— Aqui está Harriet. Mais ou menos duas horas antes do desaparecimento, ela está na cidade com algumas colegas da escola. É sua última foto. Mas há outra interessante.

Henrik folheou algumas páginas. O restante do álbum continha pouco mais de cento e oitenta fotos — seis rolos — da catástrofe na ponte. Depois de ouvido o relato, era quase desconfortável ver tudo ali de repente, sob a forma de fotografias em preto-e-branco. O fotógrafo que imortalizara o caos do acidente era um bom profissional. Um grande número de imagens focalizava as atividades em torno do caminhão-tanque tombado. Mikael não teve dificuldade de identificar um Henrik Vanger de quarenta e seis anos gesticulando, manchado de óleo.

— Este é o meu irmão Harald. — Henrik indicou um homem em mangas de camisa meio inclinado para a frente e que apontava com o dedo alguma coisa nos destroços onde Aronsson estava esmagado. — Meu irmão Harald é um homem desagradável, mas creio que se pode riscá-lo da lista de suspeitos. Com exceção de um breve momento, quando foi obrigado a correr até a casa para trocar de sapato, esteve o tempo todo na ponte.

As fotos se sucederam. Primeiro plano do caminhão-tanque. Plano geral dos espectadores à beira d'agua. Detalhe do carro destroçado de Aronsson. Panorâmicas. Fotos indiscretas com teleobjetiva.

— Esta foto é muito interessante — disse Henrik Vanger. — Pelo que calculamos, foi tirada entre 15h40 e 15h45, portanto quarenta e cinco minutos depois que Harriet foi vista pelo pastor Falk. Se observar nossa casa, a janela do meio, no primeiro andar, é a do quarto de Harriet. Aqui ela aparece aberta.

— Então alguém estava no quarto de Harriet nesse momento.

— Perguntei isso a todos; ninguém admitiu ter aberto a janela.

— O que significa que foi Harriet mesmo que a abriu, e portanto estava viva naquele momento, ou que alguém mentiu. Mas por que um assassino entraria no quarto dela para abrir a janela? E por que alguém mentiria?

Henrik Vanger balançou a cabeça. Ele não tinha a resposta.

— Harriet desapareceu por volta das três, ou um pouco depois. Essas fotos dão uma idéia do lugar onde as pessoas estavam naquela hora. Por isso posso riscar algumas da lista de suspeitos. Pela mesma razão, posso dizer que outras que não aparecem nas fotos na hora em questão devem ser acrescentadas à lista de suspeitos.

— Você não respondeu à minha pergunta: como acha que o corpo desapareceu? Sei que já tem uma resposta: algum passe de mágica.

— Há várias maneiras bastante realistas de se fazer isso. Por volta das três, o assassino age. Ele ou ela provavelmente não utilizou uma arma, senão teríamos encontrado sinais de sangue. Suponho que Harriet foi estrangulada e que a coisa aconteceu aqui: atrás do muro do pátio, um lugar que o fotógrafo não pôde ver e que forma um ângulo oposto em relação à casa. Há um atalho dissimulado para quem vem do presbitério a pé para a casa, último lugar onde ela foi vista. Hoje existe uma pequena plantação e um gramado nesse lugar, mas nos anos 1960 era um terreno coberto de saibro e usado como estacionamento de carros. Tudo o que o assassino precisava fazer era abrir o porta-malas e pôr Harriet ali. Quando começamos as buscas no dia seguinte, ninguém imaginava que um crime tivesse sido cometido; nos concentramos nas praias, nas construções e na parte arborizada mais próxima do povoado.

— Então ninguém examinou os porta-malas.

— E, na noite seguinte, o assassino estava livre para pegar seu carro, atravessar a ponte e esconder o corpo em outro lugar.

Mikael assentiu com a cabeça.

— Nas barbas de todos os que participavam das buscas. Se foi o que aconteceu, trata-se de um canalha com muito sangue-frio.

Henrik Vanger deixou escapar um riso amargo.

— Você acaba de dar uma descrição perfeita de um grande número de membros da família Vanger.

