III. FUSÕES

16 DE MAIO A 14 DE JULHO

Na Suécia, 13% das mulheres foram vítimas de violências sexuais cometidas fora de uma relação sexual.

15. SEXTA-FEIRA 16 DE MAIO — SÁBADO 31 DE MAIO

Mikael Blomkvist deixou o centro de detenção de Rullaker na sexta-feira 16 de maio, dois meses depois de ter sido preso. No mesmo dia em que se apresentou na prisão, ele havia entrado, sem muitas expectativas, com um pedido de redução da pena. Nunca soube dos segredos administrativos de sua libertação, mas imaginou um relatório mencionando que ele não utilizara as licenças de fim de semana e que o centro de detenção abrigava quarenta e duas pessoas, quando o número máximo de vagas era trinta e um. O fato é que o diretor da prisão — um ex-exilado polonês de quarenta anos chamado Peter Sarowski com quem Mikael se entendeu muito bem — assinou uma recomendação de redução da pena.

O período passado em Rullaker foi calmo e agradável. O estabelecimento, como dizia o próprio Sarowski, era uma prisão para vadios e motoristas embriagados, e não para criminosos de verdade. As rotinas diárias lembravam o funcionamento de um albergue da juventude. Os quarenta e um companheiros de Mikael, metade dos quais imigrantes da segunda geração, viam-no como uma espécie de ave exótica — e com toda a razão. Ele era o único prisioneiro de quem falavam na tevê, o que lhe conferiu alguma importância, embora nenhum deles o considerasse um criminoso de peso.

Tampouco a direção do estabelecimento. Desde o primeiro dia, Mikael foi chamado para algumas conversas; propuseram-lhe diferentes atividades, cursos de treinamento ou possibilidades de outros estudos, bem como uma orientação profissional. Mikael respondeu que não precisava de inserção social, que concluíra os estudos havia muitos anos e que já tinha um emprego. Em contrapartida, pediu autorização para conservar seu notebook na cela, a fim de continuar trabalhando no livro que estava sendo pago para escrever. O pedido foi aceito imediatamente e Sarowski ofereceu-lhe até mesmo um armário com cadeado para que ele pudesse deixar o computador na cela sem o risco de roubo ou vandalismos. Mas era mínimo o risco de um dos detentos querer se divertir com esse tipo de coisa — ao contrário, eles estendiam uma mão protetora sobre Mikael.

Foi o que lhe permitiu passar dois meses relativamente agradáveis, trabalhando cerca de seis horas por dia na crônica da família Vanger, com interrupções para algumas horas de trabalho ou de recreação. Mikael e dois colegas, um proveniente de Skövde e o outro com raízes no Chile, tinham como tarefa limpar diariamente o ginásio do centro de detenção. Recreação significava ver tevê, jogar cartas ou fazer musculação. Mikael descobriu que não se saía tão mal no pôquer, mas todos os dias costumava perder algumas moedas de cinquenta centavos. O regulamento autorizava o jogo desde que a bolada não ultrapassasse cinco coroas.

O anúncio de sua libertação foi comunicado na véspera; Sarowski o convocou à sua sala para um brinde com aquavita. À noite, Mikael juntou suas roupas e seus cadernos.

Uma vez libertado, Mikael foi diretamente para sua casa em Hedeby. Ao cruzar a ponte, ouviu um miado e andou os últimos metros acompanhado pelo gato ruivo, que lhe dava boas-vindas esfregando-se em suas pernas.

— Certo, entre — disse. — Mas não tive tempo de comprar leite.

Desfez a mala. Tinha a impressão de estar voltando de férias e se deu conta de que a companhia de Sarowski e dos outros detentos lhe fazia falta. Podia parecer estranho, mas a temporada em Rullaker fora agradável. E a libertação ocorrera de forma tão inesperada que não havia avisado ninguém.

Eram pouco mais de seis da tarde. Correu até o supermercado para comprar produtos básicos, antes que fechasse. Na volta, ligou para Erika no celular, mas só ouviu a voz da secretária eletrônica informando que no momento ela não estava disponível. Deixou um recado propondo que se falassem no dia seguinte.

Depois foi visitar Henrik Vanger. O próprio Henrik abriu a porta e ficou estupefato ao vê-lo.

— Você fugiu? — exclamou o velho.

— Liberdade antecipada, coisa absolutamente legal.

