldin e um liberal como Ola Ullsten no comando do governo. Assim, votou em Olof Palme sem grande entusiasmo, para depois deparar com o assassinato do primeiro-ministro, o escândalo da venda de armas de Bofors em Omä e as intrigas sórdidas de Ebbe Carlsson no inquérito sobre o assassinato de Olof Palme.

O desprezo de Mikael pelos jornalistas econômicos se devia a algo tão elementar, a seus olhos, como a moral. Para ele era uma equação simples. Um diretor de banco que perde algumas centenas de milhões em especulações tresloucadas não deveria permanecer no cargo. Um empresário que monta firmas fictícias para seus negócios pessoais devia ser preso. Um proprietário de imóveis que obriga jovens a pagar, sem nota, o aluguel de um quarto com banheiro no quintal devia ser pendurado pelos pés no pelourinho.

Mikael Blomkvist acreditava que a missão do jornalista econômico era investigar e desmascarar os tubarões financeiros capazes de provocar crises de juros e de especular com o dinheiro do pequeno poupador. Acreditava que sua verdadeira missão jornalística era investigar os donos de empresa com o mesmo zelo implacável que os jornalistas políticos vigiam o menor passo em falso de ministros e parlamentares. Jamais ocorreria a um jornalista político transformar em ícone um chefe de partido, e Mikael tinha dificuldade em entender por que tantos jornalistas econômicos, dos mais importantes veículos do país, estavam prontos a elevar medíocres arrivistas à categoria de vedetes do showbiz.

Essa atitude um tanto atípica no jornalismo econômico o levou a ter, mais de uma vez, conflitos abertos com colegas, entre os quais William Borg, que virou seu inimigo ferrenho. Mikael erguera a cabeça e criticara os colegas, acusando-os de não cumprir sua missão e de fazer o jogo dos arrivistas financeiros. O papel de crítico da sociedade certamente dera a Mikael algum status e o transformara no arroz-de-festa das câmeras de tevê — era sempre convidado a dar sua opinião quando se sabia que algum empresário se safara de dificuldades com um pára-quedas no valor de alguns bilhões —, porém isso também lhe angariava um círculo fiel de inimigos jurados.

Mikael bem podia imaginar que algumas redações haviam estourado champanhe naquela noite.

Erika tinha a mesma postura que ele diante do papel do jornalista, e desde que se formaram os dois se divertiam juntos pensando numa publicação com esse perfil.

Mikael não podia imaginar um chefe melhor do que Erika. Perfeita organizadora, ela transmitia calor e confiança aos funcionários, mas ao mesmo tempo não temia o confronto e sabia se mostrar intratável quando necessário. Sua sensibilidade se exacerbava sobretudo na hora de tomar decisões sobre o conteúdo da edição que estava sendo preparada. Ela e Mikael tinham muitas vezes opiniões contrárias e os dois às vezes discutiam abertamente, mas nutriam uma confiança inabalável um pelo outro e formavam uma equipe imbatível. Ele fazia a coleta, ela encaixotava e vendia.

A Millennium era uma criação dos dois, mas nunca teria existido sem a capacidade de Erika de levantar um financiamento. Um filho de operário e uma filha de burguês reunidos. Erika dispunha de uma boa herança. De início, lançou mão de seus recursos e convenceu o pai e amigos a investir quantias consideráveis no projeto.

Muitas vezes Mikael se perguntou por que Erika apostara na Millennium. É verdade que ela era acionista — majoritária — e diretora de sua própria revista, o que lhe dava prestígio e uma liberdade editorial que ela não teria em nenhum outro local de trabalho. Diferentemente de Mikael, ela se encaminhara para a tevê depois da faculdade de jornalismo. Tinha coragem, apresentava-se com competência diante da câmera e sabia se afirmar entre os concorrentes. Possuía, além disso, bons contatos no governo. Se tivesse continuado, certamente teria alcançado um cargo de direção na tevê, com um salário muito alto. Mas preferiu abandonar tudo e apostar na Millennium, um projeto de alto risco iniciado em instalações precárias no bairro de Midsom-markransen, mas que deu suficientemente certo para se transferir, poucos anos depois, para salas mais amplas e agradáveis na Götgatan, a dois passos do centro da cidade, no Södermalm.

Erika também convencera Christer Malm a se associar à revista; celebridade do mundo gay, exibicionista nas horas vagas, aparecia de vez em quando nas colunas sociais em companhia do namorado. O interesse da mídia voltou-se para ele quando passou a viver com Arnold Magnusson, conhecido por Arn, um ator de teatro que só se revelou verdadeiramente ao desempenhar o próprio papel num reality show na tevê. A vida de Christer e Arn virou então um folhetim na mídia.

Aos trinta e seis anos, Christer Malm, fotógrafo profissional e designer muito requisitado, sabia dar à Millennium um padrão gráfico moderno e atraente. Seu escritório ficava no mesmo andar que a redação da Millennium, e ele cuidava da diagramação em tempo parcial, uma semana por mês.

Além desses três, a Millennium contava com dois colaboradores fixos, três em tempo parcial e um temporário. Era o tipo de publicação que estava sempre no vermelho, porém muito prestigiosa e na qual os colaboradores adoravam trabalhar.

A Millennium não era um negócio lucrativo, mas havia conseguido equilibrar suas despesas, e tanto a tiragem quanto as receitas publicitárias não cessavam de aumentar. Até o momento, a revista mantinha a imagem de um produto com estilo editorial franco e confiável.

Provavelmente agora as coisas iam mudar. Mikael lia o breve comunicado que ele e Erika haviam escrito algumas horas antes e que logo se transformou num despacho da agência de notícias TT veiculado nas páginas da Aftonbladet, na internet.

condenado na justiça, mikael blomkvist abandona a millennium

Estocolmo (TT). O jornalista Mikael Blomkvist deixa o cargo de editor responsável da revista mensal Millennium, anuncia Erika Berger, diretora e acionista majoritária.

Mikael Blomkvist deixa a Millennium por decisão própria. Esgotado após o período dramático que acaba de viver, ele precisa de um descanso, diz Erika, que assume o cargo de editora responsável da publicação.

Mikael Blomkvist foi um dos criadores da Millennium em 1990. Segundo Erika Berger, o caso Wennerström não deverá interferir no futuro da revista.

"A Millennium sairá normalmente no mês que vem", ela acrescenta. "Mikael Blomkvist teve um papel fundamental no desenvolvimento da revista, mas agora vamos virar a página. Considero o caso Wennerström como uma sucessão de circunstâncias infelizes e lamento os dissabores causados a Hans-Erik Wennerström."

Não foi possível encontrar Mikael Blomkvist para obter seu depoimento.

— Acho isso terrível — dissera Erika após enviar por e-mail o comunicado de imprensa. — A maioria das pessoas vai concluir que você é um cretino incompetente e que eu não passo de uma puta que aproveita a ocasião para te acertar um tiro pelas costas.

— Considerando todos os outros boatos que circulam, pelo menos nossos amigos terão algo de novo com que se divertir — tentou gracejar Mikael. Mas Erika não achou graça.

— Não tenho um plano B, mas acho que estamos cometendo um erro.

— É a única solução — replicou Mikael. — Se a revista quebrar a cara, todos os nossos esforços terão sido inúteis. Você sabe que a partir de agora vamos perder muitas receitas. Aliás, qual foi a decisão daquela empresa de informática?

Ela suspirou.

— Hoje de manhã eles comunicaram que não vão anunciar na edição de janeiro.

— E, não por acaso, Wennerström detém muitas cotas dessa empresa.

— Podemos cortejar outros anunciantes. Por mais que Wennerström seja um figurão das finanças, ele não possui tudo neste mundo, e nós também temos nossos contatos.

Mikael estreitou Erika no peito.

— Um dia vamos torpedear Hans-Erik Wennerström a ponto de fazer tremer Wall Street. Mas não hoje. A Millennium deve sair do campo minado. Não podemos nos arriscar a perder a confiança que alguns depositam em nós.

— Eu sei, eu sei, mas vou ser vista como a bruxa de plantão e você ficará numa pior se dermos a entender que houve um rompimento entre nós.

— Eu, você e Ricky confiamos um no outro, temos uma chance. Precisamos tocar o barco, e chegou a hora de eu me retirar.

Ela reconheceu, a contragosto, que havia uma triste lógica nessa conclusão.


4. SEGUNDA-FEIRA 23 DE DEZEMBRO — QUINTA-FEIRA 26 DE DEZEMBRO

Erika passou o fim de semana na casa de Mikael Blomkvist. Praticamente só saíram da cama para ir ao banheiro e comer alguma coisa, mas nem por isso ficaram o tempo todo fazendo amor; passaram horas um junto do outro, discutindo o futuro e pesando consequências, possibilidades e probabilidades. Na segunda-feira de manhã — faltavam dois dias para o Natal —, Erika beijou Mikael, despediu-se com um "até breve" e voltou para a casa do marido.

Mikael começou a segunda-feira lavando a louça e pondo um pouco de ordem no apartamento, depois foi caminhando até a redação, para recolher seus papéis no escritório. Não tinha a menor intenção de romper com a revista, mas acabou convencendo Erika que durante algum tempo era importante separar Mikael Blomkvist da Millennium. A partir de agora, ele trabalharia no seu apartamento da Bellmansgatan.

Estava sozinho na redação, fechada por causa do Natal e com os funcionários de folga. Selecionava alguns papéis e livros para pôr numa pasta quando o telefone tocou.

— Gostaria de falar com Mikael Blomkvist — disse uma voz desconhecida mas cheia de expectativa na outra ponta da linha.

— É ele.

— Sinto muito perturbá-lo na véspera de Natal. Meu nome é Dirch Frode. — Instintivamente, Mikael anotou o nome e a hora. — Sou advogado e represento um cliente que gostaria muito de conversar com o senhor.

— Bem, diga a seu cliente que ele mesmo me telefone.

— O que quero dizer é que ele gostaria de encontrá-lo.

— Tudo bem, marque um encontro e mande-o vir até o meu escritório. Mas seja rápido, pois estou esvaziando a mesa.

— Meu cliente gostaria muito que fosse encontrá-lo na casa dele. Ele mora em Hedestad, são apenas três horas de trem.

Mikael parou de selecionar os papéis. A imprensa tem a capacidade de atrair as pessoas mais malucas, detentoras das informações mais absurdas. Todas as redações do mundo recebem chamados de fanáticos por óvnis, grafólogos, cientologistas, paranóicos e outros teóricos da grande conspiração.

