IV. TAKEOVER HOSTIL — 11 DE JULHO A 30 DE DEZEMBRO

Na Suécia, 92% das mulheres que sofreram violências sexuais após uma agressão não apresentaram queixa a polícia.

24. SEXTA-FEIRA 11 DE JULHO — SÁBADO 12 DE JULHO

Martin Vanger se abaixou para vasculhar os bolsos de Mikael e pegou as chaves.

— Esperteza sua trocar a fechadura. Vou me encarregar da sua namorada quando ela voltar.

Mikael não respondeu. Lembrou-se que Martin Vanger era um negociador com experiência em muitas batalhas industriais. Sabia quando estavam blefando com ele.

— Por quê?

— Por que o quê?

— Por que tudo isto? — Mikael tentou indicar a peça com um gesto de cabeça.

Martin Vanger se abaixou, pôs a mão sob o queixo de Mikael e ergueu-lhe a cabeça para que seus olhares se cruzassem.

— Porque é muito fácil — disse. — Mulheres desaparecem o tempo todo. Elas não fazem falta a ninguém. Imigrantes, prostitutas russas. Milhares de pessoas passam pela Suécia todos os anos.

Soltou a cabeça de Mikael e levantou-se, quase orgulhoso de poder esclarecer seu visitante.

As palavras de Martin atingiram Mikael como uma bofetada. Meu Deus, então não se trata de um enigma histórico. Martin Vanger mata mulheres até hoje. E eu, como um idiota, me lancei em...

— Não tenho nenhuma convidada no momento. Mas talvez você ache divertido saber que no inverno passado e na primavera, enquanto você e Henrik quebravam a cabeça com suas histórias, eu tinha uma mulher aqui. Chamava-se Irina e era da Bielo-Rússia. No dia em que você veio jantar comigo, ela estava presa aqui na jaula. Foi uma noitada agradável, não foi?

Martin Vanger sentou em cima da mesa e deixou pender as pernas. Mikael fechou os olhos. Sentiu regurgitações ácidas na garganta e engoliu várias vezes.

— O que faz com os corpos?

— Meu barco está amarrado no pontão logo abaixo. Levo-as para longe, ao largo. Ao contrário do meu pai, não deixo vestígios. Mas ele também era esperto. Suas vítimas se espalhavam por toda a Suécia.

As peças do quebra-cabeça começavam a se juntar na mente de Mikael. Gottfried Vanger. De 1949 a 1965. Martin Vanger a partir de 1966, em Uppsala.

— Você admirava seu pai.

— Foi ele quem me ensinou. Fui iniciado aos catorze anos.

— Uddevalla. Lea Persson.

— Isso mesmo, eu estava lá. Fui apenas um espectador, mas estava lá.

— Em 1964, Sara Witt, em Ronneby.

— Eu tinha dezesseis anos. Foi a primeira vez que tive uma mulher para mim. Gottfried me ensinou. Fui eu que a estrangulei.

Ele se orgulha! Meu Deus, que família de psicopatas!

— Não percebe que é patológico?

Martin Vanger encolheu ligeiramente os ombros.

— Você não entende que sensação divina é ter o controle absoluto sobre a vida e a morte de alguém.

— O prazer de torturar e matar mulheres...

O industrial refletiu um instante, com o olhar fixo num ponto vazio da parede atrás de Mikael. Depois exibiu seu sorriso charmoso.

— Não é bem assim. Se eu fosse fazer uma análise racional do meu estado, eu diria que sou um estuprador serial, não um assassino serial. Na verdade, sou um sequestrador serial. Matar é apenas o desfecho natural, porque devo ocultar o crime, entende?

Mikael não soube o que responder e limitou-se a assentir com a cabeça.

— Evidentemente meus atos não são aceitáveis pela sociedade, mas meu crime é em primeiro lugar um crime contra as convenções sociais. A morte só acontece no final da temporada de minhas hóspedes aqui, quando estou cansado. É sempre fascinante ver a decepção delas.

— Decepção? — perguntou Mikael, estupefato.

— Exatamente. Decepção. Elas imaginam que, porque me satisfazem, vão sobreviver. Começam a confiar em mim e a criar uma camaradagem, e até o final esperam que essa camaradagem signifique algo. A decepção vem quando descobrem, de repente, que foram enganadas.

Martin deu a volta em torno da mesa e se apoiou na jaula de aço.

— Você, com suas convenções pequeno-burguesas, nunca vai entender, mas é planejar o sequestro que produz a excitação. Não se deve agir impulsivamente; sequestradores desse tipo sempre se dão mal. É uma verdadeira ciência, com muitos detalhes a se levar em conta. Devo identificar uma presa e catalogar toda a sua vida. Quem é ela? De onde vem? Onde pegá-la? Como fazer para estar a sós com ela sem que meu nome apareça num futuro inquérito policial?

Chega, pensou Mikael. Martin Vanger falava de sequestros e assassinatos num tom quase acadêmico, um pouco como se tivesse expondo sua opinião contrária numa questão de teologia esotérica.

— Será que isso realmente te interessa, Mikael?

E inclinou-se para a frente acariciando o rosto de Mikael. O contato da mão era suave, quase terno.

— Tenho certeza de que você compreende que esse caso só pode terminar de uma maneira. Se importa que eu fume?

Mikael disse não com a cabeça.

— Pode me dar um cigarro também? — perguntou Mikael.

Martin Vanger atendeu o pedido. Acendeu dois cigarros e pôs um deles entre os lábios de Mikael, deixando-o dar uma longa tragada.

— Obrigado — disse Mikael automaticamente. Martin Vanger riu de novo.

— Veja só, você já começou a se adaptar ao princípio da submissão.

Tenho a sua vida em minhas mãos, Mikael. Sabe que posso matá-lo de um momento para o outro. Suplicou que eu melhorasse sua qualidade de vida e fez isso utilizando a razão e as boas maneiras. Foi recompensado.

Mikael assentiu com a cabeça. Seu coração batia desordenadamente, era quase insuportável.

Às onze e quinze da noite, Lisbeth Salander bebeu um gole de água da sua garrafa enquanto virava as páginas. De repente viu algo que a fez arregalar os olhos, mas, ao contrário do que acontecera com Mikael naquele mesmo dia, não engasgou quando estabeleceu a relação.

Clique!

Durante duas horas ela percorrera boletins administrativos das várias empresas do grupo Vanger. A publicação principal intitulava-se Informações do grupo Vanger e trazia o logotipo do grupo — uma bandeira sueca flutuando ao vento e cuja ponta formava uma flecha. A revista fora claramente concebida pelo departamento de comunicação do grupo como veículo de propaganda destinado a garantir que os funcionários se sentissem membros de uma grande família.

Nas férias de inverno de fevereiro de 1967, Henrik Vanger, num gesto magnânimo, convidara cinquenta funcionários da sede para passar uma semana na estação de esqui de Härjedalen com suas famílias. Motivo do convite: o grupo obtivera resultados recordes no ano precedente e ele queria agradecer os esforços de todos. O departamento de comunicação, também presente, fazia uma reportagem fotográfica do evento.

Havia muitas fotos das pistas de esqui com legendas divertidas. Algumas foram tiradas no bar, onde se viam homens risonhos, com o rosto marcado pelo frio, erguendo canecas de cerveja. Duas fotos de uma pequena cerimônia matinal em que Henrik Vanger premiava, como "A Funcionária de Escritório do Ano", uma secretária chamada Ulla-Britt Mogren, de quarenta e um anos. Ela recebia um prêmio de quinhentas coroas e uma saladeira de vidro.

A entrega do prêmio fora no terraço do hotel, aparentemente pouco antes de as pessoas se lançarem de novo nas pistas de esqui. Havia umas vinte pessoas na foto. A direita, logo atrás de Henrik Vanger, achava-se um homem de cabelos compridos louros. Vestia uma jaqueta escura com um tom diferente nos ombros. Embora a foto fosse em preto-e-branco, Lisbeth Salander teve a certeza e podia apostar que era vermelho.

A legenda dizia: Bem à direita, Martin Vanger, 19 anos, estudante de Uppsala. Já é considerado alguém com um futuro muito promissor na direção do grupo.

— Agora te peguei, safado — disse Lisbeth Salander em voz baixa.

Ela apagou a luz da sala e deixou os boletins administrativos espalhados em cima da mesa — aquela cretina da Bodil Lindgren que dê um jeito nisto amanhã!

Foi para o estacionamento por uma porta lateral. Enquanto se encaminhava para a sua moto, lembrou que havia prometido avisar o guarda quando saísse. Parou e olhou para o estacionamento. O guarda estava do outro lado do prédio. Isso significava que ela seria obrigada a retornar e dar toda a volta. Foda-se!

Ao chegar à moto, pegou o celular e chamou o número de Mikael. Uma voz anunciou que o aparelho não estava disponível. Mas ela descobriu que Mikael havia tentado chamá-la treze vezes entre as três e meia da tarde e às nove da noite. Nas últimas duas horas ele não fizera chamadas.

Lisbeth digitou o número do telefone fixo da casa dos convidados, mas ninguém atendeu. Franziu o cenho, pôs a mochila com o computador nas costas, o capacete, e ligou a moto. Levou dez minutos para ir do escritório Vanger, na zona industrial de Hedestad, até a ilha. Havia luz na cozinha, porém a casa estava vazia.

Lisbeth Salander saiu para dar uma espiada no lado externo da casa. Seu primeiro pensamento foi que Mikael fora à casa de Dirch Frode, mas da ponte constatou que as luzes da casa de Frode, na outra margem, estavam apagadas. Olhou seu relógio: onze e quarenta.

Voltou para casa, abriu o armário e examinou os laptops que armazenavam as imagens das câmeras de segurança. Não precisou mais de um momento para estabelecer a sequência dos acontecimentos.

Às 15h32, Mikael chegou em casa.

Às 16h03, saiu para beber um café no jardim. Levava consigo uma pasta, que examinava. Deu três breves telefonemas durante a hora em que esteve no jardim. Pelo horário, as três chamadas correspondiam, aproximadamente, às que ela não atendera.

Às 17h21, Mikael saiu. Voltou um pouco menos de quinze minutos depois.

Às 18h20, foi até o portão e olhou para o lado da ponte.

Às 21h03, saiu outra vez. Não voltou mais.

Lisbeth passou rapidamente as imagens do segundo computador, que mostravam o portão e a estrada. Ela podia ver as idas e vindas de outras pessoas durante o dia.

Às 19h12, Gunnar Nilsson chegou em sua casa.

Às 19h42, alguém no Saab da fazenda de Östergarden partiu em direção a Hedestad.

Às 20h02, o carro estava de volta — uma ida até a loja de conveniências do posto de gasolina?

A seguir, nada mais até as nove em ponto, quando o carro de Martin Vanger passou. Três minutos depois, Mikael saiu de casa.

Cerca de uma hora depois, às 21h50, Martin Vanger apareceu de repente no campo da objetiva. Ficou diante do portão por um minuto, contemplando a casa e olhando pela janela da cozinha. Depois dirigiu-se à porta da frente, tentando abri-la com uma chave. Deve ter percebido que a fechadura fora trocada e ficou imóvel por um instante, antes de se virar e ir embora.

Lisbeth Salander sentiu, de repente, um frio na barriga.

Mikael fora deixado novamente sozinho por longo tempo. Estava estendido, imóvel, em sua posição desconfortável, com as mãos algemadas às costas e o pescoço preso à argola no chão por uma corrente fina. Moveu as algemas, mesmo sabendo que não conseguiria abri-las. Estavam tão apertadas que ele perdera a sensibilidade nas mãos.

Não tinha nenhuma chance. Fechou os olhos.

Não soube dizer quanto tempo transcorreu até ouvir de novo os passos de Martin Vanger. O empresário surgiu em seu campo de visão. Tinha um ar preocupado.

— Desconfortável? — ele perguntou.

— Sim — respondeu Mikael.

— É o único culpado por isso. Deveria ter voltado para Estocolmo.

— Por que você gosta de matar, Martin?

— É uma escolha que eu fiz. Poderia ficar aqui discutindo com você a noite toda sobre os aspectos morais e o sentido racional dos meus atos, e isso não alteraria em nada os fatos. Tente ver as coisas desse modo: o ser humano é um invólucro de pele que acondiciona células, sangue e componentes químicos. Algumas pessoas, raras, conservam-se nos livros de história. A grande maioria sucumbe e desaparece sem deixar sinal.

— Você mata mulheres.

— Nós, que matamos por prazer, pois não sou o único a me dedicar a esse passatempo, levamos uma vida de intensidade máxima.

— Mas por que Harriet, sua própria irmã?

O rosto de Martin alterou-se de repente. Num salto, aproximou-se de Mikael e o pegou pelos cabelos.

— O que aconteceu a ela?

— Que está querendo dizer? — arquejou Mikael.

Tentou virar a cabeça para diminuir a dor no couro cabeludo. A corrente logo se esticou em volta de seu pescoço.

— Você e Salander. O que vocês descobriram?

— Solte-me, não consigo falar.

Martin Vanger soltou os cabelos de Mikael e sentou-se diante dele com as pernas cruzadas. Então pegou uma faca e pôs a ponta dela na pele bem debaixo do olho de Mikael, que fez um esforço para olhar Martin.

— O que aconteceu a ela, seu filho-da-puta?

— Não entendo. Achei que você a tivesse matado.

Martin Vanger fixou Mikael por um longo momento, depois relaxou. Levantou-se e pôs-se a caminhar pelo porão enquanto refletia. Então jogou a faca no chão, riu e voltou-se para Mikael.

— Harriet, Harriet, sempre essa maldita Harriet. Tentamos... convencê-la. Gottfried tentou ensiná-la. Achamos que era uma das nossas e que aceitaria seu dever, mas ela não passava de uma... putinha ordinária. Achei que a tinha sob controle, mas ela estava planejando avisar Henrik e percebi que não podia confiar nela. Cedo ou tarde ela falaria de mim.

— E então a matou.

— Eu quis matá-la. Tinha a intenção de fazer isso, mas cheguei tarde demais. Não consegui vir para a ilha.

O cérebro de Mikael tentava assimilar a informação, mas era como se uma janela se abrisse e anunciasse: memória insuficiente. Martin Vanger não sabia o que acontecera à irmã!

De repente, Martin tirou o celular do casaco, examinou a tela e o colocou sobre a cadeira ao lado da pistola.

— Chegou a hora de liquidar esse assunto. Preciso de um tempo para me encarregar também da sua companheira anoréxica ainda esta noite.

Abriu um armário, tirou uma correia de couro e passou-a com um nó corrediço em volta do pescoço de Mikael, desatando a corrente que o prendia ao chão. Fez Mikael levantar-se e o empurrou contra a parede. Passou a correia por uma argola acima da cabeça de Mikael e a esticou, obrigando-o a ficar na ponta dos pés.

— Está muito apertado? Não consegue respirar? — Afrouxou um centímetro ou dois e prendeu a ponta da correia mais abaixo na parede. — Não quero que morra asfixiado daqui a pouco.

O laço apertava o pescoço de Mikael com tanta força que ele não conseguia falar. Martin Vanger o observou atentamente.

Com um gesto brusco, desatou o cinto da calça de Mikael e a abaixou juntamente com a cueca. Mikael perdeu o equilíbrio e pendeu por um segundo no nó corrediço, antes que os dedos do pé voltassem a tocar o chão. Martin Vanger foi buscar uma tesoura num móvel. Cortou a camiseta de Mikael e jogou os retalhos no chão. Depois postou-se a alguma distância e contemplou sua vítima.

— Nunca tive um homem aqui — disse Martin com uma voz grave. — Nunca toquei outro homem... a não ser meu pai. Era meu dever.

As têmporas de Mikael latejavam. Ele não podia apoiar o peso do corpo nos pés sem se estrangular. Tentou achar um ponto onde se segurar na parede de concreto às suas costas, mas não encontrou nada.

— Chegou a hora — disse Martin Vanger.

Pôs a mão sobre a correia e a pressionou. Mikael sentiu o laço apertar ainda mais seu pescoço.

— Sempre quis saber qual é o gosto de um homem.

Pressionou ainda mais a correia, inclinou-se para a frente e beijou Mikael na boca, bem no momento em que uma voz cortante soou no porão.

— Seu canalha... Você deveria saber que só eu tenho o direito de fazer isso.

Mikael ouviu a voz de Lisbeth através de uma neblina vermelha. Conseguiu focalizar os olhos e a viu de pé à porta. Ela fitava Martin Vanger com um olhar inexpressivo.

— Não... corra! — grasnou Mikael.

Ele não viu a expressão de Martin Vanger, mas sentiu fisicamente o choque que percorreu o corpo dele quando se virou. Por um segundo, Martin ficou imóvel, depois estendeu a mão para alcançar a pistola que deixara em cima da cadeira.

Num relâmpago, Lisbeth deu três passadas e ergueu um taco de golfe que trazia escondido. O taco descreveu um amplo círculo no ar e atingiu Martin na clavícula. O golpe foi fortíssimo, Mikael ouviu quebrar-se alguma coisa. Martin Vanger urrou.

— Gosta de dor? — perguntou Lisbeth Salander.

Sua voz era áspera como uma lixa. Enquanto vivesse, Mikael jamais esqueceria o rosto dela no momento do ataque. Lisbeth mostrou os dentes como uma fera. Os olhos eram negros e brilhantes. Movia-se com a rapidez de uma aranha e parecia inteiramente concentrada em sua presa quando desferiu um novo golpe em Martin Vanger, nas costelas.

Ele tropeçou na cadeira e estatelou-se no chão. A pistola caiu diante de Lisbeth, que, com o pé, atirou-a para longe.

Ela o golpeou então uma terceira vez, no momento em que Martin tentava se levantar. Um estalo indicou que o atingira no quadril. Martin emitiu um som terrível. O quarto golpe se abateu sobre suas costas.

— Lis... errth... — arquejou Mikael.

Ele estava perdendo a consciência, e a dor nas têmporas era quase insuportável.

Lisbeth virou-se para ele e viu seu rosto vermelho, cor de tomate, os olhos esbugalhados de pavor e a língua começando a sair pela boca.

Lançou um olhar rápido em volta e viu a faca no chão. Olhou brevemente para Martin Vanger, que havia se ajoelhado e tentava escapar, com um braço pendendo frouxamente. Ele não seria um problema muito sério nos próximos segundos. Soltou o taco e pegou a faca. Embora tivesse a ponta afiada, ela estava quase sem fio. Lisbeth ficou na ponta dos pés e tentou febrilmente cortar a correia. Demorou alguns segundos até Mikael conseguir se apoiar no chão. Mas o nó corrediço continuava prendendo seu pescoço.

* * *

Lisbeth Salander voltou a olhar para Martin Vanger. Ele conseguira ficar de pé, porém estava curvado sobre si mesmo. Ela o ignorou e tentou enfiar os dedos entre a correia e o pescoço de Mikael. No início não ousou utilizar a faca, mas por fim decidiu introduzir a ponta dela ali, esfolando a pele ao tentar desfazer o nó. Este acabou cedendo e Mikael, num estertor, aspirou um pouco de ar.

Por um breve instante, Mikael teve a maravilhosa sensação de união entre corpo e espírito. Sua visão voltou a ficar perfeita, ele conseguia enxergar o menor grão de poeira no cômodo. Era como se cada respiração, cada roçar de roupa saíssem de alto-falantes direto para seus ouvidos; ele também sentia o cheiro da transpiração de Lisbeth e do couro de sua jaqueta. Depois, como um raio luminoso, o sangue afluiu novamente à cabeça e seu rosto recuperou a cor normal.

Lisbeth Salander virou a cabeça no momento em que Martin fugia pela porta. Ergueu-se num salto e pegou a pistola no chão, verificando se estava carregada. Destravou-a. Mikael notou que ela parecia familiarizada com as armas. Olhando em volta, os olhos dela se detiveram por meio segundo nas chaves das algemas em cima da mesa.

— Eu cuido dele — disse enquanto corria em direção à porta. No caminho apanhou as chaves e as fez deslizar pelo chão, até onde Mikael estava.

Ele tentou lhe pedir que esperasse, mas só conseguiu emitir um som rouco quando ela já havia desaparecido pela porta.

Lisbeth não esquecera que Martin Vanger possuía um rifle em algum lugar. Segurando a pistola engatilhada, ela se deteve ao chegar à passagem entre a garagem e a cozinha. Ficou prestando atenção, mas nenhum ruído revelou onde se achava a sua presa. Instintivamente dirigiu-se à cozinha. Quando já estava quase lá, ouviu um carro dar a partida.

Deu meia-volta e correu para o pátio, onde viu as luzes traseiras de um carro passando diante da casa de Henrik Vanger em direção à ponte. Correu o mais rápido que pôde até a casa dos convidados, pôs a pistola no bolso da jaqueta e não perdeu tempo com o capacete quando ligou a moto. Alguns segundos depois, atravessava a ponte.

Ele estava talvez uns noventa segundos à sua frente quando ela chegou ao viaduto de acesso à rodovia E4. Não o viu. Freou e desligou o motor para escutar.

O céu estava carregado de nuvens. No horizonte despontava um começo de aurora. Então avistou os faróis do carro de Martin Vanger na E4, na direção sul. Lisbeth acionou a moto e passou sob o viaduto. Estava a oitenta quilômetros por hora quando saiu da curva de acesso e entrou na pista, sem tráfego naquele momento. Acelerou tudo. Depois de uma curva, num longo declive da estrada, atingiu cento e setenta quilômetros por hora, o máximo que sua máquina de baixa cilindrada podia alcançar. Dois minutos depois, avistou o carro de Martin Vanger a cerca de quatrocentos metros.

Análise dos parâmetros. Que devo fazer agora?

Reduziu para cento e vinte quilômetros por hora, mantendo a mesma velocidade que a dele. Em algumas curvas perdeu-o de vista por alguns segundos. Depois pegaram um longo trecho reto. Ela estava a uns duzentos metros atrás de Martin Vanger.

Certamente ele viu o farol da moto, pois acelerou a marcha. Ela voltou a exigir o máximo da moto, mas nas curvas perdia terreno.

De longe ela viu os faróis de um caminhão. Martin Vanger também viu. Inesperadamente, ele acelerou ainda mais e passou para a pista da esquerda cento e cinquenta metros antes do choque. Lisbeth viu o caminhão frear e dar repetidos sinais de farol, mas a colisão foi inevitável. O carro de Martin Vanger chocou-se contra o caminhão com um estrondo terrível.

Lisbeth freou instintivamente ao ver o caminhão virar na pista. Na velocidade em que estava, levou dois segundos para chegar ao local do acidente e por pouco não foi atingida pela traseira do caminhão. Quando passou, viu com o canto do olho labaredas surgindo na parte dianteira.

Continuou por mais uns cento e cinquenta metros antes de parar e se virar. Viu o motorista do caminhão saltar da cabine. Então seguiu até Akerby, dois quilômetros ao sul, onde entrou à esquerda para pegar a estrada velha rumo ao norte, paralela à E4. Passou pelo local do acidente e viu que dois carros haviam parado. O de Martin estava totalmente esmagado debaixo do caminhão, envolto em labaredas enormes. Um homem tentava apagar o fogo com um pequeno extintor.

Ela acelerou e logo estava de volta a Hedeby. Cruzou a ponte, estacionou em frente à casa dos convidados e retornou a pé para a casa de Martin Vanger.

* * *

Mikael continuava tentando se livrar das algemas. Suas mãos estavam tão dormentes que ele não conseguia pegar a chave. Lisbeth abriu as algemas e o manteve apertado contra o peito até o sangue voltar a circular por suas mãos.

— E Martin? — perguntou Mikael com uma voz rouca.

— Morto. Chocou-se de frente, a cento e cinquenta por hora, contra um caminhão a poucos quilômetros daqui, na E4.

Mikael fitou-a espantado. Não fazia muito tempo que ela havia saído.

— Precisamos... chamar a polícia — arquejou Mikael antes de ser tomado por um violento acesso de tosse.

— Para quê? — perguntou Lisbeth Salander.

