— É cobra mandada — respondeu Mikael calmamente. Ele perscrutou Martin Vanger com o olhar.
— Espero que não pense que eu tenho algo a ver com isso. Mal consegui engolir meu café hoje de manhã, ao ler o jornal.
— Quem teria sido?
— Dei alguns telefonemas agora há pouco. Conny Torsson está cobrindo férias de verão. Mas ele fez esse trabalho a pedido de Birger.
— Não sabia que Birger tinha influência na redação. Pensei que fosse apenas conselheiro municipal e político.
— Formalmente não tem influência alguma. Mas o redator-chefe do Kuriren é Gunnar Karlman, filho de Ingrid Vanger, do ramo Johan Vanger. Birger e Gunnar são amigos íntimos há muitos anos.
— Entendo.
— Torsson será despedido imediatamente.
— Que idade ele tem?
— Não sei. Para dizer a verdade, nunca o vi.
— Não o demita. Quando ele me telefonou, parecia bastante jovem e um repórter pouco experiente.
— Mas isso não pode ficar assim.
— Se quer saber minha opinião, acho um pouco absurdo o redator-chefe de um jornal que pertence à família Vanger atacar outro periódico que tem Henrik Vanger como sócio e de cujo conselho administrativo você participa. O redator-chefe Karlman está atacando Henrik e você.
Martin Vanger pesou as palavras de Mikael e assentiu lentamente com a cabeça.
— Entendo o que quer dizer. Eu deveria apurar melhor as responsabilidades. Karlman tem participações no grupo e sempre tentou me atacar pelas costas, mas isso está me parecendo mais uma vingança do Birger por você ter batido boca com ele no corredor do hospital. Para ele, você é uma pedra no sapato.
— Sim, e é por isso que acho Torsson o mais inocente de todos. É muito raro um jovem jornalista substituto dizer não quando o redator-chefe lhe ordena que escreva desse ou daquele modo.
— Posso exigir que lhe apresentem desculpas públicas nas páginas de amanhã.
— Não faça isso. O único resultado seria uma luta interminável, o que só pioraria a situação.
— Está querendo me dizer que não devo fazer nada?
— Sim, será melhor. Karlman inventará histórias, e você corre o risco de ser classificado como um proprietário com vontade de influenciar de maneira ilícita a opinião do público.
— Desculpe, Mikael, mas não concordo com você. Também tenho o direito de emitir minha opinião. Acho esse artigo imundo e tenho a intenção de deixar bem claro o que penso. Afinal, sou o suplente de Henrik na direção da Millennium e não posso me calar diante dessas insinuações.
— Tudo bem.
— Vou exigir direito de resposta. E, se eu fizer Karlman parecer um idiota, a culpa é dele.
— Certo, aja de acordo com as suas convicções.
— Para mim também é importante que você saiba que eu nada tive a ver com esse ataque infame.
— Acredito em você — disse Mikael.
— Além do mais, não vou discutir o assunto agora, mas isso remete à nossa conversa de antes. E importante que você volte à redação da Millennium para que possamos montar uma frente unida. Enquanto estiver ausente, os boatos vão continuar. Acredito na Millennium e estou convencido de que podemos vencer essa batalha juntos.
— Entendo seu ponto de vista, mas agora é a minha vez de discordar. Não posso romper meu contrato com Henrik e na verdade também não desejo rompê-lo. Gosto dele, você sabe. E essa história da Harriet...
— Sim?
—— Sei que é uma história penosa para você e sei que Henrik está obcecado há anos por ela.
— Cá entre nós, gosto de Henrik e ele é o meu mentor, mas, no que diz respeito a Harriet, essa obsessão virou uma ocupação de aposentado.
— Quando comecei esse trabalho, achei que seria uma perda de tempo. Mas o fato é que, contra todas as expectativas, encontramos novidades. Acho que estamos perto de uma descoberta e que talvez seja possível explicar o que aconteceu.
— Não quer me dizer o que foi que descobriu?
— De acordo com o contrato, não posso falar disso com ninguém sem o consentimento de Henrik.
Martin Vanger pôs a mão no queixo. Mikael viu dúvida nos olhos dele, mas por fim Martin se decidiu.
— Certo, nesse caso o melhor a fazer é resolver primeiro o mistério de Harriet. Darei todo o apoio que puder para que você termine o trabalho de forma satisfatória, o mais rápido possível, e em seguida retorne à Millennium.
— Que bom. Não tenho vontade de ser obrigado a lutar contra você também.
— Não será necessário. Tem meu inteiro apoio. Pode me procurar quando quiser, se tiver problemas. Pressionarei Birger para que não crie mais obstáculos. E tentarei acalmar Cecilia.
— Obrigado. Preciso fazer umas perguntas a ela, mas há um mês vem evitando minhas tentativas de conversa.
Martin Vanger sorriu.
— Talvez tenha outras coisas a acertar com ela. Mas não é da minha conta.
Despediram-se com um aperto de mão.
Lisbeth Salander havia escutado em silêncio a conversa entre Mikael e Martin Vanger. Assim que o industrial foi embora, ela pegou o Hedestads-Kuriren e leu o artigo. A seguir, largou o jornal sem fazer nenhum comentário.
Mikael não disse nada. Ele refletia. Gunnar Karlman nascera em 1942, portanto tinha vinte e quatro anos em 1966. Também era uma das pessoas presentes na ilha quando Harriet desapareceu.
Depois do café-da-manhã, Mikael incumbiu sua colaboradora de ler o inquérito policial. Fez uma triagem do material e lhe passou os arquivos que enfocavam o desaparecimento de Harriet. Passou-lhe também todas as fotos do acidente na ponte, bem como a longa síntese que escreveu com base nas investigações particulares de Henrik.
Depois Mikael foi à casa de Dirch Frode e o convenceu a redigir um contrato determinando a contratação de Lisbeth como colaboradora por um mês.
Ao voltar à casa dos convidados, encontrou Lisbeth no jardim, mergulhada no inquérito policial. Mikael entrou para esquentar o café e a espiou pela janela da cozinha. Ela parecia percorrer o inquérito superficialmente, não dedicando mais que dez ou quinze segundos a cada página. Folheava o documento de maneira automática. Mikael achou estranha essa negligência, ainda mais considerando a aplicação com que realizara sua própria investigação. Levou duas xícaras de café ao jardim e juntou-se a ela.
— O que você escreveu sobre o desaparecimento de Harriet foi escrito antes de perceber que estamos atrás de um assassino serial.
— Exato. Anotei o que me pareceu importante, perguntas que gostaria de fazer a Henrik Vanger et cetera. Como você deve ter percebido, está bem mal estruturado. Na verdade, até agora andei tateando no escuro, e ao mesmo tempo tentando escrever uma história, um capítulo da biografia de Henrik Vanger.
— E agora?
— No começo, todas as investigações estavam centradas em Hedebyön. Agora estou convencido de que a história começou mais cedo no mesmo dia, não na ilha, mas em Hedestad. Isso muda a perspectiva.
Lisbeth assentiu com a cabeça e refletiu por um momento.
— É fantástico o que descobriu com as fotos — ela disse.
Mikael levantou as sobrancelhas. Lisbeth Salander não parecia ser do tipo pródigo em elogios e Mikael sentiu-se estranhamente lisonjeado. Mas, do ponto de vista jornalístico, tratava-se mesmo de uma proeza bastante in-comum.
— Preciso de mais alguns detalhes. Conte o que descobriu sobre a fotografia que foi buscar em Norsjö.
— Está me dizendo que não viu essa foto no meu computador?
— Não tive tempo. Preferi me concentrar nos resumos, nas conclusões que tirou.
Mikael suspirou, abriu seu notebook e depois a pasta de fotos.
— A viagem a Norsjö foi ao mesmo tempo um avanço e uma decepção total. Encontrei a foto, mas ela não revela grande coisa. A tal Mildred Berggren conservou todas as suas fotos de viagem num álbum, e ali colou com cuidado toda a coleção. A foto que eu procurava estava lá, tirada com um filme colorido barato. Depois de trinta e sete anos, a cópia está bastante apagada e amarelada, mas Mildred também conservou os negativos numa caixa de sapatos. Ela me emprestou os de Hedestad e eu os escaneei. Aqui está o que Harriet viu.
Ele clicou num arquivo chamado harriet/bd-19.eps.
Lisbeth entendeu a decepção dele. Era uma foto em plano geral, bastante mal enquadrada, mostrando os palhaços no desfile da Festa das Crianças. Ao fundo via-se o canto da loja Sundström. Umas dez pessoas apareciam na calçada em frente à loja.
Mikael apontou com o dedo.
— Acho que foi este o sujeito que ela viu. Primeiro, porque tentei calcular o que ela via baseando-me no rosto dela e na direção para a qual ele estava voltado; fiz um desenho exato do local. Depois, porque ele é a única pessoa que parece olhar diretamente para a máquina fotográfica, ou seja, para Harriet.
Lisbeth viu uma figura imprecisa um pouco recuada atrás dos espectadores, na rua transversal. Vestia uma jaqueta escura com um tom diferente nos ombros, vermelho, e uma calça escura, provavelmente um jeans. Mikael ampliou a imagem para que a figura ocupasse toda a tela a partir da cintura. A imagem ficou ainda mais imprecisa.
— É um homem. Mede cerca de um metro e oitenta, corpulência normal. Cabelos castanho-claros, não muito curtos, sem barba. Mas é impossível distinguir as feições ou mesmo calcular a idade. Pode ser tanto um adolescente quanto um quinquagenário.
— Podemos retocar a foto...
— Já retoquei. Inclusive enviei uma cópia a Christer Malm da Millennium, que é um craque em tratamento de imagens. — Mikael clicou em outra foto. — O que vemos aqui é o que se pode obter de melhor. O problema é que a máquina fotográfica é muito ruim e a distância muito grande.
— Mostrou essa foto a alguém? As pessoas podem reconhecer a atitude...
— Mostrei a Dirch Frode. Ele não tem a menor idéia de quem possa ser.
— Dirch Frode não é o cara mais esperto de Hedestad.
— Mas é para ele e para Henrik que eu trabalho. Quero mostrar a foto a Henrik antes de fazê-la circular.
— Talvez seja apenas um simples espectador.
— É possível. Mas nesse caso ele soube provocar uma reação bem estranha em Harriet.
Na semana seguinte, Mikael e Lisbeth trabalharam no caso Harriet praticamente o tempo todo. Lisbeth continuou lendo o inquérito e fez uma série de perguntas às quais Mikael tentou responder. Só podia haver uma verdade e as respostas pouco claras, os dados equívocos os levavam a aprofundar a discussão. Passaram um dia inteiro verificando os horários das pessoas durante o acidente na ponte.
Lisbeth Salander deixava Mikael cada vez mais perplexo. Embora percorresse superficialmente os textos do inquérito, ela parecia deter-se nos detalhes mais obscuros e incompatíveis.
Eles faziam uma pausa à tarde, quando o calor os impedia de continuar no jardim. Várias vezes foram tomar banho no canal ou beber alguma coisa no Café Susanne. Susanne passou a olhar Mikael com uma frieza ostensiva. Ele se deu conta de que Lisbeth parecia mais jovem do que era e estava hospedada em sua casa, o que aos olhos de Susanne o transformava num velho safado que gosta de menininhas. Era desagradável.
Mikael continuava praticando jogging todos os fins de tarde. Lisbeth não fazia nenhum comentário sobre esses exercícios quando ele voltava ofegante para casa. Correr não era bem a idéia que ela fazia de um lazer de verão.
— Passei dos quarenta — disse Mikael. — Sou obrigado a fazer exercício para não engordar.
— Ah!
— Não pratica nenhuma atividade física?
— Um pouco de boxe de vez em quando.
— Boxe?
— Sim, sabe, com luvas.
Mikael foi tomar banho e tentou imaginar Lisbeth num ringue. Ela talvez estivesse zombando dele. Uma pergunta se impunha.
— Você boxeia em que categoria de peso?
— Em nenhuma. Sirvo de sparring para uns rapazes de um clube de boxe de Söder.
Por que será que eu não me surpreendo?, pensou Mikael. Mas ele constatou que, de qualquer modo, ela acabava de contar alguma coisa sobre si. Ele continuava sem nenhuma informação sobre ela; por que começara a trabalhar para Armanskij, qual era a sua formação ou o que faziam seus pais. Assim que Mikael tentava conversar sobre a vida privada dela, Lisbeth se fechava como uma ostra e respondia por monossílabos ou o ignorava totalmente.
Uma tarde, Lisbeth Salander depositou na mesa um arquivo e olhou para Mikael com uma ruga entre as sobrancelhas.
— O que sabe sobre Otto Falk? O pastor.
— Muito pouco. Encontrei o pastor atual, uma mulher, algumas vezes na igreja no começo do ano. Ela disse que Falk ainda está vivo, mas numa casa de saúde em Hedestad. Alzheimer.
— De onde ele é?
— Daqui, de Hedestad. Estudou em Uppsala e aos trinta anos retornou.
— Ele não era casado. E Harriet o via.
— Por que está perguntando isso?