Um dia, Mikael ouvia uma conferência do escritor Karl Alvar Nilsson, organizada pela universidade popular na época do aniversário do assassinato de Olof Palme. A conferência era absolutamente séria e na platéia se achavam Lennart Bodström e outros velhos amigos de Palme. Mas muitas pessoas comuns também compareceram, entre elas uma mulher de uns quarenta anos, que se apoderou do microfone quando chegou o inevitável momento das perguntas. Com exceção da voz baixa, como num cochicho, nada fazia prever uma sequência interessante, e ninguém ficou especialmente surpreso quando a mulher começou sua intervenção anunciando: "Sei quem matou Olof Palme". Os que estavam à mesa responderam, com uma ponta de ironia, que, se ela possuía aquela informação tão decisiva, seria do maior interesse comunicá-la à comissão de inquérito. Ao que ela vivamente retrucou, num murmúrio quase inaudível: "Não posso, é perigoso demais!".

Mikael se perguntou se Dirch Frode também não seria um desses profetas ansiosos por revelar a existência de um hospital psiquiátrico secreto, onde a Polícia Federal se dedicava a experimentos de controle mental.

— Não atendo em domicílio — respondeu secamente.

— Nesse caso, espero convencê-lo a abrir uma exceção. Meu cliente tem mais de oitenta anos e vir a Estocolmo representa para ele uma viagem penosa. Se o senhor insiste, creio que poderíamos encontrar outra solução, mas, para ser bem franco, seria preferível que tivesse a gentileza de...

— Quem é o seu cliente?

— Alguém de quem o senhor nunca deve ter ouvido falar na sua profissão, imagino: Henrik Vanger.

Mikael fez um movimento para trás, surpreso. Henrik Vanger — claro que ouvira falar dele. Grande industrial e ex-diretor administrativo do grupo Vanger, um império cujos negócios eram serrarias, florestas, minas, fábricas de aço, empresas metalúrgicas e têxteis, produção e exportação. Henrik Vanger fora um dos grandes de seu tempo, com a reputação de um honesto patriarca à antiga que não se curvava diante da tempestade. Fazia parte dos fundamentos da vida econômica sueca, bravo seguidor da velha escola, ao lado dos Matts Carlgren, de MoDo e de Hans Werthen, da antiga Electrolux. A coluna vertebral da indústria democrática sueca, por assim dizer.

O grupo Vanger, ainda hoje uma empresa familiar, fora sacudido nos últimos vinte e cinco anos por reestruturações, catástrofes na Bolsa, crises de juros, concorrência asiática, declínio das exportações e outros problemas que, somados, relegaram Vanger ao pelotão da rabeira. A empresa agora era dirigida por Martin Vanger, cujo nome Mikael associava a um sujeito gordo de cabelos fofos que ele vira na televisão, mas que na verdade não conhecia. Fazia bem uns vinte anos que Henrik Vanger estava fora de circuito e Mikael ignorava que ainda estivesse vivo.

— Por que Henrik Vanger quer me ver?

— Sinto muito. Sou o advogado de Vanger há muitos anos, mas cabe a ele contar o que deseja. Por outro lado, posso adiantar que Henrik Vanger gostaria de discutir com o senhor um possível trabalho.

— Um trabalho? Não tenho nenhuma intenção de passar a trabalhar para as empresas Vanger. Estão precisando de um assessor de imprensa?

— Não se trata em absoluto desse tipo de trabalho. Não sei como me exprimir... tudo que posso dizer é que Henrik Vanger está particularmente interessado em vê-lo e consultá-lo sobre um assunto particular.

— O senhor não poderia ser mais direto?

— Peço que me perdoe. Mas me diga: existe alguma possibilidade de o senhor fazer uma visita a Hedestad? Claro que reembolsaremos sua viagem e lhe daremos uma remuneração razoável.

— Seu telefonema chega numa péssima hora. Estou bastante ocupado... e suponho que viu as notícias sobre mim nesses últimos dias.

— O caso Wennerström? — e Dirch Frode deixou escapar um risinho abafado na outra ponta da linha. — Sim, ele teve o mérito de interessar bastante o público. Mas, para dizer a verdade, foi justamente a publicidade em torno desse processo que atraiu a atenção de Henrik Vanger para o senhor.

— E mesmo? E quando é que Henrik Vanger gostaria que eu fosse visitá-lo? — quis saber Mikael.

— O mais cedo possível. Amanhã à noite é véspera de Natal e suponho que o senhor não esteja livre. Mas que tal 26 de dezembro? Ou um dos dias seguintes?

— Então é urgente mesmo. Sinto muito, mas se não me der uma pista aceitável da finalidade da visita...

— Eu lhe garanto que o convite é totalmente sério. Henrik Vanger gostaria de consultá-lo, ao senhor e não a uma outra pessoa. Gostaria de lhe propor um trabalho como freelancer, se isso lhe interessa. Quanto a mim, sou apenas um intermediário. Cabe a ele explicar do que se trata.

— É um dos chamados mais estranhos que já recebi. Vou pensar no assunto. Como posso contatá-lo?

Após desligar o telefone, Mikael ficou contemplando a desordem em sua mesa. Não conseguia entender por que Henrik Vanger desejava encontrá-lo. Uma viagem a Hedestad não lhe despertava nenhum entusiasmo, mas o advogado Frode conseguira despertar sua curiosidade.

Ligou o computador, conectou-se no www.google.com e digitou "empresas Vanger". Centenas de páginas estavam disponíveis. Embora o grupo Vanger agora andasse a reboque, ele figurava praticamente todos os dias na mídia. Salvou uma dúzia de artigos de análise do grupo e passou em seguida às pesquisas sobre Dirch Frode, Henrik Vanger e Martin Vanger.

Martin Vanger aparecia com frequência, na qualidade de atual diretor do grupo. O advogado Dirch Frode estava aposentado, era membro da Associação de golfe de Hedestad e seu nome estava associado ao Rotary. Henrik Vanger só era encontrado em textos ligados ao grupo Vanger, com uma única exceção. Dois anos antes, o Hedestads-Kuriren, jornal local, celebrara o octogésimo aniversário do ex-magnata da indústria e o jornalista traçara um breve perfil dele. Mikael imprimiu alguns textos que pareciam conter informações sólidas e constituiu assim um dossiê de umas cinquenta páginas. Depois terminou de arrumar sua mesa, encheu as pastas e foi para casa. Não fazia a menor idéia de quando iria voltar.

Lisbeth Salander passava a véspera de Natal na casa de saúde de Appelviken, em Upplands-Väsby. Trouxera de presente um frasco de água-de-toalete Dior e um bolo inglês comprado na Ahlens. Ela contemplava a mulher de quarenta e cinco anos que, com dedos inábeis, tentava desfazer o laço do embrulho. Havia ternura nos olhos de Salander, embora sempre lhe causasse espanto que aquela mulher estranha diante dela pudesse ser sua mãe. Por mais que tentasse, não conseguia encontrar a menor semelhança física ou de personalidade.

A mãe por fim abandonou seus esforços e olhou o embrulho com ar desamparado. Ela não estava num de seus bons dias. Lisbeth Salander empurrou a tesoura que estava bem à vista em cima da mesa e a mãe se iluminou como se despertasse de repente.

— Você deve me achar uma estúpida.

— Não, mamãe. Você não é estúpida. A vida é que é injusta.

— Tem visto sua irmã?

— Falei com ela há pouco tempo.

— Ela nunca vem me ver.

— Eu sei, mamãe. Ela também não vem me ver.

— Você trabalha?

— Sim, mamãe. Estou me virando bem.

— Está morando onde? Eu nem sei onde você mora.

— Moro no nosso antigo apartamento da Lundagatan. Estou ali há muitos anos. Paguei as contas atrasadas.

— Quem sabe no verão vou visitar você.

— Claro. No verão.

A mãe acabou abrindo a embalagem e aspirou o perfume, deliciada.

— Obrigada, Camilla — disse.

— Lisbeth. Sou a Lisbeth. Camilla é a minha irmã.

A mãe pareceu incomodada. Lisbeth Salander propôs que elas fossem até a sala de tevê.

* * *

Os programas Disney de Natal eram retransmitidos a toda hora na televisão quando Mikael Blomkvist passou para ver sua filha Pernilla na casa da ex-mulher Monica e do novo marido dela, em Sollentuna. Trazia presentes para Pernilla; após discutir o assunto com Monica, eles concordaram em dar à filha um iPod, um MP3-player bastante caro e não maior que uma caixa de fósforos, capaz de abrigar toda a sua volumosa coleção de discos.

Pai e filha passaram uma hora juntos no quarto dela, no andar de cima. Mikael e a mãe de Pernilla se divorciaram quando ela tinha somente cinco anos, e dois anos depois ela ganhara um novo pai. Mikael não havia de modo algum evitado o contato; Pernilla ia visitá-lo algumas vezes por mês e todo ano, durante as férias, passava temporadas de uma semana na cabana de Sandhamn. Monica nunca tentou impedir que os dois se encontrassem, e Pernilla nada tinha contra rever o pai — ao contrário, os dias que eles passavam juntos costumavam ser bons momentos. Ainda assim, Mikael deixou a filha decidir em que medida desejava vê-lo, sobretudo depois que Monica voltou a se casar. Houve alguns anos, no início da adolescência, em que o contato praticamente cessou e Pernilla só havia pedido para voltar a vê-lo com mais frequência nos últimos dois anos.

A filha acompanhara o processo convicta de que Mikael afirmava a verdade: ele era inocente mas não podia provar.

Ela falou de um eventual namorado no colégio e o surpreendeu ao revelar que se tornara membro de uma Igreja local e que se considerava uma devota. Mikael se absteve de qualquer comentário.

Foi convidado para jantar, mas recusou a oferta; já combinara com a irmã passar a véspera de Natal com ela e a família no subúrbio yuppie de Stäket.

De manhã, também fora convidado a passar o Natal com Erika e o marido em Saltsjöbaden. Recusou o convite com polidez, certo de que havia sem dúvida um limite na boa vontade de Lars para com os dramas triangulares, e ele não tinha vontade nenhuma de descobrir até onde ia esse limite. De acordo com Erika, a proposta partira do próprio marido, e ela criticou sua timidez em participar dos jogos de um trio. Mikael rira — Erika sabia que ele era um heterossexual inflexível e que o convite não era a sério —, mas a decisão de não festejar o Natal na companhia do marido da amante era irrevogável.

Em vez disso, ele foi bater à porta da irmã Annika Blomkvist, agora Annika Giannini. O marido de origem italiana, os dois filhos e vários outros membros da família do marido cortavam naquele momento o peru de Natal. Annika cursara direito sem a menor vontade, depois trabalhara alguns anos como estagiária no tribunal e como substituta de promotor, antes de abrir seu próprio escritório de advocacia, associada a alguns amigos e numa sala com vista para o bairro de Kungsholmen. Especializou-se em direito de família e, sem que Mikael percebesse, sua irmã mais nova começou a aparecer nas páginas das revistas e em debates da televisão como feminista célebre e advogada dos direitos da mulher. Defendia com frequência mulheres ameaçadas ou importunadas por ex-maridos ou ex-namorados.