Mikael não conseguia se levantar. Permaneceu sentado no chão ainda por dez minutos, nu e encostado à parede. Massageou-se no pescoço e ergueu a garrafa de água com dedos insensíveis. Lisbeth esperou pacientemente ele se recuperar. Aproveitou para refletir.

— Vista-se.

Ela utilizou a camiseta cortada de Mikael para limpar as impressões digitais nas algemas, na faca e no taco de golfe. Pegou a garrafa de água.

— O que está fazendo?

— Vista-se. Está amanhecendo. Vamos, depressa.

Mikael ergueu-se sobre as pernas cambaleantes e conseguiu vestir a cueca e a calça. Enfiou os pés nos tênis. Lisbeth pôs as meias dele no bolso da jaqueta e perguntou:

— Tocou em alguma coisa aqui no porão?

Mikael olhou ao redor, tentando se lembrar. Por fim, disse que não havia tocado em nada a não ser na porta e nas chaves. Lisbeth encontrou as chaves no casaco que Martin Vanger deixara no encosto da cadeira. Limpou meticulosamente a maçaneta da porta e o interruptor, depois apagou a luz. Conduziu Mikael até o alto da escada e pediu-lhe que esperasse na passagem, enquanto ela recolocava o taco de golfe no lugar. Ao voltar, trazia uma camiseta escura que pertencera a Martin Vanger.

— Vista. Não quero que alguém te veja passeando sem camisa de madrugada.

Mikael percebeu que estava em estado de choque. Lisbeth assumira o comando e ele obedecia a suas ordens sem discutir. Deixaram a casa de Martin Vanger. Enquanto caminhavam, ela o amparava com seu corpo. Quando cruzaram a porta de Mikael, ela voltou-se para ele e disse:

— Se alguém nos viu e perguntar o que estávamos fazendo lá fora esta noite, diga que fomos dar um passeio até o promontório e depois transamos por lá.

— Lisbeth, não posso...

— Agora vá tomar um banho!

Ajudou-o a tirar as roupas e apontou-lhe o banheiro. Depois foi preparar um café e meia dúzia de torradas com queijo, patê de fígado e pepino em conserva. Estava sentada à mesa da cozinha, mergulhada numa intensa reflexão, quando Mikael retornou, mancando. Ela examinou os ferimentos e as escoriações visíveis em seu corpo. A correia deixara uma mancha vermelha-escura em volta da garganta e a faca produzira um corte no lado esquerdo do pescoço.

— Venha — ela disse. — Deite-se na cama.

Foi buscar curativos e cobriu a ferida com uma compressa. Depois serviu-lhe café e estendeu-lhe uma torrada.

— Não estou com fome — disse Mikael.

— Coma! — ordenou Lisbeth Salander, enquanto ela mesma dava uma grande bocada na torrada de queijo.

Mikael fechou os olhos por alguns segundos. Depois sentou-se e mordeu a torrada. Sua garganta doía tanto que mal conseguia engolir.

— Deixe o café esfriar um pouco. Deite-se de bruços.

Ela ficou cinco minutos massageando-lhe as costas com uma pomada. Depois virou-o de frente para ela e administrou o mesmo tratamento na parte frontal do corpo.

— Vai ficar com alguns sérios hematomas durante um bom tempo.

— Lisbeth, precisamos chamar a polícia.

— Não — ela disse, e com tal determinação na voz que Mikael arregalou os olhos. — Se você chamar a polícia, eu vou embora. Não quero nada com eles. Martin Vanger está morto. Morreu num acidente de carro. Há testemunhas. Deixe a polícia ou quem quer que seja descobrir aquela maldita câmara de tortura. Você e eu não sabemos de nada, assim como os outros habitantes do povoado.

— Por quê?

Ela ignorou a pergunta e continuou a massagear-lhe as coxas doloridas.

— Lisbeth, mas é simplesmente impossível...

— Se você continuar me aborrecendo, eu te levo de volta à masmorra de Martin e te acorrento de novo.

Nem havia terminado a frase quando Mikael adormeceu, tão subitamente como se tivesse desmaiado.


25. SÁBADO 12 DE JULHO — SEGUNDA-FEIRA 14 DE JULHO

Mikael despertou sobressaltado às cinco da manhã e levou desesperadamente as mãos ao pescoço para tirar a correia. Lisbeth foi vê-lo, segurou-lhe as mãos e o acalmou. Ele abriu os olhos e a fitou com um vago olhar. Não sabia que você jogava golfe — murmurou, voltando a fechar os olhos.

Ela permaneceu ao lado dele por alguns minutos, ate ter certeza de que ele adormecera de novo. Enquanto Mikael estivera dormindo, ela havia retornado ao porão de Martin Vanger para inspecionar o local do crime. Além dos instrumentos de tortura, havia encontrado uma coleção enorme de revistas de pornografia violenta e uma série de fotos polaróide coladas em álbuns.

Não havia um diário íntimo. No entanto ela achou duas pastas com fotos três por quatro e anotações sobre mulheres escritas à mão. Trouxe consigo essas pastas num cesto de náilon, junto com o laptop de Martin Vanger, que havia encontrado numa mesinha, no andar de cima. Depois que Mikael voltou a dormir, Lisbeth continuou a explorar o computador e as pastas de Martin. Eram mais de seis da manhã quando desligou o computador. Acendeu um cigarro e mordeu pensativamente o lábio inferior.

Ela e Mikael haviam se lançado à caça do que julgavam ser um assassino serial do passado, mas depararam com uma história bem diferente. Ela mal conseguia imaginar os horrores que haviam acontecido no porão de Martin Vanger, em meio àquele lugar idílico e bem-apresentado.

Ela tentava entender.

Martin Vanger havia matado mulheres desde os anos 1960, nos últimos quinze anos ao ritmo de uma ou duas vítimas por ano. A matança fora tão discreta e bem organizada que ninguém sequer percebera que havia um assassino serial em atividade. Como era possível?

As pastas sugeriam parte da resposta.

Suas vítimas eram mulheres anônimas, geralmente recém-imigradas, que não tinham amigos nem contatos sociais na Suécia. Havia também prostitutas e mulheres socialmente marginalizadas, com abuso de drogas, álcool e outros problemas existenciais.

Em seus estudos sobre a psicologia do sadismo sexual, Lisbeth Salander aprendera que esse tipo de assassino gostava de colecionar objetos das vítimas. Eles serviam de suvenires utilizados para recriar em parte o gozo sentido. Martin Vanger desenvolvera essa tendência redigindo uma compilação necrológica. Catalogara minuciosamente suas vítimas, com anotações que comentavam e descreviam seus sofrimentos, juntando a seus crimes filmes de vídeo e fotografias.

A violência e o assassinato eram o objetivo final, mas Lisbeth concluiu que, na realidade, a caça era o que interessava a Martin Vanger. Em seu laptop ele criara um banco de dados com o registro de centenas de mulheres. Havia empregadas do grupo Vanger, dos restaurantes onde ele fazia suas refeições, recepcionistas dos hotéis onde se hospedava, funcionárias da previdência social, secretárias de homens de negócios com quem se relacionava e uma série de outras mulheres. Era como se Martin Vanger registrasse e catalogasse praticamente todas as mulheres que encontrava.

Só uma parte ínfima delas havia sido assassinada, mas todas eram vítimas potenciais que ele anotava e examinava. Esse catálogo tinha o caráter de uma distração passional, à qual ele devia dedicar muitas horas.

Ela é casada ou solteira? Tem filhos e uma família? Onde trabalha? Onde mora? Que carro dirige? Experiência profissional? Cor dos cabelos? Cor da pele? Corpulência?

Lisbeth percebeu que a coleta de dados pessoais das possíveis vítimas devia ocupar uma parte importante das fantasias sexuais de Martin Vanger. Ele era primeiro um caçador, depois um matador.

Quando Lisbeth terminou de ler, encontrou um pequeno envelope numa das pastas. Dentro dele havia duas fotos polaróide com as pontas amassadas e amarelecidas. Na primeira via-se unia jovem morena sentada a uma meia. Vestia uma calça escura e estava com o torso nu, deixando ver pequenos seios. Ela desviava o rosto da objetiva e fazia menção de levantar um braço para se proteger, como se o fotógrafo a tivesse surpreendido com a máquina. Na segunda foto, ela também estava com o torso nu, mas deitada de bruços numa cama com uma colcha azul. O rosto também fugia da objetiva.

Lisbeth pôs o envelope com as fotos no bolso da jaqueta. Então introduziu as pastas no aquecedor a lenha, riscou um fósforo, deixou que se consumissem e retirou as cinzas. Chovia forte quando ela saiu de casa para jogar, discretamente, o laptop de Martin Vanger nas águas sob a ponte.

Quando Dirch Frode abriu com um golpe seco a porta da frente, Lisbeth fumava um cigarro diante de seu café à mesa da cozinha. O rosto de Krode estava cor de cinza e ele parecia alguém que fora despertado brutalmente.

— Onde está Mikael? — perguntou.

— Dormindo.

Dirch Frode desabou numa cadeira. Lisbeth encheu uma xícara de café e a empurrou na direção dele.

— Martin... Acabo de saber que Martin se matou quando dirigia seu carro esta noite.

— Que triste — disse Lisbeth antes de beber um gole de café.

Dirch Frode ergueu os olhos. Primeiro olhou-a perplexo. Depois seus olhos se arregalaram.

— Como...?

— Houve um acidente. Um acidente estúpido.

— Você sabe o que aconteceu?

— Ele se atirou na frente de um caminhão. Suicidou-se. A pressão, o estresse e um império financeiro em declínio, tudo isso deve ter sido demais para ele. Em todo caso, acho que é o que dirão as manchetes.

Dirch Frode parecia a ponto de um ataque de fúria. Levantou-se vivamente e foi abrir a porta do quarto.

— Deixe-o dormir — disse Lisbeth com voz firme.

Frode olhou o corpo adormecido. Viu hematomas e ferimentos no torso de Mikael, a marca vermelha deixada pela correia no pescoço. Lisbeth tocou o braço dele e voltou a fechar a porta. Frode recuou e sentou-se devagar, prostrado, no banco.

Lisbeth Salander contou rapidamente o que se passara durante a noite. Fez uma descrição detalhada da câmara de horrores de Martin Vanger e explicou que encontrara Mikael suspenso por um nó corrediço e o diretor administrativo do grupo Vauger de pé na frente dele. Contou o que descobrira no dia anterior nos arquivos do grupo e de que maneira fizera a ligação entre o pai de Martin e pelo menos sete assassinatos de mulheres.

Dirch Frode não a interrompeu uma única vez. Quando ela terminou de falar, permaneceu mudo por um longo tempo antes de suspirar profundamente e de balançar lentamente a cabeça.

— O que vamos fazer?

— Não é problema meu — disse Lisbeth num tom inexpressivo.

— Mas...

— Quer que eu te diga? Nunca pus os pés em Hedestad.

— Não estou entendendo.

— Em hipótese alguma quero aparecer num relatório policial. Eu não existo nessa história. Se meu nome for mencionado e relacionado ao que aconteceu, negarei ter vindo aqui e não responderei a pergunta nenhuma.

Dirch Frode tentava entendê-la.

— Não entendo.

— Não precisa entender.

— Que vou fazer então?

— Você é que decide, contanto que não nos envolva nisso, nem a mim nem a Mikael.

Dirch Frode estava lívido.

— É só considerar as coisas assim: tudo o que você sabe é que Martin morreu num acidente na estrada. Desconhece completamente que ele também era um assassino psicopata e nunca ouviu falar daquele porão.

Ela pôs a chave diante dele, em cima da mesa.

— Você ainda tem tempo antes que alguém vá examinar o porão de Martin e descubra aquele cômodo. Certamente não vai acontecer agora.

— Nós temos que chamar a polícia.

— Nós, não. Chame a polícia se quiser. A decisão é sua.

— Não podemos abafar esse caso.

— Não estou propondo que o abafe, apenas que não envolva a Mikael e a mim. Quando tiver visto o porão, vai tirar suas próprias conclusões e decidir com quem quer falar.

— Se o que você diz é verdade, isso significa que Martin sequestrou e matou mulheres... portanto há famílias desesperadas que não sabem onde estão suas filhas. Não podemos simplesmente...

— É verdade. Mas há um problema: os corpos desapareceram. Talvez você encontre passaportes ou carteiras de identidade numa gaveta. Algumas vítimas poderão ser identificadas pelos vídeos. Mas você não é obrigado a tomar nua decisão hoje. Reflita um pouco mais.

Dirch Frode parecia em pânico.

— Meu Deus! Isso vai ser o tiro de misericórdia do grupo. Quantas pessoas vão ficar desempregadas se for revelado que Martin...

Frode balançava-se para a frente e para trás, pressionado por um dilema moral.

— Esse é um dos aspectos. Se Isabella Vanger assumir o cargo de Martin, não seria bom que ela fosse a primeira a saber do passatempo do filho.

— Preciso ir ver...

— Na minha opinião, você deveria se manter longe daquele porão hoje — disse Lisbeth com autoridade.

— Há muitas providências a tomar. Você precisa avisar Henrik, precisa convocar a diretoria para uma reunião extraordinária e fazer o que fariam se o diretor administrativo tivesse falecido em circunstâncias normais.

Dirch Frode ponderou sobre as palavras dela. Seu coração deixou-se levar. Ele, o velho advogado que resolvia problemas e de quem se esperava um plano pronto diante de qualquer obstáculo, sentia-se totalmente paralisado. De repente se deu conta de que estava aceitando orientações de uma jovem. De um modo ou de outro, ela assumira o comando da situação e traçava as linhas de ação que ele não conseguia formular.

— E Harriet...?

— Mikael e eu ainda não terminamos. Mas pode dizer a Henrik Vanger que acho que vamos resolver isso também.

O desaparecimento inesperado de Martin Vanger era o destaque do noticiário das nove da manhã, quando Mikael despertou. Nada foi mencionado sobre os acontecimentos da noite, a não ser que o industrial deixara a pista da direita de forma inexplicável, em alta velocidade.

Ele estava sozinho no carro. A emissora de rádio local demorava-se mais sobre as inquietações quanto ao futuro do grupo Vanger e quanto às consequências financeiras que essa morte traria ao grupo.

Ao meio-dia, um despacho da TT, redigido às pressas, anunciava na tevê "Uma região em estado de choque" e resumia as repercussões imediatas para o grupo Vanger. Não escapava a ninguém que, só em Hedestad, três mil vinte e quatro mil habitantes eram empregados do grupo Vanger ou dependiam indiretamente da saúde financeira do grupo. O atual diretor morrera e o ex-diretor era um velho tentando se recuperar de um infarto recente. Faltava um herdeiro natural. Tudo isso num período considerado como o mais crítico da história da empresa.

Mikael Blomkvist tinha a possibilidade de ir à delegacia de polícia para explicar o que acontecera durante a noite, mas Lisbeth Salander já havia traçado o caminho. Uma vez que ele não chamara a polícia imediatamente, tornava-se cada vez mais difícil fazer isso a cada hora que passava. Durante a manhã, ele ficou afundado no banco da cozinha, num silêncio mal-humorado, enquanto contemplava a chuva e as grossas nuvens que cobriam o céu. Por volta das dez, desabou uma nova tempestade, mas ao meio-dia a chuva parou e o vento acalmou um pouco. Ele saiu, enxugou as cadeiras do jardim e sentou-se com uma xícara de café. Teve o cuidado de levantar a gola da camisa.

Como era de se esperar, a morte de Martin estendeu uma sombra sobre o cotidiano do povoado. Carros começaram a estacionar diante da casa de Isabella Vanger, indicando que o clã se reunia. Pessoas apresentavam suas condolências. Lisbeth contemplava o desfile com indiferença. Mikael permanecia mudo.

— Como está se sentindo? — ela perguntou enfim.

Mikael refletiu um momento antes de responder.

— Acho que ainda estou em estado de choque — disse. — Fiquei totalmente indefeso por várias horas. Achei que ia morrer. A angústia de morrer me revolvia as tripas e eu me sentia totalmente impotente.

Estendeu a mão e a pousou sobre o joelho de Lisbeth.

— Obrigado — disse. — Se você não tivesse chegado, ele teria me matado.

Lisbeth retribuiu com um sorriso enviesado. Mikael prosseguiu:

— Só que... eu não consigo entender como pôde ser tão louca de enfrentá-lo sozinha. Eu estava ali, no chão, rezando para que você visse a foto, fizesse a ligação e chamasse a polícia.

— Se eu esperasse a polícia chegar, você não teria sobrevivido. Eu não


podia deixar aquele canalha te trucidar.

— Por que você não quer ver a polícia?

— Não falo com as autoridades.

— Por que não?

— Problema meu. Mas, no que diz respeito a você, não acho que seria muito interessante para a sua carreira te apresentarem como o jornalista violentado por Martin Vanger, o conhecido assassino serial. Se já não gosta do Super-Blomkvist, imagine os novos apelidos que viriam.

Mikael olhou-a intensamente, depois abandonou o assunto.

— Temos um problema — disse Lisbeth.

Mikael assentiu com a cabeça, sabia a que ela estava se referindo.

— O que aconteceu a Harriet?

Lisbeth pôs as duas fotos polaróide em cima da mesa diante dele. Explicou onde as encontrara. Mikael examinou as fotos com atenção antes de levantar os olhos.

— Pode ser ela — disse por fim. — Não posso jurar, mas a corpulência e os cabelos lembram todas as fotos que vi dela.

Mikael e Lisbeth ficaram no jardim por uma hora, encaixando as peças do quebra-cabeça. Descobriram que ambos, cada um de seu lado, haviam identificado Martin Vanger como o elo perdido.

Lisbeth não chegara a ver a foto que Mikael havia deixado em cima da mesa da cozinha. Na noite anterior, depois de examinar as imagens das câmeras de segurança, ela concluíra que Mikael fizera algo estúpido e fora até a casa de Martin pelo caminho que margeava a água. Observou todas as janelas e não viu ninguém. Muito discretamente, verificou todas as portas e janelas do térreo e então foi escalando a parede até alcançar uma sacada aberta no andar de cima. Levou tempo, e ela agiu com a maior prudência, examinando cômodo por cômodo da casa. Por fim, descobriu a escada que levava ao porão. Martin fora negligente: deixara entreaberta a porta de sua câmara de torturas e ela logo entendeu tudo.

— Você ficou escutando por algum tempo o que ele dizia?

— Não muito. Cheguei quando ele estava te interrogando sobre o que havia acontecido a Harriet, pouco antes de te suspender como um porco. Me afastei só por um minuto e subi para buscar uma arma. Encontrei o taco golfe num armário.

— Martin Vanger não tinha a menor ideia do que aconteceu a Harriet.

— E você acredita?

— Sim — disse Mikael sem hesitar. — Martin estava mais enlouquecido do que uma doninha furiosa... não sei de onde me veio essa imagem... mas ele admitiu todos os crimes que cometeu. Falava à vontade. Tive até a impressão de que queria me impressionar. Mas, no que se refere a Harriet, estava tão desesperadamente em busca da verdade quanto Henrik Vanger.

— E então... isso nos leva aonde?

— Sabemos que Gottfried estava por trás da primeira série de assassinatos, entre 1949 e 1965.

— Certo. E que ele iniciou Martin.

— Estamos falando de uma família com problemas — disse Mikael. — Na verdade, Martin não tinha chance nenhuma.

Lisbeth Salander lançou um olhar estranho a Mikael.

— O que Martin me contou, embora aos pedaços, é que o pai começou a iniciá-lo na época da puberdade. Ele assistiu ao assassinato de Lea em Uddevalla, em 1962. Na época tinha catorze anos. Assistiu ao assassinato de Sara, em 1964. Dessa vez participou ativamente. Tinha dezesseis anos.

— E?

— Ele me disse que não era homossexual e que nunca havia tocado um homem, exceto o pai. Isso me faz pensar... bem, a única conclusão que se pode tirar é que o pai o violentava. Os abusos sexuais devem ter prosseguido por muito tempo. Ele foi iniciado, por assim dizer, pelo pai.

— Você está dizendo bobagem — falou Lisbeth Salander.

Sua voz de repente ficou dura como pedra. Mikael olhou para ela surpreso. Havia algo de inflexível no olhar dela, sem a menor compaixão.

— Martin poderia resistir como qualquer outra pessoa. Ele fez sua escolha. Matava e violentava porque gostava disso.

— Concordo. Mas Martin era um menino maltratado, influenciado pelo pai, assim como Gottfried foi maltratado pelo seu pai nazista.

— Ah, sei, você parte do princípio de que Martin não tinha vontade própria e que as pessoas se tornam aquilo para o qual foram educadas.

Mikael sorriu prudentemente.

— E um ponto sensível para você?

Os olhos de Lisbeth flamejaram numa súbita cólera contida. Mikael prosseguiu rápido.

— Não estou afirmando que as pessoas são influenciadas apenas pela educação que recebem, mas acho que ela desempenha um papel importante. O pai de Gottfried o espancou, e seriamente, por anos e anos. Isso deixa marcas.

— Você está dizendo bobagem — repetiu Lisbeth. — Gottfried não foi o único coitado no mundo a ter sido surrado. O que também não lhe dava carta branca para assassinar mulheres. Foi uma escolha que ele mesmo fez. E isso também vale para Martin.

Mikael ergueu uma mão.

— Não vamos discutir.

— Não estou discutindo. Simplesmente acho patético que sempre concedam circunstâncias atenuantes aos canalhas.

— Concordo. Eles têm mesmo uma responsabilidade pessoal. Passaremos isso a limpo depois. O fato é que Gottfried morreu quando Martin tinha dezessete anos e ele ficou sem ninguém para guiá-lo. Tentou prosseguir nas pegadas do pai. Fevereiro de 1966, Uppsala.

Mikael inclinou-se para pegar um dos cigarros de Lisbeth.

— Não vou nem começar a especular sobre que pulsões Gottfried estava tentando satisfazer, nem de que maneira interpretava seus atos. Ele se apoiou numa algaravia bíblica que um psiquiatra, talvez, pudesse esclarecer que fala de castigos e de purificação num sentido ou noutro. Não importa. Ele era um assassino serial.

Refletiu um segundo antes de continuar.

— Gottfried queria matar mulheres e revestia os crimes numa espécie de raciocínio pseudo-religioso. Mas Martin nem sequer fingia ter uma desculpa. Era organizado e matava de maneira sistemática. Além disso, tinha dinheiro para se dedicar a seu hobby. E era mais astuto que o pai. Toda vez que Gottfried deixava para trás um cadáver, isso significava um inquérito policial e o risco de alguém chegar até ele, ou pelo menos de fazer a ligação entre os diferentes assassinatos.

— Martin Vanger mandou construir sua casa nos anos 1970 — disse Lisbeth pensativamente.

— Acho que Henrik disse 1978. Ele provavelmente encomendou um porão de segurança para arquivos importantes ou algo do gênero. Obteve uma peça à prova de som, sem janelas e com uma porta blindada.

— Usou esse lugar por vinte e cinco anos.

Calaram-se por alguns momentos e Mikael pensou que atrocidades não teriam se passado naquela idílica ilha de Hedeby durante um quarto de século. Lisbeth não precisou imaginar; tinha visto a coleção de vídeos. Ela percebeu que Mikael tocava involuntariamente o próprio pescoço.

— Gottfried odiava as mulheres e ensinou o filho a também odiar as mulheres, enquanto o violentava. Mas havia algo mais... acho que Gottfried imaginava que os filhos deviam compartilhar sua visão pervertida do mundo, para dizer o mínimo. Quando perguntei a Martin sobre Harriet, sua própria irmã, ele disse: Tentamos convencê-la. Mas ela não passava de uma putinha ordinária. Estava planejando avisar Henrik.

Lisbeth assentiu com a cabeça.

— Eu ouvi. Foi mais ou menos nesse momento que eu cheguei ao porão. Isso significa que agora conhecemos o motivo da misteriosa conversa que ela queria ter com Henrik.

Mikael franziu a testa.