— Apenas notei que o tira, esse Morell, foi bastante indulgente com ele nos interrogatórios.
— Nos anos 1960, os pastores ainda gozavam de um outro status social. Era natural que ele quisesse morar aqui na ilha, mais perto do poder, digamos assim.
— Fico me perguntando se os policiais realmente revistaram o presbitério. As fotos mostram que era uma grande construção de madeira; lá devia haver muitos lugares onde esconder um corpo por algum tempo.
— É verdade. Mas nada indica que ele tenha tido alguma ligação com assassinatos em série ou com o desaparecimento de Harriet.
— Você se engana — disse Lisbeth com um sorriso no canto dos lábios. — Em primeiro lugar, ele era um pastor, e os pastores, mais do que ninguém, possuem uma relação especial com a Bíblia. Em segundo, foi o último a ter visto Harriet e falado com ela.
— Mas ele foi correndo ao local do acidente e permaneceu ali várias horas. É visto em muitas fotos, sobretudo durante o lapso de tempo em que Harriet deve ter desaparecido.
— Pfff, posso desmontar esse álibi num instante! Mas eu estava pensando em outra coisa. Estamos diante de um matador de mulheres sádico.
— E?
— Eu fui... eu tive um tempo livre na primavera passada e pesquisei coisas sobre sádicos num contexto bem diferente. Um dos documentos que li era um manual do FBI americano que afirmava que um número impressionante de assassinos seriais capturados vêm de lares problemáticos e na infância se comprazem em torturar animais. Além disso, muitos serial killers americanos foram presos por incêndios criminosos.
— Sacrifício de animais e sacrifício pelo fogo, é isso que está querendo dizer?
— Sim. Os animais torturados e o fogo constam em vários casos registrados por Harriet. Mas eu pensava mais no presbitério, que foi incendiado no final dos anos 1970.
Mikael refletiu por um momento.
— É muito vago — disse por fim. Lisbeth balançou a cabeça.
— Concordo. Mas vale a pena anotar. Não encontrei nada no inquérito sobre a causa do incêndio e gostaria muito de saber se houve outros incêndios misteriosos nos anos 1960. Seria interessante também descobrirmos sobre se houve casos de crueldade com animais ou amputações de animais nessa época, na região.
Quando Lisbeth foi se deitar na sétima noite em Hedeby, ela estava um pouco irritada com Mikael Blomkvist. Durante uma semana, estivera praticamente todos os minutos do dia com ele, quando em geral sete minutos na companhia de qualquer pessoa bastavam para fazê-la ter dor de cabeça.
Fazia tempo ela constatara que as relações sociais não eram o seu forte e se preparara para uma vida solitária. Sentia-se perfeitamente satisfeita quando as pessoas a deixavam em paz. Mas as pessoas não eram muito perspicazes e compreensivas, o que sempre a obrigava a prevenir-se contra autoridades sociais, autoridades de proteção da infância e da comissão de tutelas, contra o fisco, contra a polícia, curadores, psicólogos, psiquiatras, professores e seguranças que nunca queriam deixá-la entrar nas boates, embora já tivesse vinte e cinco anos (com exceção dos seguranças da Moulin, que a conheciam). Havia todo um exército de gente que parecia não ter mais o que fazer a não ser tentar comandar a sua vida e, se possível, mudar o modo como ela escolhera viver.
Aprendera muito cedo que não adiantava nada chorar. Também aprendera que, sempre que tentou alertar alguém para alguma coisa de sua vida, a situação só piorava. Portanto, ela mesma é que devia resolver seus problemas com os métodos que julgasse necessários. Atitude que o dr. Nils Bjurman pagou caro para descobrir.
Mikael Blomkvist tinha a mesma tendência irritante de todos os outros de fuçar sua vida privada e de fazer perguntas que ela não queria responder. Só que ele não reagia como a maioria dos homens que ela conheceu.
Quando ela ignorava as perguntas, ele se contentava em encolher os ombros, desistia do assunto e a deixava tranquila. Surpreendente.
A prioridade de Lisbeth, quando conseguiu se apoderar do notebook dele em seu primeiro dia na casa, era evidentemente transferir todos os dados para o seu próprio computador. Desse modo, seria menos ruim se ele a despedisse; ela continuaria tendo acesso ao material.
Mas em seguida ela o provocou de propósito, lendo ostensivamente os documentos do notebook dele. Esperava que ele fosse ficar furioso. No entanto ele pareceu resignado, resmungou alguma coisa levemente sarcástica e foi tomar um banho, só voltando a abordar o assunto mais tarde. Cara estranho. Ela quase concluiu que ele confiava nela.
Mas o fato de ele estar a par de seus talentos como hacker era grave. Lisbeth Salander sabia muito bem que o termo jurídico aplicado ao tipo de pirataria que ela praticava, profissionalmente e por conta própria, era intrusão informática ilegal, que lhe podia valer até dois anos de prisão. Era um ponto sensível: ela não queria ser presa porque uma pena de prisão significaria que muito provavelmente lhe confiscariam o computador, única ocupação na qual se distinguia. Nunca pensou em contar a Dragan Armanskij ou a quem quer que fosse como obtinha as informações que eles compravam.
Com exceção de Praga e de algumas poucas pessoas conectadas que, como ela, se dedicavam profissionalmente à pirataria — e quase todas só a conheciam pelo codinome Wasp, ninguém sabia quem ela era nem onde morava —, somente Super-Blomkvist descobrira seu segredo. E a tinha desmascarado porque ela cometeu um erro que mesmo iniciantes com poucos anos no ramo não cometem, o que provava que seu cérebro andava falhando e que merecia ser castigada. Mas ele não ficou furioso nem ameaçou processá-la; em vez disso a contratou.
Assim, ela estava ligeiramente irritada com ele.
Um pouco antes de ela se retirar para o quarto, tinham acabado de comer um sanduíche quando ele perguntou, de repente, se ela era uma boa hacker. E ela respondera com naturalidade:
— Sou provavelmente a melhor da Suécia. Há talvez uns dois ou três do meu nível.
Não hesitou nem um pouco sobre a veracidade de sua resposta. Numa certa época, Praga fora melhor que ela, mas fazia muito tempo que o superara.
No entanto Lisbeth espantou-se consigo mesma por pronunciar essas palavras. Nunca fizera isso. Nem tinha um interlocutor para esse tipo de conversa, e de repente saboreou o fato de ele parecer impressionado com seus conhecimentos. Mas ele estragou tudo ao levantar a questão problemática: como ela aprendera a pirataria.
Ela não sabia o que responder. Eu sempre soube. Preferiu ir se deitar sem dizer boa-noite.
Para irritá-la ainda mais, Mikael não pareceu reagir quando ela virou as costas. De sua cama, ela o escutou mexer-se na cozinha, limpar a mesa e lavar a louça. Ele sempre ficava de pé mais tempo que ela, mas agora estava claramente indo se deitar. Ela o ouviu no banheiro, o ouviu entrar no quarto e fechar a porta.. Um momento depois, ouviu o rangido da cama quando ele se deitou, a cinquenta centímetros dela, do outro lado da parede.
Durante a semana que passou na casa dele, ele não tentou abordá-la sexualmente. Trabalhou com ela, pediu sua opinião, criticou-a quando raciocinava errado e apreciou suas objeções quando ela o corrigia. Tratou-a, nem mais nem menos, como um ser humano.
De repente, ela percebeu que gostava da companhia de Mikael Blomkvist e que até mesmo confiava nele. Nunca confiara em ninguém, com exceção de Holger Palmgren. Mas por razões bem diferentes. Palmgren fora uma boa alma previsível.
Levantou-se, foi até a janela e ficou olhando, nervosa, a escuridão lá fora. O que mais a paralisava era mostrar-se nua diante de alguém pela primeira vez. Estava convencida de que seu corpo raquítico era repulsivo. Os seios, patéticos. Não tinha quadris que merecessem esse nome. A seus próprios olhos, não tinha grande coisa a oferecer. No entanto, era uma mulher perfeitamente normal, com os mesmos desejos e pulsões sexuais que as outras. Refletiu durante cerca de vinte minutos antes de se decidir.
Mikael estava deitado e lia um romance de Sara Paretsky quando ouviu a maçaneta da porta girar e viu Lisbeth Salander aparecer. Estava envolvida num lençol e se mantinha no vão da porta sem dizer nada, como se refletisse.
— Algum problema? — perguntou Mikael. Ela fez que não com a cabeça.
— O que você quer?
Ela se aproximou dele, pegou seu livro e o pôs na mesa-de-cabeceira. Depois se curvou para a frente e o beijou na boca. As intenções dela não podiam ser mais claras. Sentou-se na cama e ficou olhando-o de um jeito perscrutador. Pôs uma mão sobre o lençol acima do ventre dele. Como ele não protestasse, ela se inclinou e mordiscou um de seus mamilos.
Mikael Blomkvist estava totalmente perplexo, mas não indiferente. Depois de alguns segundos, pegou-a pelos ombros e afastou-a um pouco para poder ver seu rosto.
— Lisbeth... não sei se é uma boa idéia. Devemos trabalhar juntos.
— Quero fazer sexo com você. E não vejo problema algum em trabalharmos juntos; ao contrário, terei um problema sério se me mandar embora.
— Mas nem nos conhecemos direito.
Ela riu, um riso abrupto que mais parecia uma tosse.
— Quando fiz minha investigação sobre você, percebi que nunca teve esse tipo de problema. Ao contrário, você é daqueles que têm dificuldade de ficar longe das mulheres. Que está havendo? Não pareço bastante sexy?
Mikael balançou a cabeça e tentou encontrar algo inteligente para dizer. Como ele não respondeu, ela afastou o lençol e sentou-se de pernas abertas sobre ele.
— Não tenho preservativos — disse Mikael.
— Não faz mal.
Quando Mikael despertou, Lisbeth já estava de pé. Ouviu-a mexendo nas louças da cozinha. Eram quase sete da manhã. Ele dormira apenas duas horas e continuou de olhos fechados.
Não conseguia entender Lisbeth Salander. Em nenhum momento ela havia insinuado, nem mesmo através de um olhar, que estivesse interessada nele.
— Bom dia — disse Lisbeth à porta. Ela sorria. Um pouco, é verdade.
— Oi — disse Mikael.
— Não temos mais leite. Vou até o supermercado. Eles abrem às sete. E afastou-se tão depressa que Mikael nem teve tempo de responder. Ele a ouviu calçar-se, pegar a mochila, o capacete da moto e sair pela porta da frente. Ele fechou os olhos. Depois ouviu a porta ser aberta de novo e em alguns segundos ela reapareceu. Desta vez não sorria mais.
— Venha, você precisa ver uma coisa — disse com uma voz estranha. Mikael saltou imediatamente da cama e enfiou a calça. Durante a noite alguém viera lhe trazer um presente indesejado. No terraço da entrada, jazia o cadáver semicarbonizado de um gato esquartejado. As patas e a cabeça haviam sido cortadas, o ventre aberto e as entranhas removidas; os restos do gato estavam ao lado do cadáver, que parecia ter sido posto no fogo. A cabeça estava intacta e fora colocada em cima do assento da moto de Lisbeth. Mikael reconheceu a pelagem ruiva.
22. QUINTA-FEIRA 10 DE JULHO
Eles tomaram o café-da-manhã no jardim, em silêncio e sem leite no café. Lisbeth havia apanhado uma pequena Canon digital e fotografado a cena macabra antes de Mikael trazer um saco de lixo para levar tudo. Ele pôs o gato no porta-malas do carro que lhe emprestaram, mas não tinha muita certeza do que fazer com o cadáver. O lógico seria apresentar queixa por crueldade contra os animais, talvez também por ameaças, mas não sabia muito bem como explicar o porquê da ameaça.
Por volta das oito e meia, Isabella Vanger passou a pé e dirigiu-se à ponte. Não os viu ou fingiu não vê-los.
— Como está se sentindo? — perguntou finalmente Mikael a Lisbeth.
— Bem. — Ela olhou para ele, surpresa. Entendi. Ele gostaria que eu estivesse nervosa. — Quando encontrar o canalha que torturou um pobre gato inocente só para nos deixar uma advertência, vou acertá-lo com um taco de beisebol.
— Acha que é uma advertência?
— Tem explicação melhor? Claro que significa alguma coisa. Mikael assentiu com a cabeça.
— Seja o que for, a verdade é que acabamos inquietando muito alguém, a ponto de deixar essa pessoa doente. Mas há um outro problema — disse ele.
— Eu sei. E um sacrifício de animal semelhante aos de 1954 e 1960. E parece impossível que um matador em atividade há cinquenta anos continue por aí, deixando animais torturados na sua porta.
— Os únicos que podem figurar na lista, nesse caso, são Harald Vanger e Isabella Vanger. Existem alguns parentes mais velhos do ramo Johan Vanger, mas nenhum mora na região.
Mikael suspirou antes de prosseguir.
— Isabella é uma mulher estúpida que certamente não hesitaria em matar um gato, mas duvido que passasse o tempo matando mulheres em série nos anos 1950. Harald Vanger... não sei, parece tão decrépito que mal consegue andar e é difícil acreditar que saia sorrateiramente à noite para achar um gato e fazer isso.