— Ah, mas que surpresa boa!

— Para mim também. Fiquei sabendo ontem.

Olharam-se durante alguns segundos. Então o velho surpreendeu Mikael enlaçando-o e estreitando-o com força nos braços.

— Eu estava me preparando para jantar. Não quer me fazer companhia?

Anna serviu omelete com toicinho e salada verde. Ficaram na sala de jantar por cerca de duas horas. Mikael contou até onde chegara na crônica familiar e indicou os pontos onde havia lacunas e falta de informação. Não falaram de Harriet Vanger, mas estenderam-se demoradamente sobre a Millennium.

Fizemos três reuniões do conselho administrativo. A senhorita Berger e seu sócio Christer Malm tiveram a delicadeza de realizar duas reuniões aqui, e Dirch representou-me numa reunião em Estocolmo. É muito cansativo para mim deslocar-me para tão longe, confesso que gostaria de ter alguns anos a menos. Mas tentarei ir até lá no próximo verão.

— Eles podem fazer as reuniões aqui sem problema — disse Mikael. — E o que está achando de ser sócio da revista?

Henrik Vanger fingiu um sorriso.

— É uma das coisas mais divertidas que me aconteceram em muitos anos, você sabe. Examinei as finanças e a coisa não está tão mal. Não precisarei investir tanto dinheiro quanto eu pensava. A lacuna entre receitas e despesas está diminuindo.

— Falei com Erika por telefone na semana passada. Pelo que entendi, a publicidade voltou a crescer.

Henrik concordou com a cabeça.

— A tendência está se invertendo, mas levará algum tempo. No início, foram empresas do grupo Vanger que compraram páginas. Mas dois ex-clientes, uma operadora de telefonia e uma agência de viagens, já estão de volta. — Ele deu um sorriso largo. — Também fizemos uma campanha mais personalizada junto aos velhos inimigos de Wennerström. E a lista é comprida, acredite.

— Tem notícias de Wennerström?

— Não, não exatamente. Mas espalhamos a informação de que Wennerström está organizando um boicote contra a Millennium. E as pessoas estão começando a achá-lo mesquinho. Parece que um jornalista do Dagens Nyheter tocou nessa questão e levou uma descompostura.

— Você se diverte com isso.

— Não é a palavra exata. É o que eu deveria ter feito vários anos atrás.

— Mas o que há entre você e Wennerström?

— Não se apresse. Saberá isso no fim do ano.

O ar transmitia uma agradável sensação de primavera. Quando Mikael deixou Henrik por volta das nove, já era noite. Hesitou um instante, depois foi bater à porta de Cecilia Vanger.

Não tinha certeza de que a encontraria. Cecilia arregalou os olhos e imediatamente pareceu incomodada, mas o convidou a entrar no vestíbulo. Ambos estavam embaraçados. Ela também perguntou se ele fugira e ele explicou o que houve.

— Queria só lhe dar um alô. Estou atrapalhando?

Cecilia evitou o olhar dele. Mikael logo percebeu que ela não estava particularmente feliz em vê-lo.

— Não... não, entre. Quer um café?

— Seria ótimo.

Acompanhou-a até a cozinha. Ela virou-lhe as costas enquanto punha água na cafeteira. Mikael aproximou-se e pôs a mão em seu ombro. Ela ficou dura.

— Cecilia, eu diria que você não está com nenhuma vontade de me oferecer um café.

— Eu te esperava daqui a um mês — disse ela. — Você me pegou desprevenida.

Ele a sentia pouco à vontade. Girou o corpo dela para olhá-la nos olhos. Ficaram calados por um breve instante. Ela continuava recusando-se a olhar para ele.

— Cecilia, esqueça o café. O que está havendo? Ela balançou a cabeça e respirou fundo.

— Mikael, quero que vá embora. Não pergunte nada. Simplesmente vá embora.

Mikael voltou para casa, mas ficou indeciso diante da cerca do jardim. Em vez de entrar, foi até a beira da água ao lado da ponte e sentou-se numa pedra. Acendeu um cigarro, perguntando-se o que podia ter modificado tão radicalmente a atitude de Cecilia Vanger com relação a ele.