— Não exatamente. Pense na cronologia dos fatos. Não sabemos quando Gottfried violentou o filho pela primeira vez, mas ele levou Martin a Uddevalla para matar Lea Persson em 1962. Gottfried afogou-se em 1965. Antes disso, ele e Martin haviam tentado convencer Harriet. O que se pode deduzir daí?

— Que Gottfried não violentou apenas Martin. Ele atacou também Harriet.

Mikael assentiu com a cabeça.

— Gottfried era o professor, Martin o aluno. E Harriet era o joguete dos dois, digamos assim.

— Gottfried ensinou Martin a ter intimidades com a irmã. — Lisbeth mostrou as fotos polaróide. — É difícil determinar a atitude dela por essas duas fotos, pois só vemos seu rosto tentando se esconder da objetiva.

— Digamos que tudo começou quando ela tinha catorze anos, em 1964. Ela se defendeu — não conseguia aceitar —, segundo Martin. Era isso que ela ameaçava contar. Martin certamente não tinha grande experiência na época, ele consultava o pai, mas Gottfried e ele firmaram uma espécie de pacto através do qual tentavam iniciar Harriet.

Lisbeth assentiu com a cabeça.

— Você escreveu, nas suas anotações, que Henrik Vanger insistiu para que Harriet fosse morar na casa dele no inverno de 1964.

— Henrik percebeu que algo não ia bem naquela família. Para ele, a causa eram discussões e desavenças entre Gottfried e Isabella, por isso acolheu Harriet em sua casa para que ela pudesse ficar tranquila e se dedicar aos estudos.

— Um contratempo para Gottfried e Martin. Eles não podiam mais dispor dela facilmente, nem controlar sua vida. Mas de tempo em tempo... Onde aconteciam esses abusos?

— Provavelmente na cabana de Gottfried. Tenho quase certeza que as fotos foram tiradas lá. Vai ser fácil verificar. A casa tem uma localização perfeita, é isolada e longe do povoado. Até que um dia Gottfried bebeu demais e acabou se afogando como um imbecil.

Lisbeth balançou pensativamente a cabeça.

— O pai de Harriet tinha ou tentava ter relações sexuais com ela, mas aposto que não a iniciou nos assassinatos.

Mikael entendeu que esse era um ponto a ser esclarecido. Harriet anotara os nomes das vítimas de Gottfried e os associara a citações bíblicas, mas seu interesse pela Bíblia só havia se manifestado no último ano, quando Gottfried já havia morrido. Refletiu um momento, tentando encontrar uma explicação lógica.

— E então, um dia, Harriet descobre que Gottfried não é apenas um pai incestuoso como também um assassino serial furioso — disse.

— Não sabemos quando ela descobriu os assassinatos. Talvez um pouco antes de Gottfried se afogar, talvez depois, se ele tinha um diário ou se guardou recortes de jornal sobre os assassinatos. Alguma coisa a colocou na pista.

— Mas não era isso que ela ameaçava contar a Henrik — insistiu Mikael.

— Era sobre Martin — disse Lisbeth. — O pai havia morrido, mas Martin continuava a assediá-la.

— Exatamente — disse Mikael balançando a cabeça.

— Mas ela levou um ano para se decidir.

— O que você faria se descobrisse que seu pai é um assassino serial que estupra o seu irmão?

— Eu massacraria um lixo desses — disse Lisbeth com uma voz tão fria que Mikael percebeu que ela não estava brincando. De repente se lembrou do rosto de Lisbeth quando ela saltou sobre Martin Vanger. Esboçou um sorriso não muito alegre.

— Certo. Mas Harriet não é você. Gottfried morreu em 1965, antes que ela tivesse tempo de fazer o que quer que fosse. Faz sentido. Com a morte de Gottfried, Isabella enviou Martin a Uppsala. Ele talvez voltasse para casa no Natal e nas férias, mas no ano seguinte não encontrou muito Harriet. Ela pôde se distanciar um pouco dele.

— E passou a estudar a Bíblia.

— E, pelo que sabemos hoje, não necessariamente por razões religiosas. Talvez quisesse apenas tentar entender o que o pai fizera. Ela ficou remoen-do isso até a Festa das Crianças em 1966. E aí, de repente, vê o irmão surgir na rua da Estação e se dá conta de que a coisa vai recomeçar. Não sabemos se eles se falaram e se ele disse algo a ela. Seja como for, Harriet voltou depressa para casa querendo falar com urgência com Henrik.

— E em seguida desapareceu.

Reconstituída assim a sequência dos acontecimentos, a solução do quebra-cabeça parecia próxima. Mikael e Lisbeth fizeram as malas. Antes de partir, Mikael ligou para Dirch Frode e explicou que Lisbeth e ele precisavam deixar Hedeby por algum tempo, mas que fazia questão de se despedir de Henrik Vanger antes de ir embora.

Mikael quis saber o que Frode contara a Henrik. Pela voz, o advogado parecia tão estressado que Mikael se preocupou com ele. Frode demorou um momento para dizer que somente contara que Martin havia morrido num acidente de carro.

Quando estacionou na frente do hospital, Mikael ouviu novas trovoadas num céu carregado de nuvens que anunciavam chuva. Apressou o passo no estacionamento ao sentir as primeiras gotas.

Henrik Vanger estava sentado em frente à janela do quarto, vestindo um robe. A doença certamente o marcara, mas ele readquiria alguma cor nas faces e parecia a caminho da recuperação. Apertaram-se as mãos. Mikael pediu que a enfermeira particular os deixasse a sós por alguns minutos.

— Você não veio me ver — disse Henrik Vanger.

— Não pude. Sua família não quer me ver aqui no hospital, mas hoje estão todos com Isabella.

— Pobre Martin — disse Henrik.

— Henrik, você me pediu para descobrir a verdade sobre o que aconteceu a Harriet. Esperava que a verdade não doesse?

O velho olhou para ele. Depois abriu bem os olhos.

— Martin?

— Ele faz parte da história. Henrik fechou os olhos.

— Agora preciso lhe fazer uma pergunta.

— Qual?

— Você ainda quer saber o que aconteceu? Mesmo que doa e mesmo que a verdade seja pior do que você sempre imaginou?

Henrik Vanger olhou Mikael demoradamente. Depois balançou a cabeça.

— Quero saber. É o objetivo do seu trabalho.

— Certo. Acho que sei o que aconteceu a Harriet. Mas ainda falta uma última peça do quebra-cabeça.

— Me conte tudo.

— Não, hoje não. Agora quero que continue repousando. O médico disse que o alerta já deixou de soar e que logo você estará curado.

— Não me trate como uma criança.

— Ainda não terminei minha investigação. Só tenho suposições por enquanto, mas vou tentar achar essa última peça do quebra-cabeça. Da próxima vez contarei a história toda. Pode demorar um pouco, mas quero que saiba que eu voltarei e que você saberá a verdade.


Lisbeth cobriu a moto com uma lona, deixou-a do lado da casa oposto ao sol e instalou-se com Mikael no carro emprestado. A chuva aumentou e, ao sul de Gävle, enfrentaram um aguaceiro tão forte que Mikael mal via a estrada à frente. Por cautela, resolveu parar num posto de gasolina. Tomaram um café enquanto esperavam a chuva acalmar e só chegaram a Estocolmo por volta das sete da noite. Mikael deu a Lisbeth o código do seu prédio e a deixou numa estação de metrô. O apartamento pareceu-lhe estranho quando entrou.

Passou o aspirador e um pano de pó, enquanto Lisbeth ia ver Praga em Sundbyberg. Ela chegou à casa de Mikael cerca de meia-noite e passou dez minutos examinando cada detalhe do apartamento. Depois ficou um longo tempo diante da janela, olhando a vista do Slussen.

Armários e estantes comprados na Ikea serviam de divisória entre a sala e o quarto do loft. Eles se despiram e dormiram algumas horas.

Quando no dia seguinte aterrissaram em Gatwick por volta do meio-dia, foram recebidos pela chuva. Mikael havia reservado um quarto no hotel James perto do Hyde Park, um excelente hotel comparado às espeluncas de Bayswater onde sempre se hospedava em suas visitas a Londres. As despesas corriam por conta de Dirch Frode.

Às cinco da tarde, um homem de uns trinta anos encontrou-se com eles no bar do hotel. Era quase calvo, tinha uma barba loura, vestia um casaco muito largo, jeans e dockside.

— Wasp? — ele perguntou.

— Trinity? — ela rebateu. Cumprimentaram-se com um aceno de cabeça. Ele não perguntou o nome de Mikael.

O parceiro de Trinity foi apresentado como Bob the Dog. Ele esperava numa velha kombi estacionada na esquina. Entraram pela porta lateral e sentaram-se em bancos dobráveis. Enquanto Bob ziguezagueava pelo trânsito londrino, Wasp e Trinity conversavam.

— Praga me disse que se trata de um crash-bang job.

— Escuta telefônica e controle de e-mails num computador. Pode ser coisa rápida ou levar alguns dias, depende da pressão dele. — Lisbeth apontou para Mikael com o polegar. — Vocês conseguem?

— Os cachorros têm pulgas? — respondeu Trinity.

Anita Vanger morava numa das pequenas casas alinhadas em fila e de aspecto asseado do subúrbio de St. Albans, ao norte de Londres, um trajeto de pouco mais de uma hora de carro. Da kombi, viram-na chegar e abrir a porta às sete da noite. Esperaram uni pouco para que ela tomasse banho, comesse alguma coisa e se instalasse na frente da tevê, antes de Mikael tocar a campainha.

Uma cópia quase idêntica de Cecília Vanger abriu a porta, o rosto formando um cortês ponto de interrogação.

Boa noite, Anita. Meu nome é Mikael Blomkvist. Henrik Vanger pediu-me que viesse vê-la. Suponho que soube de Martin.

O rosto dela passou da surpresa à vigilância. Assim que ouviu o nome Mikael Blomkvist, ela soube exatamente quem ele era. Estava em contato com Cecília Vanger, que talvez tivesse manifestado uma certa irritação com Mikael. Mas mencionar Henrik Vanger a obrigou a abrir a porta. Convidou Mikael a se instalar na sala. Ele olhou ao redor. A decoração da casa, embora bastante discreta, indicava uma pessoa com dinheiro e unia vida profissional. Observou uma litografia assinada por Auders Zorn acima de uma lareira transformada em aquecedor a gás.

— Desculpe eu ter vindo sem avisar, eu estava em Londres c tentei telefonar durante o dia.

— Entendo. Do que se trata? — A voz estava na defensiva.

— Está pretendendo ir ao funeral?

— Não. Martin e eu não éramos muito próximos e não posso me afastar do trabalho.

Mikael assentiu com a cabeça. Anita Vanger fizera o possível para se manter distante de Hedestad durante trinta anos. Desde que o pai voltara à ilha de Hedeby, ela praticamente não pusera mais os pés lá.

— Quero saber o que aconteceu a Harriet Vanger. A hora da verdade chegou.

— Harriet? O que está querendo dizer?

Mikael fez um trejeito, dando a entender que não estava disposto a se deixar enganar.

— Você era a amiga mais próxima de Harriet na família e foi a pessoa que ela procurou para contar sua terrível história.

— Você está completamente doido — disse Anita Vanger.

— Talvez você esteja certa — disse Mikael com a voz tranquila. — Anita, você esteve no quarto de Harriet naquele dia. Tenho fotos provando isso. Daqui a alguns dias farei um relatório a Henrik e depois ele assumirá o meu lugar. Por que não me conta o que aconteceu?

Anita Vanger levantou-se.

— Saia imediatamente da minha casa.

Mikael levantou-se.

— Tudo bem, mas cedo ou tarde será obrigada a me contar.

— Não tenho nada a lhe dizer.

— Martin está morto — disse Mikael com firmeza. —— Você nunca gostou dele. Acredito que veio morar em Londres não apenas para ficar longe de seu pai mas também para não ser obrigada a encontrar Martin. Isso significa que você também estava sabendo, e a única que pode ter lhe contado Harriet. A questão é saber o que você fez depois de ficar sabendo.

Anita Vanger bateu a porta na cara de Mikael.


Lisbeth Salander dirigiu um sorriso de satisfação a Mikael enquanto retirava o microfone que ele trazia sob a camisa.

— Ela deu um telefonema trinta segundos depois de ter batido a porta na sua cara — disse Lisbeth.

— A indicação do país é Austrália — acrescentou Trinity, repondo o aparelho de escuta em cima da mesinha dentro da kombi. Preciso verificar qual é o código da área.

Digitou alguma coisa no teclado de seu laptop.

— Aqui está, ela chamou este número: é um telefone numa localidade chamada Tennant Creek, ao norte de Alice Springs, no Território do Norte. Quer escutar a conversa?

Mikael fez que sim com a cabeça.

— Que horas são na Austrália agora?

— Mais ou menos cinco da manhã. — Trinity acionou a gravação digital e um alto-falante. Mikael contou oito chamadas antes de uma voz atender. Conversavam em inglês.

— Oi, sou eu.

— Humm, está certo que eu sou madrugador, mas...

— Eu quis te ligar ontem... Martin morreu. Matou-se num acidente de carro anteontem.

Silêncio. Depois, algo semelhante a uma ligeira tosse, mas que podia ser interpretado como "melhor assim".

— Só há um problema. Um jornalista detestável que Henrik contratou acabou de sair aqui de casa. Fez perguntas sobre o que aconteceu em 1966. Ele sabe de alguma coisa.

Silêncio outra vez. Depois, uma voz de comando.

— Anita, desligue agora. Devemos evitar qualquer contato por algum tempo.

— Mas...

— Escreva cartas. Mantenha-me informado do que se passa. — E a conversa foi interrompida.

— Cara esperto! — disse Lisbeth Salander com admiração na voz. Voltaram ao hotel um pouco antes das onze. A recepção encarregou-se de reservar lugares no primeiro voo disponível para a Austrália. Em quinze minutos, conseguiram lugar num avião que sairia às 19h05 no dia seguinte, com destino a Canberra, Nova Gales do Sul.

Resolvidos todos os detalhes, deitaram-se na cama, exaustos.


Era a primeira visita de Lisbeth Salander a Londres e eles saíram para passear de manhã, da Tottenham Court Road ao Soho. Pararam para beber um caffe latte na Old Compton Street. Por volta das três, voltaram ao hotel para pegar as malas. Enquanto Mikael fechava a conta, Lisbeth viu que havia uma mensagem de texto urgente no seu celular.

— Dragan Armanskij precisa falar com você.

Ela usou um telefone da recepção para falar com seu chefe. Mikael estava a seu lado e de repente viu Lisbeth virar-se para ele com o rosto paralisado.

— O que aconteceu?

— Minha mãe morreu. Preciso voltar.

Lisbeth parecia tão desesperada que Mikael abraçou-a. Ela o afastou. Beberam um café no bar. Quando Mikael disse que mudaria as reservas para a Austrália e a acompanharia a Estocolmo, ela balançou a cabeça.

— Não — disse secamente. — Não podemos abandonar o trabalho agora. Você irá sozinho à Austrália.

Separaram-se em frente ao hotel e cada um tomou o seu ônibus, com destino a aeroportos diferentes.


26. TERÇA-FEIRA 15 DE JULHO — QUINTA-FEIRA 17 DE JULHO

Mikael pegou um voo doméstico de Canberra a Alice Springs, única possibilidade de que dispunha no meio da tarde. Depois, pôde escolher entre um voo particular e um carro alugado. Escolheu o carro para enfrentar os quatrocentos quilômetros restantes.

Um desconhecido com o nome bíblico de Joshua, e que fazia parte da rede web internacional de Praga, ou talvez de Trinity, deixara um envelope destinado a Mikael na recepção do aeroporto de Canberra.

O número de telefone para o qual Anita ligara era de uma fazenda, Cochran Farm. Uma breve nota acompanhava a informação: criação de ovelhas.

Um artigo extraído na internet fornecia detalhes sobre a criação de ovelhas na Austrália.

O país tem 18 milhões de habitantes, entre os quais 53 mil criadores de ovelhas cuidando de cerca de 120 milhões de animais. Somente a exportação de lã rende mais de 3,5 bilhões de dólares por ano, sem contar a exportação de 700 milhões de toneladas de carne de ovelha e mais as peles para a indústria do vestuário. A produção de carne e de lã é um dos setores econômicos mais importantes do país.

A Cochran Farm, fundada em 1891 por um certo Jeremy Cochran, era a quinta maior empresa agropecuária da Austrália, com cerca de sessenta mil merino sheep, cuja lã era considerada de excelente qualidade. Além de ovelhas, a fazenda criava também vacas, porcos e galinhas.

Mikael constatou que a Cochran Farm era uma empresa com um volume anual de negócios impressionante, que exportava para os Estados Unidos, China, Japão e Europa, entre outros.

As biografias eram ainda mais interessantes.

Em 1972, a Cochran Farm passou das mãos de Raymond Cochran para seu herdeiro Spencer Cochran, formado em Oxford, na Inglaterra. Spencer falecera em 1994 e desde então a fazenda era dirigida por sua viúva. Ela aparecia numa foto de baixa resolução extraída do site da Cochran Farm, que mostrava uma mulher loura de cabelos curtos. Parte de seu rosto estava virado um cordeiro, que ela acariciava. Segundo Joshua, Spencer e ela haviam se casado na Itália em 1971.

Ela se chamava Anita Cochran.

Mikael passou a noite num lugarejo perdido e desértico com um nome que exalava esperança: Wannado. Num bar de esquina, comeu carne de carneiro assada e bebeu três pints, na companhia de alguns tipos locais que o chamavam de mate, e que falavam com um sotaque engraçado. Ele tinha a impressão de estar em plena filmagem de Crocodilo Dundee.

Na noite anterior, antes de ir dormir, ele havia telefonado para Erika em Nova York.

— Desculpe, Ricky, mas andei tão ocupado que nem tive tempo de ligar.

— Mas o que está havendo em Hedestad, criatura?! — ela explodiu. — Christer me telefonou para dizer que Martin morreu num acidente de carro.

— E uma longa história.

— E por que você não atende o telefone? Estou chamando sem parar há dois dias.

— Aqui não pega.

— Aqui onde?

— Neste momento, a uns duzentos quilômetros ao norte de Alice Springs. Na Austrália, portanto.

Mikael quase nunca conseguia surpreender Erika, mas desta vez ela emudeceu por uns dez segundos.

— E o que você está fazendo na Austrália, ainda que mal pergunte?

— Estou terminando o trabalho. Voltarei à Suécia daqui a alguns dias. Liguei apenas para contar que a missão para Henrik Vanger está quase no fim.

— Quer dizer que descobriu o que aconteceu a Harriet?

— Acho que sim.

Ele chegou à Cochran Farm no dia seguinte, ao meio-dia, e ficou sabendo que Anita Cochran se encontrava num distrito de produção, numa localidade chamada Makawaka, cento e vinte quilômetros a oeste.

Eram quatro da tarde quando Mikael encontrou o lugar, após percorrer um grande número de estradas vicinais. Parou diante de uma cerca onde um grupo de peões estava reunido em volta do capo de um jipe, comendo alguma coisa. Mikael desceu, apresentou-se e disse que procurava Anita Cochran. Os rapazes olharam para um homem musculoso, de uns trinta anos, que parecia ser quem tomava as decisões. Tinha o torso nu e bronzeado, exceto nas partes normalmente cobertas pela camiseta. Usava um chapéu de caubói.

Well, mate, a patroa está uns dez quilômetros para lá — disse, apontando com o dedo.

Ele olhou para o carro de Mikael com ceticismo e acrescentou que não era uma boa ideia prosseguir na estrada com aquele brinquedinho japonês. Mas disse que de todo modo ele precisava ir até lá e que podia levar Mikael no jipe, único veículo adaptado ao tipo de terreno que os esperava. Mikael agradeceu e teve o cuidado de pegar a sacola com seu notebook.

O homem disse que se chamava Jeff e contou que era o studs manager al the station. Mikael perguntou o que aquilo significava. Jeff olhou-o curioso, percebendo que Mikael não devia ser do país. Explicou que studs manager equivalia a um gerente de banco, só que lidava com ovelhas, e que station era a palavra australiana para "rancho".

Continuaram conversando enquanto Jeff manobrava o jipe com tranquilidade a vinte quilômetros por hora, num declive impressionante até o fundo de um desfiladeiro. Mikael agradeceu sua boa estrela por não ter tentado prosseguir no carro alugado. Ficou sabendo que na base do desfiladeiro havia pastagens para cerca de setecentas ovelhas.

— Se entendi bem, Cochran Farm é uma grande empresa agropecuária.

— Uma das maiores da Austrália — respondeu Jeff com algum orgulho na voz. — Temos cerca de nove mil ovelhas aqui no distrito de Makawaka, mas possuímos também stations na Nova Gales do Sul e na Austrália Ocidental. Ao todo, são mais de sessenta e três mil ovelhas.

Saíram do desfiladeiro para um terreno ondulado mais suave. De repente Mikael ouviu tiros. Viu ovelhas mortas, grandes braseiros e uns dez peões, todos com espingardas na mão. Pareciam ocupar-se do abate de animais.

Involuntariamente, Mikael fez a associação com os cordeiros do sacrifício bíblico.

Então viu uma mulher vestindo jeans e camisa xadrez branca e vermelha, de cabelos louros curtos. Jeff estacionou a poucos metros dela.

Hi boss. We got a tourist — disse.

Mikael desceu do jipe e olhou para ela, que o encarou com olhos interrogativos.

— Bom dia, Harriet. Faz um bom tempo que não nos vemos — disse Mikael em sueco.

Nenhum dos homens que trabalhavam para Anita Cochran entendeu que ele disse, mas eles viram a reação dela. Anita Cochran deu um passo para trás, amedrontada. Os empregados tiveram o reflexo instantâneo de proteger a patroa. Viram-na empalidecer, calaram-se e se aproximaram, prontos para se interpor entre ela e aquele estranho que claramente a perturbava. A amabilidade de Jeff havia desaparecido por completo quando ele deu um passo na direção de Mikael.

Mikael deu-se conta de que estava num lugar inacessível do outro lado do planeta, cercado por um bando de criadores de ovelhas encharcados de suor com espingardas na mão. Uma palavra de Anita Cochran, e eles o encheriam de chumbo.

Mas o instante havia passado. Harriet Vanger ergueu a mão num gesto de apaziguamento e seus homens recuaram. Ela se aproximou de Mikael e o olhou nos olhos. Estava molhada de suor e com o rosto sujo. Mikael notou raízes mais escuras sob os cabelos louros. Tinha o rosto mais envelhecido e macilento, mas se tornara exatamente a bela mulher que sua fotografia de crisma havia pressagiado.

— Nós já nos encontramos? — perguntou Harriet Vanger.

— Sim. Meu nome é Mikael Blomkvist. Você foi minha babá num verão, quando eu tinha três anos. Você tinha doze ou treze na época.

Alguns segundos se passaram e então o olhar dela se iluminou e Mikael percebeu que ela se lembrava dele. Parecia estupefata.

— O que você quer?

— Harriet, não sou seu inimigo, não estou aqui para lhe fazer mal. Mas precisamos conversar.

Ela se virou para Jeff e pediu-lhe que a substituísse, depois fez um sinal para que Mikael a acompanhasse. Andaram uns duzentos metros até um grupo de barracas de lona branca num pequeno bosque. Ela indicou uma cadeira dobrável em frente a uma mesa pouco firme, despejou água numa bacia, lavou o rosto, enxugou-se e entrou na barraca para trocar de camisa. Pegou duas cervejas numa caixa de isopor com gelo e sentou-se diante de Mikael.

— Pronto. Agora fale, estou escutando.

— Por que estão matando as ovelhas?

— Há uma epidemia. Provavelmente a maioria dessas ovelhas está saudável, mas não podemos correr o risco de a epidemia se alastrar. Seremos obrigados a abater mais de seiscentas ovelhas esta semana. Por isso não estou de muito bom humor.

Mikael aquiesceu com a cabeça.