Eles continuaram a discussão durante o jantar, às seis. Anna serviu lebre assada com batatas e geléia de groselha. Henrik Vanger abriu uma garrafa de vinho tinto seco. Mikael ainda tinha tempo de pegar o último trem. Sua intenção era encerrar a conversa.

— Reconheço que me contou uma história fascinante. Mas não consigo realmente entender por que me contou.

— Eu já disse. Quero descobrir quem foi o canalha que matou minha jovem sobrinha. É para isso que quero contratá-lo.

— Mas por que agora? Henrik Vanger depôs os talheres.

— Mikael, vai fazer trinta e sete anos que eu me consumo refletindo sobre o que aconteceu com Harriet. Com os anos, passei a usar cada vez mais meu tempo livre para procurá-la.

Calou-se, retirou os óculos e contemplou uma mancha invisível no copo. Depois levantou os olhos e disse a Mikael:

— Para ser bem honesto, o desaparecimento de Harriet foi o que me levou a abandonar progressivamente a direção do grupo. Perdi toda a motivação. Sabia que havia um assassino na minha família, e as especulações e a busca da verdade se tornaram um peso para o meu trabalho. O pior é que o fardo não aliviou com o tempo; ao contrário. Por volta de 1970, houve um período em que quis, sobretudo, ser deixado em paz. Nessa época Martin entrou para o conselho administrativo e foi se encarregando aos poucos do meu trabalho. Em 1976 aposentei-me e Martin se tornou o diretor-executivo. Continuei participando do conselho administrativo, mas não fiz grande coisa depois dos meus cinquenta anos. Nos últimos trinta e sete anos, não houve um dia em que eu não tivesse levantado hipóteses sobre o desaparecimento de Harriet. Você deve achar que isso beira a obsessão. Em todo caso, é o que pensam a maioria dos membros da nossa família. E eles provavelmente têm razão.

— O que aconteceu foi terrível.

— Mais do que isso. Destruiu minha vida. E fui tomando cada vez mais consciência disso à medida que o tempo passava. Você... você acha que se conhece bem?

— Acho que sim.

— Eu também. Não consigo esquecer o que aconteceu. Mas minhas motivações mudaram com os anos. No começo era mais um sofrimento profundo, uma aflição. Queria encontrá-la para pelo menos poder enterrá-la. Tratava-se de reabilitar Harriet.

— O que mudou então?

— Hoje se trata mais de descobrir o canalha que a matou. Mas o estranho é que quanto mais envelheço, mais isso se transformou numa espécie de hobby para mim.

— Hobby?

— Sim, a palavra cai bem. Depois que a investigação da polícia não deu em nada, continuei por conta própria. Tentei proceder de maneira sistemática e científica. Coletei todas as informações que consegui encontrar: as fotos que você viu, o inquérito policial, anotei tudo o que as pessoas me disseram ter feito naquele dia. Ou seja, dediquei quase metade da minha vida a coletar informações relativas a um único dia.

— Você tem consciência de que o próprio assassino, trinta e seis anos depois, já pode estar morto e enterrado?

— Não acredito nisso.

Mikael ergueu as sobrancelhas diante dessa declaração categórica.

— Vamos terminar a refeição e depois voltaremos ao meu escritório. Resta um detalhe para eu completar minha história. E é o mais desconcertante.

Lisbeth Salander estacionou o Corolla automático junto à estação ferroviária de Sundbyberg. Ela havia pegado emprestado o Toyota da frota de veículos da Milton Security. Não pedira exatamente permissão, mas Armanskij tampouco nunca a proibira, de forma explícita, de utilizar os veículos da Milton. Cedo ou tarde, ela pensou, vou precisar de um carro. Possuía apenas uma moto, uma Kawasaki 125 de segunda mão, que usava no verão. Durante o inverno, a moto ficava na garagem.

Caminhou até a Högklintavägen e tocou o interfone pontualmente às seis da tarde. A porta abriu depois de alguns segundos, ela subiu a escada até o primeiro andar e bateu na porta onde se lia o nome banal Svensson. Não fazia a menor idéia de quem era Svensson, nem mesmo se essa pessoa havia morado no apartamento.