Nesse momento, ouviu o ruído de um motor e avistou um barco grande, branco, entrando no canal sob a ponte. Quando o barco passou à sua frente, Mikael viu que quem o manobrava era Martin Vanger, com o olhar atento para evitar eventuais baixios. Tratava-se de um iate de cruzeiro de doze metros — um mastodonte impressionante. Mikael levantou-se e seguiu o caminho que costeava a praia. Viu então que muitos barcos já haviam sido postos na água, amarrados em diferentes poitas, tanto barcos a motor quanto veleiros, especialmente vários Pettersson e um IF que se pôs a oscilar após a passagem do iate. Havia também barcos maiores e mais caros, entre os quais um Hallberg-Rassy. A boa estação estava de volta e Mikael pôde fazer uma idéia dos recursos financeiros dos aficionados náuticos de Hedeby — Martin Vanger possuía indiscutivelmente o barco maior e mais caro do lugar.

Deteve-se abaixo da casa de Cecilia e espiou as janelas iluminadas no andar de cima. Depois voltou para fazer um café em casa. Examinou sua saleta de trabalho enquanto esperava o café ficar pronto.

Antes de se apresentar na prisão, devolvera a maior parte dos arquivos de Henrik Vanger sobre Harriet. Julgou prudente não deixar toda a documentação numa casa desocupada durante um período tão longo. Agora as prateleiras pareciam vazias. Tudo o que lhe restava do inquérito eram cinco cadernos de anotações de Henrik que ele levara para Rullaker e que neste momento já conhecia de cor. E, como constatou naquele momento, um álbum de fotografias que esquecera na prateleira de cima.

Pegou o álbum e voltou para a cozinha. Serviu-se de café, sentou e começou a folheá-lo.

Eram fotos tiradas no dia do desaparecimento de Harriet. A primeira era a última foto de Harriet, no desfile da Festa das Crianças em Hedestad. Seguiam-se cento e oitenta fotos, muito nítidas, do acidente do caminhão-tanque na ponte. Foto por foto, ele já examinara o álbum com lupa, várias vezes. Agora o folheava distraidamente; sabia que não encontraria nada que representasse um avanço. De repente sentiu-se farto do enigma Harriet Vanger e fechou o álbum com um golpe seco.

Irritado, aproximou-se da janela da cozinha e olhou a escuridão lá fora.

Depois tornou a olhar para o álbum de fotos. Não conseguiu explicar a sensação, mas um pensamento fugaz de repente se apresentou, como se reagisse a algo que acabara de ver. Como se um ser invisível lhe soprasse suavemente no ouvido, e os cabelos em sua nuca se eriçaram de leve.

Sentou-se de novo e tornou a abrir o álbum. Percorreu, uma por uma, todas as fotos da ponte. Contemplou um Henrik Vanger mais jovem manchado de óleo e um jovem Harald Vanger, esse homem que ele ainda não vira. A amurada destruída da ponte, as construções, as janelas e os veículos que se viam nas imagens. Não teve nenhuma dificuldade em identificar Cecilia Vanger, com vinte anos, no meio dos espectadores. Usava um vestido claro e um casaco escuro, e aparecia em cerca de vinte fotos.

Sentiu uma brusca excitação. Ao longo dos anos, Mikael aprendera a confiar em seus instintos. Ele reagira a alguma coisa no álbum, mas não conseguia saber exatamente a quê.

Por volta das onze da noite, continuava sentado na mesa da cozinha examinando as fotos, quando ouviu a porta da frente ser aberta.

— Posso entrar? — perguntou Cecilia Vanger.

Sem esperar a resposta, sentou-se diante dele do outro lado da mesa. Mikael teve um estranho sentimento de déjà-vu. Ela usava um vestido claro, apertado na cintura, e um casaco cinza-azulado, roupas quase idênticas às que trazia nas fotos de 1966.

— O problema é você — ela disse. Mikael levantou as sobrancelhas.

— Sinto muito, mas me pegou de surpresa esta noite quando bateu na minha porta. Agora estou tão agitada que não consigo dormir.

— Por que agitada?

— Você não percebe?

Ele fez que não com a cabeça.

— Se eu disser, promete que não vai rir de mim?

— Prometo.

— Quando eu o seduzi no inverno, não refleti, apenas cedi aos meus impulsos. Queria me divertir, nada mais. Na primeira noite eu estava bastante bêbada e não tinha a menor intenção de iniciar algo duradouro com você. Depois virou outra coisa. Quero que saiba que as semanas em que foi meu amante ocasional foram as mais agradáveis de toda a minha vida.