Quando Mikael a ajudava a preparar o café, ela pôs a mão em seu braço e lhe perguntou como ele estava.

— Nunca me senti tão por baixo, se quer saber.

— Da próxima vez arranje um advogado de verdade — disse ela.

— Acho que nesse caso nem o melhor advogado do mundo mudaria a situação.

— O que realmente aconteceu?

— Depois eu conto, maninha.

Ela o abraçou com ternura e deu-lhe um beijo na bochecha antes de voltarem para junto dos outros com o bolo e o café.

Por volta das sete da noite, Mikael se desculpou e pediu licença para utilizar o telefone na cozinha. Chamou Dirch Frode e ouviu sua voz na outra ponta da linha, com uma algazarra de vozes ao fundo.

— Feliz Natal! — saudou Frode. — Então, decidiu?

— Não tenho nada de especial para fazer e o senhor conseguiu despertar minha curiosidade. Irei no dia 26, se lhe convém.

— Perfeito. Não sabe o quanto sua decisão me alegra. Desculpe-me, mas estou cercado de filhos e netos e mal consigo ouvir o que diz. Posso ligar amanhã para marcar uma hora?

Mikael Blomkvist se arrependeu da decisão antes mesmo que a noite terminasse, mas como agora lhe parecia muito complicado voltar atrás, na manhã do dia 26 instalou-se num trem rumo ao Norte. Mikael tinha carteira de habilitação, porém nunca se dera o trabalho de comprar um carro.

Frode tinha razão, a viagem era curta. Ele passou por Uppsala, depois percorreu as pequenas cidades industriais espalhadas ao longo da costa. Hedestad era uma das menores, a pouco mais de uma hora ao norte de Gävle.

Durante a noite houvera fortes precipitações de neve, mas o céu limpara e o ar estava gelado quando ele desceu na estação. Mikael logo percebeu que suas roupas não estavam adequadas ao inverno rigoroso do Norrland. Dirch Frode o identificou imediatamente, o acolheu com simpatia na plataforma e o fez entrar depressa no interior aquecido de um Mercedes. Na cidade, o trabalho de desobstrução da neve era intenso, e Frode manobrou com prudência entre as grandes escavadeiras. A neve criava um contraste exótico com Estocolmo, teriam dito em outro país, embora não houvesse mais de três horas de distância até a capital e seus enfeites de Natal na cidade velha. Mikael olhava furtivamente o advogado: um rosto anguloso, cabelos brancos bem curtos, óculos de lentes grossas sobre um nariz volumoso.

— É a primeira vez que vem a Hedestad? — perguntou Frode. Mikael assentiu com a cabeça.

— É um velho burgo industrial. Não muito grande, tem apenas oitenta mil habitantes. Mas as pessoas gostam daqui. Henrik mora em Hedeby, na parte antiga, a aldeia, como é chamada. Fica logo na entrada sul da cidade.

— O senhor também mora aqui? — perguntou Mikael.

— Atualmente, sim. Nasci em Skane, mas comecei a trabalhar para Vanger logo depois que me formei, em 1962. Especializei-me em direito comercial e, com o passar dos anos, Henrik e eu nos tornamos amigos. Hoje estou aposentado, mas Henrik continua sendo meu cliente, o único. Ele também está aposentado e não precisa dos meus serviços com muita frequência.

— A não ser para aliciar jornalistas de má reputação.

— Não se subestime. Você não é o único que perdeu uma parada contra Hans-Erik Wennerström.

Mikael olhou Frode de soslaio, não sabendo muito bem como interpretar essa observação.

— Esse convite tem algo a ver com Wennerström? — perguntou.

— Não — respondeu Frode. — Henrik Vanger não faz parte exatamente do círculo de amigos de Wennerström, e ele acompanhou o processo com grande interesse. É para um caso bem diferente que ele deseja vê-lo.

— Sobre o qual o senhor não quer me falar.

— Sobre o qual não me cabe falar. Ajeitamos as coisas de modo que possa passar a noite na casa de Henrik Vanger. Se não lhe convém, podemos fazer uma reserva no Grande Hotel da cidade.

— Bem, é possível que eu volte a Estocolmo de trem esta noite.

Na entrada de Hedeby, a aldeia, a escavadeira de neve ainda não havia passado, e Frode fez o carro avançar por trilhas congeladas deixadas pelas rodas. Havia ali um pequeno núcleo de velhas casas de madeira, no estilo das antigas aglomerações mineiras ao longo do golfo de Botnia. Ao redor viam-se mansões modernas maiores. A aldeia começava em terra firme e, cruzando uma ponte, prosseguia numa ilha de relevo acidentado — Hedebyön. No lado do continente, uma igrejinha de pedra pintada de branco erguia-se junto à ponte e defronte cintilava um velho cartaz luminoso anunciando Pães e doces. Café Susanne. Depois de atravessar a ponte, Frode continuou por mais uma centena de metros até entrar numa esplanada diante de uma casa de pedra. A casa era pequena demais para ser qualificada de solar, embora fosse maior que as outras construções, e tratava-se, evidentemente, dos domínios senhoriais.

— Eis a casa Vanger — disse Dirch Frode. — Antigamente havia muita animação, mas hoje apenas Henrik e uma governanta moram aqui. E não é por falta de quartos de hóspedes.

Desceram do carro. Frode apontou com o dedo para o norte.

— A tradição exige que quem dirige o grupo Vanger more aqui, mas Martin Vanger, o sobrinho-neto de Henrik, queria algo mais moderno e mandou construir uma mansão na ponta do promontório.

Mikael olhou ao redor e se perguntou que loucura o fizera aceitar o convite do advogado Frode. Prometeu-se tentar a qualquer preço voltar a Estocolmo naquela mesma noite. Uma escada de pedra conduzia até a entrada e, antes que tivessem tempo de chegar, a porta se abriu. Mikael reconheceu prontamente Henrik Vanger, cujas fotos vira na internet.

As fotos o mostravam mais jovem, mas ele parecia surpreendentemente vigoroso para os seus oitenta e dois anos; um corpo musculoso, rosto severo e de traços marcantes, grossos cabelos grisalhos penteados para trás, provando que seus genes não o destinavam à calvície. Vestia uma calça escura cuidadosamente passada, camisa branca e uma malha marrom um tanto gasta. Tinha um bigode estreito e usava óculos com armação de metal.

— Sou Henrik Vanger — ele se apresentou. — Obrigado por ter concordado em vir me ver.

— Bom dia. Admito que achei o convite surpreendente.

— Vamos entrar. Mandei preparar um quarto de hóspedes. Quer descansar um pouco? Passaremos à mesa mais tarde. Esta é Anna Nygren, que lhe prestará os serviços necessários.

Mikael cumprimentou com um breve aperto de mão uma mulher de uns sessenta anos. Ela pegou seu sobretudo para pendurá-lo num cabide e propôs que ele usasse pantufas para proteger os pés das correntes de ar do chão.

Mikael agradeceu e voltou-se para Henrik Vanger:

— Não estou certo se ficarei até o almoço. Depende um pouco do objetivo deste encontro.

Henrik Vanger trocou um olhar com Dirch Frode. Havia uma conivência entre os dois que Mikael não conseguiu entender bem.

— Bem, vou deixá-los agora — disse Frode. — Preciso voltar para casa e impor um pouco de disciplina antes que meus netos destruam tudo.

E, dirigindo-se a Mikael:

— Moro à direita, do outro lado da ponte. Daqui até lá são cinco minutos a pé; passando a padaria, é a terceira casa do lado da praia. Se precisar de mim, telefone.

Mikael pôs a mão no bolso e acionou um gravador. Virei paranóico?, pensou. Não tinha a menor idéia do que Henrik Vanger queria, mas, depois do que acontecera com Hans-Erik Wennerström, fazia questão de ter evidências precisas de todas as coisas estranhas que se passassem a sua volta, e esse inesperado convite a Hedestad pertencia, definitivamente, a tal categoria.

O ex-industrial bateu no ombro de Dirch Frode para se despedir e fechou a porta de entrada, antes de se voltar para Mikael.

— Então irei diretamente ao que interessa. Não se trata de um jogo. Gostaria de falar com você, mas o assunto exige uma longa conversa. Peço-lhe que escute o que tenho a dizer e depois decida. O senhor é jornalista e eu gostaria de contratá-lo para um trabalho. Anna serviu o café no meu escritório, no andar de cima.

Henrik Vanger indicou o caminho e Mikael o acompanhou. Entraram num gabinete comprido, de cerca de quarenta metros quadrados, situado na extremidade da casa. Uma das paredes estava coberta por prateleiras de livros, dez metros de comprimento do chão ao teto, numa mistura curiosa de romances, biografias, livros de história, manuais de comércio e de pesca, folhas de ofício encadernadas. Os livros estavam dispostos sem uma classificação aparente, mas pareciam ser consultados com regularidade, e Mikael concluiu que Henrik Vanger era um homem que lia. No lado oposto, havia uma mesa de carvalho escuro, posicionada de modo a deixar um espaço livre entre a cadeira e a parede, e nela estava pendurada uma coleção bastante considerável de flores emolduradas e meticulosamente alinhadas.

Pela janela ao fundo, Henrik Vanger podia contemplar a ponte e a igreja. Havia um sofá, poltronas e uma mesa baixa sobre a qual Anna dispusera xícaras, uma garrafa térmica e biscoitos caseiros.

Com um gesto, Henrik Vanger convidou Mikael a se sentar, gesto que Mikael fingiu não perceber, o que lhe permitiu observar um pouco mais o ambiente. Primeiro notou a biblioteca, depois a parede com os quadros. A mesa estava arrumada, com exceção de alguns papéis empilhados. Numa das pontas havia uma foto emoldurada de uma menina bonita e morena, de olhos inteligentes. Uma mocinha que vai causar estragos, pensou Mikael. Parecia uma foto de primeira comunhão, descolorida, que dava a impressão de estar ali havia muitos anos. Mikael percebeu, de repente, que Henrik Vanger o observava.

— Lembra-se dela, Mikael? — perguntou.

— Como assim? — Mikael levantou as sobrancelhas.

— Sim, você a conheceu. Aliás, você já esteve neste escritório. Mikael olhou ao redor e negou com a cabeça.