— A não ser que sejam duas pessoas, uma velha e uma jovem.
Mikael ouviu um carro passar, ergueu os olhos e viu Cecilia Vanger desaparecer no final da ponte. Harald e Cecilia, pensou. Mas havia um grande ponto de interrogação: pai e filha não se viam e raramente se falavam. Apesar de Martin Vanger ter prometido falar com ela, Cecilia continuava sem responder aos telefonemas de Mikael.
— Com certeza é alguém que sabe que estamos investigando e que fizemos progressos — disse Lisbeth, levantando-se e entrando na casa.
Ao voltar, ela vestia sua roupa de motoqueira.
— Vou a Estocolmo. Volto à noite.
— O que você vai fazer?
— Umas pesquisas. Se um cara é bastante louco para matar um gato desse jeito, ele, ou ela, pode nos atacar da próxima vez. Ou pôr fogo no barraco enquanto dormimos. Quero que vá a Hedestad comprar dois extintores e dois detectores de incêndio hoje. Um dos extintores deve ser com halon.
Sem dizer mais nada, pôs o capacete, acionou a moto e desapareceu pela ponte.
Mikael jogou o cadáver no coletor de lixo do posto de gasolina, antes de ir a Hedestad comprar os extintores e os detectores de incêndio. Pôs as compras no porta-malas do carro e foi para o hospital. Havia telefonado para Dirch Frode e marcado um encontro com ele na cafeteria. Contou o que havia acontecido de manhã. Dirch Frode empalideceu.
— Mikael, nunca pensei que essa história pudesse se tornar perigosa.
— Por que não? Afinal, o objetivo é desmascarar um assassino.
— Mas quem poderia... É pura loucura. Se não estão em segurança, você e a senhorita Salander, devemos parar tudo. Posso falar com Henrik.
— Não, de jeito nenhum. Não vamos provocar outro infarto nele.
— Ele pergunta o tempo todo o que você está fazendo.
— Diga a ele que continuo desembaraçando os fios.
— O que vai fazer agora?
— Tenho algumas perguntas. O primeiro incidente ocorreu pouco depois do infarto de Henrik, quando eu estava em Estocolmo. Alguém vasculhou minha saleta de trabalho. Foi logo depois de eu decifrar o código da Bíblia e descobrir as fotos da rua da Estação. Falei disso com você e com o Henrik. Martin estava sabendo, pois foi ele que me facilitou o acesso ao Hedestads-Ruriren. Quem mais estava a par?
— Bem, não sei exatamente para quem Martin falou. Mas Birger e Cecilia também sabiam. Conversaram entre si sobre a sua caçada às fotos. Até Alexander está sabendo. E Gunnar e Helen Nilsson também. Vieram visitar Henrik e ouviram a conversa. E Anita Vanger.
— Anita? A de Londres?
— A irmã de Cecilia. Ela veio de avião com Cecilia quando Henrik teve o infarto, mas ficou no hotel; que eu saiba, não pôs os pés na ilha. Assim como Cecilia, ela não quer se encontrar com o pai. Mas voltou há uma semana, quando Henrik saiu da UTI.
— Onde Cecilia está morando? Eu a vi esta manhã atravessando a ponte, mas sua casa continua fechada.
— Suspeita dela?
— Não, só quero saber onde está morando.
— Na casa do irmão, Birger. Da casa dele pode-se ir a pé ao hospital.
— Sabe onde ela está agora?
— Não. Em todo caso, com Henrik não está.
— Obrigado — disse Mikael e levantou-se.
A família Vanger gravitava em torno do hospital de Hedestad. No saguão de entrada, Birger Vanger dirigia-se aos elevadores. Mikael não quis cruzar com ele e esperou que desaparecesse antes de passar pelo saguão. Mas deu de cara com Martin Vanger na entrada, quase no mesmo lugar onde encontrara Cecilia Vanger na visita anterior. Eles trocaram um aperto de mão.
— Foi ver Henrik?
— Não, só passei aqui para falar com Dirch Frode rapidamente.
Martin tinha olheiras e parecia fatigado. Mikael notou que ele envelhecera consideravelmente desde que se conheceram, havia seis meses. A luta para salvar o império Vanger e a súbita doença de Henrik lhe pesavam.
— E como vão as coisas com você? — perguntou Martin.
Mikael anunciou que não tinha a intenção de interromper sua temporada para voltar a Estocolmo.
— Bem, obrigado. A cada dia estão ficando mais interessantes. Quando Henrik melhorar, espero poder satisfazer a curiosidade dele.
Birger Vanger morava num conjunto de casas geminadas, de tijolos brancos, a apenas cinco minutos de caminhada do hospital. Ninguém atendeu quando Mikael bateu à porta. Tentou o celular de Cecilia, mas não obteve resposta. Ficou um momento no carro tamborilando os dedos sobre o volante. Birger Vanger era uma página em branco na coleção. Nascido em 1939, tinha apenas dez anos quando Rebecka Jacobsson foi morta. Mas tinha vinte e sete quando Harriet desapareceu.
Segundo Henrik Vanger, Birger e Harriet pouco se viram. Birger cresceu com sua família, em Uppsala, e veio para Hedestad a fim de trabalhar no grupo, mas alguns anos depois se afastou para entrar na política. Estava em Uppsala quando Lena Andersson foi assassinada.
Mikael não conseguia deslindar a história, mas o incidente com o gato lançara um sentimento de ameaça iminente e sugeria que o tempo começava a correr rápido.
O ex-pastor de Hedeby Otto Falk tinha trinta e seis anos quando Harriet desapareceu. Estava com setenta e dois agora, era mais jovem que Henrik Vanger, porém se achava numa condição intelectual bem inferior. Mikael o encontrou na casa de saúde A Andorinha, um prédio amarelo situado numa elevação às margens do Hede, no outro extremo da cidade. Mikael apresentou-se na recepção e pediu para falar com o pastor Falk. Disse saber que o pastor sofria de Alzheimer e pediu informações sobre seu nível de comunicação. Uma atendente respondeu-lhe que o pastor recebera o diagnóstico três anos antes e que a evolução da doença fora rápida. Falk podia comunicar-se, mas tinha uma péssima memória imediata, não reconhecia alguns membros da família e estava entrando numa completa alienação. Mikael também foi prevenido contra crises de angústia que o velho tinha quando lhe faziam perguntas às quais não conseguia responder.
O velho pastor estava sentado num banco de jardim com três outros pacientes e um enfermeiro. Mikael passou uma hora tentando falar com ele.
O pastor Falk disse que se lembrava muito bem de Harriet Vanger. Seu rosto iluminou-se e ele a descreveu como uma menina encantadora. Mikael logo percebeu, porém, que o pastor esquecera que ela estava desaparecida havia quase trinta e sete anos; falava dela como se tivesse acabado de vê-la e pediu que Mikael lhe mandasse um abraço e a encorajasse a vir visitá-lo. Mikael prometeu fazer isso.
Quando Mikael comentou o que tinha acontecido no dia em que Harriet desapareceu, o pastor se mostrou perplexo. Era evidente que não se lembrava do acidente na ponte. No entanto, no final da conversa, mencionou algo que fez levantar as orelhas de Mikael.
Mikael havia conduzido a conversa para o interesse de Harriet pela religião, e o pastor de repente ficou pensativo. Como se uma nuvem tivesse passado sobre seu rosto. Pôs-se a balançar para a frente e para trás por um momento, depois olhou fixamente Mikael e perguntou quem ele era. Mikael apresentou-se de novo e o velho refletiu mais um instante. Por fim, balançou a cabeça e pareceu irritado.
— Ela ainda está procurando. Precisa estar atenta e você deve preveni-la.
— Devo preveni-la do quê?
O pastor ficou subitamente agitado. Balançou a cabeça, franzindo as sobrancelhas.
— Ela deve ler sola scriptura e compreender sufficientia scripturae. Só assim poderá manter uma sola fide. José os exclui formalmente. Eles nunca foram incluídos no cânone.
Mikael não compreendeu nada, mas registrou. A seguir, o pastor Falk inclinou-se para ele e cochichou em tom confidencial:
— Acho que ela é católica. Está apaixonada por magia e ainda não encontrou seu Deus. E preciso guiá-la.
A palavra "católica" parecia ter uma conotação negativa para o pastor Falk.
— Eu achava que ela estava interessada no pentecostalismo.
— Não, não, no pentecostalismo não. Ela busca a verdade proibida. Não é uma boa cristã.
Nesse ponto, o pastor pareceu esquecer tanto Mikael quanto a conversa e voltou-se para falar com um dos outros pacientes.
Mikael voltou à ilha pouco depois das duas da tarde. Foi bater à porta de Cecilia Vanger, mas sem sucesso. Tentou o celular, não obteve resposta.
Instalou um detector de incêndio na cozinha e outro no vestíbulo. Colocou um dos extintores junto ao aquecedor, ao lado da porta do quarto, e o outro junto à porta do banheiro. Preparou então uma refeição leve, sanduíches e café, e sentou-se no jardim para passar ao notebook o registro de sua conversa com o pastor Falk. Refletiu por um longo momento, depois ergueu os olhos na direção da igreja.
O novo presbitério de Hedeby era uma casa moderna, sem nada de especial, a algumas centenas de metros da igreja. Mikael bateu à porta do pastor Margareta Strandh por volta das quatro e explicou que vinha fazer uma consulta sobre uma questão teológica. Margareta era uma mulher da idade de Mikael, de cabelos castanhos, e vestia jeans e camisa de flanela. Estava descalça e tinha as unhas dos pés pintadas de vermelho. Ele já a encontrara algumas vezes no Café Susanne e lhe falara do pastor Falk. Mikael foi gentilmente recebido e convidado a se sentar no jardim da casa dela, bem como a tratá-la sem cerimônia.
Mikael contou que conversara com Otto Falk e repetiu as respostas dele, acrescentando que não entendera seu significado. Margareta Strandh escutou e pediu que Mikael repetisse palavra por palavra o que Falk dissera. Ela refletiu por um instante.
— Comecei a trabalhar aqui em Hedeby há apenas três anos e nunca vi o pastor Falk. Ele já havia se aposentado vários anos antes, mas soube que era bastante tradicionalista. O que ele disse significa mais ou menos que devemos nos ater unicamente aos escritos — sola scriptura — e que eles são sufficientia scripturae. Para os crentes tradicionalistas, essa última expressão significa o reconhecimento da Sagrada Escritura como única fonte de autoridade. Sola fide significa "a única fé", ou "a fé pura".
— Entendo.
— Tudo isso pertence, por assim dizer, aos dogmas fundadores. É a base da Igreja e nada tem de extraordinário. Ele disse simplesmente: Leia a Bíblia — ela oferece o conhecimento suficiente e garante a fé pura.
Mikael sentiu-se um pouco desconfortável.
— Mas permita que eu lhe pergunte: em que contexto ocorreu essa conversa?
— Fiz perguntas sobre alguém que ele conheceu há muito tempo e sobre quem estou escrevendo.
— Alguém numa busca religiosa?
— Algo do gênero.
— Certo. Acho que percebo a relação. O pastor Falk disse duas outras coisas — que José os exclui formalmente e que eles nunca foram incluídos no cânone. Será que você não entendeu mal e ele disse Josefo em vez de José? Na verdade, é o mesmo nome.
— É possível — disse Mikael. — Gravei a conversa, se quiser escutar.
— Não, acho que não é necessário. As duas frases estabelecem de maneira clara o que ele quis dizer. Josefo era um historiador judeu e a frase eles nunca foram incluídos no cânone provavelmente indica que nunca fizeram parte do cânone hebraico.
— E o que isso quer dizer?
Ela riu.
— O pastor Falk afirmou que essa pessoa tinha uma atração por fontes esotéricas, mais precisamente pelos apócrifos. A palavra apokryphos significa "oculto", e os apócrifos são livros ocultos que alguns contestam fortemente e que outros consideram como parte do Antigo Testamento. São os livros de Tobias, Judite, Ester, Baruc, Sirac, os Macabeus e mais outros dois ou três.
— Desculpe a minha ignorância. Já ouvi falar dos apócrifos, mas nunca os li. O que eles têm de especial?
— Na verdade, nada de especial, a não ser que foram escritos um pouco mais tarde que o restante do Antigo Testamento. Por isso os apócrifos foram riscados da Bíblia hebraica. Não que os doutores da lei desconfiassem de seu conteúdo, mas simplesmente porque foram escritos depois da época em que a obra da revelação de Deus estava terminada. Em contrapartida, os apócrifos figuram na velha tradução grega da Bíblia. Portanto, não são controvertidos na Igreja católica.
— Entendo.
— Contudo, são particularmente controvertidos na Igreja protestante. Na época da Reforma, os teólogos buscavam se aproximar ao máximo da velha Bíblia hebraica. Martinho Lutero retirou os apócrifos da Bíblia da Reforma, e mais tarde Calvino afirmou que os apócrifos não deviam em hipótese alguma servir de base para as confissões de fé, por conterem afirmações que contradiziam a claritas Scripturae — a clareza das Escrituras.