— Eu também achei muito bom.

— Mikael, eu menti para você e para mim o tempo todo. Nunca fui especialmente atirada em matéria de sexo. Se tive cinco ou seis parceiros em toda a minha vida, foi muito. A primeira vez, eu tinha vinte e um anos. Depois veio meu marido, que conheci quando tinha vinte e cinco e que se revelou um canalha. A seguir, mais três homens que conheci com alguns anos de intervalo. Mas você... você fez brotar não sei o que em mim. Nunca me canso. Certamente porque com você não há a menor exigência.

— Cecilia, você não é obrigada...

— Psiu... não me interrompa. Senão nunca vou conseguir dizer o que tenho a dizer.

Mikael ficou em silêncio.

— No dia em que você partiu para a prisão, me senti terrivelmente infeliz. De repente você não estava mais aqui, como se nunca tivesse existido. Não havia mais luz na casa dos convidados. E a minha cama ficou fria e vazia. De uma hora para a outra voltei a ser uma velha de cinquenta e seis anos.

Calou-se um instante e olhou Mikael bem nos olhos.

— Apaixonei-me por você neste inverno. Sem querer, apenas aconteceu. E então me dei conta de que você estava aqui apenas temporariamente e que um dia iria partir de vez, enquanto eu iria continuar aqui o resto da vida. Isso me fez tanto mal, me doeu tanto, que decidi não deixar você entrar quando voltasse da prisão.

— Sinto muito.

— Não é culpa sua.

Ficaram calados durante um momento.

— Quando você foi embora hoje à noite, eu chorei. Queria uma chance de voltar à vida. Então pensei numa coisa.

— No quê?

— Que eu seria totalmente doida se deixasse de te ver só porque um dia você vai embora. Mikael, será que podemos recomeçar? Será que você pode esquecer o que se passou há pouco?

— Está esquecido — disse Mikael. — E obrigado por ter me contado. Ela continuou a olhar a mesa.

— Se você me quiser, estou com muita vontade.

Ergueu os olhos e encontrou os dele. Depois levantou-se e dirigiu-se até o quarto. Deixou cair o casaco no chão e foi retirando o vestido pela cabeça enquanto andava.

Mikael e Cecilia foram despertados ao mesmo tempo pelo ruído da porta da frente se abrindo e pelos passos de alguém na cozinha. Ouviram o baque surdo de uma sacola jogada no chão ao lado do aquecedor. Então Erika apareceu à porta do quarto com um sorriso que logo se transformou em susto.

— Ó meu Deus! — Ela deu um passo para trás.

— Oi, Erika — disse Mikael.

— Oi. Desculpe. Peço mil desculpas por ter entrado desse jeito. Eu deveria ter batido antes.

— Deveríamos ter trancado a porta. Erika, esta é Cecilia Vanger. Cecilia, Erika Berger: a diretora da Millennium.

— Bom dia — disse Cecilia.

— Bom dia — disse Erika.

Ela parecia não saber se devia se aproximar para apertar educadamente a mão de Cecilia ou se devia apenas ir embora.

— Bem, eu... posso sair e dar uma volta...

— E que tal se antes preparasse um café? — Mikael olhou o despertador em cima da mesa-de-cabeceira. Passava do meio-dia.

Erika fez que sim com a cabeça e voltou a fechar a porta do quarto. Mikael e Cecilia se olharam. Cecilia estava embaraçada. Haviam feito amor e conversado até as quatro da manhã. Depois Cecilia disse que passaria a noite ali e que daí em diante não daria a mínima de mostrar a todo mundo que trepava com Mikael. Ela dormira de costas para o ventre dele, o braço de Mikael envolvendo-lhe o peito.

— Não se preocupe, está tudo bem — disse Mikael. — Erika é casada e não é minha namorada. Nos vemos de vez em quando, e ela não se importa de saber que você e eu temos um caso. E provavelmente está se sentindo bastante envergonhada neste momento.

Na cozinha, Erika preparou um desjejum com café, suco de frutas, geléia de laranja, queijo e pão grelhado. O cheiro era bom. Cecilia dirigiu-se a ela e estendeu-lhe a mão.

— Foi muito rápido há pouco. Bom dia.

— Cecilia, desculpe ter chegado assim, como um elefante — disse Erika realmente chateada.

— Deixe pra lá, esqueça. Vamos ao café.