— Não? Como poderia se lembrar? Conheci seu pai. Contratei Kurt Blomkvist em várias ocasiões nos anos 1950 e 1960, para instalar máquinas e cuidar da manutenção. Era um homem talentoso. Tentei convencê-lo a prosseguir os estudos e a ser engenheiro. E você... você esteve aqui no verão de 1963, quando renovamos o maquinário da fábrica de papel aqui em Hedestad. Como foi difícil achar um alojamento para sua família, solucionamos o problema instalando vocês numa pequena casa de madeira do outro lado da estrada, que pode ser vista dessa janela.

Henrik Vanger se aproximou da mesa e pegou o retrato.

— Esta é Harriet Vanger, a neta do meu irmão Richard. Ela brincou com você mais de uma vez naquele verão. Você ia completar, ou talvez já tivesse, três anos, não lembro bem. Na época ela tinha doze.

— Desculpe, mas não me lembro de nada do que o senhor diz, do que você diz, se me permite tratá-lo assim.

— Naturalmente. Posso entender que não se lembre, mas eu me lembro muito bem de você correndo por todos os lados, com Harriet nos seus calcanhares. Eu ouvia você chorar quando tropeçava em alguma coisa. Lembro que dei um brinquedo de presente para você, um trator de metal amarelo, que eu mesmo tive quando era garoto, e que você recebeu com um entusiasmo incrível. Acho que foi por causa da cor.

Mikael sentiu um arrepio gelado. De fato, ele se lembrava do trator amarelo. Quando cresceu, o trator continuou enfeitando uma prateleira do seu quarto.

— Lembra? Lembra desse brinquedo?

— Lembro. E talvez você fique feliz de saber que esse trator ainda existe, no Museu do Brinquedo em Estocolmo. Há uns dez anos, fiz a doação quando eles procuravam brinquedos antigos.

— É mesmo? — Henrik Vanger riu, encantado. — Deixe-me mostrar... O velho foi buscar um álbum de fotografias numa das prateleiras baixas da estante. Mikael notou que ele tinha dificuldade de se inclinar e que foi obrigado a se apoiar na prateleira para se reerguer. Henrik Vanger fez sinal para que Mikael se sentasse no sofá enquanto ele mesmo folheava o álbum. Ele parecia saber o que procurava e, quando encontrou, depositou o álbum sobre a mesa baixa. Mostrou uma foto de amador, em preto-e-branco, na base da qual se percebia a sombra do fotógrafo. No primeiro plano, um garotinho louro olhava para a objetiva com ar perturbado e um pouco inquieto.

— É você naquele verão. Seus pais aparecem ao fundo, nas cadeiras de jardim. Harriet está um pouco encoberta pela sua mãe, e o rapaz à esquerda de seu pai é o irmão de Harriet, Martin Vanger, que atualmente dirige o grupo.

Mikael não teve nenhuma dificuldade em reconhecer seus pais. A mãe, visivelmente grávida — a irmã de Mikael estava a caminho. Contemplou a foto, não sabendo bem o que pensar, enquanto Henrik Vanger servia o café e lhe oferecia o prato com biscoitos.

— Sei que seu pai morreu. E sua mãe, ainda está viva?

— Não — disse Mikael. — Morreu há três anos.

— Era uma mulher agradável. Lembro muito bem dela.

— Mas estou certo de que não me chamou aqui para falar dos meus pais e dos bons velhos tempos.

— Tem razão. Há vários dias venho preparando o que vou lhe dizer, mas agora que você finalmente está diante de mim não sei por onde começar. Bem, você sabe que houve um tempo em que tive uma grande influência sobre a indústria sueca e o mercado de trabalho. Hoje sou um velho que não deveria tardar a morrer, e a morte é talvez um ponto de partida bastante conveniente para esta conversa.

Mikael tomou um gole de café. Um autêntico café fervido e amargo do Norrland, pensou, perguntando-se aonde aquilo tudo ia levar.

— Sofro de lombalgia, não consigo mais fazer grandes caminhadas. Um dia você também verá que a força acaba nos faltando, mas não sou hipocondríaco nem senil. Tampouco obcecado pela morte, porém estou na idade em que devo aceitar que meu tempo está chegando ao fim. Há um momento em que se tem vontade de fazer um balanço e resolver o que ficou inacabado. Entende o que quero dizer?

Mikael assentiu com a cabeça. Henrik Vanger falava com voz clara e firme, e Mikael já concluíra que o velho não era nem senil nem irracional.

— O que me intriga é a razão pela qual estou aqui — ele repetiu.

— Pedi que viesse porque gostaria que me ajudasse nesse balanço de que falei. Tenho algumas questões que precisam ser resolvidas.

— E por que eu? Quero dizer... por que imagina que posso ajudá-lo?

— É que no momento em que eu estava pensando em chamar alguém, seu nome começou a aparecer no caso Wennerström. Eu sabia quem você era. E também porque subiu nos meus joelhos quando era um garotinho.

Ele agitou a mão como para apagar suas palavras.

— Não me entenda mal. Não espero que me ajude por razões sentimentais. Quis apenas explicar por que tive o impulso de procurá-lo.

Mikael sorriu afavelmente.

— Bem, não tenho a menor lembrança desses joelhos. Mas como soube quem eu era? Afinal, isso aconteceu no começo dos anos 1960.

— Desculpe, não me expliquei bem. Você foi para Estocolmo quando seu pai assumiu o cargo de chefe de seção na Zarinder. Era uma das muitas empresas do grupo Vanger e fui eu que lhe arranjei esse emprego. Ele não tinha diploma, mas eu sabia o quanto valia. Encontrei seu pai várias vezes quando tinha assuntos a tratar na Zarinder. Talvez não fôssemos amigos íntimos, mas sempre ficávamos um bom tempo conversando. A última vez que o vi foi um ano antes de sua morte, e ele me disse que você havia entrado na faculdade de jornalismo. Estava muito orgulhoso. Depois você ficou famoso no país com aquela história da gangue — Super-Blomkvist e tudo aquilo. Acompanhei sua carreira e li muitos artigos que escreveu ao longo dos anos. Leio a Millennium com bastante frequência.

— Certo, entendo. Mas o que quer exatamente que eu faça?

Henrik Vanger examinou suas mãos por um breve instante e tomou um gole de café, como se precisasse de uma pequena pausa antes de entrar no assunto.

— Mikael, antes de chegar aos detalhes, eu gostaria que fizéssemos um acordo. Que você fizesse duas coisas por mim. Uma é um pretexto e a outra é o meu verdadeiro pedido.

— Que espécie de acordo?

— Vou contar uma história em duas partes. Uma parte fala da família Vanger: é o pretexto. E uma história longa e sombria, mas tentarei me ater à estrita verdade. A outra parte da história envolve o meu verdadeiro pedido. Acho que em alguns momentos interpretará meu relato como... loucura. O que desejo é que escute minha história até o fim — meu pedido e minha oferta — antes de tomar a decisão de aceitar ou não o trabalho.

Mikael suspirou. Evidentemente, Henrik Vanger não pretendia expor seu pedido de maneira breve e concisa, para que ele pudesse embarcar no trem da tarde. Mikael tinha certeza de que, se chamasse Dirch Frode e lhe pedisse para levá-lo à estação, o motor do carro se recusaria a pegar por causa do frio.

O velho devia ter dedicado muito tempo pensando num meio de amarrá-lo. Mikael sentia como encenação tudo o que se passara desde que entrou naquela casa; a começar pela surpresa de ficar sabendo que já estivera com Henrik Vanger quando criança, depois a foto de seus pais no álbum e a ênfase no fato de seu pai e Henrik Vanger terem sido amigos; depois, ainda, quando o velho o lisonjeou ao contar ter acompanhado sua carreira à distância ao longo dos anos... No todo certamente havia um fundo de verdade, mas se tratava também de psicologia das mais elementares. Em outras palavras: Henrik Vanger era um bom manipulador, habituado havia anos a lidar com pessoas inflexíveis atrás das portas fechadas das salas de negociação. Não por acaso ele se tornara um dos mais eminentes magnatas da indústria sueca.

Mikael concluiu que Henrik Vanger queria que ele fizesse algo que, com certeza, não tinha a menor vontade de fazer. Restava descobrir do que se tratava e em seguida dizer não. Quem sabe, a tempo ainda de pegar o trem da tarde.

— Sinto muito, senhor Vanger, sem acordo — respondeu Mikael, olhando seu relógio. — Estou aqui há vinte minutos e lhe dou mais trinta para me contar o que deseja. Depois pego um táxi e volto para casa.

Por um instante, Henrik Vanger abandonou seu papel de patriarca benevolente e Mikael entreviu o dono de empresas ameaçador, do tempo de seus amplos poderes, que acabava de sofrer um revés ou que era obrigado a se haver com um funcionário recalcitrante. Sua boca contraiu-se rapidamente num sorriso severo.

— Entendo.

— É simples. Não há necessidade de tantos rodeios. Diga o que quer que eu faça e sem dúvida vou poder julgar se quero ou não fazer.

— Você quer dizer que, se eu não conseguir convencê-lo em trinta minutos, tampouco conseguirei em trinta dias?

— É mais ou menos isso.

— Mas a verdade é que meu relato é longo e complicado.

— Abrevie e simplifique. É o que fazemos no jornalismo. Vinte e nove minutos.

Henrik Vanger ergueu uma das mãos.

— Está bem, entendi. Mas também não exagere, por favor. O fato é que preciso de alguém dotado de espírito crítico que saiba fazer pesquisas, e que seja igualmente íntegro. Acho que você é tudo isso, e não o estou adulando. Um bom jornalista deve possuir minimamente essas qualidades, e li seu livro Os templários com grande interesse. Sou bastante honesto quando digo que escolhi você porque conheci seu pai e porque sei quem você é. Se entendi bem, você foi licenciado da Millennium depois do caso Wennerström — ou decidiu afastar-se por conta própria. Isso significa que por ora não tem emprego, e não é preciso ser muito inteligente para entender que provavelmente seu dinheiro está curto.

— O que lhe permite tirar proveito da minha situação, não é o que está querendo dizer?

— Talvez. Mas não pretendo mentir nem inventar falsos pretextos, Mikael. Estou muito velho para esse tipo de coisa. Se não gosta do que eu disse, basta cair fora. E então terei que procurar outra pessoa que aceite trabalhar para mim.

— Está bem, em que consiste esse trabalho que quer me oferecer?

— O que você sabe sobre a família Vanger? Mikael afastou as mãos.

— Mais ou menos o que tive tempo de ler na internet depois do telefonema de Frode na segunda-feira. O grupo Vanger chegou a ser, na sua época, um dos grupos industriais mais importantes da Suécia, hoje a empresa está consideravelmente enfraquecida, Martin Vanger é o diretor-executivo. Bem, sei mais duas ou três coisas além disso, mas aonde está querendo chegar?