— Seu irmão se matou dirigindo um carro dias atrás.

— Eu soube.

— Através de Anita, que telefonou para você.

Ela o fitou por um bom tempo. Depois assentiu com a cabeça. Percebeu que era inútil negar as evidências.

— Como me encontrou?

— Grampeamos o telefone de Anita. — Mikael também achou que não havia razão para mentir. — Estive com seu irmão um pouco antes de ele morrer.

Harriet Vanger franziu o cenho e o interrogou com o olhar. Então ele retirou o lenço ridículo que havia posto no pescoço, baixou a gola da camisa e mostrou a marca do nó corrediço. Uma cicatriz de um vermelho-vivo que provavelmente ficaria como lembrança de Martin Vanger.

— Seu irmão suspendeu-me num nó corrediço e só fui salvo porque minha companheira chegou para dar a maior surra que aquele canalha já levou na vida.

Alguma coisa se acendeu nos olhos de Harriet.

— Acho melhor você me contar essa história desde o início.

Mikael levou mais de uma hora para contar tudo. Começou se apresentando e resumindo suas desventuras profissionais. Depois contou como Henrik Vanger o incumbira daquela missão e por que tinha sido conveniente para ele instalar-se em Hedeby. Falou do inquérito policial que não dera em nada e de como Henrik fizera sua investigação pessoal durante todos aqueles anos, convencido de que alguém da família havia matado Harriet. Ligou o computador e explicou como descobriu as fotos da rua da Estação e como ele e Lisbeth começaram a buscar um assassino serial que eles acabaram brindo que eram dois.

Enquanto ele falava, começou a anoitecer. Os homens se preparavam para passar a noite ali, acendendo fogueiras e pondo marmitas para aquecer. Mikael observou que Jeff permanecia perto de sua chefe e que continuava a olhá-lo com desconfiança. O cozinheiro serviu Harriet e Mikael. Abriram outra cerveja. Quando Mikael terminou seu relato, Harriet ficou em silêncio por um momento.

— Meu Deus — disse ela.

— Você não anotou na agenda o assassinato de Uppsala.

— Nem mesmo investiguei. Estava aliviada por meu pai ter morrido e a violência acabar. Nunca me passou pela cabeça que Martin... — Ela se calou. — Estou contente que tenha morrido.

— Eu te entendo.

— Você só não me explicou como vocês concluíram que eu estava viva.

— Depois que descobrimos o que se passou, não foi muito difícil deduzir o resto. Para poder desaparecer, você precisou de ajuda. Anita Vanger era sua confidente e vocês haviam passado alguns dias do verão na cabana de Gottfried. Se fosse contar a alguém, seria para ela, e ela acabava de receber sua habilitação de motorista.

Harriet Vanger olhou para ele com uma expressão indefinida.

— Agora que você sabe que eu estou viva, o que vai fazer?

— Vou contar a Henrik. Ele merece saber.

— E depois? Você é um jornalista.

— Harriet, não tenho nenhuma intenção de entregá-la à mídia. Cometi tantas faltas profissionais nessa triste história que a Associação dos Jornalistas provavelmente me expulsaria se ficasse sabendo. — Ele tentou fazer graça. — Uma falta a mais ou a menos não faz diferença, e não quero prejudicar minha ex-babá.

Ela não pareceu achar graça.

— Quantas pessoas sabem a verdade?

— De que você está viva? Neste momento, apenas eu, você, Anita e a minha parceira Lisbeth. Dirch Frode conhece uns dois terços da história, mas continua achando que você morreu em 1966.

Harriet Vanger parecia refletir sobre alguma coisa. Olhou ao longe, na obscuridade do campo. Mikael teve de novo a sensação de estar exposto a uma situação desagradável e lembrou que Harriet tinha uma espingarda apoiada contra a lona da barraca, ao alcance da mão. Mas procurou afastar esses pensamentos. Mudou de assunto.

— Como você virou criadora de ovelhas na Austrália? Deduzi que Anita Vanger ajudou-a a abandonar a ilha, provavelmente no porta-malas do carro dela, quando a ponte foi reaberta um dia depois do acidente.

— Na verdade, apenas fiquei deitada no banco de trás do carro com um cobertor por cima de mim. Eu disse a Anita que precisava fugir. Você deduziu bem. Entreguei-me a ela, ela me ajudou e foi uma amiga leal durante todos esses anos.

— Como veio parar aqui na Austrália?

— Primeiro, antes de deixar a Suécia, morei por algumas semanas no quarto de estudante de Anita em Estocolmo. Anita tinha um dinheiro dela, que generosamente me emprestou. Também me deu seu passaporte. Éramos parecidas, e tudo que precisei fazer foi mudar a cor do cabelo para ficar loura. Morei num convento na Itália por quatro anos. Não como freira; existem conventos onde é possível alugar celas a um preço baixo, só para ficar ali em paz, meditando. Depois conheci Spencer Cochran por acaso. Era alguns anos mais velho que eu, concluíra seus estudos na Inglaterra e passeava pela Europa. Me apaixonei e ele também. Foi isso que aconteceu. Anita Vanger casou-se com ele em 1971. Nunca me arrependi, era um homem maravilhoso. Mas ele morreu há oito anos e de repente me tornei proprietária da empresa.

— E o passaporte? Alguém poderia notar que havia duas Anita Vanger.

— Não. Por que notariam? Uma sueca chamada Anita Vanger casou-se com Spencer Cochran. O fato de morar em Londres ou na Austrália não tem importância nenhuma. Em Londres, ela é a mulher separada de Spencer Cochran. Na Austrália, é sua esposa. Os cartórios de Canberra e Londres não se comunicam. Além disso, obtive um passaporte australiano com o nome Cochran. E um arranjo que funciona perfeitamente bem. O plano só não daria certo se Anita quisesse se casar. Meu casamento precisou ser registrado num cartório sueco.

— E ela não se casou.

— Disse que nunca encontrou ninguém, mas sei que se absteve por minha causa. Foi uma verdadeira amiga.

— O que ela fazia no seu quarto?

— Eu não estava raciocinando muito bem naquele dia. Tinha medo de Martin. Enquanto ele esteve em Uppsala, deixei o problema de lado, mas quando o vi na rua em Hedestad percebi que nunca mais estaria segura. Hesitei entre contar a Henrik e fugir. Henrik não pôde falar comigo, então saí andando à toa pelo povoado. Claro que o acidente na ponte fez todo mundo esquecer tudo mais, é natural. Mas não foi esse o meu caso. Eu tinha meu próprios problemas e mal tomei consciência do acidente. Tudo parecia irreal. Então encontrei Anita, que estava hospedada num anexo da casa de Gerda e Alexander. Por fim tomei uma decisão e pedi que ela me ajudasse. Fiquei no quarto dela e não ousei mais sair dali. Mas havia uma coisa que eu precisava levar comigo: um diário íntimo onde eu tinha anotado tudo o que aconteceu. Também precisava de roupas. Anita foi buscar.

— E suponho que ela não resistiu à tentação de abrir a janela para dar uma olhada no acidente. — Mikael refletiu um momento. — O que eu não entendo é por que você não foi ver Henrik, como era a sua intenção.

— O que você acha?

— Não sei, não entendo. Estou certo de que Henrik a teria ajudado. Martin não tinha como prejudicá-la imediatamente, e Henrik não a trairia. Teria conduzido o caso com discrição, encaminhando-o para uma espécie de terapia ou tratamento.

— Você não entendeu o que se passou.

Até então, Mikael mencionara apenas o abuso sexual que Martin sofrera de Gottfried, sem mencionar o caso de Harriet.

— Gottfried abusou de Martin — disse Mikael discretamente. — Imagino que tenha abusado também de você.

Harriet Vanger não mexeu um só músculo. Depois respirou profundamente e escondeu o rosto nas mãos. Em menos de três segundos, Jeff apareceu ao lado dela, perguntando se tudo estava all right. Harriet Vanger olhou para ele e dirigiu-lhe um breve sorriso. Então surpreendeu Mikael ao se levantar e abraçar seu studs manager, dando-lhe um beijo no rosto. Virou-se para Mikael, com o braço no ombro de Jeff.

— Jeff, este é Mikael, um velho... amigo de muito, muito tempo atrás. Ele está me trazendo problemas e más notícias, mas nunca devemos matar o mensageiro. Mikael, este é Jeff Cochran, meu filho mais velho. Tenho também outro filho e uma filha.

Mikael balançou a cabeça. Jeff tinha uns trinta anos. Harriet Vanger deve ter engravidado logo após o casamento com Spencer Cochran. Ele se levantou, estendeu a mão para Jeff e disse que sentia muito perturbar a mãe dele, mas que infelizmente era necessário. Harriet trocou algumas palavras com Jeff e o mandou embora. Tornou a sentar-se com Mikael e pareceu tomar uma decisão.

— Chega de mentira. Acho que agora acabou. De certo modo, eu estava esperando por esse dia desde 1966. Durante muitos anos, minha angústia era que alguém se dirigisse a mim pelo meu verdadeiro nome. E não me importa mais que você saiba. Meu crime está prescrito. E estou pouco ligando para o que as pessoas vão pensar.

— Que crime? — perguntou Mikael.

Ela o fitou bem nos olhos, mas ele ainda não sabia do que ela estava falando.

— Eu tinha dezesseis anos. Estava com medo, envergonhada, desesperada. E sozinha. Somente Anita e Martin sabiam a verdade. Contei a Anita sobre os abusos sexuais, mas não consegui contar que meu pai também era um psicopata assassino de mulheres. Anita nunca soube. Em troca, confessei-lhe o crime que eu mesma havia cometido e que era suficientemente horrível para que afinal não ousasse contá-lo a Henrik. Pedi perdão a Deus e me escondi num convento por vários anos.

— Harriet, seu pai era um estuprador e um assassino. Você não é culpada de nada.

— Eu sei. Meu pai abusou de mim durante um ano. Fiz de tudo para evitar que ele... mas ele era meu pai e eu não podia me recusar a fazer alguma coisa com ele sem lhe dar uma explicação. Então menti e aceitei participar da comédia, como se aquilo fosse natural, cuidando sempre para que houvesse outras pessoas quando eu me encontrava com ele. Minha mãe sabia o que ele fazia, mas não se importava.

— Isabella sabia? — exclamou Mikael, consternado.

A voz de Harriet Vanger ficou mais dura.

— Claro que sim. Nada se passava em nossa família sem que Isabella soubesse. Mas ela nunca dava atenção às coisas desagradáveis ou que pudessem depreciá-la. Meu pai podia me estuprar na sala diante de seus olhos sem que ela visse. Era incapaz de reconhecer que algo não ia bem na minha vida ou na dela.

— Cheguei a conhecê-la. É uma víbora.

— E o que foi a vida inteira. Muitas vezes refleti sobre o relacionamento entre meu pai e ela. Concluí que depois do meu nascimento eles raramente, ou nunca mais, tiveram relações sexuais. Meu pai tinha mulheres, mas estranhamente temia Isabella. Estava afastado dela sem poder se divorciar.

— Ninguém se divorcia na família Vanger.

Ela riu pela primeira vez.

— É verdade. O fato é que eu não tive coragem de contar. O mundo inteiro ficaria sabendo. Meus colegas de escola, todos na família...

Mikael pôs a mão sobre a de Harriet.

— Harriet, estou arrasado.

— Eu tinha catorze anos quando ele me violentou pela primeira vez. Levava-me regularmente à cabana. Várias vezes Martin também estava lá. Forçava nós dois a fazer coisas com ele. Segurava-me nos braços para que Martin... se satisfizesse em cima de mim. E assim, depois da morte do meu pai, Martin estava pronto para assumir o papel dele. Queria que eu fosse sua amante e achava natural que eu me submetesse. E nesse momento não tive mais escolha, fui obrigada a fazer o que Martin queria. Havia me livrado de um carrasco para cair nas garras de outro, e tudo o que podia fazer era procurar nunca ficar a sós com ele.

— Henrik teria...

— Você ainda não entendeu — ela disse, elevando a voz.

Mikael viu os homens na tenda ao lado virarem-se para eles. Ela baixou de novo a voz e inclinou-se para ele.

— Está com todas as cartas agora. Tire você mesmo as conclusões. Levantou-se e foi buscar mais duas cervejas. Quando voltou, Mikael disse uma única palavra.

— Gottfried?

Ela fez que sim com a cabeça.

— No dia 7 de agosto de 1965, meu pai me obrigou a acompanhá-lo até a cabana. Henrik estava viajando. Meu pai havia bebido e tentou me forçar. Mas não conseguiu gozar e começou a delirar. Ele era sempre... grosseiro e violento comigo quando estávamos a sós, mas dessa vez ultrapassou os limites. Urinou em cima de mim. A seguir contou-me o que gostaria de fazer comigo. Um pouco antes havia falado das mulheres que matara. Vangloriava-se. Citava a Bíblia. Aquilo durou horas. Não entendi a metade do que ele dizia, mas percebi que ele estava completamente maluco.

Ela tomou um gole de cerveja.

— A certa altura, por volta de meia-noite, ele teve uma crise. Parecia um louco furioso. Estávamos no mezanino. Ele pôs uma camiseta em volta do meu pescoço e apertou com toda a força. Vi tudo preto. Não duvido um segundo que ele realmente tentou me matar e, pela primeira vez naquela noite, conseguiu me estuprar.

Harriet Vanger pôs uns olhos suplicantes em Mikael.

— Mas estava tão bêbado que consegui me livrar, não sei como. Saltei do mezanino até a peça de baixo e saí correndo, em pânico. Estava nua e corri sem refletir, até chegar ao pontão. Ele chegou cambaleando atrás de mim.

De repente, Mikael desejou que ela parasse de contar.

— Eu era suficientemente forte para derrubar um bêbado na água. Utilizei um remo para mante-lo debaixo da água até que parasse de se mexer. Bastaram alguns segundos.

O silêncio foi ensurdecedor quando ela fez uma pausa.

— E, assim que levantei os olhos, Martin estava ali. Parecia aterrorizado e, ao mesmo tempo, divertia-se. Não sei desde quando nos espionava em frente à casa. E assim eu fiquei entregue à sua vontade. Ele se aproximou de mim e me pegou pelos cabelos, me levou de volta para a cabana e me jogou na cama de Gottfried. Me amarrou e me violentou, enquanto nosso pai ainda flutuava na água junto ao pontão. Não pude sequer me defender.

Mikael fechou os olhos. Sentiu vergonha e desejou ter deixado Harriet Vanger em paz. Mas a voz dela adquirira uma nova força.

— Desse dia em diante caí sob seu poder. Fazia o que ele me dizia, estava como que paralisada. Se escapei da loucura, foi porque Isabella decidiu que Martin precisava mudar de ares após o desaparecimento trágico do pai e o enviou a Uppsala. Evidentemente, era porque ela sabia o que ele fazia comigo; era sua maneira de resolver o problema. Você pode imaginar a decepção de Martin.

Mikael assentiu com a cabeça.

— No ano seguinte, ele só voltou nas férias de Natal, e consegui ficar distante. Acompanhei Henrik numa viagem a Copenhague entre o Natal e o Ano-novo. E, quando chegaram as férias de verão, Anita estava lá. Abri-me com ela e ela permaneceu o tempo todo comigo, o que o impediu de se aproximar de mim.

— E então você o viu na rua da Estação.

— Sim, fiquei sabendo que não viria à reunião de família e que permaneceria em Uppsala. Mas parece ter mudado de ideia e então eu o vi ali, do outro lado da rua, olhando fixamente para mim. Sorrindo para mim. Como um pesadelo. Eu assassinara meu pai e me dei conta de que nunca me libertaria do meu irmão. Até então, só havia pensado em me matar, mas finalmente preferi fugir.

Ela olhou para Mikael com um olhar aliviado.

— Como é bom contar a verdade... Agora você sabe de tudo. Como pretende utilizar o que sabe?


27. SÁBADO 26 DE JULHO — SEGUNDA-FEIRA 28 DE JULHO

Mikael se encontrou com Lisbeth Salander na frente do seu prédio na Lundagatan às dez da manhã e a levou ao crematório do cemitério norte. Fez-lhe companhia durante a cerimônia. Por um bom tempo, Lisbeth e Mikael foram as únicas pessoas presentes além do pastor, mas, quando o ritual funerário começou, Dragan Armanskij apareceu. Dirigiu um breve aceno de cabeça a Mikael, colocou-se atrás de Lisbeth e pôs suavemente a mão em seu ombro. Ela inclinou a cabeça sem olhar para ele, como se soubesse quem havia chegado às suas costas. Mas logo o ignorou, assim como ignorava Mikael.

Lisbeth não havia contado nada sobre a mãe, mas o pastor aparentemente falara com alguém da casa de saúde onde ela falecera, e Mikael entendeu que a causa da morte fora uma hemorragia cerebral. Lisbeth não disse uma só palavra durante a cerimônia. O pastor perdeu o fio da meada por duas vezes quando se dirigiu diretamente a Lisbeth, que o olhava bem nos olhos sem responder. Ao terminar, ela virou as costas e foi embora sem agradecer nem se despedir. Mikael e Dragan respiraram fundo e se olharam de soslaio. Eles ignoravam totalmente o que se passava na cabeça dela.

— Ela não está nada bem — disse Dragan.

— Acho que eu a entendo — respondeu Mikael. — Foi bom o senhor ter vindo.

— Não estou tão certo disso. Armanskij fixou o olhar em Mikael.

— Vocês vão voltar para o Norte? Cuide dela.

Mikael prometeu. Eles se separaram em frente à porta da igreja. Lisbeth já esperava no carro.

Ela precisava retornar a Hedestad para buscar a moto e o equipamento que pegara emprestado da Milton Security. Só rompeu o silêncio depois que passaram de Uppsala, para perguntar como tinha sido a viagem à Austrália. Mikael desembarcara no aeroporto de Arlanda na noite anterior e só dormira algumas horas. Enquanto conduzia o carro, ele contou a história de Harriet Vanger. Lisbeth Salander ficou em silêncio por meia hora, e só depois abriu a boca.

— Cretina — disse.

— De quem você está falando?

— Da Harriet Cretina Vanger. Se ela tivesse feito alguma coisa em 1966. Martin Vanger não teria continuado a matar e a estuprar durante trinta e sete anos.

— Harriet sabia dos assassinatos do pai, mas não que Martin participara deles. Ela fugiu de um irmão que a violentava e que ameaçava contar que ela afogara o pai, se não obedecesse a suas ordens.

— Conversa mole.

O resto da viagem a Hedestad transcorreu em silêncio. Lisbeth estava com um humor particularmente sombrio. Mikael estava atrasado para o encontro que havia marcado e pediu que ela descesse no cruzamento antes da ponte, perguntando-lhe se estaria ainda ali quando ele voltasse.

— Pretende passar a noite aqui? — ela perguntou.

— Acho que sim.

— Quer que eu esteja aqui quando você voltar?

Ele desceu do carro, deu a volta e se aproximou para abraçá-la. Lisbeth o rechaçou quase com violência. Mikael recuou,

— Lisbeth, você é minha amiga. Ela o olhou sem expressão.

— Quer que eu fique só para que você possa trepar com alguém esta noite?

Mikael olhou demoradamente para ela. Depois virou-se, entrou no carro e ligou o motor. Baixou o vidro. A hostilidade de Lisbeth era palpável.

— Quero ser seu amigo — disse. — Se está imaginando outra coisa, não vale nem a pena estar aqui quando eu voltar.

Henrik Vanger estava sentado numa poltrona quando Dirch Frode convidou Mikael a entrar em seu quarto no hospital. Ele logo perguntou como Henrik estava.

— Eles estão pretendendo me deixar ir ao enterro de Martin amanhã.

— Que parte da história Dirch contou a você? Henrik Vanger baixou o olhar.

— O que Martin e Gottfried fizeram. Pelo que entendi, a coisa foi mais longe do que eu imaginei nos meus piores pesadelos.

— Eu sei o que aconteceu a Harriet.

— Conte-me como ela morreu.

— Harriet não morreu. Está viva. Se estiver de acordo, ela gostaria muito de revê-lo.

Num mesmo movimento, Henrik Vanger e Dirch Frode olharam Mikael como se o mundo tivesse acabado de virar de pernas para o ar.

— Levei algum tempo até convencê-la a vir comigo, mas ela concordou. Está bem e neste momento se encontra em Hedestad. Chegou hoje de manhã e poderá estar aqui dentro de uma hora. Se você quiser vê-la, é claro.

Mais uma vez, Mikael precisou contar a história do começo ao fim. Henrik Vanger escutou com tanta concentração, como se escutasse um Sermão da Montanha moderno. Em algumas raras ocasiões, fez uma pergunta ou pediu que Mikael repetisse. Dirch Frode não abriu a boca.

Terminado o relato, o velho permaneceu quieto. Embora os médicos tivessem garantido que Henrik tinha se restabelecido do infarto, Mikael temia o instante da revelação de toda a história — temia que o velho não aguentasse. Mas Henrik não demonstrou nenhum sinal de emoção. Apenas sua voz parecia um pouco pastosa quando quebrou o silêncio.

— Pobre Harriet. Se tivesse vindo falar comigo... Mikael olhou a hora. Eram cinco para as quatro.

— Quer vê-la? Ela tem medo que você a rejeite, agora que sabe o que ela fez.

— E as flores?

— Perguntei isso a ela no avião. Só havia uma pessoa que ela amava na família: você. Evidentemente, era ela quem enviava as flores. Disse que esperava fazê-lo entender que ela estava viva, e bem, sem ser obrigada a se revelar. Mas, como sua única fonte de informação era Anita, que nunca vinha a Hedestad e que foi morar no exterior depois de terminar seus estudos, Harriet sabia muito pouco do que se passava aqui. Nunca soube o quanto você sofria nem que se acreditava perseguido pelo assassino dela.

— Imagino que Anita era quem postava as flores.

— Ela trabalhava para uma companhia aérea e as enviava de onde se encontrava.

— E como você descobriu que era Anita que a ajudava?

— Pela fotografia na qual ela aparece na janela do quarto de Harriet.

— Mas ela podia estar envolvida... poderia ser a assassina. Como deduziu que Harriet estava viva?

Mikael olhou demoradamente para Henrik Vanger. Depois sorriu pela primeira vez desde que voltara a Hedestad,

— Anita estava envolvida no desaparecimento de Harriet, mas não poderia tê-la matado.

— Como teve a certeza disso?

— Porque isto não é um romance policial e de mistério. Se Anita tivesse matado Harriet, você já teria encontrado o corpo há muito tempo. Portanto, o mais lógico é que ela tivesse ajudado Harriet a fugir e a se manter distante. Quer vê-la?

— Mas é claro que quero ver Harriet.

Mikael foi buscar Harriet, que o aguardava em frente aos elevadores do saguão de entrada. No primeiro momento não a reconheceu; depois que eles haviam se separado no aeroporto, na véspera, ela refizera a cor escura original de seus cabelos. Vestia calça preta, camisa branca e um casaco cinza elegante. Estava magnífica e Mikael inclinou-se para lhe dar um beijo de encorajamento no rosto,

Henrik levantou-se da poltrona quando Mikael abriu a porta para deixar Harriet Vanger passar. Ela respirou fundo.

— Bom dia, Henrik.

O velho a examinou dos pés à cabeça. Depois Harriet avançou e o beijou no rosto. Mikael fez um sinal com o queixo para Dirch Frode, fechou a porta e deixou os dois a sós.

Lisbeth Salander não estava mais em casa quando Mikael voltou à ilha. O equipamento de vídeo e a moto haviam desaparecido, assim como a sacola com as roupas e os produtos de toalete dela no banheiro.

Ele percorreu os cômodos. A casa de repente lhe pareceu sinistra, estranha, irreal. Olhou as pilhas de papéis na saleta de trabalho, que ele devia distribuir em pastas e entregar a Henrik Vanger, mas não teve ânimo de começar a arrumação. Foi até o Konsum para comprar pão, leite, queijo e alguma coisa para beliscar à noite. Ao voltar, preparou um café, instalou-se no jardim e leu os jornais da tarde com a cabeça vazia, sem pensar em nada.