— Oi, Praga — ela saudou.

— Wasp. Você só aparece quando precisa de alguma coisa.

O homem, que tinha três anos mais que Lisbeth Salander, media um metro e oitenta e nove e pesava cento e cinquenta e dois quilos. Ela, que media um metro e cinquenta e quatro e pesava quarenta e dois quilos, sempre se sentia uma anã ao lado de Praga. Como de costume, o apartamento estava na penumbra, só se entrevia a frouxa claridade de uma única lâmpada acesa no quarto que ele usava como escritório. Cheirava a mofo.

— É porque você nunca toma banho e fede como um macaco que te chamam de Praga? Se um dia você resolver sair à rua, eu te digo onde comprar sabão.

Ele esboçou um sorriso, mas não disse nada e fez a ela um sinal para acompanhá-lo até a cozinha. Instalou-se à mesa sem acender a luz. A única claridade vinha de um poste de iluminação pública diante da janela.

— Também não sou muito chegada a limpeza doméstica, mas quando caixas de leite vazias começam a atrair moscas, eu junto tudo e jogo fora.

— Recebo uma pensão por invalidez — ele disse. — Sou socialmente incompetente.

— E por isso que o Estado te deu uma moradia e rapidamente te esqueceu. Você não tem medo que os vizinhos se queixem e chamem a inspeção sanitária? Desse jeito vai acabar num asilo de loucos.

— Tem alguma coisa para mim?

Lisbeth Salander abriu o zíper da jaqueta e tirou cinco mil coroas.

— É tudo o que posso dar. Estou sacando dos meus fundos pessoais e não posso incluí-lo como dependente.

— O que você quer?

— O cabo de que me falou dois meses atrás. Conseguiu fazê-lo? Ele sorriu e pôs um objeto sobre a mesa diante dela.

— Me explica como funciona.

Durante uma hora, ela escutou com atenção. Depois testou o cabo. Praga podia ser socialmente incapaz, mas sem dúvida nenhuma era um gênio.

De volta a seu escritório, Henrik Vanger esperou ter novamente a atenção de Mikael. Este consultou seu relógio.

— Você comentou sobre um detalhe desconcertante. Henrik concordou com a cabeça.

— Nasci num 1º de novembro. Quando Harriet tinha oito anos, ela me deu um quadro de presente de aniversário. Uma flor prensada sob um vidro dentro de uma moldura simples.

Henrik deu a volta ao redor da mesa e mostrou a primeira flor. Campânula. Emoldurada sem muita habilidade.

— Foi o primeiro quadro, que recebi em 1958. Ele mostrou o quadro seguinte.

— 1959, ranúnculo. 1960, margarida. Passou a ser uma tradição. Ela preparava o quadro durante o verão e o guardava para o meu aniversário. Sempre os pendurei aqui, nessa parede. Em 1966 ela desapareceu e a tradição foi interrompida.

Henrik Vanger calou-se e mostrou uma lacuna no alinhamento dos quadros. Mikael sentiu os cabelos se eriçarem na nuca. A parede inteira estava coberta de flores prensadas.

— Em 1967, um ano após o desaparecimento dela, recebi esta flor no meu aniversário. Uma violeta.

— Recebeu como? — perguntou Mikael em voz baixa.

— Num pequeno embrulho de presente dentro de um envelope enviado pelo correio. Postado em Estocolmo. Sem remetente. Nenhuma mensagem.

— Quer dizer que... — Mikael fez um gesto largo com a mão.

— Exatamente. No meu aniversário, todo maldito ano! Entende o que sinto? É dirigido contra mim, como se o assassino quisesse me torturar. Mortifiquei-me com especulações, dizendo a mim mesmo que Harriet foi eliminada por alguém que talvez quisesse me atingir, a mim. Todos sabiam que Harriet e eu tínhamos uma relação especial e que eu a considerava como filha.

— O que quer que eu faça? — perguntou Mikael, com a voz de repente mais dura.