— Ou seja, livros censurados.
— Exatamente. Os apócrifos afirmam, por exemplo, que se pode praticar a magia, que a mentira é autorizada em alguns casos e outras coisas semelhantes, que evidentemente indignam os exegetas dogmáticos das Escrituras.
— E não é nada impossível, se alguém sente uma atração pela religião, que os apócrifos apareçam na sua lista de leitura, para a grande irritação de homens como o pastor Falk.
— Isso mesmo. È quase inevitável o confronto com os apócrifos se nos interessamos pela Bíblia ou pelo catolicismo, e é muito provável que alguém interessado pelo esoterismo, de maneira geral, os leia.
— Por acaso teria um exemplar dos apócrifos? Ela riu mais uma vez. Um riso aberto, amistoso.
— Claro. Os apócrifos foram editados pela comissão bíblica nos anos 1980 por ocasião de um estudo nacional.
Dragan Armanskij perguntou-se o que poderia estar havendo quando Lisbeth Salander pediu uma conversa particular. Ele fechou a porta e fez sinal para ela se sentar na poltrona dos visitantes. Ela contou que o trabalho para Mikael Blomkvist estava terminado — Dirch Frode pagaria antes do fim do mês —, mas que decidira prosseguir a investigação. Mikael lhe oferecera um salário mensal consideravelmente inferior.
— Em suma, é uma questão pessoal — disse Lisbeth Salander. — Até agora nunca aceitei trabalho a não ser de você, segundo nosso acordo. O que quero saber é o que será da nossa relação se eu começar a pegar trabalhos por conta própria.
Dragan Armanskij afastou as mãos.
— Você é seu patrão, pode pegar os trabalhos que quiser e cobrar como quiser. Fico contente de que tenha fontes próprias de dinheiro. Mas seria desleal atrair para você clientes que conheceu por nosso intermédio.
— Não tenho essa intenção. Fiz o trabalho conforme o contrato que estabelecemos com Blomkvist. Esse trabalho está terminado. Agora eu é que quero continuar no caso. Faria até mesmo de graça.
— Nunca faça nada de graça.
— Entenda, estou querendo dizer que quero saber aonde vai dar essa história. Convenci Mikael Blomkvist a pedir a Dirch Frode um contrato suplementar como assistente de pesquisa.
Ela estendeu o contrato a Armanskij, que o percorreu com os olhos.
— Esse salário equivale quase a trabalhar por nada. Lisbeth, você tem talento. Sabe que pode ganhar bem mais trabalhando comigo, se aceitasse um regime de tempo integral.
— Não quero trabalhar em tempo integral. Mas continuarei fiel a você, Dragan. Você tem sido correto comigo desde que comecei aqui. Quero saber se para você está bem esse tipo de contrato, porque não quero que haja problemas entre nós.
— Entendo. — Ele refletiu um instante. — Para mim está certo. Obrigado por me procurar. Se outras situações como essa surgirem no futuro, peço que me avise, para não haver mal-entendidos.
Lisbeth Salander ficou em silêncio por um minuto ou dois, calculando se havia algo a acrescentar. Fixou os olhos em Armanskij sem dizer nada. Depois balançou a cabeça, levantou-se e saiu, como de hábito sem se despedir. Uma vez obtida a resposta que esperava, o interesse por Armanskij tinha evaporado. Ele sorriu com serenidade. O fato de ela ter vindo se aconselhar com ele significava um avanço em seu processo de socialização.
Abriu uma pasta com um relatório sobre a segurança de um museu onde estava prevista uma exposição de impressionistas franceses. Depois deixou a pasta de lado e olhou para a porta por onde Salander acabara de sair. Lembrou-se do dia em que a vira rindo na companhia de Mikael Blomkvist e perguntou-se se ela estava ficando adulta ou se era Blomkvist que a atraía. Mas sentiu também uma inquietação. Ele nunca conseguira se livrar da sensação de que Lisbeth Salander era uma vítima perfeita. E eis que agora ela seguia a pista de um assassino furioso numa aldeia perdida.
Retornando em direção ao norte, Lisbeth sentiu vontade de passar na casa de saúde de Äppelviken para ver sua mãe. Exceto pela visita no Dia de São João, ela não via a mãe desde o Natal e culpava-se por visitá-la tão pouco. Essa nova visita, apenas algumas semanas depois, era incomum.
A mãe estava na sala de convivência. Lisbeth ficou pouco mais de uma hora e a levou para passear no laguinho dos patos, no jardim em frente à instituição. A mãe continuava confundindo-a com a irmã. Como de hábito, não estava inteiramente presente, embora a visita parecesse agitá-la.
Quando Lisbeth despediu-se, a mãe não quis soltar sua mão. Lisbeth prometeu voltar em breve, mas a mãe a olhou com inquietação e um ar muito infeliz.
Como se estivesse pressentindo uma catástrofe iminente.
Mikael passou duas horas no jardim dos fundos da casa, folheando os apócrifos, sem chegar a outra conclusão senão a de que estava perdendo tempo.
Mas de repente lhe ocorreu uma pergunta: Harriet teria sido mesmo tão crente como parecia? Seu interesse pelos estudos bíblicos se revelou no último ano antes de seu desaparecimento. Ela fizera a ligação entre um certo número de citações bíblicas e uma série de assassinatos, a seguir lera com aplicação não somente a Bíblia mas os apócrifos, e se interessara pelo catolicismo.
Teria iniciado a mesma investigação a que Mikael Blomkvist e Lisbeth Salander se dedicavam trinta e sete anos mais tarde? Teria sido a busca de um assassino que estimulara seu interesse, e não a religiosidade? O pastor Falk, em todo caso, dera a entender que ela parecia alguém em busca, e não uma boa cristã.
Suas reflexões foram interrompidas por um chamado de Erika no celular.
— Queria apenas te dizer que eu e Lars vamos tirar férias na semana que vem. Estarei fora por um mês.
— Aonde vocês vão?
— Nova York. Lars tem uma exposição e depois vamos ao Caribe. Um amigo nos emprestou uma casa em Antígua, onde ficaremos duas semanas.
— Maravilha! Divirtam-se. E dê lembranças ao Lars.
— Não tiro férias de verdade há três anos. A próxima edição está pronta e o número seguinte já está quase terminado. Gostaria que você supervisionasse, mas Christer prometeu se encarregar disso.
— Ele pode me chamar, se precisar de ajuda. E como ficou o caso de Janne Dahlman?
Ela hesitou um instante.
— Ele sai de férias na semana que vem. Pus Henry como secretário de redação temporário. Ele e Christer vão conduzir o barco.
— Certo.
— Não confio em Dahlman, mas ele está se esforçando. Estarei de volta no dia 7 de agosto.
Eram cerca de sete da noite, e Mikael havia tentado falar com Cecilia Vanger cinco vezes. Deixara um bilhete na casa dela pedindo que entrasse em contato com ele, mas não obtivera resposta.
Fechou decididamente os apócrifos, vestiu uma roupa esportiva e trancou a porta antes de sair para o seu jogging de todos os dias.
Seguiu pelo caminho estreito ao longo da praia, depois tomou a direção do bosque. Atravessou o mais depressa que pôde uma zona de matagal e árvores desenraizadas até chegar exausto à Fortificação, com a pulsação bastante acelerada. Deteve-se num ponto da trincheira, ao sol, e fez alongamentos por alguns minutos.
De repente, ouviu uma forte detonação, ao mesmo tempo que uma bala atingia a parede de concreto a alguns centímetros de sua cabeça. Depois sentiu uma dor na raiz dos cabelos, onde os estilhaços abriram uma ferida profunda.
Mikael ficou petrificado durante o que lhe pareceu uma eternidade, incapaz de entender o que havia acontecido. Em seguida jogou-se no chão na trincheira, machucando o ombro ao aterrissar. O segundo tiro ocorreu no instante em que mergulhava. A bala cravou-se na parede de concreto, bem no lugar onde ele havia estado.
Mikael levantou a cabeça e olhou em volta. Estava mais ou menos na metade da Fortificação. À direita e à esquerda, passagens estreitas, com profundidade de um metro e cobertas de vegetação, conduziam a abrigos de tiro espalhados numa linha de duzentos e cinquenta metros de comprimento. Pôs-se a correr, curvado, na direção sul do labirinto.
Então, ouviu ressoar dentro dele a voz inimitável do capitão Adolfsson no dia de um exercício de inverno na escola de infantaria em Kiruna. Puta que pariu, Blomkvist, baixe a cabeça se não quiser ter o rabo arrancado por uma bala! Vinte anos depois, se lembrava dos ensinamentos do capitão Adolfsson.
Cerca de sessenta metros adiante, parou, sem fôlego e com o coração palpitando. Não ouvia outros ruídos a não ser o da própria respiração. O olho humano percebe os movimentos mais rapidamente que as formas e as silhuetas. Não fique afoito quando se desloca! Mikael levantou os olhos alguns centímetros acima da borda do abrigo. O sol estava bem à sua frente e o impedia de distinguir os detalhes, mas ele não percebeu nenhum movimento.
Baixou a cabeça e prosseguiu até o último abrigo. Pouco importa se o inimigo tem armas muito boas. Enquanto não puder te ver, ele não pode te tocar. Proteja-se, proteja-se! Não se exponha!
Mikael achava-se agora a uns trezentos metros das terras da fazenda de Östergarden. Quarenta metros à frente, estendia-se um espesso matagal de arbustos. Mas, para alcançar esse matagal partindo da trincheira, ele seria obrigado a descer uma encosta onde estaria totalmente exposto. Era a única saída. Às suas costas havia o mar.
Mikael agachou-se e raciocinou. De repente teve consciência da dor nas têmporas; percebeu que sangrava abundantemente, sua camiseta estava molhada de sangue. Fragmentos da bala ou estilhaços da parede haviam aberto uma ferida profunda na raiz dos cabelos. As feridas do couro cabeludo sempre sangram muito e por muito tempo, pensou, antes de se concentrar novamente na situação. Um único tiro poderia ter sido um disparo acidental. Dois tiros significavam que alguém tentara matá-lo. Não sabia se o atirador ainda estava nas proximidades, com o rifle recarregado esperando que ele se mostrasse.
Tentou se acalmar e pensar de forma racional. Suas opções eram esperar ou abandonar o local de uma maneira ou de outra. Se o atirador ainda estivesse à espreita, a segunda possibilidade não convinha de modo algum. Mas, se ficasse ali esperando, o atirador poderia tranquilamente subir até a Fortificação, encontrá-lo e matá-lo à queima-roupa.
Ele (ou ela?) não pode saber se fui para a direita ou para a esquerda. Um rifle, talvez para a caça de alce. Provavelmente com mira telescópica. Isso significava que o atirador tinha um campo de visão limitado se observasse Mikael através da lente.
Se estiver encurralado, tome a iniciativa. É melhor do que esperar. Ele espreitou o momento favorável e escutou os ruídos por dois minutos; então ergueu-se sobre a borda da trincheira e correu encosta abaixo o mais rápido que pôde.
Ouviu um terceiro disparo, mas bem atrás de suas costas, quando estava na metade do caminho para o matagal. Um instante depois, lançou-se de barriga na cortina de arbustos e rolou num mar de urtigas. Imediatamente voltou a ficar de pé e, ainda curvado, começou a se afastar do atirador. Cinquenta metros adiante, parou e escutou. Ouviu um galho estalar em alguma parte entre ele e a Fortificação. Suavemente, estendeu-se de novo no chão.
Sobre os cotovelos, cambada! Não de quatro patas! Era uma das expressões favoritas do capitão Adolfsson. Mikael percorreu os cento e cinquenta metros seguintes rastejando na vegetação do matagal. Avançou sem fazer ruído, muito atento aos galhos. Em dois momentos, ouviu estalos no matagal. O primeiro parecia vir de perto, talvez uns vinte metros à direita de onde estava. Ficou totalmente imóvel, como que petrificado. Ao cabo de um momento, ergueu devagar a cabeça e espiou; não viu ninguém. Continuou imóvel por muito tempo, com os nervos alertas, pronto para fugir ou mesmo lançar um contra-ataque se o inimigo viesse em sua direção. O estalo que ouviu a seguir vinha de mais longe. Depois nada, silêncio.
Ele sabe que estou aqui. Mas terá se instalado em algum lugar à espera de que eu comece a me mexer ou terá ido embora?
Mikael continuou avançando no matagal até chegar ao cercado do pasto de Östergarden.
Começava outro momento crítico. Um caminho costeava o cercado no lado de fora. Ele ficou de bruços no chão, à espreita. Viu as construções à sua frente, a cerca de quatrocentos metros, num terreno com ligeiro declive; à direita, viu umas dez vacas pastando. Como se explica que ninguém tenha ouvido os disparos e tenha vindo ver o que aconteceu? Verão. Não deve haver ninguém na fazenda neste momento.
Nem pensar em se aventurar pelo pasto — estaria totalmente exposto —, e o caminho ao longo do cercado era o lugar onde ele mesmo teria se posicionado para ter o campo livre para atirar. Retrocedeu discretamente pelo matagal e prosseguiu até chegar a um bosque de pinheiros.