Por volta das cinco e meia da tarde, um táxi passou pela ponte e voltou três minutos depois. Mikael avistou Isabella Vanger no banco traseiro.

Por volta das sete, estava cochilando na cadeira do jardim quando Dirch Frode chegou e o despertou.

— Como foi o encontro de Henrik e Harriet? — perguntou Mikael.

— Essa triste história tem também seu lado divertido — respondeu Frode com um sorriso contido. — Isabella irrompeu de repente no quarto de Henrik. Ela ficou sabendo que você havia voltado e estava uma fera. Berrou que era preciso acabar com essas imbecilidades sobre Harriet e que você era um investigador de merda que causara a morte do filho dela.

— De certa forma ela tem razão.

— Ordenou que Henrik demitisse você, obrigasse você a sumir daqui e que parasse de procurar fantasmas.

— Uau!

— Ela nem sequer olhou para a mulher que estava com Henrik. Certamente a tomou como uma funcionária do hospital. Não esquecerei jamais o instante em que Harriet se levantou, olhou para Isabella e disse: Bom dia, mamãe.

— E o que aconteceu?

— Foi preciso chamar o médico para reanimar Isabella. Agora ela está negando que se trata mesmo de Harriet; você é acusado de ter trazido uma impostora.

Dirch Frode estava indo anunciar a Cecília e a Alexander que Harriet ressuscitara dos mortos. Ele seguiu seu caminho e deixou Mikael a sós.

Lisbeth Salander parou para pôr gasolina num posto um pouco antes de Uppsala. Estivera dirigindo com os dentes cerrados e o olhar fixo à frente. Pagou rápido, deu a partida na moto e avançou até a saída, onde se deteve mais uma vez, indecisa.

Ainda se sentia mal. Estava furiosa quando deixou Hedeby, mas a raiva lentamente se dissolvera ao longo do trajeto. Não sabia muito bem por que estava tão zangada com Mikael Blomkvist, nem mesmo se era com ele que estava zangada.

Só tinha na cabeça Martin Vanger, aquela maldita Harriet Vanger e aquele maldito Dirch Frode, toda aquela maldita família Vanger bem instalada em Hedestad, que reinava em seu pequeno império fazendo intrigas uns contra os outros. Eles haviam precisado da ajuda dela. Normalmente não a teriam sequer cumprimentado, muito menos lhe confiado segredos.

Família de merda!

Inspirou profundamente e pensou na mãe enterrada naquela manhã. Aquilo, sim, não tinha solução. A morte da mãe significava que a ferida jamais seria curada, pois Lisbeth jamais teria resposta às perguntas que gostaria de ter feito a ela.

Pensou em Dragan Armanskij atrás dela durante o enterro. Deveria ter dito alguma coisa a ele. Pelo menos ter enviado um sinal de que sabia que ele estava ali. Mas aí ele teria usado aquilo como pretexto para querer organizar a vida dela. Se lhe desse a pontinha do dedo, ele iria pegar o braço inteiro. Ele nunca entenderia.

Pensou no dr. Nils Canalha Bjurman, seu tutor, que, ao menos por enquanto, estava neutralizado e fazendo o que ela mandava.

Sentiu um ódio implacável e cerrou os dentes.

Pensou em Mikael Blomkvist e perguntou-se qual seria a reação dele se soubesse que ela estava sob tutela e que toda a sua vida não passava de um maldito ninho de ratos.

Percebeu que não queria mal a ele. Mikael fora simplesmente a pessoa de quem ela dispunha para descarregar sua raiva, sobretudo quando sentia vontade de matar alguém. Não adiantava nada culpá-lo.

Sentia-se estranhamente ambígua em relação a ele.

Ele metia o nariz em toda parte, fuçava a vida privada dela e... Mas ela também tinha gostado de trabalhar com ele. E essa era uma sensação estranha — trabalhar com alguém! Não tinha esse hábito, mas fora algo surpreendentemente sem dor. Ele não ficava martelando nos ouvidos dela, não ficava tentando lhe dizer como deveria viver sua vida.

E fora ela que o seduzira, não o contrário.

Sem contar que havia sido bom.

Então por que essa vontade de chutá-lo?

Suspirou e contemplou com olhos infelizes um caminhão enorme que passava pela rodovia E4.

Mikael ainda estava no jardim por volta das oito da noite quando ouviu o barulho da moto e viu Lisbeth Salander passar pela ponte. Ela estacionou e tirou o capacete. Aproximou-se da mesa do jardim e examinou a cafeteira, que estava fria e vazia. Mikael olhou para ela surpreso. Ela pegou a cafeteira e entrou na casa. Quando voltou, havia tirado o macacão de couro e posto um jeans e uma camiseta com a inscrição I can be a regular bitch. Just try me.

— Achei que já estivesse em Estocolmo — disse Mikael.

— Dei meia-volta em Uppsala.

— Um passeio longo.

— Estou com a bunda dolorida.

— Por que deu meia-volta?

Ela não respondeu. Mikael não insistiu e esperou que ela falasse enquanto tomavam o café. Passados dez minutos, ela rompeu o silêncio.

— Gosto da sua companhia — ela reconheceu a contragosto. Eram palavras que nunca havia pronunciado.

— Foi... interessante trabalhar com você nesse caso.

— Também gostei de trabalhar com você — disse Mikael.

— Humm.

— Nunca trabalhei com um pesquisador tão competente. Certo, sei que você é uma hacker terrível e conhece círculos suspeitos com os quais, depois de um simples telefonema, pode montar urna escuta telefônica em Londres em vinte e quatro horas, mas de fato você obtém resultados.

Ela o olhou pela primeira vez desde que se sentara ali. Ele conhecia muitos dos seus segredos. Como era possível?

— E simples. Conheço computadores. Nunca tive problema para ler um texto e entender exatamente o que está escrito lá.

— E a sua memória fotográfica — ele disse tranquilamente.

— Acho que sim. Não sei bem como a coisa funciona. Não é só com computadores e redes telefônicas, mas também com o motor da minha moto, aparelhos de tevê, aspiradores de pó, processos químicos e fórmulas astrofísicas. Admito, sou meio maluca, uma verdadeira freak.

Mikael franziu as sobrancelhas. Não disse nada por um bom tempo.

A síndrome de Asperger, pensou. Ou algo parecido. Um talento para ver esquemas e entender raciocínios abstraías onde os outros não vêem senão a mais completa desordem.

Lisbeth olhou fixamente a mesa.

— A maioria das pessoas pagaria caro para ter esse dom.

— Não quero falar sobre isso.

— Tudo bem, deixa pra lá. Por que você voltou?

— Não sei. Talvez tenha sido um erro. Ele a perscrutou com o olhar.

— Lisbeth, pode me dar uma definição da palavra "amizade"?

— Gostar muito de alguém.

— Sim, mas o que faz gostar muito de alguém? Ela encolheu os ombros.

— Minha definição da amizade se baseia em duas coisas — ele disse. — O respeito e a confiança. Esses dois fatores precisam necessariamente estai presentes. E deve ser recíproco. Pode-se ter respeito por alguém, mas se não houver confiança, a amizade vira pó.

Ela continuou calada.

— Tudo bem você não querer falar de si mesma comigo; só que, mais cedo ou mais tarde, vai precisar decidir se tem confiança em mim ou não. Quero que sejamos amigos, mas não posso ser seu amigo sozinho.

— Gosto de trepar com você.

— O sexo não tem nada a ver com a amizade. Claro que amigos podem fazer amor, mas ouça, Lisbeth: se eu tiver que escolher entre sexo e amizade com você, sei muito bem o que escolherei.

— Não entendo. Quer fazer amor comigo ou não?

Mikael mordeu o lábio. Por fim, suspirou.

— Não é bom que pessoas que trabalham juntas façam amor juntas — ele murmurou. — Acaba dando problemas.

— Posso estar enganada, mas me parece que você e Erika trepam assim que surge uma chance. E além disso ela é casada.

Mikael ficou um momento em silêncio.

— Eu e Erika... temos uma história que começou muito antes de trabalharmos juntos. O fato de ela ser casada não lhe diz respeito.

— Está vendo? Agora é você que não quer falar dos seus assuntos. A amizade não era uma questão de confiança?...

— Sim, mas o que eu quero dizer é que não falo de uma amiga nas costas dela. Seria trair sua confiança. Também não falaria de você com Erika nas suas costas.

Lisbeth Salander pensou sobre o que ele disse. A conversa havia ficado complicada e ela não gostava de conversas complicadas.

— Gosto de trepar com você — repetiu.

— E eu também... mas já tenho idade para ser seu pai.

— Não dou a mínima para a sua idade.

— Você não pode ignorar nossa diferença de idade. Ela não é um bom ponto de partida para uma relação duradoura.

— Quem falou de algo duradouro? — disse Lisbeth. — Acabamos de resolver um caso em que homens com uma sexualidade pervertida de merda desempenharam um papel e tanto. Se dependesse de mim, homens como esses seriam exterminados, todos.

— Bem, pelo menos você não faz concessões.

— Não — disse ela, com seu sorriso enviesado que não era bem um sorriso. — Mas você não é como eles.

Levantou-se.

— Vou tomar um banho e depois pretendo me deitar nua na sua cama. Se você se sente muito velho, pode ir dormir na cama de armar.

Mikael olhou para ela. Quaisquer que fossem os problemas de Lisbeth Salander, a timidez não era um deles. Ele sempre saía perdendo nas discussões que tinha com ela. Foi lavar as xícaras de café e depois entrou no quarto.

Levantaram-se por volta das dez, tomaram banho juntos e se instalaram no jardim para o café-da-manhã. Aproximadamente às onze horas, Dirch Frode telefonou e disse que o enterro seria às duas. Perguntou se tinham a intenção de ir.

— Acho que não — disse Mikael.

Frode perguntou se poderia passar por volta das seis da tarde para terem uma conversa. Mikael disse que não havia problema.

Passou algumas horas guardando os papéis nas pastas e depois levando-as ao escritório de Henrik. Por fim, restaram só seus próprios cadernos de anotações e as duas pastas sobre o caso Hans-Erik Wennerström, que havia seis meses ele não abria. Suspirou e colocou-as na mala.

Dirch Frode se atrasou e só chegou às oito da noite. Ainda vestia a roupa de enterro e parecia muito preocupado quando se sentou no banco da cozinha. Aceitou com prazer a xícara de café que Lisbeth lhe serviu. Ela se sentou na outra mesa e concentrou-se em seu computador, enquanto Mikael perguntava como a ressurreição de Harriet repercutira na família.

— Pode-se dizer que eclipsou a morte de Martin. Mas a mídia também ficou sabendo do caso dela.

— E como vocês estão explicando a situação?

— Harriet conversou com um jornalista do Kuriren. Sua versão c que fugiu de casa porque não se entendia com a família, mas que, afinal, acabou se dando bem, pois hoje dirige uma empresa com um volume de negócios tão grande quanto o do grupo Vanger.

Mikael assobiou.

— Percebi que ovelhas australianas davam dinheiro, mas não sabia que chegava a tanto.

— A criação de ovelhas vai muito bem, mas não é a única fonte de renda. As empresas Cochran possuem também minas, refinam opalas, atuam no setor de transporte, de eletrônica e se dedicam a uma série de outras coisas.

— Não diga! E como foi a sequência dos acontecimentos?

— Para dizer a verdade, não sei. Pessoas foram chegando no transcorrer do dia e a família está reunida pela primeira vez depois de muitos anos. Vêm tanto do lado de Fredrik Vanger quanto do de Johann Vanger, e há muitos da nova geração, os que têm entre vinte e trinta anos. Deve haver uns quarenta Vanger em Hedestad agora à noite; uma metade está no hospital com Henrik, esgotando-o, e a outra metade no Grande Hotel, conversando com Harriet.

— Harriet é a grande sensação. Quantas pessoas estão sabendo da verdade sobre Martin?

— Por enquanto, somente eu, Henrik e Harriet. Tivemos uma longa conversa a sós. Essa história de Martin e de... suas perversões é a nossa principal preocupação hoje. A morte de Martin gerou uma crise enorme no grupo.

— Entendo.

— Não há um sucessor natural, mas Harriet vai ficar em Hedestad durante algum tempo. Entre outras coisas, precisamos ver quem possui o quê, como as heranças serão divididas, coisas do gênero. Harriet tem direito a uma parte da herança, que teria sido bem maior se ela tivesse ficado aqui o tempo todo. E uma situação complicada.

Mikael riu. Dirch Frode permaneceu sério.

— Isabella passou mal no enterro. Foi hospitalizada. Harriet se recusa a vê-la.

— Entendo.

— Por outro lado, Anita vai chegar de Londres. Convocamos um conselho de família para a próxima semana. Será a primeira vez em vinte e cinco anos que ela participa.

— Quem será o novo diretor-executivo?

— Birger luta pelo cargo, mas está fora de questão. O que vai acontecer é que Henrik reassumirá como diretor temporário até que alguém de fora seja contratado, ou então alguém da família...

Não terminou a frase. Mikael levantou as sobrancelhas.

— Harriet? Não está falando sério.

— Por que não? E uma mulher de negócios muito competente e respeitada.

— Ela tem uma empresa para dirigir na Austrália.

— Sim, mas seu filho Jeff Cochran dirige o negócio na ausência dela.

— Ele é studs manager numa criação de ovelhas. Se entendi direito, cuida para que as ovelhas se reproduzam bem.

— Também diplomou-se em economia pela Oxford e em direito em Melbourne.

Mikael pensou no homem musculoso e sem camisa que o conduzira pelo despenhadeiro e tentou imaginá-lo de terno e gravata. Por que não?

— Isso não se resolverá de uma hora para a outra — disse Frode. — Mas ela seria uma diretora-executiva perfeita. Com um apoio apropriado, poderia orientar o grupo para uma nova direção.

— Ela não tem experiência...

— E verdade. Claro que Harriet não pode surgir do nada depois de décadas e começar a dirigir tudo em detalhe. Mas o grupo Vanger é internacional e poderíamos trazer para cá um executivo americano que não fala uma palavra de sueco... para tocar o business, como dizem.

— Cedo ou tarde vocês vão ter que enfrentar o problema do porão de Martin.

— Eu sei. Mas não podemos revelar nada sem arruinar Harriet... Alegro-me de não ser eu a ter que tomar uma decisão sobre isso.

— Que merda, Dirch! Vocês não podem silenciar sobre Martin ter sido um assassino serial.

Dirch Frode contorceu-se em silêncio. Mikael sentiu de repente um gosto ruim na boca.

— Mikael, encontro-me numa... situação muito desconfortável.

— Fale.

— Tenho um recado de Henrik. É muito simples. Ele agradece a você pelo seu trabalho e diz que considera o contrato encerrado. Isso significa que o está liberando de outras obrigações e que você não está mais obrigado a viver e a trabalhar aqui em Hedestad et cetera. Ou seja, pode partir imediatamente para Estocolmo e dedicar-se a seus compromissos.

— Ele quer que eu desapareça de cena?

— De modo nenhum. Quer que mais tarde venha visitá-lo para conversarem sobre o assunto. Disse que espera poder manter sem restrições seus compromissos na direção da Millennium. Mas...

Dirch Frode pareceu ainda mais constrangido.

— Mas não quer mais que eu escreva uma crônica sobre a família Vanger, não é?

Frode assentiu com a cabeça. Pegou um caderno, abriu-o e entregou a Mikael.

— Ele escreveu esta carta para você.

Prezado Mikael!

Tenho o maior respeito pela sua integridade e não vou ofendê-lo tentando ditar o que deve escrever. Pode escrever e publicar exatamente o que quiser, não tenho a intenção de exercer a menor pressão sobre você.

Nosso contrato permanece em vigor, se quiser reivindicá-lo. Tem elementos suficientes para terminar a crônica sobre a família Vanger. Mikael, nunca implorei nada a ninguém em toda a minha vida. Sempre achei que um homem deve seguir sua moral e sua convicção. Mas desta vez não tenho escolha.

Peco-lhe, tanto como amigo quanto como co-proprietário da Millennium, que não revele a verdade sobre Gottfried e Martin. Sei que não é correto, mas não vejo nenhuma saída nessa escuridão. Devo escolher entre dois males, e só há perdedores.

Peco-lhe que não escreva nada que prejudique Harriet. Você viveu isso na pele, sabe o que significa ser objeto de uma campanha da imprensa. A campanha dirigida contra você foi de proporções relativamente modestas, mas imagine o que será de Harriet se a verdade for conhecida. Ela viveu um calvário durante quarenta anos e não precisa sofrer ainda mais pelos atos que o irmão e o pai dela cometeram. Então eu lhe peço que reflita nas consequências que essa história poderá ter para milhares de funcionários do grupo. Isso destruiria Harriet e nos aniquilaria.

Henrik

— Henrik disse também que, se você quiser exigir uma indenização pelas perdas ocasionadas pela não-publicação da história, ele está totalmente aberto a discutir isso. Pode propor as condições financeiras que quiser.

— Henrik Vanger está tentando me comprar. Diga-lhe que eu teria preferido que ele nunca tivesse me feito essa oferta.

— Essa situação é tão penosa para Henrik quanto para você. Ele gosta imensamente de você e o considera um amigo.

— Henrik Vanger é um sujeito esperto — disse Mikael, voltando a se irritar. — Ele quer abafar a história. Joga com os meus sentimentos e sabe que eu também gosto dele. O que ele está dizendo é que na prática eu tenho as mãos livres para publicar o que quiser, mas, se eu fizer isso, ele será obrigado a rever sua postura com relação à Millennium.

— Tudo mudou depois que Harriet reapareceu.

— E agora Henrik quer saber qual é o meu preço. Não vou entregar Harriet às feras, mas alguém precisa falar sobre as mulheres que Martin levou para o porão. Dirch, não sabemos quantas mulheres ele massacrou. Quem vai falar em nome delas?

Lisbeth Salander levantou de repente os olhos do computador. Sua voz tinha uma doçura desagradável quando ela se virou para Dirch Frode.

— No grupo de vocês não há ninguém com a intenção de comprar a mim também?

Frode olhou-a surpreso. Mais uma vez, ele havia ignorado a existência dela.

— Se Martin Vanger estivesse vivo neste instante, eu o entregaria às feras — ela prosseguiu. — Seja qual fosse o arranjo de vocês com Mikael, eu iria contar tudo sobre ele ao jornal mais próximo. E, se pudesse, o arrastaria à sua própria sala de tortura, o prenderia naquela mesa e lhe enfiaria agulhas nos colhões. Mas ele está morto.

Ela se virou para Mikael antes de continuar.

— O arranjo podre deles me convém. Nada do que fizermos poderá reparar o mal que Martin Vanger causou a suas vítimas. Mas por outro lado surgiu uma situação interessante. Você está numa posição em que pode continuar prejudicando mulheres inocentes, especialmente essa Harriet que você defendeu tão calorosamente quando voltávamos de carro para cá. Minha questão é a seguinte: o que é pior? Que Martin Vanger a tenha violentado na cabana ou que você faça isso em papel impresso? Você está diante de um belo dilema. O comitê de ética da Associação dos Jornalistas talvez possa te dar uma ideia de que caminho seguir.

Ela fez uma pausa. Mikael não conseguiu mais sustentar o olhar de Lisbeth Salander. Baixou os olhos para a mesa.

— Só que eu não sou jornalista — disse ela por fim.

— O que está querendo? — perguntou Dirch Frode soltando um suspiro

— Martin filmou suas vítimas. Quero que tentem identificar o maior número possível dessas mulheres e dêem às famílias delas uma compensação apropriada. E depois quero que o grupo Vanger faça uma doação anual e permanente de dois milhões de coroas ao SOS-Mulheres Vítimas de Maus-tratos. Por um minuto, Dirch Frode meditou no preço a pagar. Depois assentiu com a cabeça.

— Pode viver com isso, Mikael? — perguntou Lisbeth.

Mikael sentiu-se subitamente desesperado. Passara toda a sua vida profissional denunciando o que outros tentavam esconder, e sua moral o proibia de participar da ocultação dos crimes terríveis cometidos no porão de Martin Vanger. O objetivo de seu trabalho era justamente denunciar o que ele sabia. Não hesitava em criticar colegas que não contassem a verdade. No entanto, ali estava ele discutindo o abafamento do caso mais macabro de que jamais ouvira falar.

Permaneceu calado por um bom tempo. Depois também assentiu com a cabeça.

— Melhor assim. — Dirch Frode virou-se para Mikael. — E quanto à oferta de Henrik de uma compensação financeira...

— Enfie naquele lugar — disse Mikael. — E agora quero que vá embora, Dirch. Entendo sua posição, mas neste momento estou tão furioso com você, com Henrik e com Harriet que, se ficar, vamos deixar de ser amigos.

Dirch Frode permaneceu sentado à mesa sem fazer menção de se levantar.

— Ainda não posso ir — disse. — Não terminei. Tenho outro recado que você também não vai gostar. Henrik insistiu para que eu o transmitisse esta noite. Amanhã você pode ir ao hospital esfolá-lo, se quiser.

Mikael levantou devagar a cabeça e olhou Dirch bem nos olhos.

— E provavelmente a coisa mais difícil que já precisei fazer na vida — disse Frode. — Mas acho que agora apenas uma sinceridade total e todas as cartas na mesa podem salvar a situação.

— Diga logo.

— Quando Henrik o convenceu a aceitar esse trabalho no Natal passado, nem ele nem eu pensamos que iria dar em alguma coisa. Foi exatamente o que ele disse: queria fazer uma última tentativa. Ele examinou minuciosamente a sua situação, baseando-se muito no relatório feito pela senhorita Salander. Contou com seu isolamento, propôs uma boa remuneração e utilizou uma boa isca.

— Wennerström — disse Mikael. Frode assentiu com a cabeça.

— Vocês blefaram?

— Não.

Lisbeth Salander levantou uma sobrancelha, interessada.

— Henrik vai cumprir todas as suas promessas — continuou Frode. —Dará uma entrevista e lançará publicamente um ataque frontal contra Wennerström. Você terá todos os detalhes mais tarde, mas em linhas gerais o fato é o seguinte: quando Wennerström esteve ligado ao departamento financeiro do grupo Vanger, ele utilizou vários milhões de coroas para especular com moedas estrangeiras. Isso bem antes desse tipo de especulação se generalizar. Agiu por conta própria, sem pedir a autorização da direção. Os negócios não iam bem e ele se viu de uma hora para a outra com um déficit de sete milhões de coroas, que tentou cobrir, de um lado, mexendo na contabilidade e, de outro, especulando ainda mais. Foi desmascarado e despedido.

— Ele obteve ganhos pessoais nessas operações?

— Sim, desviou cerca de meio milhão de coroas, e o mais cômico dessa história, se é que se pode dizer assim, é que essa quantia serviu para fundar o grupo Wennerström. Temos provas de tudo. Você pode utilizar essa informação à vontade e Henrik sustentará publicamente suas afirmações. Mas...

— Mas essa informação não tem o menor valor! — disse Mikael, batendo com a mão na mesa.

Dirch Frode assentiu com a cabeça.

— Aconteceu há trinta anos e é um capítulo encerrado — disse Mikael.

— Mas você terá a confirmação de que Wennerström é um escroque.

— Wennerström se aborrecerá que isso venha a público, porém não será atingido mais que por uma bolinha de papel soprada num canudo. Dará de ombros e divulgará um comunicado de imprensa dizendo que Henrik Vanger é um velho ultrapassado que implica com ele sem motivo, depois afirmará que na verdade agiu por ordem de Henrik. Mesmo que não possa provar sua inocência, saberá espalhar fumaça suficiente para que a história logo perca o interesse.

Dirch Frode tinha um aspecto sinceramente pesaroso.

— Vocês me enganaram — disse Mikael por fim.

— Mikael... não era nossa intenção.

— A culpa é minha. Eu buscava indícios de falsidade e deveria ter entendido que esse era um deles. — Deu uma risada brusca, um riso seco. — Henrik é um velho tubarão. Tinha um produto para vender e me disse o que eu precisava ouvir.