Depois de deixar o Corolla na garagem do subsolo da Milton Security, Lisbeth Salander aproveitou para subir ao escritório com a intenção de ir ao banheiro. Usou o cartão com senha no elevador e foi direto para o segundo andar, sem passar pela entrada principal no primeiro, onde trabalhavam os que estavam de guarda. Ao sair do banheiro, pegou um café na máquina de espressos que Dragan Armanskij por fim resolvera adquirir, ao entender que Lisbeth jamais prepararia bem um café. Em seguida foi até sua sala e estendeu a jaqueta de couro no encosto de uma cadeira.

Seu lugar de trabalho era um cubículo de dois metros por três, atrás de uma divisória de vidro. Havia uma mesa com um computador Dell bastante antigo, uma cadeira giratória, um cesto de lixo, um telefone e uma estante com uma porção de listas telefônicas e três blocos de notas não usados. As duas gavetas da mesa continham algumas canetas esferográficas usadas, clipes de papel e um bloco. No parapeito da janela, um vaso com uma planta murcha de folhas castanhas e secas. Lisbeth Salander examinou a planta com ar pensativo, como se a visse pela primeira vez. Um momento depois, jogou-a decididamente no cesto de lixo.

Ela quase nunca tinha o que fazer em seu escritório e passava por ali não mais que umas seis vezes por ano, principalmente quando sentia necessidade de ficar a sós e de trabalhar num relatório antes de entregá-lo. Dragan Armanskij insistira que ela tivesse seu próprio espaço, acreditando que assim ela se sentiria parte da empresa, mesmo trabalhando como freelancer. Mas Lisbeth suspeitava que Armanskij queria mesmo era ficar de olho nela e acompanhar seus passos. De início fora instalada em outro ponto do corredor, numa sala maior que deveria dividir com um colega, mas, como nunca estava presente, Armanskij acabou por lhe destinar esse cubículo, que não servia a ninguém.

Lisbeth Salander pegou o cabo que trouxera do apartamento de Praga. Depositou o objeto à sua frente, na mesa, e o contemplou, refletindo e mordendo o lábio inferior.

Passava das onze da noite, ela estava sozinha no andar. Sentiu-se de repente muito cansada.

Alguns minutos depois, levantou-se e foi até o fim do corredor, onde testou a porta da sala de Dragan Armanskij. Trancada. Olhou ao redor. A probabilidade de alguém surgir no corredor à meia-noite daquele 26 de dezembro era quase zero. Abriu a porta com uma cópia do cartão com a senha principal da empresa, pirateado alguns anos antes.

O escritório de Armanskij era amplo, com escrivaninha, cadeiras para visitantes e uma pequena mesa de reunião de oito lugares num canto. Limpeza impecável. Fazia tempo que não revistava as coisas dele, mas já que estava ali... Passou uma hora no escritório e coletou os últimos dados do dossiê de um provável espião industrial, folheou um outro de colegas estúpidos destacados para uma empresa onde agiam ladrões bem organizados, e tomou conhecimento das medidas secretas adotadas para proteger uma cliente que temia que o filho fosse sequestrado pelo próprio pai.

Ao terminar, recolocou todos os papéis exatamente no mesmo lugar, trancou a porta do escritório de Armanskij e voltou a pé para sua casa na Lundagatan. Estava satisfeita com sua jornada.

Mikael Blomkvist balançou de novo a cabeça. Sentado atrás de sua escrivaninha, Henrik Vanger contemplava Mikael com olhos calmos, como se já estivesse preparado para todas as suas objeções.

— Não sei se algum dia descobriremos a verdade, mas não quero descer ao túmulo sem fazer ao menos uma última tentativa — disse o velho. — Gostaria de contratá-lo para que percorresse uma última vez todo o material reunido nessa investigação.

— Isso é totalmente insano — constatou Mikael.

— Por que insano?

— Ouvi com atenção, Henrik, entendo seu pesar, mas vou ser franco. O que você me pede é uma perda de tempo e de dinheiro. Pede que eu solucione, como por magia, um mistério que a polícia e investigadores experientes, dispondo de recursos bem mais completos, não encontraram em todos esses anos. Pede que eu solucione um crime quase quarenta anos depois de ele ter sido cometido. Como eu conseguiria?