— Martin... é um bom sujeito, mas no fundo só gosta de navegar com vento fraco. Deixa muito a desejar como diretor-executivo de um grupo em crise. Ele quer modernizar e especializar, o que é razoável, porém tem dificuldade de transmitir suas idéias e mais ainda de financiá-las. Há vinte e cinco anos, o grupo Vanger era um concorrente sério do império Wallenberg. Tínhamos cerca de quarenta mil funcionários na Suécia. Produzíamos emprego e rendimentos ao país inteiro. Hoje a maior parte desses empregos deslocou-se para a Coréia ou para o Brasil. Atualmente, temos pouco mais de dez mil funcionários e dentro de um ano ou dois — se Martin não conseguir decolar — cairemos para cinco mil funcionários, essencialmente em pequenas manufaturas. Ou seja, o grupo Vanger está a ponto de ser relegado a lixo da história.

Mikael concordou, balançando a cabeça. O que Henrik Vanger contava era aproximadamente o que ele concluíra após a pesquisa em seu computador.

— O grupo Vanger continua sendo uma das raras empresas familiares do país, com uns trinta membros da família como acionistas mais ou menos minoritários. Isso foi sempre a força do grupo, mas também nossa maior fraqueza.

Henrik Vanger fez uma pausa retórica e então passou a falar com mais intensidade na voz.

— Mikael, faça perguntas depois, mas quero que acredite na minha palavra quando digo que detesto a maioria dos membros da minha família. Ela é principalmente formada por trapaceiros, aproveitadores, fanfarrões e incapazes. Dirigi o grupo durante trinta e cinco anos, praticamente sempre envolvido em lutas implacáveis com os demais membros da família. Eles é que eram os meus piores inimigos, não os concorrentes. Fez uma pausa.

— Eu disse que desejo contratá-lo para que faça duas coisas. Gostaria que escrevesse uma crônica ou uma biografia da família Vanger. Para simplificar, digamos a minha biografia. O resultado não será um texto a ser lido numa igreja, mas uma história de ódio, disputas familiares e cobiça imensuráveis. Porei à sua disposição todos os meus diários íntimos e meus arquivos. Terá livre acesso aos meus pensamentos mais secretos e poderá publicar exatamente toda a merda que encontrar, sem restrição. Acho que essa história fará de Shakespeare um mero divertidor do grande público.

— E qual a finalidade disso?

— Por que quero publicar uma história de escândalos sobre a família Vanger? Ou qual é minha motivação para pedir que escreva essa história?

— As duas coisas.

— Sinceramente, pouco me importa saber se o livro será publicado ou não. Mas acho que essa história merece ser escrita, nem que seja num único exemplar, que você depositará na Biblioteca Real. Quero minha história acessível à posteridade quando eu estiver morto. Minha motivação é a mais simples que se pode imaginar — vingança.

— E de quem você quer se vingar?

— Você não é obrigado a acreditar em mim, mas tentei ser um homem honesto, mesmo sendo um capitalista e um dirigente industrial. Tenho orgulho de que meu nome esteja associado a um homem que cumpriu sua palavra e suas promessas. Nunca me envolvi em jogos políticos. Nunca tive problemas para negociar com os sindicatos. E mesmo um socialdemocrata inveterado como Tage Erlander me respeitava. A meu ver, tratava-se de uma questão de ética; eu era responsável pelo ganha-pão de milhares de pessoas e cuidava dos meus empregados. É curioso, Martin tem a mesma atitude, embora seja um tipo de homem bem diferente. Ele também tentou agir de maneira correta. Talvez nem sempre tenhamos sido bem-sucedidos, mas de modo geral me envergonho de poucas coisas. Infelizmente, Martin e eu somos exceções em nossa família — prosseguiu Henrik Vanger. — Há muitas razões que explicam por que o grupo Vanger está hoje à beira da bancarrota, mas uma das mais importantes é a avidez de curto prazo de muitos membros da família. Se aceitar esse trabalho, explicarei direitinho como eles levaram o grupo a afundar.

Mikael refletiu por um instante.

— O.k. Mas também não vou mentir. Escrever um livro como esse exigirá meses de trabalho. Não tenho vontade nem força para isso.

— Acho que posso convencê-lo.

— Duvido. Mas você disse que há duas coisas que deseja que eu faça. Acabou de me dar o pretexto. Qual é o objetivo real?

Henrik Vanger levantou-se, mais uma vez com dificuldade, e foi buscar na mesa a fotografia de Harriet Vanger. Colocou-a na frente de Mikael.

— Se desejo que escreva uma biografia da família Vanger, é porque quero que trace um panorama das pessoas com olhos de jornalista. É também um pretexto para esquadrinhar a história da família. O que desejo realmente é que me resolva um mistério. Esse é o seu trabalho.

— Um mistério?

— Harriet, como eu disse, era a neta do meu irmão Richard, filha do filho dele. Éramos cinco irmãos. Richard o mais velho, nascido em 1907, e eu o mais novo, nascido em 1920. Não entendo como Deus pôde produzir um grupo de irmãos que...

Durante alguns segundos, Henrik Vanger perdeu o fio da meada e pareceu mergulhar nos próprios pensamentos. Depois virou-se para Mikael com uma nova resolução na voz.

— Deixe-me falar um pouco do meu irmão Richard Vanger. É também uma amostra da crônica que quero que escreva.

Serviu-se de café e ofereceu a Mikael uma segunda xícara.

— Em 1924, com dezessete anos, Richard era um nacionalista fanático. Antisemita notório, aderiu à Liga nacional-socialista sueca pela liberdade, um dos primeiros grupos nazistas suecos. É fascinante como os nazistas sempre conseguem colocar a palavra "liberdade" em sua propaganda, não é mesmo?

Henrik Vanger pegou outro álbum de fotografias e o folheou até encontrar a página buscada.

— Aqui está Richard na companhia de Birger Furugard, um veterinário que rapidamente passou a liderar o chamado Movimento de Furugard, principal grupo nazista dos anos 1930. Mas Richard não permaneceu nele. Um ano mais tarde, aderiu à SFKO, organização de luta fascista sueca. Ali conheceu Per Engdahl e outros indivíduos que ao longo dos anos haveriam de ser a vergonha da nação.

Virou uma página do álbum. Richard Vanger de uniforme.

— Em 1927, ele se juntou ao Exército, contra a vontade do nosso pai, e durante os anos 1930 aderiu à maior parte dos grupos nazistas do país. Você poderá encontrar seu nome na lista de membros até mesmo do menor grupo de conspiração. Em 1933 foi fundado o Movimento de Lindholm, isto é, o Partido Operário Nacional-socialista. Você está um pouco familiarizado com a história do nazismo sueco?

— Não sou historiador, mas li alguns livros.

— Bem, a Segunda Guerra começou em 1939 e a Guerra de Inverno da Finlândia em 1940. Muitos ativistas do Movimento de Lindholm se engajaram como voluntários a favor da Finlândia. Richard estava entre eles; era capitão do Exército sueco. Foi morto em 1940, pouco antes do acordo de paz com a União soviética. O movimento nazista o transformou num mártir e seu nome foi dado a um grupo de luta. Ainda hoje, alguns fanáticos se reúnem num cemitério de Estocolmo no dia do aniversário da morte de Richard Vanger para homenageá-lo.

— Entendo.

— Em 1926, quando tinha dezenove anos, ele frequentava uma certa Margareta, filha de um professor de Falun. Viam-se em contextos políticos e tiveram uma ligação da qual nasceu um filho, Gottfried, em 1927. Richard se casou com Margareta quando seu filho nasceu. Durante a primeira metade dos anos 1930, meu irmão instalou a mulher e o filho aqui em Hedestad, enquanto eu servia no regimento de Gävle. Ele ocupava quase todo o seu tempo com viagens de propaganda pró-nazismo. Em 1936, teve um sério atrito com meu pai. O resultado é que meu pai retirou toda a ajuda financeira a Richard, que a seguir foi obrigado a se manter sozinho. Ele se mudou para Estocolmo com a família, onde viveram em relativa pobreza.

— Ele não tinha seu próprio dinheiro?

— A parte que lhe cabia no grupo estava bloqueada. Não podia ser vendida fora da família. É preciso também dizer que Richard, em casa, era um tirano brutal. Batia na mulher e maltratava o filho. Gottfried era uma criança submissa e humilhada. Tinha treze anos quando Richard morreu na guerra; acho que foi o dia mais feliz da vida de Gottfried. Meu pai se compadeceu da viúva e do neto e os chamou de volta a Hedestad, alojando-os num apartamento e cuidando para que Margareta tivesse uma existência decente. Se Richard representava o lado sombrio e fanático da família, Gottfried representava seu lado preguiçoso. Quando completou dezoito anos, eu me encarreguei dele, afinal, era filho do meu falecido irmão, ainda que a diferença de idade entre nós não fosse grande. Eu era apenas sete anos mais velho que meu sobrinho, mas já estava na direção do grupo e era evidente que assumiria o comando depois do meu pai, enquanto Gottfried era praticamente considerado um intruso na família.

Henrik Vanger refletiu por um momento.

— Meu pai não sabia muito bem como se comportar com o neto e fui eu que insisti para que cuidássemos dele. Arranjei-lhe trabalho no grupo, isso depois da guerra. Sem dúvida ele tentou desempenhar honestamente suas tarefas, mas tinha dificuldade em se concentrar. Era um cabeça-tonta, charmoso e festeiro, sempre às voltas com mulheres, e havia épocas em que bebia muito. Eu não sabia definir meus sentimentos por ele... não era um incapaz, mas estava longe de ser confiável, e muitas vezes me decepcionou profundamente. Com os anos tornou-se alcoólatra e, em 1965, morreu afogado num acidente. Aconteceu aqui, na outra extremidade da ilha, onde construíra uma cabana para a qual se retirava seguidamente a fim de beber.

— Então ele é o pai de Harriet e de Martin? — perguntou Mikael, apontando para o retrato sobre a mesa baixa. A contragosto, foi obrigado a reconhecer que o relato do velho o interessava.

— Exatamente. No fim dos anos 1940, Gottfried conheceu uma mulher chamada Isabella Koenig, uma jovem alemã que havia chegado à Suécia depois da guerra. Isabella era uma mulher linda, tão linda como Greta Garbo ou Ingrid Bergman. Sem dúvida Harriet herdou genes mais de Isabella que de Gottfried. Como você pode ver na foto, ela já era muito bonita com apenas catorze anos.

Imitando Henrik Vanger, Mikael contemplou a foto.