Mikael contornou as terras de Östergarden e dirigiu-se ao monte Sul para regressar. Ao passar pela fazenda, constatou que o carro não estava lá. Deteve-se no alto do monte Sul e contemplou Hedeby. As pequenas cabanas do antigo porto dos pescadores estavam ocupadas por veranistas; algumas mulheres de maio conversavam num pontão. Ele sentiu o cheiro de carne assada num braseiro. Crianças brincavam na água em volta dos pontões.
Mikael consultou o relógio. Pouco mais de oito da noite. Os tiros haviam sido disparados cinquenta minutos atrás. Gunnar Nilsson regava o jardim, de calção e nu da cintura para cima. Há quanto tempo você está aí? A casa de Henrik Vanger estava desabitada, com exceção da governanta Anna Nygren. A de Harald Vanger parecia deserta como sempre. Viu Isabella Vanger sentada no jardim dos fundos de sua casa. Falava com alguém. Mikael demorou um pouco para perceber que era Gerda Vanger, nascida em 1922 e de saúde frágil, que morava com o filho Alexander numa das casas atrás da de Henrik. Nunca a encontrara, mas algumas vezes a vira em seu terreno. A casa de Cecilia Vanger parecia vazia, porém de repente Mikael viu uma luz se acender na cozinha. Ela está em casa. Será que o atirador poderia ser uma mulher? Não duvidava que Cecilia Vanger soubesse manejar um rifle. Mais adiante viu o carro de Martin Vanger na esplanada diante de sua casa. E você, há quanto tempo está em casa?
Ou teria sido alguma outra pessoa, em quem ele ainda nem sequer pensara? Frode? Alexander? Possibilidades demais.
Desceu o monte Sul, seguiu o caminho até o povoado e foi diretamente para casa, sem encontrar ninguém. A primeira coisa que viu foi a porta da casa entreaberta. Contraiu-se instintivamente. Depois sentiu cheiro de café e viu Lisbeth Salander pela janela da cozinha.
* * *
Lisbeth ouviu Mikael no vestíbulo e virou-se para ele. Ficou paralisada. O rosto de Mikael tinha um aspecto assustador, com sangue por toda parte começando a coagular. O lado esquerdo da camiseta estava molhado de sangue.
— Foi só um ferimento no couro cabeludo; está sangrando muito, mas não é grave — disse Mikael antes que ela tivesse tempo de abrir a boca.
Ela se virou e foi buscar o estojo de primeiros socorros no guarda-louças, um estojo que continha apenas dois rolos de algodão, gaze e uma caixinha de curativos adesivos. Ele tirou as roupas, deixou-as espalhadas no chão e foi se olhar no espelho do banheiro.
O ferimento na têmpora tinha uns três centímetros de comprimento e era tão profundo que Mikael pôde ver um bom pedaço de carne. Continuava sangrando e provavelmente precisaria de alguns pontos, mas um simples curativo resolveria, ele pensou. Umedeceu a toalha e enxugou o rosto.
Apoiou a toalha sobre a têmpora e entrou no chuveiro para uma ducha, fechando os olhos. Deu então um murro tão forte na parede que seus dedos doeram. Filho-da-puta!, pensou. Vou pegar você!
Quando Lisbeth tocou seu braço, ele sentiu um sobressalto, como se tivesse recebido uma descarga. Olhou-a com tanta raiva nos olhos que, sem querer, ela deu um passo para trás. Lisbeth entregou-lhe um sabonete e voltou para a cozinha sem dizer uma palavra.
Mikael pôs três curativos adesivos ao sair do chuveiro. Entrou no quarto, vestiu uma calça e uma camiseta limpas, pegou uma pasta com as fotos que copiara na impressora. A raiva o fazia quase tremer.
— Fique aqui! — ordenou, áspero, a Lisbeth Salander.
Foi até a casa de Cecilia Vanger e calcou a mão na campainha. Depois de um minuto e meio ela atendeu.
— Não quero falar com você — ela disse. Depois, viu o rosto dele e o sangue que já começava a vazar dos curativos. — O que aconteceu?
— Deixe-me entrar. Precisamos conversar. Ela hesitou.
— Não temos nada a nos dizer.
— Agora temos, sim, coisas a nos dizer e podemos discuti-las aqui na porta ou na cozinha.
A voz de Mikael deixava transparecer sua raiva contida e Cecilia Vanger deu um passo para o lado, deixando-o entrar. Ele foi se sentar à mesa da cozinha.
— O que aconteceu? — ela perguntou novamente.
— Você diz que as minhas investigações sobre o desaparecimento de Harriet são um passatempo terapêutico para Henrik. É possível, mas uma hora atrás alguém tentou acertar um tiro na minha cabeça e, na noite passada, alguém pôs um gato cortado em pedaços na entrada de casa.
Cecilia Vanger abriu a boca, mas Mikael a interrompeu.
— Cecilia, pouco me importa quais são as suas idéias fixas e o que a preocupa, ou por que agora você me odeia. Não vou mais me aproximar de você, não precisa ter medo que eu a importune ou a persiga. Neste momento, eu gostaria de nunca ter ouvido falar de você nem da família Vanger. Mas quero que responda às minhas perguntas. Quanto mais depressa responder, mais depressa se livrará de mim.
— O que quer saber?
— Primeiro: onde você estava uma hora atrás? O rosto de Cecilia turvou-se.
— Eu estava em Hedestad. Voltei faz meia hora.
— Há testemunhas que comprovem isso?
— Sei lá. Não preciso me justificar para você.
— Segundo: por que abriu a janela do quarto de Harriet Vanger no dia em que ela desapareceu?
— O que você disse?
— Você ouviu minha pergunta. Durante todos esses anos, Henrik tentou descobrir quem abriu a janela do quarto de Harriet exatamente nos minutos críticos do seu desaparecimento. Todo mundo negou ter feito isso. Alguém está mentindo.
— E o que o faz pensar que fui eu?
— Esta foto — disse Mikael, jogando a fotografia em cima da mesa. Cecilia Vanger aproximou-se para olhar a foto. Mikael teve a impressão de ver surpresa e medo. Ela levantou os olhos para ele. Mikael sentiu um pequeno filete de sangue escorrer pelo rosto e pingar na camiseta.
— Havia umas sessenta pessoas na ilha naquele dia — ele disse. — Vinte e oito eram mulheres. Cinco ou seis tinham cabelos louros e um pouco compridos. Só uma usava um vestido claro.
Ela olhou intensamente a foto.
— E acha que sou eu nesta foto?
— Se não é, eu gostaria muito de saber quem você acha que é. Ninguém sabe da existência dessa foto até agora. Há várias semanas a tenho comigo, mas não mostrei a Henrik nem a qualquer outra pessoa, porque tinha um medo terrível de transformar você em suspeita ou de prejudicá-la. Mas preciso de uma resposta.
— Terá a sua resposta. — Ela pegou a foto e a estendeu a ele. — Nesse dia não fui ao quarto de Harriet. Não sou eu nessa foto. Não tenho absolutamente nada a ver com o desaparecimento dela.
Dirigiu-se à porta de entrada.
— Essa é a minha resposta. Agora quero que vá embora. E acho que deveria mostrar esse ferimento a um médico.
Lisbeth Salander o levou ao hospital de Hedestad. Mikael levou dois pontos, puseram-lhe um grande curativo sobre a ferida e deram-lhe uma pomada de cortisona para os arranhões de urtiga no pescoço e nas mãos.
Ao deixar o hospital, Mikael refletiu demoradamente se não deveria avisar a polícia. Mas logo imaginou as manchetes: "Jornalista condenado por difamação é alvo de atirador misterioso". Ele balançou a cabeça.
— Vamos para casa — disse a Lisbeth.
Ao regressarem à ilha já estava escuro, o que convinha bem a Lisbeth Salander. Ela pôs uma sacola em cima da mesa da cozinha.
— Peguei emprestado um equipamento da Milton Security e chegou a hora de utilizá-lo. Prepare um café enquanto isso.
Ela espalhou quatro detectores de movimento ao redor da casa e explicou que, se alguém se aproximasse a menos de seis, sete metros, um sinal de rádio dispararia o bipe que havia instalado no quarto de Mikael. Na mesma hora, duas câmeras de vídeo ultra-sensíveis colocadas nas árvores, na frente e atrás da casa, começariam a enviar sinais a um laptop dentro do armário do vestíbulo. Ela dissimulou as câmeras com um tecido escuro, deixando apenas as objetivas descobertas.
Colocou uma terceira câmera numa gaiola de passarinho em cima da porta. Para introduzir o cabo ali, fez um buraco na parede. A objetiva estava apontada para a estrada e para o caminho do portão até a porta de entrada. A câmera tirava uma foto de baixa resolução por segundo, armazenada no disco rígido de um segundo laptop no armário.
Em seguida, instalou um capacho com captores de pressão no vestíbulo. Se alguém burlasse os detectores de movimento e entrasse na casa, um alarme de cento e quinze decibéis dispararia. Lisbeth mostrou como fazer para desativar os detectores com a chave de um pequeno cofre colocado no armário. Ela também emprestara um binóculo de visão noturna, que deixou na mesa da saleta de trabalho.
— Você parece ter pensado em tudo — disse Mikael, servindo-lhe uma xícara de café.
— Outra coisa, nada mais de jogging até que a gente tenha resolvido tudo isso.
— Pode crer que perdi todo o interesse pelo treinamento.
— Não estou brincando. Esse caso começou como um enigma histórico, mas hoje de manhã havia um gato morto na entrada e no fim da tarde alguém tentou estourar os seus miolos. Nós cutucamos alguém do esconderijo.
Eles fizeram uma refeição fora de hora, com carne fria e salada de batatas. Mikael estava muito cansado e com uma dor de cabeça terrível. Não conseguia falar mais nada e foi se deitar.
Lisbeth Salander permaneceu ali de pé e depois continuou lendo o inquérito até as duas da manhã. A missão em Hedeby havia se transformado em algo ameaçador e complicado ao mesmo tempo.
23. SEXTA-FEIRA 11 DE JULHO
Mikael despertou às seis da manhã com o sol batendo direto no rosto porque a cortina não fora bem fechada. A cabeça estava vagamente dolorida e ele sentiu uma dor aguda ao tocar o curativo. Lisbeth Salander dormia de bruços, com um braço em cima dele. Ele olhou o dragão que se estendia em suas costas, do ombro direito às nádegas.
Contou as tatuagens. Além do dragão nas costas e de uma vespa no pescoço, havia uma tira em volta do tornozelo, outra em volta do bíceps esquerdo, um macaco chinês no quadril e uma rosa na panturrilha. Afora o dragão, todas as tatuagens eram pequenas e discretas.
Mikael saiu lentamente da cama e puxou a cortina. Foi ao banheiro e voltou para a cama sem fazer ruído, para não despertar Lisbeth.
Algumas horas depois, tomavam o café-da-manhã no jardim. Lisbeth olhou para Mikael.
— Temos um mistério para resolver. Como faremos?
— Vamos fazer um balanço das informações que já temos e tentar descobrir outras.
— Uma das informações é que alguém da vizinhança está tentando te acertar.
— A questão é saber por quê. É porque estamos prestes a resolver o mistério de Harriet ou porque descobrimos um assassino serial até então desconhecido?
— Deve haver uma ligação. Mikael concordou com a cabeça.
— Se Harriet descobriu um assassino serial, era, necessariamente, alguém do seu meio. Se examinarmos a galeria dos personagens dos anos 1960, havia pelo menos duas dúzias de candidatos possíveis. Hoje não resta praticamente ninguém, com exceção de Harald Vanger, e não dá para acreditar que ele, com quase noventa e cinco anos, anda pelos bosques com um rifle. Não teria força sequer para levantar uma espingarda de caça. Hoje todos são ou muito velhos para ser perigosos, ou muito jovens para terem agido nos anos 1950. O que nos leva de volta ao ponto de partida.
— A menos que dois colaborem um com o outro. Um velho e um jovem.
— Harald e Cecilia. Não creio. Acho que ela disse a verdade quando afirmou que não estava na janela.
— Quem seria então?
Abriram o notebook de Mikael e passaram a hora seguinte examinando com atenção todas as pessoas que apareciam nas fotos do acidente.
— Imagino que a aldeia inteira veio ver o acidente. Era setembro. A maioria está de casaco ou pulôver. Só uma pessoa tem cabelos louros compridos e vestido claro.
— Cecilia Vanger aparece em muitas fotos. Dá a impressão de estar o tempo todo em movimento, entre as casas e as pessoas que observam o acidente. Aqui ela está falando com Isabella. Aqui está com o pastor Falk. Aqui com Greger, o irmão de Henrik.
— Espere! — interrompeu Mikael. — O que é isso na mão dele, Greger?
— Uma coisa quadrada. Parece uma caixinha.
— É uma Hasselblad! Ele também estava com uma máquina fotográfica.
Repassaram as fotos mais uma vez. Greger era visto em várias, mas em geral encoberto. Numa das fotos, via-se claramente que ele tinha uma caixa quadrada na mão.