— Sabe — disse Mikael, estreitando Erika nos braços antes de sentar-se. — Como você veio para cá?

— Vim de carro esta manhã, o que você acha? Li sua mensagem às duas da madrugada e tentei ligar.

— Desliguei o celular — disse Mikael, dirigindo um sorriso a Cecilia Vanger.

Depois do café, Erika pediu licença e deixou Mikael e Cecilia a sós, alegando que precisava ir cumprimentar Henrik Vanger. Enquanto Cecilia limpava a mesa, Mikael se aproximou dela por trás e a abraçou.

— E agora, o que vai acontecer? — perguntou Cecilia.

— Nada. Tudo continua do mesmo jeito. Erika é minha melhor amiga. Temos uma ligação esporádica que já dura vinte anos e que espero dure ainda mais vinte. Mas nunca formamos um casal e nunca nos impedimos de ter aventuras pessoais.

— É o que existe entre nós? Uma aventura?

— Não sei o que existe entre nós, mas parece que estamos bem um com o outro.

— Onde ela dormirá esta noite?

— Arranjarão um quarto em algum lugar. Um quarto de hóspedes na casa de Henrik. Ela não vai dormir na minha cama.

Cecilia refletiu um instante.

— Não sei se vou saber lidar com isso. Você e ela talvez funcionem bem assim, mas eu não sei... eu nunca... — Ela balançou a cabeça. — Vou para casa agora. Preciso refletir um pouco.

— Cecilia, você me fez perguntas a esse respeito e eu falei da minha relação com Erika. A existência dela não pode ser uma surpresa para você.

— É verdade. Mas enquanto ela estava a uma distância confortável, lá em Estocolmo, eu podia ignorá-la.

Cecilia vestiu o casaco.

— A situação é cômica. — Ela sorriu. — Venha jantar esta noite. Com Erika. Acho que vou gostar muito dela.

Erika já havia resolvido a questão da hospedagem. Nas vezes em que visitara Henrik Vanger, dormira num dos quartos de hóspedes, e pediu muito singelamente se podia utilizá-lo de novo. Henrik mal conteve o entusiasmo e assegurou que ela era bem-vinda sempre que quisesse vir.

Após essas formalidades, Mikael e Erika atravessaram a ponte e se instalaram no terraço do Café Susanne antes da hora de fechamento.

— Estou superchateada — disse Erika. — Venho aqui para comemorar sua liberdade e o encontro na cama com a mulher fatal da aldeia.

— Desculpe.

— Há quanto tempo você e a senhorita Tetuda... — Erika fez um movimento com o indicador.

— Mais ou menos desde que Henrik se associou a nós.

— Ah, é?

— Como assim ah, é?

— Simples curiosidade.

— Cecilia é uma mulher querida. Gosto dela.

— Não estou criticando. Estou apenas chateada. Uma guloseima ao alcance da mão e sou obrigada a fazer regime. E a prisão, como foi?

— Tipo férias de estudo. E a revista, como vai?

— Melhor. Ainda estamos ziguezagueando no vermelho, mas pela primeira vez em um ano o volume de anúncios aumentou. Continuamos bem abaixo do que tínhamos antes, mas já estamos nos recuperando. Graças a Henrik. E o mais estranho é que as assinaturas também aumentaram.

— E normal, sempre há uma oscilação.

— De algumas centenas a mais ou a menos. Mas tivemos três mil assinantes a mais nos últimos meses. O aumento se mantém constante com duzentos e cinquenta novos assinantes por semana. Primeiro achei que fosse coincidência, mas novos assinantes continuam afluindo. É o maior aumento de tiragem já obtido por uma revista mensal. Representa mais que as receitas dos anunciantes. Ao mesmo tempo, nossos antigos anunciantes parecem em geral dispostos a renovar.

— Como se explica isso? — perguntou Mikael, confuso.

— Não sei. Nem nós estamos entendendo. Não fizemos campanha publicitária. Christer passou uma semana verificando sistematicamente o perfil desses novos assinantes. Em primeiro lugar, são novos mesmo. Em segundo, setenta por cento são mulheres. Em geral, os assinantes são setenta por cento de homens. Em terceiro, pode-se caracterizar esse tipo de assinante como um assalariado médio dos subúrbios com um trabalho qualificado: professores, pequenos executivos, funcionários públicos.