Mikael levantou-se e foi até a bancada da cozinha. Virou-se para Frode e resumiu seus sentimentos em duas palavras.

— Vá embora.

— Mikael... lamento que...

— Caia fora, Dirch!

Lisbeth Salander não sabia se devia se aproximar de Mikael ou deixá-lo em paz. Ele resolveu o problema para ela ao pegar de repente a jaqueta, sem dizer nada, e bater a porta atrás de si.

Durante mais de uma hora, ela andou de um lado para o outro na cozinha. Sentia-se tão inquieta que limpou a mesa e lavou a louça — tarefa que normalmente deixava para Mikael. Várias vezes foi até a janela espiar. Por fim, resolveu pôr sua jaqueta de couro e ir procurá-lo.

Primeiro foi até o porto de recreio, onde havia luzes ainda nas janelas, mas não viu sinal de Mikael. Seguiu o caminho da praia, onde eles faziam seus passeios noturnos. A casa de Martin Vanger estava às escuras e já se notava que não era mais habitada. Foi até a pedra do promontório, onde Mikael e ela costumavam se sentar, depois retornou para casa. Ele ainda não tinha voltado.

Lisbeth foi procurar do lado da igreja. Nenhum sinal de Mikael também. Ela hesitou um momento, perguntando-se o que devia fazer. Resolveu pegar a moto, pôs uma lanterna no estojo debaixo do assento e partiu pelo caminho da praia outra vez. Demorou um pouco até pegar o atalho invadido em parte pela vegetação e mais algum tempo até encontrar a trilha que conduzia à cabana de Gottfried. Avistou-a de repente na escuridão, atrás de algumas árvores, quando estava quase chegando. Não viu Mikael na varanda e a porta estava trancada.

Já ia voltar ao povoado, quando se deteve ao avistar a silhueta de Mikael no escuro, no pontão onde Harriet afogara o pai. Deu um suspiro de alívio.

Mikael percebeu que ela se aproximava pelo barulho das tábuas e se virou. Ela sentou ao lado dele sem dizer nada. Por fim ele rompeu o silêncio.

— Desculpe. Eu precisava ficar um pouco sozinho.

— Eu entendo.

Ela acendeu dois cigarros e estendeu um a ele. Mikael olhou para ela. Lisbeth Salander era a pessoa mais anti-social que ele conhecera; recusava-se a falar de coisas pessoais e nunca aceitara a menor demonstração de simpatia dele. Tinha salvado sua vida e agora saía no meio da noite para procurá-lo pela ilha. Ele pôs um braço em torno dela.

— Agora sei o quanto valho. Abandonamos todas aquelas mulheres — disse. — Eles vão abafar a história. Tudo que há no porão de Martin vai desaparecer.

Lisbeth não respondeu.

— Erika tinha razão — ele continuou. — Teria sido melhor se eu tivesse ido à Espanha dormir com as espanholas por um mês, depois voltar a me encarregar de Wennerström. Foram meses jogados fora.

— Se você tivesse ido à Espanha, Martin Vanger continuaria agindo no seu porão.

Silêncio. Eles ficaram ali juntos por bastante tempo até que Mikael se levantou e propôs que voltassem.

Mikael adormeceu antes de Lisbeth. Ela ficou acordada escutando a respiração dele. Esperou um momento, depois foi à cozinha fazer café. Sentou-se no banco, no escuro, e fumou vários cigarros enquanto refletia intensamente. Para ela, era evidente que Vanger e Frode iam enganar Mikael. Essa gente era assim por natureza. Mas o problema era de Mikael, e não dela. Ou era?

Acabou tomando uma decisão. Esmagou o cigarro, foi para junto de Mikael, acendeu a lâmpada de cabeceira e sacudiu-o até que despertasse. Eram duas e meia da manhã.

— Que foi?

— Tenho uma pergunta pra te fazer. Sente-se. Mikael sentou-se, ainda sonolento.

— Quando você foi condenado por difamação, por que não se defendeu? Mikael sacudiu a cabeça e olhou para ela. Depois olhou para o despertador.

— É uma longa história, Lisbeth.

— Conte. Não tenho pressa.

Ele permaneceu um bom tempo em silêncio, refletindo sobre o que deveria dizer. Por fim decidiu contar a verdade.

— Eu não tinha como me defender. O conteúdo do artigo estava errado.

— Quando pirateei seu computador e os e-mails que você trocou com Erika Berger, havia muitas referências ao caso Wennerström, mas sempre para discutir detalhes práticos do processo e nunca o que realmente aconteceu. O que foi que não deu certo?

— Lisbeth, não posso revelar a verdadeira história. Caí numa armadilha. Erika e eu estamos totalmente de acordo que seria ainda mais prejudicial à nossa credibilidade se tentássemos contar o que de fato se passou.

— Então me diga, Super-Blomkvist. Ontem à tarde você me passou um sermão sobre amizade, confiança e não sei mais o quê. Acha que estou pretendendo divulgar a sua história pela internet?

Mikael protestou uma ou duas vezes. Lembrou a Lisbeth que era madrugada e que não tinha ânimo para pensar no assunto. Ela permaneceu obstinadamente sentada até ele ceder. Mikael foi lavar o rosto e esquentar o café. Então voltou para a cama e contou como, dois anos antes, seu ex-colega de classe Robert Lindberg havia despertado sua curiosidade na cabine de um veleiro atracado na marina de Arholma.

— Quer dizer que seu colega mentiu?

— Não, de modo nenhum. Ele contou exatamente o que sabia e verifiquei cada palavra do que ele disse em documentos existentes no Comitê de Apoio Industrial. Cheguei a ir à Polônia fotografar o hangar onde a empresa Minos tinha sido instalada. E entrevistei várias pessoas que haviam sido contratadas. Todas disseram exatamente a mesma coisa.

— Não entendo.

Mikael suspirou. Demorou um pouco para prosseguir.

— Eu tinha uma ótima história. Ainda faltava colocar Wennerström na parede, mas a história era consistente e, se eu tivesse publicado na hora, teria desestabilizado o cara. Ele talvez não fosse condenado por fraude, o caso já tinha o aval dos auditores, mas pelo menos eu teria abalado sua reputação.

— E o que impediu isso?

— Nesse meio-tempo alguém percebeu a jogada e Wennerström ficou sabendo da investigação. E um monte de coisas estranhas começaram a acontecer. Primeiro recebi ameaças. Telefonemas anônimos feitos de cabines públicas impossíveis de localizar. Erika também recebeu ameaças. Os absurdos de sempre: pare de investigar senão vamos te pegar, coisas desse tipo. Ela evidentemente ficou irritada.

Ele pegou um dos cigarros de Lisbeth.

— Depois aconteceu algo muito desagradável. Uma noite, ao sair da re-dação bem tarde, fui atacado por dois sujeitos que me deram uma surra. Eu estava completamente desprevenido, eles me espancaram pra valer e desmaiei. Não consegui identificá-los, mas um deles me pareceu ser um motoqueiro.

— E?

— Bem, todas essas manifestações de simpatia acabaram deixando Erika mais furiosa e eu mais obstinado. Reforçamos a segurança da Millennium. O problema é que eram ataques desproporcionais em relação ao conteúdo da nossa história. Não entendíamos por que tudo aquilo estava acontecendo.

— Mas a história que você publicou era muito diferente.

— Exato. De repente descobrimos uma brecha. Fizemos contato com uma fonte, um Garganta Profunda do círculo de Wennerström. O sujeito estava borrado de medo e só nos encontrávamos com ele em quartos de hotéis anônimos. Contou que o dinheiro do caso Minos fora utilizado para comprar armas destinadas à guerra na Jugoslávia. Wennerström tinha feito negócios com o grupo de direita croata Ustacha. E mais: o cara nos deu cópias de documentos que confirmavam suas denúncias.

— E vocês acreditaram?

— Ele foi habilidoso. Também nos passou informações suficientes para nos levar a uma outra fonte que podia confirmar a história. Tivemos inclusive uma foto que mostrava um dos mais próximos colaboradores de Wennerström apertando a mão do comprador, diante de caixas com a etiqueta "Explosivos". Tudo parecia verídico, e publicamos.

— Era uma isca.

— Uma isca do começo ao fim — confirmou Mikael. — Os documentos haviam sido habilmente falsificados. E o advogado de Wennerström provou que a foto do subalterno de Wennerström e do chefe da Ustacha era uma montagem de duas fotos diferentes feita no Photoshop.

— Fascinante — disse Lisbeth Salander, assentindo com a cabeça pensativamente. Tudo estava muito claro para ela.

— Não é mesmo? Depois foi fácil ver como havíamos sido manipulados. Nossa história original teria prejudicado Wennerström, no entanto ela se perdeu numa falsificação e caiu numa armadilha. Publicamos uma história que permitiu a Wennerström desmantelá-la ponto por ponto e provar sua inocência. Foi um golpe de mestre.

— E vocês não podiam voltar atrás e contar a verdade. Não tinham nenhuma prova de que Wennerström fizera a falsificação.

— Pior que isso. Se tentássemos contar a verdade e cometêssemos a imbecilidade de acusar Wennerström de estar por trás de tudo, ninguém acreditaria em nós. Interpretariam isso apenas como uma tentativa desesperada de culpar um grande empresário inocente. Seríamos vistos como uns obcecados por complô e doidos completos.

— Entendo.

— Wennerström estava duplamente protegido. Se o truque fosse revelado, ele poderia dizer que um de seus inimigos quisera arrastá-lo para a lama. E nós da Millennium perderíamos mais uma vez a credibilidade, pois teríamos engolido informações que depois se revelaram falsas.

— Então você escolheu não se defender e encarar uma pena de prisão.

— Mereci a pena — disse Mikael com voz amarga. — Fui culpado por difamação. É isso, agora você já sabe. Posso dormir?

Mikael apagou a luz e fechou os olhos. Lisbeth estendeu-se ao lado dele. Não disse nada por um momento.

— Wennerström é um gângster.

— Eu sei.

— Não, eu quis dizer que eu sei que ele é um gângster. Ele negocia com tudo, desde a máfia russa até o cartel de Medellín na Colômbia.

— O que está querendo dizer?

— Quando entreguei meu relatório a Frode, ele me incumbiu de uma missão suplementar. Pediu que eu tentasse descobrir o que realmente havia acontecido no processo. Eu estava envolvida nisso quando Armanskij me chamou para cancelar o trabalho.

— Suponho que não precisavam mais da investigação depois que você aceitou a proposta de Henrik Vanger. Não havia mais interesse.

— Sim, e daí?

— Bem, não gosto de deixar as coisas pela metade. Tive algumas semanas... digamos, livres na primavera, num período em que Armanskij não tinha trabalho para mim. Então, para me distrair, comecei a escavar o caso Wennerström.

Mikael empertigou-se, acendeu a lâmpada e olhou para Lisbeth. Os olhares dos dois se cruzaram. Ela parecia realmente alguém que tinha feito algo errado.

— Descobriu alguma coisa?

— Tenho todo o disco rígido dele no meu computador. Se te interessa, posso fornecer quantas provas você quiser de que ele é um verdadeiro gângster.


28. TERÇA-FEIRA 29 DE JULHO — SEXTA-FEIRA 24 DE OUTUBRO

Fazia três dias que Mikael Blomkvist estava debruçado sobre as cópias dos fichários de Lisbeth Salander — pastas repletas de documentos. O problema é que as evidências seguiam em todas as direções. Uma negociação com títulos em Londres, outra com moedas estrangeiras em Paris através de um agente. Uma empresa-fantasma em Gibraltar. O saldo de uma conta no Chase Manhattan Bank, em Nova York, de repente multiplicado por dois.

E também vários pontos de interrogação: uma empresa comercial com duzentas mil coroas numa conta sem movimentação aberta cinco anos antes em Santiago do Chile — uma entre trinta outras semelhantes em doze países diferentes — e sem a menor indicação da atividade principal. Empresas em estado latente? A espera de quê? Biombos para ocultar outras atividades? O computador não fornecia respostas para o que Wennerström guardava na cabeça, e que certamente era muito evidente para que precisasse estar num documento eletrônico.

Salander tinha se convencido de que jamais encontrariam resposta para a maior parte dessas questões. Eles podiam ver a mensagem, mas não podiam interpretar seu sentido sem o código. O império Wennerström era como uma cebola cujas peles podiam ser retiradas uma a uma; um conjunto de empresas proprietárias umas das outras. Companhias, contas, fundos, valores. Eles constatavam que ninguém, nem mesmo Wennerström, conseguiria ter uma visão global. O império Wennerström era dotado de vida própria.

Havia uma estrutura, ou pelo menos um esboço de estrutura. Um labirinto de empresas interdependentes. O império Wennerström podia ser avaliado, de acordo com a pessoa que fizesse o cálculo e de acordo com a maneira de calcular, entre 100 bilhões e 400 bilhões de coroas. Mas, no caso de empresas proprietárias umas das outras, que valor têm, afinal, essas empresas?

Quando Lisbeth lançou a pergunta, Mikael olhou-a com um ar atormentado.

— Tudo isso é esotérico — respondeu ele antes de passar ao exame das contas bancárias.

Eles deixaram a ilha de Hedeby às pressas, de manhã, depois que Lisbeth Salander soltou a bomba que agora absorvia Mikael o tempo todo. Foram direto para a casa de Lisbeth e passaram dois dias e duas noites diante do computador dela, enquanto Mikael era conduzido ao universo de Wennerström. Ele tinha muitas perguntas a fazer. Uma delas por pura curiosidade.

— Lisbeth, como você pode pilotar o computador dele?

— E uma pequena invenção fabricada pelo meu colega Praga. Wennerström trabalha num laptop IBM, tanto em casa como no escritório. Isso quer dizer que toda a informação fica guardada num único disco rígido. O cabo de banda larga está na casa dele. Praga inventou uma espécie de tubo que se conecta ao cabo propriamente dito e que venho testando para ele; tudo o que Wennerström vê é registrado por esse tubo, que envia a informação a um servidor em algum lugar.

— Ele não tem um firewall?

— Sim, tem, mas a ideia é que o próprio tubo funcione também como uma espécie de firewall. Demora um pouco para piratear desse modo. Digamos que Wennerström receba um e-mail; ele chega primeiro ao tubo de Praga e podemos lê-lo antes mesmo que seja captado pelo firewall de Wennerström. Mas o engenhoso é que a mensagem é reescrita e injetamos alguns bytes de um código-fonte. A operação repete-se toda vez que ele faz um download em seu computador. A coisa funciona ainda melhor com imagens. Ele navega muito na internet. Sempre que baixa uma foto pornô ou abre um novo site, acrescentamos alguns sinais desse código-fonte. Depois de um certo tempo, algumas horas ou dias, conforme o uso que ele fizer do computador, Wennerström terá baixado um programa inteiro de cerca de três megabytes, em que os bits foram se somando uns aos outros.

— E?

— Depois que os últimos bits foram instalados, o programa se integra ao navegador da internet do laptop. Ele pensa que o computador travou e é obrigado a reiniciar. Ao fazer isso, está carregando um novo programa. Wennerström usa o Microsoft Explorer. Na próxima vez que abrir o Explorer, na verdade abrirá um programa diferente, invisível no seu computador e semelhante ao Explorer. Funciona como o Explorer, mas faz também um monte de outras coisas. Esse programa começa a escanear o computador e envia bits de informação sempre que Wennerström clica no mouse ao navegar. Depois de um tempo, e dependendo do período que ele passa navegando, acumulamos um espelho completo do conteúdo do disco rígido dele num outro servidor. E então que o TH intervém.

— TH?

— É como Praga chamou: Takeover hostil.

— Ah!

— O engenhoso é o que vem a seguir. Quando a estrutura está pronta, Wennerström tem dois discos rígidos completos, um em sua própria máquina e outro no nosso servidor. Na verdade, quando ele inicia o computador, está iniciando o computador-espelho. Não trabalha mais no próprio computador, e sim no nosso servidor. Seu computador vai rodar um pouco mais lento, mas nem se percebe. E, quando estou conectada ao servidor, posso acompanhar o computador dele em tempo real. Toda vez que Wennerström digita uma tecla, aparece no meu monitor.

— Vejo que o seu colega também é um hacker.

— Foi ele que montou a escuta telefônica em Londres. Socialmente falando, é um incompetente, mas na internet é legendário.

— Certo — disse Mikael com um sorriso resignado. — Pergunta número dois: por que não me falou de Wennerström antes?

— Você nunca me pediu.

— E se eu nunca tivesse pedido — digamos que não tivéssemos nos conhecido — então você teria se calado sobre as atividades ilícitas de Wennerström, enquanto a Millennium caía em desgraça?

— Ninguém nunca me pediu para denunciar Wennerström — respondeu Lisbeth com uma voz sentenciosa.

— Mas e se pedissem?

— Ora, já contei a você! — ela retrucou na defensiva. Mikael deixou o assunto de lado.

Mikael estava totalmente absorvido pelo que descobria no computador de Wennerström. Lisbeth gravara o conteúdo do disco rígido de Wennerström

— cerca de cinco gigabytes — nuns dez CDs, e tinha mais ou menos a impressão de ter se mudado para a casa de Mikael. Esperava pacientemente e respondia às perguntas que ele não parava de fazer.

— Não entendo como ele pode ser tão imbecil a ponto de guardar todas as informações dos seus negócios suspeitos num disco rígido — disse Mikael.

— Se caísse nas mãos da polícia...

— As pessoas não são racionais. Eu diria que ele nem imagina que a polícia possa querer confiscar seu computador.

— Acima de qualquer suspeita. Concordo que ele é um sujeito arrogante, mas deve estar bem cercado de consultores em segurança que lhe dizem como lidar com seu computador. Vi arquivos de 1993.

— O computador é bastante recente. Foi fabricado há um ano, mas Wennerström parece ter transferido toda a sua velha correspondência e coisas do gênero para o disco rígido, em vez de salvar em CDs. Mas ele se previne com programas de encriptação.

— Precaução totalmente inútil, já que você está dentro do computador dele e lê as senhas toda vez que ele digita.

Fazia quatro dias que eles tinham voltado a Estocolmo, quando Christer Malm ligou para o celular de Mikael e o despertou às três da manhã.

— Henry Cortez foi a uma festa com uma namorada esta noite.

— Ah, sim? — respondeu Mikael, ainda tonto de sono.

— Antes de voltarem para casa, passaram no bar da Estação central.

— Não é o melhor lugar para namorar.

— Escuta esta: Janne Dahlman está de férias e Henry o viu numa mesa junto com um homem.

— E?

— Henry reconheceu imediatamente o tal homem. Krister Söder.

— O nome me diz alguma coisa, mas...

— Trabalha no Finansmagasinet Monopol, que pertence ao grupo Wennerström — prosseguiu Malm.

Mikael ergueu-se na cama.

— Está me ouvindo?

— Sim, estou. Pode não significar nada. Söder é jornalista, talvez seja um velho colega de Dahlman.

— Talvez eu esteja sendo meio paranóico, mas há três meses a Millennium comprou a reportagem de um freelancer. Uma semana antes de nós a publicarmos, Söder publicou uma notícia quase idêntica. Era o mesmo assunto sobre um fabricante de celulares. Ele ocultava a informação de que utilizavam um componente defeituoso que pode causar curtos-circuitos.

— Entendo. Mas essas coisas acontecem. Comentou isso com Erika?

— Não, ela está viajando, só volta a semana que vem.

— Não faz mal. Volto a te ligar — disse Mikael e desligou o celular.

— Problemas? — perguntou Lisbeth Salander.

— A Millennium — disse Mikael. — Preciso dar uma saída. Quer vir comigo?

A redação estava deserta às quatro da manhã. Lisbeth precisou de três minutos para descobrir o código de acesso do computador de Janne Dahlman e mais dois para transferir seu conteúdo para o notebook de Mikael.

A maior parte dos e-mails, porém, achava-se no laptop pessoal de Dahlman, ao qual não tinham acesso. Mas no computador dele na Millennium Lisbeth encontrou um endereço hotmail de Dahlman, e ela levou seis minutos para entrar na conta dele e transferir toda a sua correspondência do ano anterior. Cinco minutos depois, Mikael tinha provas de que Janne Dahlman deixara vazar informações sobre a situação da Millennium e de que informara o redator do Finansmagasinet Monopol sobre as reportagens que Erika programava publicar nos próximos números. A espionagem prosseguira pelo menos até o outono anterior.

Eles desligaram os computadores e voltaram ao apartamento de Mikael para dormir mais algumas horas. Ele chamou Christer Malm por volta das dez da manhã.

— Tenho provas de que Dahlman trabalha para Wennerström.

— Eu tinha certeza disso. Certo, vou despedir esse canalha ainda hoje.

— Não faça isso. Não faça absolutamente nada. — Nada?

— Christer, confie em mim. Até quando Dahlman estará de férias?

— Ele volta na segunda-feira de manhã.

— Há quantas pessoas na redação hoje?

— Mais ou menos a metade.

— Será que pode anunciar uma reunião para as duas da tarde? Não diga qual o assunto. Estarei aí.

Seis pessoas estavam sentadas em volta da mesa de reunião diante de Mikael. Christer Malm tinha um ar cansado. Henry Cortez exibia aquela felicidade que só os jovens apaixonados de vinte e quatro anos conseguem sentir. Monika Nilsson parecia ansiosa, à espera de revelações bombásticas; Christer Malm não dissera uma palavra sobre o tema da reunião, mas ela já trabalhava na redação havia bastante tempo para entender que algo incomum estava sendo tramado, e não saber de nada a deixava aborrecida. A única que exibia um comportamento normal era Ingela Oskarsson, funcionária de tempo parcial encarregada da administração, das assinaturas e de outras tarefas que lhe ocupavam dois dias da sua semana, embora ela não parecesse muito folgada desde que se tornara mãe dois anos antes. A outra funcionária de tempo parcial era a jornalista freelancer Lotta Karim, com um contrato semelhante ao de Henry Cortez e que acabava de voltar de férias. Christer também conseguira trazer para a reunião Sonny Magnusson, embora ele ainda estivesse de férias.

Mikael começou cumprimentando a todos e desculpando-se por ter estado fora durante o ano.

— Nem Christer nem eu tivemos tempo de informar Erika sobre o que nos preocupa hoje, mas posso garantir que nesse assunto falo também em nome dela. Hoje vamos decidir o futuro da Millennium.

Fez uma pausa e deixou as palavras produzirem efeito. Ninguém fez perguntas.

— Este ano foi pesado. Estou surpreso de que nenhum de vocês tenha ido procurar emprego em outro lugar. Só posso concluir que vocês são ou completamente loucos ou excepcionalmente leais e que gostam de trabalhar na revista. Por isso vou botar as cartas na mesa e pedir uma última contribuição.

— Ultima contribuição? — espantou-se Monika Nilsson. — É como se você tivesse a intenção de fechar a Millennium.

— Isso mesmo — respondeu Mikael. — Quando voltar das férias, Erika convocará nós todos para uma triste reunião, na qual anunciará que a Millennium vai deixar de circular no Natal e que todos serão dispensados.

Desta vez, uma certa inquietação se espalhou no ar. Mesmo Christer Malm acreditou, por um segundo, que Mikael falava sério, antes de notar seu sorriso satisfeito.

— Durante este outono, vocês vão desempenhar um duplo papel. Devo dizer que o nosso caro secretário de redação, Janne Dahlman, andou passando informações nossas para Hans-Erik Wennerström. O que significa que o inimigo está sempre muito bem informado do que se passa aqui, e isso explica muitos dos reveses que sofremos neste ano. Sobretudo você, Sonny, pois alguns anunciantes que pareciam firmes se retiraram subitamente.

— Dahlman, aquele merda! Não me surpreende — disse Monika Nilsson.

Janne Dahlman nunca fora muito popular na redação e a revelação não chegou a chocar ninguém. Mikael interrompeu os murmúrios.