— Acho que você está certo. É uma máquina fotográfica.
— O que significa que podemos nos lançar a uma outra caça às fotos.
— Vamos deixar isso pra lá por enquanto — disse Lisbeth Salander. — Posso levantar uma hipótese?
— Diga.
— O que acha disto: alguém da jovem geração descobre que alguém da velha geração era um assassino serial, mas não quer que ninguém saiba. A honra da família, et cetera e tal. Isso significaria que existem duas pessoas envolvidas na história, mas que não agem juntas. O assassino pode estar morto há muito tempo, enquanto o nosso perseguidor quer simplesmente que a gente abandone o caso e saia daqui.
— Também pensei nisso — disse Mikael. — Mas, nesse caso, por que pôr um gato esquartejado na nossa porta? É uma referência direta aos assassinatos. — Mikael tocou a Bíblia de Harriet. — Mais uma paródia das leis sobre os sacrifícios por imolação.
Lisbeth Salander inclinou-se para trás e olhou a igreja enquanto citava a Bíblia com ar pensativo. Parecia falar sozinha.
— "Depois imolará o novilho diante do Senhor, e os sacerdotes, filhos de Aarão, oferecerão o sangue e o derramarão ao redor sobre o altar que está à entrada da Tenda da Reunião. Depois esfolará a vítima e a cortará em pedaços."
Ela se calou e de repente percebeu que Mikael a olhava com o rosto tenso. Ele abriu a Bíblia no início do Levítico.
— Conhece o versículo 12 também? Lisbeth permaneceu calada.
— A seguir... — começou Mikael, balançando a cabeça para estimulá-la a continuar.
— "A seguir a vítima será cortada em pedaços, com a cabeça e a gordura, que o sacerdote disporá sobre a lenha colocada no fogo do altar." A voz dela estava gelada.
— E o seguinte?
Ela se levantou de repente.
— Lisbeth, você tem memória fotográfica! — exclamou Mikael, estupefato. — É por isso que lê as páginas do inquérito em segundos.
A reação dela foi quase explosiva. Fulminou Mikael com tanta raiva no olhar que ele ficou perplexo. Depois, os olhos de Lisbeth se encheram de desespero; virou-se e saiu correndo em direção ao portão do jardim.
— Lisbeth! — chamou Mikael, completamente atônito.
Ela desapareceu na estrada.
* * *
Mikael levou o computador para dentro de casa, ativou o alarme e trancou a porta antes de sair atrás de Lisbeth. Encontrou-a vinte minutos depois sentada num pontão do porto de recreio molhando os pés na água e fumando um cigarro. Lisbeth o ouviu chegar e ele percebeu os ombros dela se enrijecerem um pouco. Deteve-se a dois metros de onde ela estava.
— Não sei o que fiz de mal, mas não tive a intenção de deixá-la nesse estado.
Ela não respondeu.
Ele se aproximou, sentou-se ao lado dela e pôs docemente a mão sobre o seu ombro.
— Por favor, Lisbeth, fale comigo. Ela virou a cabeça e olhou para ele.
— Não há nada a dizer. Sou um monstro, só isso.
— Eu ficaria feliz se tivesse a metade da sua memória. Ela jogou o toco de cigarro na água.
Mikael permaneceu um bom tempo em silêncio. Que devo dizer? Você é uma menina perfeitamente normal. E qual é o problema se for um pouco diferente? Por que essa auto-imagem te perturba?
— Percebi que você é diferente das outras mulheres desde o primeiro instante em que eu te vi — ele falou. — E vou dizer uma coisa: fazia muito tempo que eu não gostava naturalmente de alguém assim desde o primeiro instante.
Crianças saíram de uma cabana em frente ao porto e se atiraram na água. Eugen Norman, o artista pintor com quem Mikael ainda não trocara uma só palavra, estava sentado numa cadeira diante de sua casa, fumando um cachimbo e observando Mikael e Lisbeth.
— Tenho vontade de ser seu amigo, se me quiser como amigo — disse Mikael. — Mas cabe a você decidir. Vou para casa preparar um café. Volte quando tiver vontade.
Levantou-se e a deixou tranquila. Estava na metade do caminho, na subida, quando ouviu os passos dela às suas costas. Voltaram juntos em silêncio.
Ela se deteve no momento em que chegavam em frente à casa.
— Eu estava pensando... dissemos que tudo é uma paródia da Bíblia. Certo. Ele cortou em pedaços um gato, mas imagino que não era fácil achar um novilho. De todo modo, está seguindo o enredo básico. Eu me pergunto...
Ela levantou os olhos para a igreja.
— "...os sacerdotes oferecerão o sangue e o derramarão ao redor sobre o altar que está à entrada da Tenda da Reunião..."
Atravessaram a ponte e subiram em direção à igreja, olhando ao redor. Mikael verificou a porta da igreja: trancada. Continuaram andando mais um pouco, olhando ao acaso os túmulos do cemitério, até chegar à capela situada à beira d'agua. Mikael arregalou os olhos. Não era uma capela, era um jazigo. Acima da porta podia-se ler gravado na pedra o nome Vanger, seguido de uma frase em latim que ele não soube decifrar.
— "Para repousar até o fim dos tempos" — disse Lisbeth. Mikael olhou-a admirado. Ela encolheu os ombros.
— Já li essa frase em algum lugar — disse.
Mikael deu uma risada. Ela ficou rígida e a princípio pareceu furiosa, mas logo relaxou ao perceber que ele não tinha zombado dela. A situação é que era cômica.
Mikael verificou a porta. Trancada. Ele refletiu um instante e disse a Lisbeth para sentar-se ali e esperar. Foi bater à porta de Henrik, e Anna Nygren veio abrir. Explicou que queria conhecer a capela mortuária da família Vanger e perguntou onde Henrik guardava a chave. Anna pareceu hesitar, mas cedeu quando Mikael lembrou a ela que trabalhava diretamente para Henrik. Ela foi buscar a chave no gabinete.
No momento em que Mikael e Lisbeth abriram a porta, viram que estavam certos. O fedor de cadáver queimado e de restos carbonizados pairava, pesado, no ar. Mas o torturador do gato não acendera o fogo. Num canto havia um maçarico semelhante ao usado pelos esquiadores para derreter a cera dos esquis. Lisbeth pegou a máquina digital do bolso da saia jeans e tirou algumas fotos. Pegou também o maçarico.
— Pode ser uma prova. Talvez tenha deixado impressões digitais — ela disse.
— Claro, podemos pedir a todos os membros da família Vanger que nos forneçam suas impressões digitais — ironizou Mikael. — Gostaria de vê-la tentando obter as de Isabella.
— Existem meios — retrucou Lisbeth.
No chão havia sangue em abundância e uma tesoura de latoeiro que eles deduziram ter servido para cortar a cabeça do gato.
Mikael olhou ao redor. Um túmulo principal, mais elevado, era certamente o de Alexander Vangeersad; outros quatro, no chão, abrigavam os ancestrais da família. Depois deles, a família Vanger optara, aparentemente, pela cremação. Uns trinta pequenos nichos de parede traziam nomes de membros do clã. Mikael seguiu a história familiar na ordem cronológica e perguntou-se onde estariam enterrados os membros que não tinham lugar na capela — os que talvez não fossem considerados suficientemente importantes.
— Agora temos certeza — disse Mikael, quando atravessaram de volta a ponte. — Estamos atrás de um louco furioso.
— Explique.
Mikael parou no meio da ponte e se apoiou na amurada.
— Se fosse um doido comum que quisesse nos amedrontar, teria matado o gato na sua garagem ou no bosque. Mas ele foi à capela da família. Há algo de compulsivo nisso. Imagine o risco que correu. É verão e as pessoas andam por aí até tarde. O caminho do cemitério é um atalho muito usado pelos habitantes de Hedeby. Mesmo que o sujeito tenha fechado a porta, não é fácil calar um gato e evitar o cheiro de queimado.
— Quem?
— Não consigo imaginar Cecilia indo lá à noite com um maçarico. Lisbeth encolheu os ombros.
— Não confio em nenhum desses doidos, nem mesmo em Frode e no seu amigo Henrik. Toda essa gente é capaz de enrolar você. Que vamos fazer agora?
Houve um momento de silêncio. Mikael disse então:
— Consegui descobrir muitos segredos a seu respeito. Quantas pessoas sabem que você é uma hacker?
— Ninguém.
— Exceto eu, quer dizer.
— Aonde você quer chegar?
— Quero saber se está comigo. Se confia em mim.
Ela o olhou por um bom tempo. Acabou encolhendo novamente os ombros.
— Não sei o que responder.
— Confia em mim? — insistiu Mikael.
— Até agora, sim — ela respondeu.
— Bem. Vamos fazer um pequeno passeio até a casa de Dirch Frode.
Sorrindo educadamente, a mulher do advogado Frode, que não conhecia Lisbeth Salander, arregalou os olhos quando a viu. Indicou-lhes o jardim nos fundos da casa. O rosto de Frode iluminou-se ao ver Lisbeth. Ele se levantou e a saudou com cortesia.
— Estou feliz de vê-la — disse. — Estava me sentindo culpado de não ter expressado suficientemente minha gratidão pelo trabalho extraordinário que fez para nós. Tanto no último inverno quanto agora.
Lisbeth o encarou desconfiada.
— Fui paga para isso — disse.
— Não foi isso que eu quis dizer. Julguei-a mal quando a vi pela primeira vez. Gostaria de me desculpar.
Mikael ficou surpreso. Dirch Frode era capaz de pedir desculpas a uma jovem de vinte e cinco anos coberta de piercings e tatuagens, por algo de que nem precisava se desculpar. O advogado subiu alguns pontos na estima de Mikael. Lisbeth Salander olhava para a frente e o ignorava.
Frode voltou-se para Mikael.
— O que aconteceu na sua testa?
Sentaram-se. Mikael resumiu os acontecimentos dos últimos dias. Quando contou que alguém havia disparado três tiros contra ele, Frode ergueu-se bruscamente. Sua indignação parecia incontestável.
— Mas isso é uma loucura! — Fez uma pausa e olhou fixamente para Mikael. — Sinto muito, mas temos que parar. Não posso colocar a vida de vocês em perigo. Preciso falar com Henrik e anular o contrato.
— Sente-se — disse Mikael.
— Você não entende...
— O que eu entendo é que Lisbeth e eu chegamos tão perto do alvo que quem está por trás de tudo isso entrou em pânico e começou a agir de maneira irracional. Lisbeth e eu gostaríamos de lhe fazer algumas perguntas. Em primeiro lugar: quantas chaves existem da capela funerária da família Vanger e quem possui uma?
Frode refletiu um instante.
— Na verdade, não sei. Eu diria que vários membros da família têm acesso à capela. Sei que Henrik possui uma chave e que Isabella vai até lá às vezes, mas desconheço se ela tem sua própria chave ou se usa a de Henrik.
— Certo. Você continua fazendo parte do conselho administrativo do grupo Vanger. Existem arquivos da empresa? Uma biblioteca ou algo semelhante, onde haja recortes de imprensa e informações sobre o grupo de ano em ano?
— Sim. Na sede da empresa em Hedestad.
— Precisamos ter acesso a tudo isso. Há também velhos boletins do grupo diretivo, esse tipo de material?
— Mais uma vez sou obrigado a responder que não sei. Há trinta anos não ponho os pés no departamento de arquivos. Mas eu o porei em contato com Bodil Lindgren. Ela é a responsável pelo arquivamento de todos os documentos do grupo.
— Pode telefonar para ela e conseguir que Lisbeth comece a percorrer os arquivos já a partir de hoje à tarde? Ela quer ler todos os velhos recortes de imprensa sobre o grupo Vanger. Eu disse todos, e caberá a ela julgar o que pode ter interesse.
— Não há problema. Algo mais?
— Sim. Greger Vanger estava com uma Hasselblad na mão no dia do acidente da ponte. Isso significa que também pode ter tirado fotos. Onde elas foram guardadas depois da morte dele?
— O mais provável é que estejam com a viúva.
— Será que você poderia...
— Vou telefonar para Alexander e perguntar.
— E você quer que eu procure o quê? — perguntou Lisbeth quando eles deixaram Frode e atravessaram a ponte para voltar à ilha.
— Recortes de imprensa e publicações do tipo boletim do grupo empresarial. Quero que leia tudo que se relacione com as datas em que os assassinatos foram cometidos nos anos 1950 e 1960. Anote tudo o que lhe parecer um pouco estranho. Acho melhor você se encarregar dessa pesquisa. Pelo que percebi, sua memória é melhor do que a minha.
Ela desferiu-lhe um soco muito profissional nas costelas. Cinco minutos depois, sua Kawasaki atravessava a ponte.
Mikael apertou a mão de Alexander Vanger. Ele estivera viajando na maior parte do tempo da estadia de Mikael em Hedeby, que só o avistara rapidamente. Ele tinha vinte anos quando Harriet desapareceu.
— Dirch Frode disse que você queria ver umas fotografias antigas.
— Seu pai possuía uma Hasselblad.
— Exato. Ela ainda existe, mas ninguém a usa mais.