— Mas deixe-me prosseguir. Isabella nasceu em 1928 e ainda está viva. Tinha onze anos quando estourou a guerra, e você bem pode imaginar o que era ser adolescente em Berlim com a aviação aliada despejando bombas sobre a cidade. Imagino que, quando desembarcou na Suécia, ela teve a impressão de estar chegando ao paraíso. Infelizmente, tinha muitos vícios em comum com Gottfried: era esbanjadora e vivia o tempo todo em festas; ela e Gottfried mais pareciam companheiros de bebida que marido e mulher. Viajava sem parar, na Suécia e no exterior, e de maneira geral não tinha o menor senso de responsabilidade. O que evidentemente afetou os filhos. Martin nasceu em 1948 e Harriet em 1950. A infância deles foi caótica, com uma mãe que a toda hora os abandonava e um pai que afundava no alcoolismo. Em 1958 resolvi intervir. Gottfried e Isabella moravam em Hedestad e forcei-os a se mudar para cá. Eu estava começando a ficar cansado daquilo e decidi romper aquele círculo infernal. Martin e Harriet viviam ao deus-dará. Henrik Vanger olhou seu relógio.

— Meus trinta minutos se esgotaram, mas estou chegando ao final da história. Concede-me alguns minutos mais?

Mikael balançou a cabeça e falou:

— Continue.

— Vou ser breve então. Eu não tinha filhos, um contraste considerável com os outros irmãos e membros da família, que pareciam obcecados pela necessidade estúpida de perpetuar a linhagem. Gottfried e Isabella vieram morar aqui, mas o casamento começou a se desfazer. Depois de um ano, Gottfried se instalou em sua cabana, onde passava longos períodos sozinho, só retornando à casa de Isabella quando estava muito frio. Acabei me encarregando de Martin e de Harriet. Em mais de um aspecto eles passaram a ser os filhos que nunca tive. Martin era... Para dizer a verdade, houve um momento em sua juventude em que temi que seguisse as pegadas do pai. Era indolente, introvertido e hipocondríaco, mas também podia ser charmoso e entusiasta. Passou por alguns anos difíceis na adolescência, mas se endireitou ao começar a universidade. Ele... bem, apesar de tudo ele é o diretor-executivo do que resta do grupo Vanger, o que deve ser encarado como um saldo razoável.

— E Harriet? — perguntou Mikael.

— Harriet tornou-se a menina dos meus olhos. Tentei dar a ela segurança e, a partir daí, confiança em si mesma. Nós dois nos entendíamos muito bem. Considerava-a como filha e ela passou a ser mais próxima de mim que dos próprios pais. Entenda, Harriet era uma menina muito especial. Introvertida como o irmão, na adolescência teve uma atração romântica pela religião, o que a distinguia de todos os outros membros da família. Mas também tinha talentos evidentes e uma inteligência rara. Um grande senso moral e uma grande honestidade. Quando estava com catorze, quinze anos, eu tinha a certeza de que ela, mais do que o irmão e todos os primos e sobrinhos ao meu redor, seria um dia chamada para dirigir o grupo Vanger ou, pelo menos, para desempenhar algum papel central nele.

— E o que aconteceu?

— Chegamos agora à verdadeira razão pela qual eu gostaria de contratá-lo. Quero que descubra quem, na família, assassinou Harriet Vanger e há quase quarenta anos vem tentando me fazer mergulhar na loucura.


5. QUINTA-FEIRA 26 DE DEZEMBRO

Pela primeira vez desde que Henrik Vanger iniciara seu monólogo, o velho conseguiu surpreender Mikael, que pediu mesmo que ele repetisse, para estar certo de ter ouvido bem. Nenhuma das informações que colhera na internet sugeria que um assassinato tivesse ocorrido na família Vanger.

— Foi em 22 de setembro de 1966. Harriet tinha dezesseis anos e acabava de se classificar em primeiro lugar no colégio. Era um sábado e foi o pior dia da minha vida. Reconstituí o desenrolar dos acontecimentos tantas vezes que penso ser capaz de descrever minuto a minuto o que se passou naquele dia, exceto o mais importante.

Fez um gesto com a mão, como se varresse o ar.

— Grande parte da família estava reunida aqui nesta casa. Era um daqueles terríveis jantares anuais de família, quando sócios do grupo Vanger se reuniam para discutir negócios. Meu avô criara essa tradição na sua época, e o resultado, na maioria das vezes, eram reuniões mais ou menos detestáveis. A tradição chegou ao fim nos anos 1980, quando Martin decidiu, pura e simplesmente, que todas as discussões relativas à empresa ocorreriam nas reuniões e nas assembléias regulares. Foi a melhor decisão que tomou na vida. Faz vinte anos que a família não se reúne para esse tipo de encontro.

— Você disse que Harriet foi assassinada...

— Espere. Deixe-me contar o que aconteceu. Era um sábado, portanto. Era também a Festa das Crianças, com um desfile organizado pelo clube de atletismo de Hedestad. Harriet foi à cidade, durante o dia, para assistir ao desfile com alguns colegas do colégio. Voltou um pouco depois das duas da tarde; o jantar estava previsto para as cinco e ela era esperada, como todos os outros jovens da família.

Henrik Vanger levantou-se e foi até a janela. Fez um sinal para que Mikael o acompanhasse e apontou com um dedo:

— As duas e quinze, alguns minutos depois de Harriet ter chegado em casa, um acidente terrível aconteceu ali na ponte. Um certo Gustav Aronsson, irmão de um proprietário rural de Östergarden, uma fazenda aqui da ilha, entrou de carro na ponte e colidiu de frente com um caminhão-tanque que se dirigia à ilha para fornecer óleo doméstico. Nunca se chegou a estabelecer realmente como o acidente ocorreu, pois há boa visibilidade nos dois sentidos, mas ambos vinham muito depressa, e o que podia ter sido um acidente menor se transformou em uma catástrofe. O motorista do caminhão tentou evitar a colisão girando instintivamente o volante. O caminhão-tanque bateu na grade lateral e virou, ficando atravessado na ponte com a traseira em grande parte para fora da beirada... Uma barra de metal furou o tanque, e óleo inflamável começou a vazar. Enquanto isso, Gustav Aronsson, prensado no carro e sofrendo terrivelmente, berrava sem parar. O motorista do caminhão-tanque também se feriu, mas conseguiu sair da cabine.

O velho fez uma pausa e voltou a se sentar.

— Na verdade, o acidente não teve relação alguma com Harriet. Mas, de certo modo, desempenhou seu papel. Pois foi um caos completo quando as pessoas correram para ajudar. Havia ameaça de incêndio, e o alerta foi dado. A polícia, uma ambulância, as primeiras pessoas aproximando-se depressa para socorrer, os bombeiros, jornalistas e curiosos acorreram na maior desordem ao local. Evidentemente, todos se amontoavam do lado do continente, enquanto na ilha fazíamos o possível para tirar Aronsson dos destroços, o que acabou sendo uma tarefa terrivelmente difícil. Ele estava prensado e seriamente ferido. Tentamos retirá-lo das ferragens com a força das mãos, mas não adiantou. Era preciso usar uma serra. O problema é que não podíamos fazer nada que produzisse fagulhas, estávamos no meio de um mar de óleo ao lado de um caminhão-tanque virado. Se ele explodisse, seria o nosso fim. Demorou algum tempo até chegarem reforços do continente; o caminhão atravessado obstruía a ponte, e passar por cima do tanque era o mesmo que escalar uma bomba.

Mikael teve a impressão de que o velho fazia um relato minuciosamente ensaiado e calculado com a intenção de captar seu interesse. E foi obrigado a admitir que Henrik Vanger era um excelente contador de histórias. Sabia cativar o ouvinte. No entanto, ele continuava sem ter a menor idéia de que rumo a história tomaria.

— O importante nesse acidente é que a ponte permaneceu fechada durante as vinte e quatro horas seguintes. Só no fim da tarde de domingo é que conseguiram bombear o óleo que restava no tanque, remover o caminhão e reabrir a ponte para circulação. Durante essas vinte e quatro horas, a ilha esteve separada do mundo. O único meio de se chegar ao continente era através de uma canoa dos bombeiros, mobilizada para transportar as pessoas do porto de recreio na ilha até o velho porto atrás da igreja. Durante várias horas, o barco só foi utilizado pelos socorristas. Só bem tarde no sábado, à noite, é que começaram a transportar os moradores. Entende o que isso significa?

Mikael assentiu com a cabeça.

— Suponho que alguma coisa aconteceu a Harriet na ilha e que o número de suspeitos se limita às pessoas que estavam aqui. Uma espécie de versão insular do mistério do quarto fechado?

Henrik Vanger deu um sorriso irônico.

— Mikael, você não sabe o quanto tem razão. Eu também li Dorothy Sayers. Eis os fatos comprovados: Harriet chegou aqui por volta das duas e dez. Se contarmos também as crianças e os casais não casados, ao todo haviam chegado cerca de quarenta pessoas durante o dia. Contando empregados e moradores fixos, havia sessenta e quatro pessoas aqui ou nos arredores da casa. Alguns, os que pretendiam passar a noite, ocupavam-se em se instalar nas casas vizinhas ou nos quartos de hóspedes. Harriet havia morado antes numa casa do outro lado da estrada, mas, como já contei, nem seu pai Gottfried nem sua mãe Isabella eram muito estáveis, e percebi o quanto Harriet andava atormentada. Não conseguia se concentrar nos estudos e, em 1964, quando completou catorze anos, fiz que viesse se instalar aqui em casa. Isabella certamente achou cômodo poder desembaraçar-se dos cuidados que a filha representava. Harriet tinha um quarto no andar de cima, e passamos dois anos juntos. Assim, foi para cá que ela veio naquele dia. Sabemos que trocou algumas palavras com Harald Vanger no pátio, ele é um dos meus irmãos. Depois, subiu a escada e veio até aqui, a este cômodo, me dar um alô. Disse que queria me contar alguma coisa. Outros membros da família estavam comigo nesse momento e não tive tempo para escutá-la. Mas ela parecia tão preocupada que prometi ir ao seu quarto sem demora. Ela concordou com a cabeça e saiu por aquela porta. Foi a última vez que a vi. Um minuto mais tarde, houve o choque na ponte e o caos que se seguiu alterou todos os outros planos do dia.

— Como ela morreu?