— Ainda não falamos de seus honorários — replicou Henrik Vanger.

— Não vale à pena.

— Se recusar, não poderei forçá-lo. Mas escute o que ofereço. Dirch Frode já redigiu um contrato. Podemos discutir detalhes, porém o contrato é simples e a única coisa que falta é sua assinatura.

— Henrik, isso não vai servir para nada. Não posso resolver o enigma do desaparecimento de Harriet.

— O contrato não estipula isso. Tudo o que peço é que faça o melhor possível. Se fracassar, será a vontade de Deus ou, se não crê em Deus, do destino.

Mikael suspirou. Começava a se sentir cada vez menos à vontade e queria pôr um ponto final na sua visita a Hedeby, mas mesmo assim cedeu.

— Vá lá, diga.

— Quero que durante um ano more e trabalhe aqui em Hedeby. Quero que percorra toda a investigação sobre o desaparecimento de Harriet, documento após documento. Quero que examine tudo com olhos novos, totalmente novos. Quero que questione todas as antigas conclusões, como deve fazer um jornalista investigative Quero que examine o que eu mesmo, a polícia e outros investigadores podem ter deixado escapar.

— Está pedindo que eu abandone a minha vida e a minha carreira para me dedicar durante um ano a uma coisa que será uma completa perda de tempo?

Henrik Vanger sorriu.

— No que se refere à carreira, admita que por ora ela está bastante atravancada.

Mikael não soube o que responder.

— Quero comprar um ano da sua vida, oferecer-lhe um trabalho. O salário é superior a qualquer outra oferta que você jamais receberá. Pagarei duzentas mil coroas por mês, ou seja, dois milhões e quatrocentas mil coroas, se aceitar e permanecer por um ano.

Mikael emudeceu de espanto.

— Não tenho ilusão. Sei que a probabilidade de êxito é mínima, mas se, contra todas as expectativas, você resolver o enigma, ofereço um bônus — emolumentos dobrados, isto é, quatro milhões e oitocentas mil coroas. Sejamos generosos: cinco milhões para arredondar.

Henrik Vanger cedeu o corpo para trás e inclinou de lado a cabeça.

— Posso depositar o dinheiro na conta bancária de sua escolha, em qualquer lugar do mundo. Você também pode receber o dinheiro em papel-moeda, numa valise, cabendo-lhe decidir se quer ou não declarar a soma ao fisco.

— Não é... correto — gaguejou Mikael.

— E por quê? — perguntou Henrik calmamente. — Tenho mais de oitenta anos e continuo dono da minha cabeça. Tenho uma imensa fortuna pessoal e disponho dela como quiser. Não tenho filhos e não sinto a menor vontade de dar dinheiro a parentes que odeio. Meu testamento estipula que a maior parte do meu dinheiro irá para o World Wildlife Fund. Algumas poucas pessoas que me são próximas vão receber quantias merecidas — entre elas Anna, do andar de baixo.

Mikael Blomkvist balançou negativamente a cabeça.

— Tente me entender. Estou velho e em breve morrerei. Só desejo uma coisa no mundo: uma resposta à questão que me atormenta há quase quatro décadas. Não acredito que acharei a resposta, mas possuo meios suficientes para fazer uma última tentativa. Diga-me o que há de extravagante em utilizar parte da minha fortuna para essa finalidade. É uma dívida para com Harriet. E também para comigo.

— Vai gastar vários milhões de coroas para nada. Tudo o que preciso fazer é assinar o contrato e ficar numa boa durante um ano.

— Você não fará isso. Ao contrário, trabalhará mais duro do que jamais trabalhou em toda a sua vida.

— Como pode ter certeza?

— Porque posso lhe oferecer algo que deseja mais do que qualquer outra coisa no mundo e que dinheiro nenhum conseguirá comprar.

— O quê?

Os olhos de Henrik Vanger se estreitaram.