— Você deve estar sabendo que estou pesquisando o que aconteceu a Harriet, a pedido de Henrik.
— Foi o que entendi. Há muita gente que não está gostando disso.
— É bem possível. Evidentemente, não é obrigado a me mostrar nada.
— Ora, não há problema! O que deseja ver?
— Fotos que seu pai possa ter tirado no dia do desaparecimento de Harriet.
Subiram até o sótão. Alexander precisou de alguns minutos para localizar uma caixa com um monte de fotografias soltas e misturadas.
— Pode levar a caixa — disse. — Se existir alguma das que procura, deve estar aí dentro.
Mikael passou uma hora selecionando as fotos da caixa que Alexander lhe entregara. Para ilustrar a crônica familiar, a caixa continha algumas verdadeiras preciosidades, entre as quais um grande número de fotografias de Greger Vanger na companhia do grande líder nazista sueco dos anos 1940, Sven Olof Lindholm. Mikael as separou.
Encontrou vários envelopes com fotos que o próprio Greger certamente tirara e que mostravam diferentes pessoas e reuniões de família, bem como fotos típicas de férias, pesca em torrentes nas montanhas e uma viagem à Itália com a família. Entre outros lugares, haviam visitado a torre de Pisa.
Acabou encontrando quatro fotografias do acidente do caminhão-tanque. Embora a máquina fosse de excelente qualidade, Greger era um péssimo fotógrafo. As fotos mostravam ou apenas o caminhão, ou pessoas de costas. Somente numa delas via-se Cecilia Vanger de perfil.
Mikael escaneou as fotos, mesmo sabendo que nada de novo ofereciam. Pôs tudo de volta na caixa e comeu um sanduíche enquanto refletia. Por volta das três da tarde, foi ver Anna Nygren.
— Eu gostaria de saber se Henrik tem outros álbuns de fotografias além dos que fazem parte das investigações dele sobre Harriet.
— Sim, Henrik sempre gostou de fotografia, desde jovem, que eu saiba. Há muitos álbuns no escritório dele.
— Eu poderia vê-los?
Anna Nygren hesitou. Uma coisa era dar a chave da capela funerária — lá quem reinava era Deus —, outra permitir que Mikael entrasse no gabinete de Henrik Vanger — o domínio de Deus não chegava até lá. Mikael sugeriu que Anna telefonasse a Dirch Frode, se tinha dúvidas. Por fim, a contragosto, ela deixou Mikael entrar. Um metro da prateleira de baixo, junto ao chão, continha unicamente pastas com fotografias. Mikael sentou-se na mesa de Henrik e abriu o primeiro álbum.
Henrik Vanger guardava todo tipo de fotografia de família. Muitas datavam de seus antepassados. As mais antigas remontavam aos anos 1870 e mostravam homens austeros e mulheres rígidas. Havia fotos dos pais de Henrik e de outros membros da família. Numa, o pai de Henrik festejava o Dia de São João com amigos em Sandhamn, em 1906. Uma outra de Sandhamn mostrava Fredrik Vanger e sua mulher Ulrika na companhia do pintor Anders Zorn e do escritor Albert Engström, em volta de uma mesa. Viu um Henrik Vanger adolescente, de terno, numa bicicleta. Viu o capitão Oskar Granath que, no auge da guerra, transportara com segurança Henrik e sua bem-amada Edith Lobach a Karlskrona.
Anna subiu para servir-lhe uma xícara de chá. Ele agradeceu. Chegou aos tempos modernos e passou rapidamente por algumas fotos que mostravam Henrik na flor da idade, inaugurando fábricas ou apertando a mão de Tage Erlander. Uma foto do início dos anos 1960 mostrava Henrik e o grande industrial e financista Marcus Wallenberg. Os dois capitalistas olhavam-se com ar carrancudo; visivelmente não havia uma relação cordial entre eles.
Seguiu folheando um pouco mais e deteve-se numa página que Henrik rotulara de Conselho de família 1966, escrito a lápis. Duas fotos coloridas mostravam homens discutindo e fumando charuto. Mikael reconheceu Henrik, Harald, Greger e os genros de Johan Vanger. Duas fotos do jantar, em que cerca de quarenta homens e mulheres estavam à mesa e olhavam para a máquina fotográfica. Mikael se deu conta de que essas fotos tinham sido tiradas após o drama na ponte, mas antes que soubessem do desaparecimento de Harriet. Examinou as fisionomias. Era desse jantar que ela deveria ter participado. Um daqueles homens já sabia que ela desaparecera? As fotos, claro, não forneciam nenhuma resposta.
De repente, Mikael viu algo que o fez engasgar-se com o chá. Tossiu e endireitou-se na cadeira.
Sentada num canto da mesa com um vestido claro, Cecilia Vanger sorria para a câmera. Ao lado dela estava sentada outra mulher loura de cabelos compridos e com um vestido claro idêntico. Eram tão parecidas que poderiam passar por gêmeas. E então a peça do quebra-cabeça se encaixou. Não era Cecilia Vanger na janela de Harriet — era sua irmã Anita, dois anos mais jovem e que hoje morava em Londres.
O que foi mesmo que Lisbeth dissera? Cecilia Vanger aparece em muitas fotos. Dá a impressão de estar o tempo todo andando entre as pessoas. Não. Eram duas mulheres diferentes e o acaso quis que nunca aparecessem juntas na mesma foto. Nas fotos em preto-e-branco tiradas de longe, pareciam idênticas. Henrik provavelmente sempre distinguiu as irmãs, mas para Mikael e Lisbeth elas eram tão semelhantes que pensaram numa única pessoa. E ninguém lhes apontou o erro, pois nunca ocorreu a eles perguntar nada.
Mikael virou as páginas e sentiu os cabelos se arrepiarem na nuca. Como se uma corrente de ar gelado tivesse entrado no escritório.
Eram fotografias tiradas no dia seguinte, quando as buscas de Harriet começaram. Um jovem inspetor de polícia, Gustav Morell, dava instruções a um grupo com dois policiais uniformizados e uns dez homens de botas, reunidos para a batida. Henrik Vanger vestia uma capa de chuva que descia até os joelhos e um chapéu inglês de aba longa.
Bem à esquerda havia um jovem um pouco gordo, de cabelos louros não muito curtos. Vestia uma jaqueta escura com um tom vermelho nos ombros. A foto estava bem nítida. Mikael reconheceu-o imediatamente — e a jaqueta —, mas, para ter certeza, pegou a foto e desceu para perguntar a Anna Nygren se ela sabia quem era.
— Sim, claro, é Martin. Devia ter uns dezoito anos nessa foto.
Lisbeth Salander percorreu, por ordem cronológica, as diversas notícias divulgadas na imprensa sobre o grupo Vanger, ano após ano. Começou em 1949 e foi avançando metodicamente. O problema era a imensidão de arquivos de recortes. O grupo era mencionado na imprensa quase todos os dias durante esse período — na imprensa nacional e sobretudo na local. Havia análises econômicas, comentários dos sindicatos, notícias de negociações e ameaças de greve, inaugurações e fechamentos de fábricas, balanços anuais, mudanças de diretoria, lançamentos de novos produtos no mercado... uma quantidade enorme de informações. Clique. Clique. Clique. Seu cérebro trabalhava a pleno vapor quando focalizava e absorvia a informação de um recorte antigo.
Esfalfava-se havia já uma hora, quando teve uma idéia. Dirigiu-se à responsável pelos arquivos, Bodil Lindgren, e perguntou se havia um quadro das implantações das fábricas das empresas Vanger nos anos 1950 e 1960.
Bodil Lindgren olhou Lisbeth Salander com uma desconfiança e uma frieza evidentes. Não apreciava de modo algum que uma pessoa estranha tivesse sido autorizada a introduzir-se nos arquivos sagrados do grupo para examinar o que bem entendesse — ainda mais uma moça com aquela aparência de uma anarquista de quinze anos de idade, completamente doida. Mas Dirch Frode lhe dera instruções bem claras. Lisbeth Salander podia examinar o que quisesse. E era urgente. Bodil Lindgren foi buscar os balanços anuais do período solicitado por Lisbeth; cada balanço trazia um mapa com os tentáculos do grupo por toda a Suécia.
Lisbeth olhou o mapa e observou que o grupo tinha inúmeras fábricas, escritórios e pontos de venda. Constatou que em cada localidade onde um assassinato fora cometido havia igualmente um ponto vermelho, ou vários, indicando a presença do grupo Vanger.
Encontrou a primeira ligação em 1957. Rakel Lunde, em Landskrona, fora encontrada morta um dia depois de a sociedade V. & C. Construções arrebatar uma grande encomenda de vários milhões de coroas para a construção de um novo centro comercial na região. V. & C. significava Vanger & Carlen Construções e fazia parte do grupo Vanger. O jornal local havia entrevistado Gottfried Vanger, que fora assinar o contrato.
Lisbeth lembrou-se de uma coisa que lera no inquérito policial nos arquivos do condado de Landskrona. Rakel Lunde, cartomante nas horas vagas, era faxineira. Havia trabalhado na V. & C. Construções.
Às sete da noite, Mikael chamou Lisbeth umas dez vezes e constatou que seu celular estava desligado. Ela não queria ser interrompida enquanto vasculhava os arquivos.
Ele andava de um lado para o outro na casa. Havia retornado às anotações de Henrik sobre o que Martin Vanger fazia na época do desaparecimento de Harriet.
Martin Vanger cursava o último ano do colegial em Uppsala, em 1966. Uppsala. Lena Andersson, colegial de dezessete anos. A cabeça separada da gordura.
Henrik mencionara a certa altura — mas Mikael precisou consultar suas anotações para encontrar a passagem — que Martin fora um rapaz fechado. As pessoas preocupavam-se com ele. Quando o pai morreu afogado, sua mãe, Isabella, decidiu enviá-lo a Uppsala — uma mudança de ambiente, e ele foi acolhido por Harald Vanger. Harald e Martin? Não combinava.
Não havia lugar no carro para Martin Vanger ir à reunião de família em Hedestad. Ele perdeu o trem e só chegou à tarde; foi um dos que estavam retidos no outro lado da ponte na hora do acidente. Só conseguiu chegar à ilha por volta das seis, de barco. Foi recebido, entre outros, pelo próprio Henrik Vanger. Por causa disso, Henrik colocou-o bem embaixo na lista dos que podiam ter alguma relação com o desaparecimento de Harriet.
Martin Vanger afirmou não ter encontrado Harriet naquele dia. Ele mentia. Chegou a Hedestad mais cedo e foi visto pela irmã na rua da Estação. Mikael podia refutar sua mentira com fotos que haviam ficado enterradas durante quase quarenta anos.
Harriet Vanger viu o irmão e isso a chocou. Ela voltou à ilha e tentou falar com Henrik Vanger, porém desapareceu antes que a conversa ocorresse. O que pretendia contar? Uppsala? Mas Lena Andersson, Uppsala, não estava na sua lista. Você não estava sabendo.
A história ainda não fazia sentido para Mikael. Harriet desapareceu por volta das três da tarde. Havia provas de que Martin estava do outro lado da ponte nessa hora. Ele é visto em fotografias tiradas do pátio da igreja. Era impossível que pudesse ter feito mal a Harriet na ilha. Faltava ainda uma peça do quebra-cabeça. Um cúmplice então? Anita Vanger?
Os arquivos permitiram a Lisbeth constatar que a posição de Gottfried Vanger no grupo havia mudado ao longo dos anos. Ele nascera em 1927. Aos vinte anos, conheceu Isabella e logo a engravidou. Martin Vanger nasceu em 1948 e os dois jovens não tiveram outra saída senão casar.
Gottfried tinha vinte e dois anos quando Henrik o introduziu no escritório central do grupo. Era muito talentoso e começavam a considerá-lo um futuro líder. Aos vinte e cinco anos, assegurou um lugar na direção, como diretor adjunto da área de desenvolvimento de empresas. Uma estrela em ascensão.
Em determinado momento, em meados dos anos 1950, sua carreira se interrompeu. Passou a beber. O casamento com Isabella se deteriorava. Os filhos, Martin e Harriet, padeciam com isso. Henrik deu um basta. A carreira de Gottfried atingira seu ponto culminante. Em 1956, outro cargo de diretor adjunto de desenvolvimento foi criado. Dois diretores adjuntos — um que trabalhava e outro que bebia e permanecia ausente por longos períodos.
Mas Gottfried continuava sendo um Vanger, além disso charmoso e bem-falante. De 1957 em diante, sua missão parecia ter sido percorrer o país para inaugurar fábricas, resolver conflitos locais e mostrar a todos que a direção do grupo levava a sério os problemas e se preocupava. Enviamos um de nossos filhos para escutar as queixas de vocês.
Ela descobriu a segunda ligação por volta das seis e meia da tarde. Gottfried havia participado de negociações em Karlstad, onde o grupo Vanger adquirira uma empresa de madeiras para construção. No dia seguinte, a proprietária rural Magda Lovisa Sjöberg foi encontrada assassinada.
A terceira ligação foi descoberta quinze minutos depois. Uddevalla, 1962. No mesmo dia em que Lea Persson desapareceu, o jornal local entrevistava Gottfried acerca de uma possível extensão do porto.