— Espere. A coisa é mais complicada e devo contar a história em ordem cronológica. Quando ocorreu a colisão, as pessoas deixaram tudo o que estavam fazendo e se precipitaram ao local do acidente. Eu era... digamos que assumi a direção das operações, não pensei em outra coisa nas horas seguintes. Sabemos que Harriet também foi até a ponte depois da colisão, várias pessoas a viram, mas o risco de explosão me fez ordenar que todos que não estavam ajudando a retirar Aronsson dos destroços se afastassem. Éramos somente cinco pessoas no local do acidente: eu e meu irmão Harald; Magnus Nilsson, espécie de empregado faz-tudo em minha casa; um operário da serraria chamado Sixten Nordlander, que morava numa cabana junto ao porto de recreio; e um jovem chamado Jerker Aronsson. Este tinha dezesseis anos e eu devia tê-lo mandado embora, mas era o sobrinho do Aronsson prensado dentro do carro e chegara de bicicleta um minuto ou dois após o acidente; ele estava indo para a cidade. Por volta das vinte para as três, Harriet estava na cozinha, aqui em casa. Bebeu um copo de leite e trocou algumas palavras com Astrid, a cozinheira. Juntas, elas ficaram olhando pela janela o que se passava na ponte. As cinco para as três, Harriet atravessou o pátio. Foi vista, entre outros, pela mãe, Isabella, mas elas não se falaram. Um minuto depois, ela cruzou com Otto Falk, o pastor de Hedeby. Nessa época, o presbitério ficava onde hoje Martin Vanger tem a sua casa, do lado de cá da ponte. O pastor, resfriado, fazia uma sesta quando a colisão ocorreu; não vira o acidente, acabavam de informá-lo e ele se dirigia apressado à ponte. Harriet o deteve no caminho, queria falar com ele, mas o pastor a interrompeu com um gesto de mão e prosseguiu em seu caminho. Otto Falk é a última pessoa que a viu viva.

— Como ela morreu? — repetiu Mikael.

— Não sei — respondeu Henrik Vanger com um olhar atormentado. — Só conseguimos retirar Aronsson do carro por volta das cinco da tarde (aliás, mesmo gravemente ferido, ele sobreviveu) e as seis a ameaça de incêndio já não existia. A ilha continuava isolada, mas as coisas começavam a se acalmar. Só nos demos conta da ausência de Harriet no momento em que nos sentamos à mesa para um jantar tardio, às oito da noite. Enviei uma de suas primas para chamá-la no quarto, mas ela voltou dizendo que não a encontrara. Isso não me deixou muito inquieto; achei que ela resolvera dar uma volta ou que não fora informada de que o jantar estava servido. E durante a noite estive ocupado com diversas disputas familiares. Só na manhã seguinte, porque Isabella a procurava, é que percebemos que ninguém sabia onde ela estava e que ninguém a vira desde a véspera.

Ele abriu amplamente os braços.

— Desde esse dia, Harriet Vanger continua desaparecida, sem que haja o menor sinal dela.

— Desaparecida? — ecoou Mikael.

— Em todos esses anos não conseguimos descobrir nada, nem um fragmento microscópico dela.

— Mas, se ela desapareceu, então não se pode afirmar que tenha sido assassinada.

— Entendo sua alegação. Meus pensamentos seguiram o mesmo caminho. Quando alguém desaparece sem deixar sinal, quatro coisas podem ter acontecido. A pessoa resolveu desaparecer por livre e espontânea vontade e está escondida. Pode ter sofrido um acidente fatal. Pode ter se suicidado. E, por fim, pode ter sido vítima de um crime. Pesei todas as possibilidades.

— E por que acha que alguém a matou?

— Porque é a única conclusão plausível. Henrik Vanger levantou um dedo e continuou:

— No início achei que ela tivesse fugido. Mas os dias se passaram e todos nós percebemos que não era esse o caso. Quero dizer: uma jovem de dezesseis anos que vivia num ambiente relativamente protegido, mesmo sendo esperta, como poderia se virar, se esconder e permanecer escondida sem ser descoberta? Onde conseguiria dinheiro? E, mesmo se arranjasse trabalho em algum lugar, precisaria de um documento de identidade e de um endereço.

Levantou dois dedos.

— Meu segundo raciocínio, evidentemente, é que ela tenha sofrido um acidente. Faça-me um favor, abra a gaveta de cima da escrivaninha. Vai encontrar um mapa ali.

Mikael fez o que ele pedia, depois abriu o mapa sobre a mesa baixa. Hedebyön, a ilha, era uma massa de terra irregular de cerca de três quilômetros de comprimento e um e meio em sua parte mais larga. Um bom trecho da ilha era constituído de floresta. As moradias se concentravam ao redor da ponte e do porto de recreio; na outra extremidade da ilha havia uma fazenda, Östergarden, de onde o infeliz Aronsson iniciara seu trajeto de carro.

— Lembre que ela não deixou a ilha — sublinhou Henrik Vanger. — Aqui em Hedebyön pode-se morrer num acidente como em qualquer lugar do mundo. A pessoa pode ser atingida por um raio, embora naquele dia não tivesse desabado nenhuma tempestade. Pode ser pisoteada por um cavalo, cair num poço ou numa furna. Certamente há inúmeras maneiras de se sofrer um acidente aqui. Refleti sobre tudo isso.

Ele ergueu um terceiro dedo.

— Resta um problema, e equivale também à terceira possibilidade: que, contra todas as expectativas, ela tenha se suicidado. Mas então o corpo teria sido encontrado em alguma parte desta área tão limitada.

Henrik Vanger espalmou a mão no meio do mapa.

— Nos dias seguintes ao desaparecimento, organizamos uma batida, primeiro num sentido, depois no outro. Os homens vasculharam o menor fosso, a menor porção de mato, tudo que se assemelhasse a uma furna ou a um monte de terra. Examinamos cada construção, cada chaminé, cada poço, cada granja, cada celeiro.

O velho moveu a cabeça e olhou para fora. Começava a escurecer. Sua voz ficou mais baixa e mais intimista.

— No outono continuei procurando-a, depois que as buscas tinham se encerrado e todos já haviam desistido. Quando eu não estava ocupado com meu trabalho, percorria a ilha em todas as direções. O inverno chegou sem que tivéssemos encontrado o menor sinal dela. Na primavera eu prossegui, mesmo sabendo que meus esforços eram irracionais. O verão chegou, contratei três peritos em floresta, que reiniciaram as buscas com cães. Eles rastrearam sistematicamente cada metro quadrado da ilha. Eu começava a considerar que alguém podia ter feito mal a ela. Assim, eles buscavam uma espécie de cova onde a tivessem enterrado. Procuraram por três meses. Não encontramos o menor sinal de Harriet. É como se ela tivesse evaporado.

— Há outras possibilidades — lembrou Mikael.

— Diga.

— Ela pode ter se afogado, acidental ou voluntariamente. Estamos numa ilha e a água pode ocultar muitas coisas.

— E verdade. Mas não é muito provável. Veja: se Harriet sofreu um acidente e se afogou, isso logicamente deve ter acontecido muito perto do povoado. Lembre que a confusão na ponte era o maior drama que Hedebyön vivia desde muitas décadas, e seria estranho uma jovem de dezesseis anos escolher bem esse momento para ir passear do outro lado da ilha. Mais importante ainda — prosseguiu — é que não há muitas correntes por aqui, e nessa época do ano os ventos costumam soprar do norte e do nordeste. Qualquer coisa que caísse na água teria sido lançada à praia do lado da terra firme, onde há construções praticamente ao longo de toda a costa. Claro que pensamos nisso e investigamos todos os locais onde ela poderia ter caído na água. Também contratei jovens de um clube de mergulho de Hedestad. Passaram o verão esquadrinhando o fundo do canal e das praias próximas... Nenhum sinal. Estou convencido de que ela não está no mar, senão a teríamos encontrado.

— E se ela sofreu um acidente em outra parte? A ponte estava fechada, é verdade, mas a distância entre a ilha e o continente não é grande. Ela pode ter atravessado a nado ou de barco.

— Era final de setembro, a água estava muito fria. Se Harriet decidisse tomar banho no meio da confusão geral, teria sido vista e chamaria a atenção. Havia gente na ponte e, do lado da terra firme, duzentas ou trezentas pessoas observavam a cena.

— E um barco?

— Naquele dia havia exatamente treze barcos em Hedebyön. A maioria já havia deixado o mar. No porto de recreio, apenas dois estavam na água. Havia sete barcos, cinco dos quais já trazidos para a praia. Abaixo do presbitério, havia um bote recolhido em terra e um na água. Todos esses barcos foram verificados e se achavam exatamente em seus respectivos lugares. Se ela tivesse feito a travessia a remo, teria sido obrigada a deixar a embarcação do outro lado.

Henrik Vanger levantou um quarto dedo.

— Só resta uma possibilidade verossímil, a de que Harriet desapareceu contra a sua vontade. Alguém lhe fez mal e deu sumiço no corpo.

Lisbeth Salander passou a manhã de Natal lendo o controvertido livro de Mikael Blomkvist sobre jornalismo econômico. O livro tinha duzentas e dez páginas e chamava-se Os templários, com o subtítulo O jornalismo econômico em questão. A capa, de design muito moderno, assinada por Christer Malm, representava a Bolsa de Estocolmo. Christer trabalhara no Photoshop e o observador levava algum tempo para perceber que o prédio flutuava livremente no ar. Não havia fundo. Difícil imaginar uma capa mais explícita e eficaz para dar o tom do que viria a seguir.

Salander constatou que Blomkvist tinha um estilo excelente. O livro era escrito de maneira direta e envolvente, e mesmo pessoas que não conheciam os meandros do jornalismo econômico podiam ler e tirar proveito. O tom era mordaz e sarcástico, mas sobretudo convincente.

O primeiro capítulo era uma espécie de declaração de guerra em que Blomkvist falava sem papas na língua. Os analistas econômicos suecos haviam se tornado, nos últimos anos, um grupo de lacaios incompetentes, que se julgavam importantes e não possuíam o menor pensamento crítico. Mikael chegava a essa conclusão depois de mostrar que os jornalistas econômicos se contentavam o tempo todo, e sem a menor objeção, em reproduzir as afirmações transmitidas por dirigentes de empresas e especuladores da Bolsa — mesmo quando essas afirmações eram claramente falaciosas e errôneas. Esses jornalistas, portanto, ou eram ingênuos e crédulos que deviam ser demitidos de seus cargos, ou, pior, gente que traía deliberadamente sua missão jornalística por não proceder a exames críticos e por não fornecer ao público uma informação correta. Blomkvist escrevia que muitas vezes se envergonhava de ser qualificado como jornalista econômico, pois se arriscava a ser confundido com pessoas que ele não considerava nem mesmo jornalistas.