— Posso lhe entregar Hans-Erik Wennerström. Posso provar que ele é um vigarista. Começou sua carreira na minha empresa há trinta e cinco anos e posso lhe oferecer a cabeça dele numa bandeja. Resolva esse mistério e poderá transformar a sua derrota no tribunal na reportagem do ano.


7. SEXTA-FEIRA 3 DE JANEIRO

Erika estava de costas para Mikael. De pé em frente à janela da casa dele, ela olhava a cidade velha. Eram nove da manhã do dia 3 de janeiro. Toda a neve desaparecera com a chuva que caíra durante as festas de fim de ano.

— Sempre gostei da vista da sua casa — ela disse. — Só um apartamento como este poderia me fazer abandonar Saltsjöbaden.

— Você tem as chaves. Nada contra você deixar seu condomínio classe A para vir morar aqui — disse Mikael. Ele fechou a mala e colocou-a na entrada. Erika voltou-se e olhou para ele com ar incrédulo.

— Isso não faz sentido! — disse. — Estamos na pior das crises e você enche duas malas e vai embora para se instalar num fim de mundo.

— Em Hedestad. A algumas horas de trem. E não estou indo para sempre.

— Poderia ser também Ulan Bator! Não entende que dará a impressão de estar fugindo com o rabo entre as pernas?

— É exatamente o que estou fazendo. Sem esquecer que este ano também terei de cumprir uma pena de prisão.

Christer Malm estava sentado no sofá de Mikael. Sentia-se pouco à vontade. Desde o começo da Millennium, era a primeira vez que via Mikael e Erika divergindo tanto. Ao longo dos anos, os dois haviam se tornado inseparáveis.

Se eventualmente entravam em furiosas discussões, elas sempre se referiam a questões cujo ponto litigioso se dissolvia antes de caírem nos braços um do outro e saírem para fazer um lanche. Ou irem para a cama. O último outono não fora fácil, e agora era como se um abismo tivesse se aberto. Christer Malm se perguntou se assistia ao começo do fim da Millennium.

— Não tenho escolha — disse Mikael. — Nós não temos escolha. Atravessou a sala e foi sentar-se junto à mesa da cozinha. Erika balançou a cabeça e sentou-se diante dele.

— E você, Christer, o que pensa disso? — ela perguntou.

Christer Malm afastou as mãos. Ele esperava a pergunta, temendo o momento em que seria obrigado a tomar posição. Era o terceiro sócio, mas os três sabiam que a Millennium era Mikael e Erika. Só lhe pediam conselho quando estavam realmente em desacordo.

— Com toda a franqueza — respondeu Christer —, vocês dois sabem que o que eu penso não tem a menor importância.

Calou-se. Ele adorava criar imagens. Adorava trabalhar com formas gráficas. Nunca se considerara um artista, mas sabia que era um designer de primeira. Em compensação, era uma nulidade quando se tratava de intrigas e decisões políticas.

Erika e Mikael se olharam. Ela, com uma cólera fria. Ele, refletindo.

Não estou assistindo a uma discussão, pensou Christer, mas a um divórcio. Foi Mikael que rompeu o silêncio.

— Bem, deixem-me expor os argumentos mais uma vez. — Ele fitou Erika. — Ir embora não significa que estou abandonando a Millennium. Trabalhamos duro demais para eu agora querer abandoná-la.

— Mas não estará na redação, eu e Christer é que carregaremos o fardo. Não entende que está se auto-exilando?

— Esse é o outro aspecto. Preciso dar um tempo, Erika. Estou fora de combate. Completamente estressado. Férias remuneradas em Hedestad talvez seja exatamente o que eu preciso.

— Toda essa história é muito estranha, Mikael. É como se você resolvesse ir trabalhar num circo.

— Eu sei. Mas me darão dois milhões e quatrocentos mil para ficar com a bunda numa cadeira por um ano, e não estarei inativo. Esse é o terceiro aspecto. O primeiro round contra Wennerström terminou e ele ganhou. O segundo já está em andamento: ele tentará afundar definitivamente a Millennium, pois sabe que, enquanto a revista existir, há pessoas na redação que sabem o que ele está fazendo.

— Sei muito bem disso. É o que venho constatando há seis meses nas receitas publicitárias, todo fim de mês.