Três horas depois, Lisbeth Salander constatava que Gottfried Vanger, pelo menos em cinco dos oito crimes, estivera nas localidades nos dias que antecediam ou sucediam ao acontecimento. Não obteve nenhuma informação sobre os assassinatos de 1949 e 1954. Examinou uma foto dele num recorte de imprensa. Um homem magro de cabelos castanhos; lembrava um pouco Clark Gable em ...E o vento levou.
Em 1949, Gottfried tinha vinte e dois anos. O primeiro crime ocorreu em terreno conhecido, Hedestad. Rebecka Jacobsson, empregada de escritório do grupo Vanger. Onde se encontraram? O que teria prometido a ela?
Quando Bodil Lindgren quis fechar o local e voltar para casa às sete, Lisbeth lhe respondeu secamente que não havia terminado. Que fosse embora e deixasse uma chave; ela fecharia tudo ao sair. A responsável pelos arquivos ficou tão irritada com o fato de uma moça se achar no direito de lhe dar ordens, que telefonou a Dirch Frode para pedir instruções. Frode decidiu prontamente que Lisbeth podia ficar a noite toda, se julgasse necessário. A srta. Lindgren poderia fazer a gentileza de avisar o guarda do escritório para que a acompanhasse no momento em que ela quisesse sair?
Lisbeth Salander mordeu o lábio inferior. O problema, evidentemente, era que Gottfried se afogara numa noite de bebedeira em 1965, enquanto o último crime ocorrera em Uppsala em fevereiro de 1966. Teria cometido um engano ao incluir a colegial de dezessete anos, Lena Andersson, na lista? Não. A assinatura não era exatamente a mesma, porém a paródia bíblica era idêntica. Havia com certeza uma ligação.
Nove da noite, anoitecia. O ar estava mais fresco e uma chuva miúda começou a cair. Mikael estava sentado na cozinha, tamborilando na mesa com os dedos, quando o Volvo de Martin Vanger atravessou a ponte e desapareceu em direção ao promontório. De certo modo, as coisas estavam caminhando rápido.
Mikael não sabia como agir. Todo o seu corpo ardia de vontade de fazer perguntas — de confrontar. Uma atitude certamente pouco razoável, se suspeitava que Martin Vanger era um louco que assassinara a irmã e uma jovem em Uppsala, além de haver tentado matar o próprio Mikael. Mas Martin Vanger funcionava também como um ímã. E ele não sabia que Mikael sabia. Mikael podia perfeitamente passar na casa dele com um pretexto... digamos, devolver a chave da cabana de Gottfried? Mikael trancou a porta e dirigiu-se ao promontório.
A casa de Harald Vanger estava, como de hábito, mergulhada na mais completa escuridão. Também não havia luzes na casa de Henrik, com exceção de um quarto que dava para o pátio. Anna fora deitar-se. A casa de Isabella, às escuras. Cecilia não estava em casa. Havia luzes no primeiro andar da casa de Alexander Vanger, mas elas estavam apagadas nas duas casas habitadas por pessoas que não pertenciam à família Vanger. Ele não avistou ninguém.
Hesitante, deteve-se diante da casa de Martin Vanger, pegou o celular e digitou o número de Lisbeth Salander. Continuava não atendendo. Desligou o celular para evitar que tocasse.
Luzes estavam acesas no andar de baixo. Mikael atravessou a relva e parou a alguns metros da janela da cozinha, porém não viu nenhum movimento. Contornou a casa detendo-se diante de cada janela, mas não via Martin Vanger. Contudo, percebeu que a porta lateral da garagem estava entreaberta. Não vá fazer uma besteira agora. Mas não resistiu à tentação de dar uma espiada rápida.
A primeira coisa que viu, numa bancada de marceneiro, foi uma caixa aberta com munição para rifle de caça. A seguir, viu dois galões de gasolina no chão, embaixo da bancada. Está preparando outra visita noturna, Martin?
— Entre, Mikael. Vi você na estrada.
O coração de Mikael parou. Ele virou lentamente a cabeça e viu Martin Vanger na penumbra de uma porta que levava ao interior da casa.
— Não conseguiu se conter, precisava vir até aqui, não é mesmo? A voz era calma, quase amistosa.
— Oi, Martin — respondeu Mikael.
— Entre — repetiu Martin. — Por aqui.
Deu um passo para o lado e estendeu a mão esquerda num gesto convidativo. Levantou a mão direita e Mikael viu um reflexo de metal fosco.
— Para a sua informação, é uma Glock. Não faça besteira. A essa distância eu não costumo errar o alvo.
Mikael se aproximou devagar. Quando estava bem perto de Martin Vanger, parou e o olhou nos olhos.
— Eu precisava vir. Tenho uma porção de perguntas a lhe fazer.
— Entendo. Pela porta, venha.
Mikael entrou lentamente na casa. A passagem conduzia ao vestíbulo e depois à cozinha, mas antes de chegar lá Martin o deteve pondo de leve a mão em seu ombro.
— Não, na cozinha não. Entre à direita. Abra a porta ao lado.
O porão. Mikael havia descido metade da escada quando Martin girou um interruptor e as luzes se acenderam. A direita ficava a caldeira. A sua frente, sentiu o cheiro da lavanderia. Martin Vanger o conduziu à esquerda, a um pequeno quarto com velhos móveis e pastas. Bem ao fundo havia outra porta. Uma porta blindada de aço com uma fechadura de segurança.
— Tome — disse Martin, jogando um molho de chaves para Mikael. — Abra.
Mikael abriu a porta.
— Há um interruptor à esquerda. Mikael acabava de abrir a porta do inferno.
Por volta das nove da noite, Lisbeth foi buscar um café e um sanduíche numa máquina automática que havia no corredor dos arquivos. Continuou a folhear velhos documentos, tentando encontrar algum sinal de Gottfried Vanger em Kalmar, em 1954. Não encontrou nada.
Pensou em ligar para Mikael, mas antes de ir embora decidiu dar uma olhada também nos boletins de diretoria; então seria o suficiente para essa noite.
A peça media cerca de cinco metros por dez. Mikael calculou que, geograficamente, ela ficava no lado norte da casa.
Martin Vanger montara com capricho sua câmara de tortura particular. A esquerda, correntes, argolas de metal no teto e no chão, uma mesa com correias de couro onde podia amarrar suas vítimas. Havia também um equipamento de vídeo. E um estúdio de gravação. No fundo da peça via-se uma jaula de aço onde seus hóspedes podiam ficar aprisionados por longos períodos. A direita da porta, uma cama e um aparelho de tevê. Numa prateleira, Mikael viu uma grande quantidade de videocassetes.
Assim que entraram, Martin Vanger apontou a pistola para Mikael e ordenou que se deitasse de bruços no chão. Mikael se recusou.
— Como quiser — disse Martin. — Nesse caso, vou dar um tiro no seu joelho.
Apontou a arma. Mikael capitulou, não tinha escolha.
Ele havia esperado que Martin se descuidasse por um décimo de segundo — sabia que numa luta corporal o venceria. Houvera uma pequena oportunidade no corredor, no momento em que Martin pôs a mão em seu ombro, mas ele hesitou. Depois Martin não voltou a se aproximar. Sem rótula, ele não teria a menor chance. Assim, estendeu-se no chão.
Martin aproximou-se por trás e mandou Mikael pôr as mãos nas costas. Imobilizou-as com algemas. Começou então a lhe dar pontapés na virilha e a lhe desferir socos violentos.
O que se passou a seguir foi como um pesadelo. Martin Vanger oscilava entre a racionalidade e a loucura. Em alguns momentos parecia calmo. No instante seguinte, começava a andar de um lado para o outro do porão como uma fera enjaulada, voltando a chutar Mikael. Tudo que ele conseguiu fazer foi tentar proteger a cabeça e receber os golpes em outras partes do corpo, que, depois de alguns minutos, apresentavam diversos ferimentos.
Durante a primeira meia hora, Martin não disse uma só palavra e permaneceu insensível a tudo o que Mikael dissesse. Depois pareceu se acalmar. Foi buscar uma corrente, passou-a em volta do pescoço de Mikael, fixou-a a uma argola no chão e depois fechou com um cadeado. Deixou Mikael sozinho por quinze minutos. Ao retornar, trazia uma garrafa plástica com água. Sentou-se numa cadeira e contemplou Mikael enquanto bebia.
— Posso beber um pouco de água? — perguntou Mikael.
Martin Vanger inclinou-se e pôs a garrafa na boca de Mikael. Ele bebeu sofregamente.
— Obrigado.
— Sempre bem-educado, Super-Blomkvist.
— Por que todos esses chutes? — perguntou Mikael.
— Porque me deixou muito zangado e merece ser punido. Por que simplesmente não voltou para a sua casa? Precisavam de você na Millennium. Falo sério, poderíamos ter feito dela uma grande revista. Poderíamos ter trabalhado juntos por muitos anos.
Mikael fez uma careta e procurou acomodar o corpo numa posição confortável. Estava sem defesa. Só lhe restava a voz.
— Imagino que esteja querendo dizer que a ocasião já passou — disse Mikael.
Martin Vanger riu.
— Sinto muito, Mikael. Sim, você entendeu bem: você não vai sair vivo daqui.
Mikael assentiu com a cabeça.
— Mas como fizeram para me desmascarar, você e aquela múmia anoréxica que se envolveu na história?
— Você mentiu sobre o que fez no dia em que Harriet desapareceu. Posso provar que estava em Hedestad no desfile da Festa das Crianças. Foi fotografado olhando para Harriet.
— Por isso você foi a Norsjö?
— Sim, para buscar essa foto. Foi tirada por um casal que estava por acaso em Hedestad. Apenas de passagem.
Martin Vanger balançou a cabeça.
— Não, você está tentando me enganar — disse.
Mikael refletia intensamente no que poderia dizer para impedir, ou ao menos retardar, sua morte.
— Onde está essa foto agora?
— O negativo? No meu cofre no Handelsbank, aqui em Hedestad... Não sabia que tenho um cofre no banco? — Ele mentia com desenvoltura. — As cópias estão em vários lugares: no meu computador e no de Lisbeth, no servidor de imagens da Millennium e no da Milton Security, onde Lisbeth trabalha.
Martin Vanger calou-se por um momento, tentando descobrir se Mikael blefava ou não.
— O que ela sabe, a múmia Salander?
Mikael hesitou. Por enquanto, Lisbeth era sua única esperança de salvação. O que ela faria ao voltar para casa e descobrir que ele não estava? Ele deixara a foto de Martin vestido com sua jaqueta na mesa da cozinha. Ela faria a ligação? Dispararia o alarme? Ela não é do tipo que chama a polícia. O pesadelo seria se ela fosse à casa de Martin e batesse à porta para tentar saber onde Mikael estava.
— Responda — disse Martin com uma voz gelada.
— Acho que Lisbeth sabe o mesmo que eu, talvez até mais. Eu diria que ela sabe mais que eu, é muito esperta. Foi ela quem fez a ligação com Lena Andersson.
— Lena Andersson? — Martin Vanger pareceu perplexo.
— A adolescente que você torturou até a morte em Uppsala, em fevereiro de 1966. Não me diga que se esqueceu dela.
Pela primeira vez o olhar de Martin Vanger deixou transparecer o quanto ele estava perturbado. Ele não imaginava que alguém pudesse fazer essa ligação — Lena Andersson não constava na agenda telefônica de Harriet.
— Martin — disse Mikael com a voz mais calma possível. — Acabou, Martin. Você pode me matar, mas acabou. Muita gente está sabendo, e desta vez você será pego.
Martin Vanger ergueu-se rapidamente e começou a andar de um lado para o outro. De repente desferiu um murro na parede.
Preciso me lembrar de que ele é irracional. O gato. Poderia ter trucidado o gato aqui, mas o levou à capela da família. Ele não age de maneira racional.
Martin Vanger deteve-se.
— Acho que você está mentindo. Só você e Salander estão sabendo. Não falaram para mais ninguém. Senão a polícia já teria aparecido. Um bom incêndio na casa dos convidados e as provas vão virar fumaça.
— E se você estiver enganado? Ele sorriu.
— Se eu estiver enganado, então de fato acabou. Mas não acredito nisso. Aposto que você está blefando. Que outra escolha me resta? — Ele refletiu. — É essa putinha anoréxica que está me atrapalhando. Preciso encontrá-la.
— Ela foi para Estocolmo ao meio-dia. Martin Vanger deu uma risada.
— É mesmo? Então por que passou a tarde nos arquivos do grupo Vanger?
O coração de Mikael saltou no peito. Ele sabia. Sabia desde o início.
— É verdade. Ela primeiro ia passar nos arquivos e depois seguir para Estocolmo — respondeu Mikael o mais calmamente que pôde. — Eu não sabia que ia ficar tanto tempo lá.
— Cale-se. A responsável pelos arquivos me contou que Dirch Frode a autorizou a deixar Salander ficar lá até tarde, se ela quisesse. Isso significa que ela voltará a qualquer momento esta noite. O guarda me avisará assim que ela deixar o escritório.