Blomkvist comparava as contribuições dos analistas econômicos com o trabalho dos jornalistas especializados em assuntos criminais ou dos correspondentes no exterior. Traçava um panorama dos protestos que se levantariam se um jornalista jurídico de um grande jornal passasse a publicar, sem o menor senso crítico, afirmações do promotor, dando-as automaticamente como verídicas, por exemplo, no processo de um assassinato, sem buscar as informações da defesa e sem entrevistar a família da vítima, para formar uma idéia do que seria plausível ou não. Dizia que as mesmas regras deviam se aplicar aos jornalistas econômicos.

O restante do livro trazia uma série de provas que reforçavam o discurso da introdução. Um longo capítulo examinava declarações sobre uma empresa "pontocom" em seis importantes jornais, bem como nas revistas Finanstidningen, Dagens Industri e no programa de tevê A-ekonomi. Primeiro ele reproduzia essas citações e depois acrescentava o que os repórteres tinham dito e escrito, antes de comparar com a situação real. Descrevendo o desenvolvimento da empresa, várias vezes ele mencionava perguntas simples que um jornalista sério teria feito, mas que o grupo de especialistas da economia não fizera, numa clara omissão.

Outro capítulo abordava a privatização da Telia — era a parte mais cômica e irônica do livro, na qual articulistas econômicos declaradamente citados eram reduzidos a pó, entre os quais um certo William Borg, contra quem Mikael parecia sentir uma particular hostilidade. Outro capítulo, mais no final do livro, comparava o nível de competência entre jornalistas econômicos suecos e estrangeiros. Blomkvist descrevia a maneira como jornalistas sérios do Financial Times, The Economist e de alguns periódicos econômicos alemães haviam noticiado os mesmos assuntos em seus países. A comparação não era muito favorável aos jornalistas suecos. O último capítulo esboçava uma proposta para corrigir essa lamentável situação. A conclusão do livro remetia de volta à introdução:

Se um repórter, no Parlamento, realizasse sua tarefa do mesmo modo, sustentando sem a menor crítica cada moção proposta, ainda que totalmente insensata, ou se um jornalista político carecesse de uma forma semelhante de julgamento, esse jornalista seria despedido ou pelo menos transferido a um serviço no qual ele ou ela não pudesse causar prejuízos. No jornalismo econômico, porém, não é a missão jornalística natural que prevalece, ou seja, oferecer aos leitores análises críticas e um relato objetivo dos resultados. Não, aqui se celebra o vigarista mais bem-sucedido. E é assim que o futuro da Suécia está sendo moldado, minando-se a última confiança ainda depositada nos jornalistas como categoria profissional.

Não havia rodeios. O tom era áspero e Salander não teve dificuldade em entender o debate enfurecido que se seguiu tanto no Journalisten, o órgão da categoria, em alguns jornais de economia como também nos artigos de fundo das revistas especializadas. Mesmo que apenas um número pequeno de jornalistas econômicos tivesse sido mencionado no livro, Lisbeth Salander supunha que a corporação era bastante pequena para que todos soubessem exatamente quem era visado quando se citavam as diferentes publicações. Blomkvist arranjara sérios inimigos, o que se refletia também nas dezenas de comentários que se alegravam de maneira maldosa com a sentença do caso Wennerström.

Ela fechou o livro e observou a fotografia do autor na quarta capa. Mikael Blomkvist aparecia numa foto pequena. Uma mecha castanho-clara pendia displicentemente sobre a testa, como se uma rajada de vento tivesse passado bem na hora em que o fotógrafo acionou o botão da máquina, ou como se (o que era mais provável) o ilustrador Christer Malm tivesse feito algum retoque. Ele olhava para a objetiva com um sorriso irônico e um olhar que certamente pretendia ser charmoso e travesso. Um cara bastante atraente. Tirado de circulação por três meses de prisão.

— Muito bem, Super-Blomkvist — disse ela em voz alta. — Você só quis se divertir um pouco, não foi?

* * *

Por volta do meio-dia, Lisbeth Salander ligou seu notebook e abriu o programa Eudora para passar um e-mail. Digitou uma única e eloquente linha:

[Vc tem tempo?]

Assinou Wasp e enviou a mensagem para Praga_xyz_666@hotmail.com. Por precaução, passou pelo programa de encriptação PGP.

Depois vestiu um jeans preto, botas de inverno, malha de gola alta, jaqueta escura, luvas, um gorro e um cachecol da mesma cor amarelo-pálido. Tirou os anéis das sobrancelhas e do nariz, passou nos lábios um batom cor-de-rosa e examinou-se no espelho do banheiro. Estava parecida com qualquer pessoa que fosse passear num domingo e achou que sua indumentária era uma camuflagem de combate adequada para uma incursão às linhas inimigas. Tomou o metrô de Zinkensdamm na Östermalmstorg e depois foi a pé para a Strandvägen. Caminhou pelo canteiro central enquanto ia lendo o número dos prédios. Um pouco antes de chegar à ponte de Djurgarden, deteve-se e contemplou a porta que procurava. Atravessou a rua e esperou a alguns metros da entrada.

Observou que a maioria das pessoas que havia saído para passear nesse dia frio de Natal andava no meio da rua; somente uns poucos utilizavam a calçada diante dos prédios.

Foi preciso esperar cerca de meia hora até que uma mulher já de uma certa idade se aproximasse, com uma bengala, vindo da Djurgarden. A mulher parou e lançou um olhar desconfiado a Salander, que sorriu amavelmente e cumprimentou-a com um breve movimento de cabeça. A senhora com a bengala devolveu o cumprimento e pareceu tentar se lembrar de onde conhecia a jovem. Salander deu-lhe as costas e se afastou da porta com alguns passos, como se estivesse andando para lá e para cá à espera de alguém. Quando se virou de novo, a senhora já estava diante da porta, digitando o código de acesso com muita aplicação. Salander não teve dificuldade em vê-la digitar 1260.

Esperou mais cinco minutos antes de se aproximar da porta. Quando acionou o código, a fechadura emitiu um estalo. Ela abriu a porta e olhou para dentro. No hall havia uma câmera de segurança, ela deu uma espiada e depois a ignorou; o modelo, vendido pela Milton Security, só era ativado em caso de arrombamento. No fundo, à esquerda, passando um elevador antigo, havia outra porta com um código de segurança; ela testou 1260 e constatou que a combinação da porta de entrada era a mesma da porta de acesso ao subsolo e ao depósito de lixo. Que negligência! Levou exatamente três minutos para examinar o subsolo, onde localizou uma lavanderia destrancada e um local de triagem do lixo. Depois utilizou um conjunto de chaves falsas que havia pegado "emprestadas" do serralheiro da Milton para abrir uma porta trancada que dava para o que parecia ser a sala de reuniões do condomínio. Bem ao fundo havia um local para jogos e passatempos. Por fim encontrou o que procurava — o quadro de luz do prédio. Examinou os relógios, os fusíveis e as junções, tirou do bolso uma máquina fotográfica digital, uma Canon do tamanho de um maço de cigarros. Tirou três fotos do que a interessava.

Ao sair, passou os olhos pela lista de nomes junto ao elevador e leu o do último andar: Wennerström.

Depois deixou o prédio e andou com passos rápidos até o Museu Nacional. Entrou na cafeteria para se aquecer e tomar um café. Meia hora depois, retornou ao Söder e subiu ao seu apartamento.

Ela recebera uma resposta de Praga_xyz_666@hotmail.com. Descriptografou-a em PGP, e a resposta lacônica formava simplesmente o número 20.


6. QUINTA-FEIRA 26 DE DEZEMBRO

O prazo de trinta minutos fixado por Mikael Blomkvist fora amplamente ultrapassado. Eram quatro e meia e não havia mais como cogitar o trem da tarde. Mas Mikael ainda podia pegar o trem das nove e meia da noite. De pé diante da janela, ele massageou a nuca enquanto contemplava a fachada iluminada da igreja do outro lado da ponte. Henrik Vanger mostrara-lhe um álbum de recortes com artigos sobre o acontecimento publicados tanto nos jornais da região quanto na imprensa nacional. O interesse da mídia fora relativamente grande durante algum tempo — a filha de uma célebre família industrial desaparecida sem deixar vestígios era uma notícia e tanto. Mas, como o corpo não foi encontrado e as investigações não avançaram, o interesse foi diminuindo. Embora o caso Harriet Vanger envolvesse uma ilustre família industrial, passados mais de trinta e seis anos era uma história esquecida. A teoria preponderante nos artigos do final dos anos 1960 era de que ela se afogara e fora arrastada ao largo — uma tragédia que podia atingir qualquer família.

Curiosamente, Mikael ficara fascinado com o relato do velho, mas, quando Henrik Vanger pediu uma pausa para ir ao banheiro, Mikael voltou a ficar cético. No entanto o velho ainda não concluíra a história e Mikael prometera escutá-lo até o fim.

— E o que aconteceu a ela, na sua opinião? — perguntou Mikael quando Henrik voltou.

— Normalmente, cerca de vinte e cinco pessoas tinham domicílio permanente aqui, mas por causa da reunião familiar havia umas sessenta pessoas na ilha naquele dia. Dessas, entre vinte e vinte e cinco podem ser excluídas. Creio que um desses que restam, muito provavelmente alguém da família, matou Harriet e escondeu o corpo.

— É preciso levar em conta algumas coisas.

— Diga.

— Bem, uma, evidentemente, é que mesmo que alguém tivesse escondido o corpo, ele teria sido descoberto se as buscas foram mesmo tão minuciosas como você disse.

— Para falar a verdade, as buscas foram ainda mais amplas do que descrevi. Só quando comecei a pensar que Harriet podia ter sido vítima de um assassinato foi que me dei conta de que o corpo podia ter desaparecido de outras formas. Não posso provar que o que digo é verdade, mas estamos dentro dos limites do possível.

— Certo, continue.

— Harriet desapareceu por volta das três da tarde. As cinco para as três, o pastor Otto Falk a viu, quando se dirigia apressado ao local do acidente. Mais ou menos no mesmo instante, um fotógrafo do jornal local passou a tirar um grande número de fotos de todo o drama. Nós, isto é, a polícia, examinamos essas fotos e constatamos que Harriet não aparecia em nenhuma delas; em compensação, todas as outras pessoas que moravam na ilha podiam ser vistas em pelo menos uma fotografia, com exceção das crianças muito pequenas.

Henrik Vanger foi buscar outro álbum, que colocou sobre a mesa diante de Mikael.

— São as fotos daquele dia. A primeira foi tirada em Hedestad, durante o desfile das crianças. Pelo mesmo fotógrafo. Foi tirada à uma e quinze e nela Harriet aparece.

A foto fora tirada do primeiro andar de uma casa e via-se uma rua por onde passava o desfile — caminhões com palhaços e meninas com maio de banho. Espectadores amontoavam-se na calçada. Henrik Vanger mostrou uma pessoa na multidão.

Загрузка...