— Exatamente. Por isso mesmo é que eu preciso me afastar da redação. Eu represento uma ameaça para ele. Ele fica paranóico comigo. Enquanto eu permanecer, ele prosseguirá na sua campanha. Nós agora temos que nos preparar para o terceiro round. Se quisermos ter uma chance mínima contra Wennerström, precisamos dar marcha a ré e elaborar uma nova estratégia. Precisamos descobrir alguma coisa em que possamos bater firme. Será o meu trabalho durante este ano.

— Eu entendo tudo isso — replicou Erika. — Mas por que simplesmente você não tira férias? Vá viajar, pegar sol numa praia durante um mês, fazer uma pesquisa sobre a vida amorosa das espanholas. Relaxe, passe um tempo em Sandhamn olhando para o mar.

— E quando eu voltar nada terá mudado. Wennerström vai esmagar a Millennium. Você sabe. A única coisa capaz de detê-lo é descobrirmos algo sobre ele que possa derrubá-lo.

— E acha que descobrirá isso em Hedestad?

— Verifiquei recortes de imprensa. Wennerström trabalhou para o grupo Vanger de 1969 a 1972. Fazia parte do estado-maior, responsável pelos investimentos estratégicos. Saiu muito de repente. Não se pode excluir a possibilidade de que Henrik Vanger saiba de fato alguma coisa sobre ele.

— Mas se Wennerström cometeu um delito há trinta anos, dificilmente isso poderá ser provado hoje.

— Henrik Vanger prometeu contar tudo o que sabe. Ele é obcecado pela sobrinha desaparecida. Eu diria que nada mais no mundo lhe interessa e, se isso significa queimar Wennerström, acho que há muita chance de que o faça. Em todo caso, não podemos nos dar ao luxo de deixar escapar essa chance. Ele é o primeiro a se dizer disposto a revelar toda a merda sobre Wennerström.

— Mesmo que você volte com provas de que Wennerström estrangulou a menina, não poderíamos utilizá-las. Não depois de tanto tempo. Ele nos massacraria no tribunal.

— Eu também pensei nisso, mas sinto muito: ele cursava a escola superior de comércio quando ela desapareceu e não tinha nenhuma ligação com o grupo Vanger. — Mikael fez uma pausa. — Erika, não vou deixar a Millennium, mas é importante que as pessoas tenham essa impressão. Você e Christer devem continuar levando adiante a revista. Se puderem... se tiverem a possibilidade de propor um acordo de paz com Wennerström, proponham. Não vão poder fazer isso se eu estiver na redação.

— Tudo bem, a situação está ruim, mas acho que você está indo atrás de nada em Hedestad.

— Tem uma idéia melhor para me propor? Erika encolheu os ombros.

— Deveríamos buscar informantes. Retomar a investigação desde o início. Sem cometer erros desta vez.

— Esqueça, Ricky, o assunto está morto.

Erika deixou a cabeça pender sobre as mãos em cima da mesa, num gesto de abandono. Quando voltou a falar, no início teve dificuldade de olhar para Mikael.

— Estou muito irritada com você. Não por ter escrito o que escreveu, eu me envolvi no caso tanto quanto você. E não por abandonar seu cargo de editor, essa é uma decisão prudente na atual situação. Não me importo que pensem que houve um conflito ou uma luta de poder entre nós. Entendo a lógica de fazer Wennerström supor que eu sou apenas uma figura inofensiva e que a ameaça é você.

Fez uma pausa e olhou diretamente nos olhos dele, com os dentes cerrados.

— Mas acho que está enganado. Wennerström não morderá a isca. Continuará tentando afundar a Millennium. A única diferença é que a partir de agora terei de enfrentá-lo sozinha, e você sabe o quanto é necessário aqui na redação. Está certo, também quero levar adiante a guerra contra Wennerström, mas me incomoda você abandonar o navio desse jeito, nos deixando no meio da tempestade.

Mikael estendeu a mão e acariciou-lhe os cabelos.

— Você não está sozinha. Pode contar com Christer e com o resto da redação.