— Só estou contando isso porque tenho inteira confiança em vocês. Trabalhamos juntos há vários anos e sei que vocês têm a cabeça no lugar, por isso sei também que aceitarão participar desse jogo, não importa o que acontecer neste outono. E fundamental que Wennerström seja levado a acreditar que a Millennium está afundando. E o trabalho de vocês será fazê-lo acreditar nisso.

— Qual é a nossa verdadeira situação? — perguntou Henry Cortez.

— Resumindo: foi um período difícil para todos e ainda não estamos livres das dificuldades. Tudo levava a crer que a Millennium ia acabar. Mas garanto que isso não vai acontecer. A Millennium hoje está mais forte do que há um ano. Depois desta reunião, vou desaparecer novamente por dois meses. Lá pelo fim de outubro estarei de volta. Então cortaremos as asas de Hans-Erik Wennerström.

— De que maneira? — quis saber Cortez.

— Sinto muito, mas não posso revelar detalhes. Vou escrever uma nova história sobre Wennerström, só que desta vez faremos tudo direitinho. Então começaremos a preparar a festa de Natal da revista. Espero ter como prato principal do cardápio Wennerström assado e diversos críticos como sobremesa.

A descontração logo tomou conta do ambiente. Mikael se perguntou como estaria se sentindo se estivesse ali, sentado, escutando a si mesmo naquela mesa de reunião. Cético? Provavelmente. Mas parecia que ele contava com um capital de confiança entre os colaboradores da Millennium. Levantou a mão outra vez.

— Para que isso aconteça, é importante que Wennerström acredite que a Millennium está afundando. Não quero que ele monte uma campanha defensiva ou que elimine provas no último minuto. Por isso vamos traçar um roteiro para os próximos meses. Em primeiro lugar, é fundamental que nada do que discutimos aqui hoje seja registrado por escrito em e-mails ou comunicado a alguém fora desta sala. Não sabemos até que ponto Dahlman tem acesso aos nossos computadores, e descobri que é bastante fácil ler os e-mails particulares dos colaboradores. Portanto, faremos tudo verbalmente. Se nas próximas semanas quiserem discutir alguma coisa, falem com Christer na casa dele. Com extrema discrição.

Mikael escreveu numa lousa: nenhuma mensagem eletrônica.

— Em segundo lugar, vocês farão fofocas. Quero que comecem a me denegrir toda vez que Janne Dahlman estiver por perto. Não exagerem. Apenas dêem vazão ao ego naturalmente avacalhador de vocês. Christer, gostaria que você e Erika tivessem uma discussão séria. Usem a imaginação e guardem mistério sobre as razões, mas dêem a impressão de que a revista está rachando e que todos estão se indispondo uns contra os outros.

Ele escreveu Avacalhem na lousa.

— Em terceiro lugar: quando Erika voltar, você, Christer, a informará sobre a trama. Caberá a ela, em seguida, fazer Janne Dahlman acreditar que nosso acordo com o grupo Vanger, que nos mantém à tona no momento, afundou porque Henrik Vanger está gravemente doente e porque Martin Vanger morreu num acidente de carro.

Escreveu a palavra Desinformação.

— Então isso significa que o acordo é sólido? — perguntou Monika Nilsson.

— Pode acreditar em mim — disse Mikael sério. — O grupo Vanger está empenhado em que a Millennium sobreviva. Daqui a algumas semanas, digamos, no final de agosto, Erika convocará uma reunião para avisar das dispensas. E importante que todos entendam que é uma isca e que o único a desaparecer daqui será Janne Dahlman. Mas vocês precisam continuar fingindo. Comecem a dizer que estão procurando emprego e falem da referência ruim que a Millennium representa no currículo.

— E você acha que essa comédia vai salvar a Millennium? — perguntou Sonny Magnusson.

— Tenho certeza que sim. Sonny, quero que faça um relatório mensal fictício mostrando que a tendência dos anunciantes se inverteu nos últimos meses e que o número de assinantes caiu outra vez.

— Vai ser divertido — disse Monika. — Isso vai ficar só dentro da redação ou deixaremos vazar para outras mídias?

— Só dentro da redação. Se a história vazar, saberemos quem é o responsável. Se daqui a alguns meses alguém nos pedir explicações, poderemos simplesmente dizer: Não, meu velho, você ouviu boatos sem fundamento; de modo nenhum, nunca se falou em fechar a Millennium. O melhor que pode acontecer é Dahlman ventilar a informação para outras mídias. Então, ele é que passará por imbecil. Se puderem soprar a Dahlman uma história plausível mas completamente idiota, têm carta branca.

Passaram duas horas montando um roteiro e distribuindo o papel de cada um.

Depois da reunião, Mikael foi tomar um café com Christer Malm no Java, no centro da cidade.

— Christer, é muito importante que vá esperar Erika no aeroporto, para colocá-la a par da situação. Terá que convencê-la a jogar o jogo. Se eu bem a conheço, ela vai querer se confrontar com Dahlman imediatamente, mas isso não pode acontecer. Não quero que Wennerström suspeite de alguma coisa e dê sumiço nas provas.

— Certo.

— E diga a Erika que se mantenha longe do correio eletrônico até ter instalado o encriptador PGP e ter aprendido a utilizá-lo. E provável que, através de Dahlman, Wennerström esteja lendo todos os nossos e-mails internos. Quero que usem o PGP, você e todo mundo na redação. Como se fosse a coisa mais natural. Darei o nome de um técnico de informática, você vai chamá-lo e ele virá dar uma olhada na rede interna e nos computadores da redação. Deixe-o instalar o programa como se fosse um serviço normal.

— Farei o melhor possível. Mas diga, Mikael, o que você está tramando exatamente?

— Vou acabar com a carreira de Wennerström.

— De que maneira?

— Sinto muito, por enquanto é segredo. Só posso dizer que tenho informações sobre ele que farão nossa denúncia anterior parecer uma coisa à-toa.

Christer Malm pareceu incomodado.

— Sempre confiei em você, Mikael. Você não confia em mim? Mikael riu.

— Claro que confio. Mas neste momento estou envolvido numa atividade criminosa muito séria, que pode me valer uns dois anos de prisão. É que os procedimentos da minha pesquisa são, por assim dizer, um pouco duvidosos... Utilizo métodos tão ilícitos quanto os de Wennerström. Não quero que nem você nem Erika nem ninguém da Millennium se envolva nisso.

— Você tem o dom de me deixar preocupado.

— Fique tranquilo. E pode dizer a Erika que essa história vai repercutir. Muito.

— Erika vai querer saber o que você está tramando... Mikael refletiu um segundo, depois sorriu.

— Diga a ela que, na última primavera, ela deixou muito claro para mim, quando assinou o contrato com Henrik Vanger à minha revelia, que eu não passava de um reles e mortal freelancer, sem lugar no conselho administrativo da revista e sem nenhuma influência na linha seguida pela Millennium. Isso também significa que não sou obrigado a informá-la de nada. Mas prometo que, se ela se comportar direitinho, vai ser a primeira a saber da história.

Christer deu uma risada.

— Ela vai ficar furiosa — comentou, divertido.

* * *

Mikael sabia muito bem que não dissera a verdade a Christer Malm: ele estava evitando Erika propositalmente. O normal teria sido avisá-la de imediato das informações de que dispunha. Mas Mikael não queria falar com ela. Chegou a digitar seu número uma dezena de vezes no celular. Sempre desistia.

Sabia qual era o problema: não podia olhá-la nos olhos.

Ter concordado em abafar o caso de Hedestad era jornalisticamente imperdoável. Ele não sabia como explicar isso sem mentir, e se havia uma coisa que nunca queria fazer era mentir para Erika Berger.

Além do mais, não tinha coragem de enfrentar esse problema e ao mesmo tempo atacar Wennerström. Assim adiou o confronto, desligou o celular e poupou-se de falar com ela. Sabia que era um descanso de curta duração.

Logo depois da reunião da redação, Mikael foi se instalar em sua cabana em Sandhamn, onde não punha os pés havia mais de um ano. Na bagagem, levou duas caixas de folhas impressas e os CDs que Lisbeth lhe dera. Fez provisões, trancou-se ali, abriu o notebook e pôs-se a escrever. Todos os dias saía para passear e aproveitava para comprar jornais e mantimentos. Ainda havia muitos veleiros no porto, e vários daqueles jovens que tinham pedido emprestado o barco do papai estavam, como sempre, enchendo a cara no Bar do Mergulhador. Alheio a tudo a sua volta, Mikael passava os dias na frente do computador, desde o momento em que abria os olhos até cair de cansaço à noite.

Mensagem eletrônica encriptada da diretora de publicação erika.berger@millennium.se ao editor licenciado mikael.blomkvist@millennium.se:

[Mikael. Preciso saber o que está acontecendo — entenda, voltei de férias e caí em pleno caos. Primeiro fico sabendo o que Janne Dahlman andou fazendo, depois o jogo duplo que você bolou. Martin Vanger está morto. Harriet Vanger está viva. O que está havendo em Hedeby? Onde você está? Temos uma história para publicar? Por que não atende o celular? E.

P. S. Entendi a sua alfinetada que Christer divertiu-se muito em me transmitir. Você me paga. Está zangado comigo de verdade?]

De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Oi, Ricky. Não, fique tranquila, não estou zangado. Perdoe-me por não ter tido tempo de esclarecer as coisas para você, é que nos últimos meses minha vida virou uma montanha-russa. Contarei tudo quando nos virmos, mas não por e-mail. Agora estou em Sandhamn. Há uma história para ser publicada, mas não se trata de Harriet Vanger. Vou ficar aqui enfurnado por algum tempo. Até terminar, confie em mim. Bjs. M.]

De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@ millennium.se:

[Sandhamn? Vou aí te ver assim que eu puder.]

De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@ millennium.se:

[Não venha já. Espere algumas semanas, pelo menos até eu ter um texto consistente. Além disso, estou esperando uma visita.]

De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@millennium.se:

[Certo, não vou impor a minha presença, claro. Mas tenho o direito de saber o que está acontecendo. Henrik Vanger tornou-se membro do conselho, mas ele não responde quando chamo. Se o acordo com Vanger deu em nada, você precisa me dizer. Não sei o que fazer. Preciso saber se a revista vai continuar ou não. Ricky.

P. S. Como ela se chama?]

De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Primeiro: fique tranquila, Henrik não vai sair. Mas ele teve um infarto sério e só tem trabalhado poucas horas por dia, e suponho que o impacto causado pela morte de Martin e a ressurreição de Harriet absorveu todas as suas forças.

Segundo: a Millennium vai continuar. Estou trabalhando na reportagem mais importante da nossa vida e, quando a publicarmos, liquidaremos Wennerström de uma vez por todas.

Terceiro: minha vida está de pernas para o ar neste momento, mas entre mim, você e a Millennium nada mudou. Confie em mim. Bjs. Mikael.

P. S. Te apresentarei a ela assim que der. Você vai se surpreender.]

Quando Lisbeth Salander chegou a Sandhamn, foi recebida por um Mikael de olheiras e com uma barba de alguns dias. Ele a abraçou rapidamente e pediu que preparasse um café enquanto terminava uma passagem do texto.

Lisbeth deu uma olhada na cabana e percebeu quase imediatamente que se sentia bem ali. O chalezinho ficava junto a um pontão, com o mar a dois metros da porta. Media apenas seis metros por cinco, mas a construção tinha altura suficiente para um mezanino, ao qual se chegava por uma escada em caracol. Lisbeth podia ficar de pé ali, porém Mikael era obrigado a baixar um pouco a cabeça. Ela inspecionou a cama e constatou que era suficientemente larga para os dois.

A cabana tinha uma janela ampla que dava para o mar, bem ao lado da porta de entrada. A mesa da cozinha também servia como mesa de trabalho para Mikael. Na parede ao lado dela, havia uma pequena prateleira com um aparelho de CD e alguns discos de Elvis Presley e de hard rock, dois gêneros que ela não teria posto no topo da sua lista.

Num canto havia um aquecedor a lenha. O resto da mobília resumia-se a um grande armário embutido, para guardar roupas, lençóis e toalhas, e uma bancada de cozinha que prosseguia, separada por uma cortina, até uma pia e um chuveiro. Acima da bancada abria-se uma pequena janela. Sob a escada em caracol, Mikael montara um banheiro com vaso sanitário. Toda a cabana lembrava a cabine de um barco, com arranjos e compartimentos engenhosos.

Na sua investigação particular sobre Mikael Blomkvist, ela dissera que ele mesmo havia reformado a cabana e cuidado da decoração — dedução baseada no e-mail que um amigo de Mikael, impressionado com sua habilidade, lhe enviara após uma visita a Sandhamn. Tudo era limpo, modesto e simples, quase espartano. Ela entendeu por que gostava tanto daquela cabana.

Depois de duas horas, ela conseguiu distrair a atenção de Mikael do trabalho. Ele deixou o computador com ar frustrado, barbeou-se c levou-a para conhecer Sandhamn. O tempo estava chuvoso e ventava, e eles logo foram para o albergue. Mikael contou o que havia escrito, e Lisbeth lhe entregou um CD com informações atualizadas do PC de Wennerström.

Depois voltaram para a cabana, e no mezanino ela conseguiu despi-lo e distraí-lo ainda mais. Lisbeth despertou tarde da noite sozinha na cama e, ao dar uma espiada para baixo, o viu debruçado sobre o teclado. Ficou um bom tempo com a cabeça apoiada na mão, olhando-o. Ele parecia feliz e ela, por sua vez, sentiu-se estranhamente satisfeita com a vida.

Lisbeth só ficou cinco dias. Depois voltou a Estocolmo, atendendo a um chamado de Dragan Armanskij ao telefone, que, desesperado, a convocava para um novo trabalho. Dedicou a esse trabalho onze dias, fez seu relatório e regressou a Sandhamn. A pilha de folhas impressas ao lado do notebook de Mikael crescera.

Desta vez ficou quatro semanas. Eles acabaram criando uma espécie de rotina. Levantavam-se às oito e tomavam o café-da-manhã juntos por uma hora. A seguir, Mikael trabalhava intensamente até depois do meio-dia quando, então, saíam para passear e conversar. Lisbeth passava a maior parte do dia na cama lendo livros ou navegando na internet pelo modem ADSL de Mikael. Evitava perturbá-lo durante o dia. Jantavam bem tarde e somente então Lisbeth tomava a iniciativa e o forçava a subir até o mezanino, onde queria todo tipo de atenção dele.

Lisbeth tinha a impressão de viver as primeiras férias de sua vida.

Mensagem eletrônica encriptada de erika.berger@millennium.se a mikael.blomkvist@millennium.se:

[Oi, Mikael. E oficial agora, Janne Dahlinan pediu demissão e começa a trabalhar no Finansmagasinet Monopol dentro de três semanas. Segui suas instruções, não disse nada e todos estão representando a farsa. E.

P. S. De qualquer maneira, todos estão se divertindo um bocado. Outro dia, Henry e Lotta trocaram injúrias a ponto de quase se agredir. Levaram a brincadeira tão longe com Dahlman que me espanta ele não ter sacado que era um blefe.]

De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Deseje-lhe boa sorte e deixe-o ir embora. Mas guarde a prataria num armário fechado a chave. Bjs. M.]

De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@millennium.se:

[Estou sem secretário de redação a duas semanas de sair o próximo número e meu repórter investigativo está recolhido em Sandhamn e se recusa a falar comigo. Micke, ponho-me de joelhos. Será que pode nos ajudar? Erika.]

De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Aguente mais algumas semanas, e aí chegaremos a um porto tranquilo. E comece a preparar o número de dezembro, que será diferente de tudo o que já publicamos. Meu texto ocupará cerca de quarenta páginas da revista. M.]

De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@millennium.se:

[Quarenta páginas!!! Você ficou louco?]

De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Será uma edição temática. Preciso de mais três semanas. Será que você pode: (1) criar uma estrutura editorial em nome da Millennium, (2) conseguir um número ISBN, (3) pedir a Clirister a criação de um belo logotipo para nossa nova editora e (4) encontrar uma boa gráfica que possa lançar um livro de bolso rápido e barato? Aliás, precisaremos de dinheiro para os custos de impressão do nosso primeiro livro. Bjs. Mikael.]

De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@ millennium.se:

[Edição temática. Editora. Custos de impressão. As suas ordens, meu comandante. Que mais quer que eu taça? Dançar nua na Slussplan? E.

P. S. Suponho que saiba o que está fazendo. Mas o que eu faço com Dahl-man?]

De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Não faça nada com Dahlman. Deixe-o ir embora. O Monopol não sobreviverá por muito tempo. Arranje substitutos para esse número. E contrate uni novo secretário de redação, pelo amor de Deus! M.

P. S. Gostaria muito de te ver dançar nua na Slussplan,]

De erika.berger@millennium.se

A mikael.blomkvist@millennium.se:

[Para o strip-tease em público, não conte comigo. Mas sempre fizemos as contratações juntos. Ricky.]

De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Sempre estivemos de acordo sobre a pessoa a contratar. E continuaremos de acordo, seja quem for que você contrate. Vamos encurralar Wennerström. A história toda é essa. Mas deixe-me terminá-la em paz. M.)

No começo de outubro, Lisbeth Salander leu um pequeno artigo que encontrou no site do Hedestads-Kuriren, e informou Mikael. Isabella Vanger havia falecido após uma breve doença. Sua morte era lamentada pela filha, Harriet Vanger, que recentemente voltara da Austrália.

Mensagem eletrônica encriptada de erika.berger@millennium.se a mikael.blomkvist@millennium.se.

[Oi, Mikael.

Harriet Vanger passou hoje na redação para me ver. Telefonou cinco minutos antes de chegar e me pegou totalmente desprevenida. Uma bela mulher, muito elegante e de olhar frio.

Veio anunciar que participaria do conselho administrativo no lugar de Martin Vanger, que estava substituindo Henrik. Mostrou-se cortês, amável, e me garantiu que o grupo Vanger não tem nenhuma intenção de abandonar nosso acordo; ao contrário, a família apoia os compromissos de Henrik com a revista. Pediu para ver a redação e quis saber como estavam as coisas.

Eu disse a verdade. Que tenho a impressão de estar andando sobre areia movediça, que você me proibiu de ir a Sandhamn e que eu não sei sobre o que você está escrevendo, a não ser que espera encurralar Wennerström. (Acho que eu podia dizer isso. Afinal, ela faz parte do conselho.) Ela levantou uma sobrancelha, sorriu e perguntou se eu tinha dúvidas sobre o seu êxito. Como responder a essa pergunta? Eu disse que estaria bem mais calma se soubesse o que você está tramando. E que evidentemente confio em você, mas que você me deixa louca!

Perguntei se ela sabia o que você está escrevendo. Ela respondeu que não, mas acrescentou que o achava muito perspicaz, com uma maneira de refletir inovadora (palavras dela).

Eu também disse ter concluído que algo de dramático havia acontecido em Hedestad no passado, e que estava muito curiosa para saber mais. Ela respondeu que eu e você parecíamos ter uma relação especial e que você me contaria tudo assim que tivesse tempo. Depois me perguntou se podia confiar em mim. O que eu podia dizer? Ela faz parte do conselho da Millennium e você não me deu nenhuma informação para que eu pudesse estabelecer uma conduta nesse caso.

Então ela disse uma coisa estranha: me pediu que eu não julgasse nem a ela nem a você com demasiada severidade. Que tinha uma dívida de gratidão com você e que gostaria muito de que ela e eu fôssemos amigas. E prometeu me contar a história oportunamente, se você não contasse. Acho que gosto muito dela, mas não sei muito bom se posso confiar. Erika.

P. S. Sinto sua falta. Tenho a impressão de que aconteceu algo terrível em Hedestad. Christer disse que você está com uma marca estranha — de estrangulamento? — no pescoço.]

De mikael.blomkvist@millennium.se

A erika.berger@millennium.se:

[Oi, Ricky. A história de Harriet é tão triste, tão lamentável, que você nem vai acreditar. Seria melhor que ela mesma te contasse. De minha parte, coloquei-a um pouco de lado na minha cabeça.

Mas pode confiar em Harriet Vanger, eu garanto. Ela é sincera quando diz ter uma dívida de gratidão comigo, e pode crer que ela nunca fará nada que possa prejudicar a Millennium. Se gosta dela, seja sua amiga; se não gosta, deixe pra lá. Mas ela merece respeito. É uma mulher que passou por duras provas e sinto uma grande simpatia por ela. M.]

No dia seguinte, Mikael recebeu mais um e-mail.

De harriet.vanger@vangerindustries.com

a mikael.blomkvist@millennium.se:

[Oi, Mikael. Há semanas venho tentando encontrar uma horinha para te dar notícias, mas o tempo passa rápido. Você saiu tão depressa de Hedeby que nem pude me despedir.

Desde que voltei à Suécia, estou soterrada por uma quantidade de impressões e por muito trabalho. As empresas Vanger estão um caos só, e trabalhei duro com Henrik para pôr ordem nos negócios. Ontem visitei a Millennium; daqui em diante representarei Henrik no conselho. Ele me descreveu em detalhe a situação da revista e a sua.

Espero que aceite me ver desembarcar assim. Se não me quer no conselho (ou a alguém mais da família), vou entender, mas garanto que farei tudo para servir a Millennium. Tenho uma enorme dívida com você e asseguro que minhas intenções serão sempre as melhores. Conheci sua amiga Erika Berger. Não sei muito bem qual foi a opinião dela a meu respeito e fiquei surpresa de que não tenha contado a ela o que aconteceu.

Quero muito ser sua amiga. Se está disposto, é claro, a frequentar os membros da família Vanger. Um abraço. Harriet.

P. S. Erika deu a entender que você pretende atacar novamente Wennerström. Dirch Frode me contou como Henrik te levou na conversa. Que posso dizer? Apenas que sinto muito. Se houver algo que eu possa fazer, diga-me.]

De mikael.blomkvist@millennium.se

A harriet.vanger@vangerindustries.com

[Oi, Harriet. Desapareci de repente de Hedeby e neste momento estou trabalhando no que deveria ter feito este ano. Você será informada antes de o texto ir para a impressão, mas acho que posso adiantar que os problemas deste último ano logo vão terminar.

Espero que você e Erika se tornem amigas e evidentemente não há problema nenhum de você "desembarcar" no conselho da Millennium. Vou contar o que aconteceu a Erika. Só que neste momento não tenho disposição nem tempo, ainda gostaria de manter uma certa distância.

Continuamos em contato. Um abraço. Mikael.]

Lisbeth não mostrava muito interesse pelo que Mikael estava escrevendo. Ela levantou a cabeça do seu livro. Mikael acabara de dizer algo que ela não ouvira. Pediu que ele repetisse.

— Desculpe. Estava pensando em voz alta. Eu dizia que é o cúmulo.

— O que é o cúmulo?

— Wennerström teve um caso com uma servente de vinte e dois anos que ele engravidou. Não leu a correspondência dele com o advogado?

— Querido Mikael, existem dez anos de correspondências, e-mails, contratos, relatórios de viagens e não sei mais o que no disco rígido. O seu Wennerström não me fascina a ponto de eu querer guardar na cabeça seis gigas de bobagens. Li uma parte ínfima, apenas para satisfazer a minha curiosidade, e foi o suficiente para entender que esse cara é um gângster.

— Concordo. Mas escute isso: ele a engravidou em 1997. Quando ela exigiu uma compensação, os advogados de Wennerström despacharam alguém para convencê-la a abortar. Suponho que a intenção era oferecer-lhe dinheiro, mas ela não aceitou. Então a persuasão tomou outro caminho: um capanga qualquer manteve a cabeça dela mergulhada numa banheira até que aceitasse deixar Wennerström em paz. E esse advogado idiota do Wennerström escreveu isso num e-mail! Encriptado, é verdade, mas mesmo assim... O nível de inteligência dessa gente é muito baixo.

— O que aconteceu com a moça?

— Abortou. Wennerström ficou satisfeito.

Lisbeth Salander não disse nada durante dez minutos. Seus olhos ficaram de repente sombrios.