— Não com Janne Dahlman. Aliás, por falar nele, acho que foi um erro contratá-lo. É competente, mas faz mais mal do que bem. Não confio nele.

Passou o outono inteiro com aquele sorriso falso nos lábios. Não sei se apenas está esperando uma chance para pegar o seu lugar ou se simplesmente há uma incompatibilidade de humor entre ele e o resto da redação.

— Acho que você tem razão — disse Mikael.

— E o que devo fazer? Demiti-lo?

— Erika, você é a diretora e a principal acionista da Millennium. Se acha que deve demiti-lo, demita-o.

— Nunca demitimos ninguém, Micke. E agora você também joga para cima de mim essa decisão. Não vejo mais graça em sair de manhã para ir trabalhar.

Nesse instante Christer Malm decidiu se levantar.

— Se quer pegar mesmo o trem, Mikael, precisamos ir. — Erika esboçou um protesto, mas ele a interrompeu com um gesto de mão. — Espere, Erika, você me perguntou o que eu pensava. Acho que é uma situação fodida. Mas se o que Mikael diz é verdade, ou seja, que não há outra saída, deixe que ele vá, nem que seja só por ele mesmo. Devemos isso a ele.

Tanto Mikael quanto Erika olharam Christer surpresos, enquanto este lançava um olhar aborrecido a Mikael.

— Vocês dois sabem que a Millennium é vocês. Sou sócio, vocês sempre foram legais comigo, adoro a revista e tudo o mais, mas poderiam me substituir por qualquer outro designer sem o menor problema. Vocês me perguntaram o que eu penso e vou dizer. No que se refere a Janne Dahlman, sou da mesma opinião. Se está querendo demiti-lo, Erika, posso fazer isso no seu lugar. Precisamos apenas de um motivo razoável.

Fez uma pausa antes de continuar.

— Concordo com você, de fato pega mal Mikael desaparecer justamente agora. Mas acho que não temos muita escolha. — Olhou para Mikael. — Vou com você até a estação. Erika e eu seguraremos as pontas até a sua volta.

Mikael balançou devagar a cabeça.

— Meu medo é que Mikael não volte — disse Erika em voz baixa.

Dragan Armanskij despertou Lisbeth Salander ao chamá-la ao telefone à uma e meia da tarde.

— O que é? — ela perguntou, meio dormindo. Sua boca estava com gosto de alcatrão.

— A história de Mikael Blomkvist. Acabo de falar com o nosso cliente, o senhor Frode.

— E aí?

— Ele telefonou para dizer que podemos abandonar a investigação sobre Wennerström.

— Abandonar? Mas eu já comecei a trabalhar no caso.

— Entendo, mas Frode não está mais interessado.

— Assim, sem mais?

— Ele é quem decide. Se não quer continuar, paciência.

— Havíamos acertado uma remuneração.

— Você trabalhou quanto tempo? Lisbeth Salander refletiu.

— Um pouco mais que três dias completos.

— Acertamos um teto de quarenta mil coroas. Vou fazer uma fatura de dez mil; você ficará com a metade, o que é razoável para três dias desperdiçados. É o preço que ele terá de pagar por ter iniciado o caso.

— E o que faço com o material que encontrei?

— É alguma coisa importante? Ela refletiu um pouco.

— Não.

— Frode não pediu um relatório. Guarde o material em algum lugar, caso ele volte. Ou então jogue fora. Tenho um outro trabalho para você na semana que vem.

Lisbeth Salander permaneceu um momento com o telefone na mão depois que Armanskij desligou. Foi até seu canto de trabalho na sala de estar e olhou as anotações que espetara na parede e o monte de papéis amontoados na escrivaninha. Sua coleta consistia principalmente de recortes da imprensa e textos copiados da internet. Pegou os papéis e os enfiou numa gaveta da escrivaninha.

Franziu as sobrancelhas. O estranho comportamento de Mikael Blomkvist na sala do tribunal lhe parecera um desafio interessante e Lisbeth Salander não gostava de interromper o que havia começado. Todo mundo tem segredos. Trata-se apenas de descobrir quais são.


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