— Mais um homem que odiava as mulheres — murmurou enfim. Mikael não a ouviu.

Ela pegou os CDs e passou os dias seguintes vasculhando o correio eletrônico de Wennerström, assim como outros documentos. Enquanto Mikael continuava seu trabalho, Lisbeth estava no mezanino com seu Powerbook sobre os joelhos, refletindo sobre o estranho império Wennerström.

Ocorrera-lhe um pensamento curioso, do qual agora não conseguia mais se afastar. Antes de mais nada, perguntou-se por que não havia tido essa ideia antes.

Num dia de fins de outubro, Mikael imprimiu a última página e desligou o computador por volta das onze da manhã. Sem uma palavra, subiu até o mezanino e entregou a Lisbeth uma pilha de papéis. Depois foi dormir. Ela o despertou no final da tarde e passou-lhe suas observações.

Pouco depois das duas da manhã, Mikael fez uma última correção no texto.

No dia seguinte, fechou as janelas da cabana e trancou a porta. As férias de Lisbeth haviam terminado. Voltaram juntos para Estocolmo.

Antes de chegar a Estocolmo, Mikael precisava conversar com Lisbeth sobre uma questão delicada. Entrou no assunto quando tomavam café na balsa de Vaxholm.

— A questão é o que devo contar a Erika. Ela vai se recusar a publicar isto se eu não explicar como obtive as informações.

Erika Berger! A amante de Mikael há muitos anos e sua chefe. Lisbeth nunca a vira e não tinha muita certeza se queria vê-la. Erika Berger era um ligeiro aborrecimento em sua vida.

— O que ela sabe de mim?

— Nada. — Ele suspirou. — Venho evitando Erika desde o verão. Não consegui contar a ela o que houve em Hedestad porque estou muito envergonhado. Ela está frustrada com a pouca informação que lhe dei. Sabe, evidentemente, que me recolhi em Sandhamn para escrever esse texto, mas não faz ideia do seu conteúdo.

— Humm.

— Daqui a algumas horas ela estará com o texto nas mãos e vai me encher de perguntas. A questão é: o que devo dizer a ela?

— O que você tem vontade de dizer?

— A verdade.

Uma ruga surgiu entre as sobrancelhas de Lisbeth.

— Escute, Lisbeth: eu e Erika discutimos o tempo todo, isso já é um hábito nosso. Mas temos uma confiança ilimitada um no outro. Ela é absolutamente confiável. Você é uma fonte. Ela preferiria morrer a traí-la.

— E a quem mais você vai precisar contar?

— A ninguém mais. Nós dois levaremos isso para o túmulo. Se você se opuser, não revelarei o segredo a ela. Contudo, não tenho a intenção de mentir para Erika e de inventar uma fonte.

Lisbeth refletiu até a balsa atracar ao pé do Grande Hotel. Análise das consequências. Com relutância, ela acabou permitindo que Mikael a apresentasse a Erika. Ele ligou o celular e chamou.

Erika recebeu o telefonema de Mikael em meio a um almoço profissional com Malu Eriksson, que ela pretendia contratar como secretária de redação. Malu tinha vinte e nove anos e havia trabalhado como substituta durante cinco anos. Nunca teve emprego fixo e começava a perder as esperanças de encontrar um. Nenhum anúncio havia sido feito para o cargo; Erika entrou em contato com Malu através de um velho colega jornalista. Chamou-a no mesmo dia em que Malu terminava uma substituição, para saber se lhe interessava um bico na Millennium.

— É apenas por três meses — disse Erika. — Mas, se der certo, posso vir a contratá-la.

— Ouvi boatos de que a Millennium em breve vai fechar.

— Não acredite em boatos.

— Esse Dahlman que devo substituir... — Malu hesitou. — Ele vai para um dos jornais de Hans-Erik Wennerström...

Erika assentiu com a cabeça.

— Não é segredo para ninguém nesse meio que estamos em litígio com Wennerström. Ele não gosta de pessoas que trabalham na Millennium.

— Isso significa que, se eu aceitar o cargo, também vou ser incluída nessa categoria.

— É muito provável que sim.

— Mas Dahlman conseguiu trabalho no Finansmagasinet...

— Pode-se dizer que é a retribuição de Wennerström pelos serviços prestados por Dahlman. Ainda está interessada?

Malu refletiu um instante e depois assentiu com a cabeça.

— Quer que eu comece quando?

Foi nesse momento que Mikael Blomkvist chamou, interrompendo a entrevista de contratação.

Erika utilizou as próprias chaves para abrir a porta do apartamento de Mikael. Era a primeira vez, desde a breve aparição dele no final de junho, que ela o encontrava. Entrou na sala e viu uma jovem de uma magreza anoréxica sentada no sofá, vestindo uma jaqueta de couro gasto e com os pés apoiados na mesinha de centro. A princípio, deu uns quinze anos à moça, até ver seus olhos. Contemplava essa aparição quando Mikael chegou trazendo café e biscoitos.

Mikael e Erika se examinaram.

— Desculpe meu comportamento estranho — disse Mikael.

Erika inclinou a cabeça para o lado. Alguma coisa havia mudado em Mikael. Parecia mais sofrido, mais magro. Seus olhos estavam envergonhados, e por um breve segundo ele evitou o olhar dela. Erika olhou para o pescoço, onde se via uma mancha amarelada, pálida mas muito distinta.

— Andei evitando você. É uma longa história e não estou muito orgulhoso do meu papel nela. Mas falaremos disso mais tarde... Agora, gostaria de apresentá-la a essa jovem. Erika, essa é Lisbeth Salander. Lisbeth, Erika Berger é a diretora de publicação da Millennium e minha melhor amiga.

Lisbeth observou as roupas elegantes e a aparência segura de Erika, e em menos de dez segundos concluiu que ela não seria sua melhor amiga.

A reunião durou cinco horas. Erika telefonou duas vezes para desmarcar outras reuniões. Dedicou uma hora à leitura de algumas partes do texto que Mikael lhe pôs nas mãos. Tinha mil perguntas a fazer, mas percebeu que levaria semanas antes de obter uma resposta. O importante era o texto, que ela acabou colocando a seu lado. Se uma parte mínima daquelas afirmações fosse correta, eles estavam diante de uma situação totalmente nova.

Erika olhou para Mikael. Nunca duvidara da honestidade dele, mas bastou um segundo para sentir uma vertigem e se perguntar se o caso Wennerström não teria afetado a mente dele — se não o fizera imaginar coisas. No mesmo instante, Mikael lhe mostrou duas caixas cheias de dados impressos. Erika empalideceu. Naturalmente quis saber como havia obtido aquele material.

Foi preciso um bom tempo para convencê-la de que a estranha jovem, que ainda não pronunciara uma só palavra, tinha acesso irrestrito ao computador de Hans-Erik Wennerström. E não só isso: também havia pirateado vários dos computadores de seus advogados e colaboradores próximos.

A reação natural de Erika foi dizer que eles não podiam utilizar esse material, pois fora obtido por meios ilícitos.

Mas isso não era um empecilho. Mikael lembrou-a de que eles não eram obrigados a declarar como haviam obtido as informações. Podiam muito bem contar com uma fonte que tivera acesso ao computador de Wennerström e copiara seu disco rígido em alguns CDs.

Erika logo se deu conta da arma que tinha nas mãos. Sentia-se exausta e gostaria de fazer algumas perguntas, mas não sabia por onde começar. Por fim, deixou-se cair no sofá e balançou a cabeça.

— Mikael, o que aconteceu em Hedestad?

Lisbeth Salander levantou vivamente a cabeça. Mikael ficou em silêncio por um longo tempo. Respondeu fazendo outra pergunta.

— Como está se entendendo com Harriet Vanger?

— Bem, eu acho. Estive com ela duas vezes. Christer e eu fomos a Hedestad na semana passada para uma reunião do conselho administrativo. Exageramos um pouco no vinho, ficamos bem embriagados.

— E como foi a reunião?

— Harriet cumpre suas promessas.

— Ricky, sei que você está frustrada de ver que estou me esquivando e inventando pretextos para não falar. Nunca tivemos segredos um para o outro e, de repente, tenho seis meses da minha vida que... não consigo te contar.

Erika olhou Mikael bem nos olhos. Conhecia-o de cor, mas o que viu em seus olhos era algo completamente novo. Ele parecia suplicar, implorar que ela não perguntasse. Ela abriu a boca e olhou para ele totalmente desamparada. Lisbeth observava essa conversa muda com um olhar neutro. Não se intrometeu.

— Foi tão catastrófico assim?

— Pior. Tenho medo dessa conversa. Prometo te contar, mas passei vários meses reprimindo meus sentimentos e deixando meu interesse se voltar todo para Wennerström... Ainda não estou inteiramente preparado. Preferiria que Harriet tivesse te contado.

— O que são essas marcas no pescoço?

— Lisbeth salvou a minha vida. Se não fosse ela, eu estaria morto agora. Erika arregalou os olhos. Ela olhou a moça da jaqueta de couro.

— E agora você precisa fazer um acordo com ela. Ela é a nossa fonte. Erika ficou imóvel durante um bom tempo, refletindo. Então fez uma coisa que desconcertou Mikael e chocou Lisbeth, e que surpreendeu a ela própria também. O tempo todo em que estivera junto à mesa da sala de Mikael, ela sentira o olhar de Lisbeth Salander. Uma moça taciturna com vibrações hostis.

Erika levantou-se, contornou a mesa e tomou Lisbeth nos braços. Lisbeth defendeu-se como uma minhoca sendo enfiada num anzol.


29. SÁBADO 1° DE NOVEMBRO — TERÇA-FEIRA 25 DE NOVEMBRO

Lisbeth Salander navegava no ciberimpério de Hans-Erik Wennerström, Estava grudada à tela do computador havia mais de onze horas. A ideia vaga que se materializara num canto inexplorado de seu cérebro, na última semana em Sandhamn, transformara-se numa atividade obsessiva. Durante quatro semanas, isolou-se em seu apartamento e ignorou todos os chamados de Dragan Armanskij. Passou de doze a quinze horas por dia na frente do monitor e, no resto do tempo em que estava acordada, pensava no mesmo problema.

Ao longo do mês, teve contatos esporádicos com Mikael Blomkvist; ele estava tão obcecado e ocupado quanto ela com seu trabalho na redação da Millennium. Duas ou três vezes por semana conversavam por telefone e ela o mantinha continuamente informado sobre a correspondência de Wennerström e de seus outros negócios.

Pela centésima vez, repassou cada detalhe. Não temia ter esquecido alguma coisa, mas não estava certa de haver entendido o que reunia todas aquelas conexões complexas.

O império Wennerström, tão badalado na mídia, era um organismo vivo, informe, pulsante, que não parava de mudar de aparência. Consistia em títulos, ações, parcerias, juros de empréstimos, juros de receita, hipotecas, contas, transferências e uma série de outras operações. Uma parte imensa dos ativos estava aplicada em empresas-fantasmas imbricadas umas nas outras.

As análises mais entusiasmadas dos economistas calculavam o valor do grupo Wennerström em mais de novecentos bilhões de coroas. Era um blefe, ou pelo menos um número muito exagerado. Mas Wennerström certamente não tinha do que se queixar. Lisbeth Salander calculou os verdadeiros recursos em noventa ou mesmo cem bilhões de coroas, o que também não era pouco. Um exame sério do grupo exigiria anos. Ao todo, Salander identificou cerca de três mil contas e ativos bancários diferentes no mundo inteiro. Wenneström dedicava-se à fraude em tão grande escala que não se tratava mais de crime, e sim de negócios.

Em alguma parte desse organismo Wennerströmiano, havia também substância. Três fundos apareciam continuamente na hierarquia. Os ativos suecos eram inatacáveis e autênticos e estavam disponíveis para o exame de todos, com balanços e auditorias. A atividade americana era sólida, e um banco em Nova York servia de base para a movimentação de todo o dinheiro. Mas o interessante da história eram as empresas-fantasmas em cantos do mundo como Gibraltar, Chipre e Macau. Wennerström era como um bazar onde se praticava o tráfico de armas, a lavagem de dinheiro de empresas suspeitas na Colômbia e de negócios muito pouco ortodoxos na Rússia.

Uma conta anônima nas ilhas Caimãs tinha uma particularidade: era controlada pessoalmente por Wennerström e não estava conectada às demais empresas. Algumas frações de milésimo de cada negócio feito por Wennerström pingava o tempo todo na conta das ilhas Caimãs através das empresas-fantasmas.

Salander trabalhava como que hipnotizada. Contas — clique — e-mails — clique — balanços — clique. Anotou as últimas transferências. Acompanhou a trajetória de uma pequena transação do Japão a Cingapura, depois para as ilhas Caimãs através de Luxemburgo. Percebeu seu funcionamento. Ela era como uma parte dos impulsos do ciberespaço. Minúsculas mudanças. O último e-mail, uma breve mensagem que tratava de uma questão acessória, fora enviado às dez da noite. O programa de encriptação PGP era uma piada para ela, que parasitava o computador. Leu claramente a mensagem:

[Berger parou de correr atrás de anúncios. Ela desistiu ou tem outra coisa no bolso? O informante na redação confirmou que eles estão em queda livre, mas parece que contrataram alguém. Informe-se sobre o que está havendo. Blomkvist passou as últimas semanas escrevendo como um louco em Sandhamn, mas ninguém sabe o quê. Ele apareceu na redação há poucos dias. Pode me conseguir as provas do próximo número? HEW.]

Nada de dramático. Ele que fique matutando. — Você já tá fodido, meu caro!

Às cinco e meia ela se desconectou, desligou o computador e procurou outro maço de cigarros. Havia bebido cinco Cocas durante a noite, foi pegar uma sexta e instalou-se no sofá. Vestia só calcinha e camiseta de camuflagem desbotada da Soldier of Fortune Magazine, com os dizeres: Kill them all and let God sort them out. Começou a sentir frio e pegou uma manta para se cobrir.

Sentia-se meio chapada, como se tivesse ingerido algum entorpecente. Fixou o olhar numa lâmpada diante da janela e ficou sem se mexer enquanto seu cérebro trabalhava sob pressão. Mamãe — clique — irmãzinha — clique — Mimmi — clique — Holger Palmgren. Evil Fingers. E Armanskij. O trabalho. Harriet Vanger. Clique. Martin Vanger. Clique. O taco de golfe. Clique. Dr. Nils Bjurman. Clique. Um monte de detalhes que ela não conseguia esquecer nem se tentasse.

Perguntou-se se Bjurman ainda estaria se despindo diante de uma mulher e, nesse caso, como estaria explicando a tatuagem na barriga. E como faria para não tirar a roupa da próxima vez que fosse ao médico.

E depois Mikael Blomkvist. Clique.

Ela o considerava um homem bom, em alguns momentos com um complexo de primeiro aluno da classe um pouco exagerado. E, infelizmente, de uma ingenuidade insuportável em algumas questões morais elementares. Ele tinha uma natureza indulgente e pronta a perdoar, que buscava explicações e desculpas psicológicas para as atitudes dos outros e que jamais entenderia que as feras deste mundo só conhecem uma linguagem. Ela sentia quase um desconfortável instinto de proteção quando pensava nele.

Não se lembrou em que momento adormeceu, mas despertou às nove da manhã seguinte com torcicolo, a cabeça apoiada de mau jeito na parede atrás do sofá. Foi cambaleando para o quarto e voltou a dormir.

* * *

Sem dúvida nenhuma, era a reportagem da vida deles. Pela primeira vez em um ano e meio, Erika estava feliz como só pode estar um proprietário de veículo que tem um furo sensacional no forno. Ela revisava uma última vez o texto com Mikael, quando Lisbeth Salander o chamou no celular.

— Esqueci de te dizer que Wennerström está começando a se preocupar com o que você andou escrevendo nesse tempo e pediu as provas do próximo número.

— Como é que você soube... Ah, esqueça! Tem ideia do que ele pretende fazer?

— Não. Apenas uma suposição lógica. Mikael refletiu alguns instantes.

— A gráfica! — exclamou. Erika levantou as sobrancelhas.

— Se o pessoal da redação ficou mesmo de boca fechada, não há muitas outras possibilidades. A menos que um dos capangas dele faça uma visita noturna à redação.

Mikael virou-se para Erika.

— Arranje outra gráfica para a próxima edição. Agora. E ligue para Dragan Armanskij: quero vigias noturnos para a semana que vem.

Ligou de volta para Lisbeth.

— Obrigado, Sally.

— Isso vale quanto?

— O que quer dizer?

— A informação, quanto vale?

— Quanto quer?

— Gostaria que discutíssemos isso tomando um café. Agora.


Encontraram-se no Bar-Café na Hornsgatan. Salander tinha um ar tão sério que Mikael, ao sentar-se no banquinho ao lado dela, sentiu uma certa inquietação. Como sempre, ela foi direto ao ponto.

— Preciso de um dinheiro emprestado.

Mikael exibiu um de seus sorrisos mais retardados e puxou a carteira.

— Claro. Quanto quer?

— Cento e vinte mil coroas.

— Uau! — Repôs a carteira no bolso. — Não tenho tanto assim comigo.

— Não estou brincando. Preciso de um empréstimo de cento e vinte mil coroas por... digamos, seis semanas. Surgiu uma oportunidade de investimento, mas não tenho a quem recorrer. Você tem uma conta com cento e quarenta mil coroas no momento. Devolverei o dinheiro.

Mikael não comentou nada sobre Lisbeth ter quebrado o sigilo bancário de sua conta e descoberto quanto dinheiro ele tinha. Ele acessava o banco pela internet e a resposta era evidente.

— Não precisa me pedir dinheiro emprestado — ele respondeu. — Ainda não discutimos a sua parte, mas ela é bem maior do que esse empréstimo que está querendo.

— Que parte?

— Sally, tenho honorários insanos para receber de Henrik Vanger e vamos acertar isso no final do ano. Sem você eu estaria morto e a Millennium teria afundado. Pretendo dividir meu pagamento com você. Meio a meio.

Lisbeth Salander o examinou com o olhar. Havia uma ruga em sua testa. Mikael já estava se habituando com essas pausas silenciosas. Por fim ela balançou a cabeça.

— Não quero o seu dinheiro.

— Mas...

— Não quero uma única coroa. — Ela sorriu de esguelha, de repente. — A menos que elas venham sob a forma de um presente de aniversário.

— Agora é que me dei conta que não sei quando é o seu aniversário.

— O jornalista é você. Descubra.

— Sinceramente, Sally, estou falando sério quando digo que quero dividir o dinheiro com você.

— Eu também estou falando sério. Não quero o seu dinheiro. Quero as cento e vinte mil coroas emprestadas, e preciso delas para amanhã.

Mikael Blomkvist calou-se. Ela nem quer saber qual é o valor da sua parte.

— Sally, irei hoje ao banco com você e emprestarei o que você me pede. Mas no fim do ano teremos uma outra conversa sobre a sua parte. — Ele levantou a mão. — Por falar nisso, quando é o seu aniversário?

— Trinta de abril — ela respondeu. — Não é perfeito? Sempre saio com uma vassoura entre as pernas para festejar com as feiticeiras a noite de santa Walpurgis.

Ela aterrissou em Zurique às sete e meia da noite e tomou um táxi até o hotel Matterhorn. Havia feito uma reserva sob o nome de Irene Nesser e apresentou um passaporte norueguês com esse nome. Irene Nesser tinha cabelos louros um pouco compridos. Ela comprara a peruca em Estocolmo e utilizara dez mil coroas do empréstimo de Mikael Blomkvist para adquirir dois passaportes através de seus contatos obscuros com a rede internacional de Praga.

Subiu para o seu quarto, trancou a porta e se despiu. Estendeu-se na cama e ficou olhando para o teto do quarto, cuja diária era de mil e seiscentas coroas. Sentiu-se vazia. Já havia gasto a metade da quantia que Mikael emprestara e, embora tivesse juntado o que tinha em sua própria poupança, seu orçamento era estreito. Parou de pensar e adormeceu imediatamente.

Despertou pouco depois das cinco da manhã. Primeiro tomou um banho e depois passou um bom tempo camuflando a tatuagem do pescoço com uma espessa camada de base e pó. O segundo item da lista era uma hora marcada num salão de beleza, no saguão de um hotel consideravelmente bem mais caro, às seis e meia. Comprou mais uma peruca loura, com franja reta, depois foi à manicure para aplicar falsas unhas vermelhas sobre suas unhas roídas, falsos cílios, mais pó, blush, batom e outros embelezamentos. Custo: um pouco mais de oito mil coroas.

Pagou com um cartão de crédito de Verônica Sholes e apresentou como identidade um passaporte inglês com esse nome.

A parada seguinte foi na Camille's House of Fashion, cento e cinquenta metros adiante. Uma hora depois, saiu vestida com botas pretas, saia cor de areia combinando com a blusa, casaco curto e boina. Apenas peças caras, de grife. Teve o cuidado de deixar que a vendedora escolhesse as roupas. Comprou ainda uma luxuosa maleta de couro e uma bolsa de mão Samsonite. Para completar, brincos discretos e uma corrente de ouro ao redor do pescoço. O cartão de crédito acusou um débito de quarenta e quatro mil coroas.

Pela primeira vez na vida, Lisbeth Salander tinha também um busto que, quando se olhou no espelho da porta, a fez perder a respiração. Os seios eram tão falsos como a identidade de Verônica Sholes. Eram de borracha e tinham sido comprados numa loja de Copenhague frequentada por travestis.

Lisbeth Salander estava pronta para o combate.

Pouco depois das nove, ela caminhou duas quadras até o respeitável hotel Zimmertal, onde reservara um quarto em nome de Verônica Sholes. Deu o equivalente a cem coroas de gorjeta a um rapaz que carregou a maleta que acabara de comprar e onde estava sua sacola de viagem. A suíte era pequena e a diária era de apenas vinte e duas mil coroas. Ela fizera a reserva para uma noite. Quando ficou sozinha, olhou ao redor. A janela oferecia uma vista esplêndida para o lago de Zurique, o que não a interessou nem um pouco. Passou os cinco minutos seguintes examinando-se, de olhos arregalados, num espelho. Via uma pessoa totalmente diferente. Verônica Sholes, de peitos generosos e cabelos com franja reta, tinha mais maquiagem no rosto que a que Lisbeth usaria em um mês. Ela parecia... diferente.

Às nove e meia, desceu ao bar do hotel para tomar o café-da-manhã, que consistiu em duas xícaras de café e um bagel com geléia. Custo: duzentas e dez coroas. Mas não são mesmo doidas as pessoas que pagam isso?

Pouco antes das dez da manhã, Verônica Sholes pousou sua xícara de café na mesa, pegou seu telefone celular e digitou um número que a conectava ao Havaí. Depois de três chamadas, ouviu um sinal que confirmava a conexão via modem. Verônica Sholes respondeu digitando um código de seis algarismos no celular e enviou uma mensagem de texto com a instrução para que fosse aberto um programa que Lisbeth Salander havia preparado exatamente para essa finalidade.

Em Honolulu, o programa foi acionado num site anônimo de um servidor formalmente situado na universidade. O programa era simples. Sua única função consistia em enviar instruções que abriam outro programa em outro servidor, no caso um site comercial muito conhecido que oferecia serviços pela internet na Holanda. Esse programa, por sua vez, tinha como tarefa procurar o disco rígido espelhado de Hans-Erik Wennerström e assumir o comando do programa que gerenciava o conteúdo de mais de três mil contas bancárias no mundo inteiro.

Somente uma apresentava algum interesse. Lisbeth Salander observara que Wennerström verificava essa conta duas ou três vezes por semana. Se ele fosse buscar justamente esse arquivo em seu computador, tudo pareceria normal. O programa assinalava pequenas mudanças esperadas, calculadas segundo a evolução da conta nos últimos seis meses. Se Wennerström entrasse na conta nas próximas quarenta e oito horas e emitisse ordens de pagamento ou de transferência, o programa registraria obedientemente esses pedidos. Mas na verdade a mudança ocorreria apenas no disco rígido espelhado na Holanda.

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