— A revolta da classe média contra o capitalismo?

— Não sei. Mas se a tendência prosseguir vamos assistir a uma enorme mudança na nossa lista de assinantes. A redação se reuniu há duas semanas e decidimos ir incluindo aos poucos novos temas na revista; quero mais artigos sobre o mundo do trabalho, relacionado a sindicatos como o dos funcionários públicos, por exemplo, e também mais reportagens investigativas, sobre feminismo e outros assuntos do momento.

— Mas cuidado para não mudar demais — disse Mikael. — Se temos novos assinantes, é provavelmente porque gostam do que já existe na revista.

Cecilia Vanger também convidara Henrik Vanger para o jantar, talvez para diminuir o risco de assuntos mais melindrosos. Preparou um assado de carne de veado e serviu vinho tinto para acompanhar. Erika e Henrik monopolizaram grande parte da conversa comentando a recuperação da Millennium e os novos assinantes; depois, aos poucos, passou-se a se falar de outras coisas. De repente Erika se voltou para Mikael e perguntou como ia seu trabalho.

— Em aproximadamente um mês, espero terminar um primeiro rascunho completo da crônica familiar, que Henrik já vai poder ler.

— Uma crônica no espírito da família Adams — disse Cecilia sorrindo.

— Ela inclui alguns aspectos históricos — admitiu Mikael. Cecilia lançou um olhar de soslaio para Henrik Vanger.

— Mikael, na verdade Henrik não está nem um pouco interessado nessa crônica familiar. Ele quer é que você resolva o enigma do desaparecimento de Harriet.

Mikael não disse nada. Desde que começara a se relacionar com Cecilia, falara mais ou menos abertamente com ela acerca de Harriet. Cecilia já entendera que era esse o verdadeiro trabalho dele, embora Mikael nunca tivesse admitido. Por outro lado, ele nunca dissera a Henrik que discutia isso com Cecilia. As grossas sobrancelhas de Henrik se contraíram ligeiramente. Erika se calou.

— Querido tio — disse Cecilia a Henrik —, eu não sou idiota. Não sei exatamente que tipo de acordo você e Mikael fizeram, mas a temporada dele aqui em Hedeby tem a ver com Harriet, não tem?

Henrik assentiu com a cabeça e olhou para Mikael.

— Bem que eu lhe disse que ela era esperta. — Depois virou-se para Erika. — Suponho que Mikael já lhe explicou o que ele faz aqui em Hedeby.

Ela fez que sim com a cabeça.

— E suponho que deve achar essa tarefa insensata. Não, não é obrigada a responder. É realmente uma tarefa absurda e insensata. Mas tenho necessidade de saber.

— Não tenho opinião a respeito — disse Erika, diplomática.

— É óbvio que tem. — Henrik voltou-se para Mikael. — Em breve metade do ano terá passado. Conte. Descobriu algo que ainda não averiguamos?

Mikael evitou o olhar de Henrik. Pensou imediatamente na sensação estranha que tivera na noite anterior, ao folhear o álbum de fotografias. A sensação não o abandonara durante o dia, porém ele não tivera tempo de abrir novamente o álbum. Não sabia se estava imaginando coisas, mas sabia que havia uma idéia no caminho. Estivera a ponto de pensar em algo de decisivo. Por fim levantou os olhos para Henrik e balançou a cabeça.

— Não descobri a menor pista.

O velho o examinou com expressão atenta. Absteve-se de comentar a resposta de Mikael e por fim balançou a cabeça.

— Não sei o que vocês, jovens, pensam disto, mas para mim chegou a hora de me retirar. Obrigado pelo jantar, Cecilia. Boa noite, Erika. Passe para me ver antes de ir embora amanhã.

Depois que Henrik fechou a porta da frente, o silêncio se instalou. Foi Cecilia que o rompeu.

— Mikael, o que isso quer dizer afinal?

— Quer dizer que Henrik Vanger é tão sensível às reações das pessoas como um sismógrafo. Ontem à noite, quando você foi à minha casa, eu estava olhando o álbum de fotos.

— E?

— Eu vi alguma coisa. Não sei o quê, e não consigo pôr o dedo em cima. Alguma coisa que se tornou quase um pensamento, só que me escapou.

— Mas você estava pensando em quê?

— Não sei. Logo depois você chegou e eu... humm... passei a ter coisas mais interessantes na cabeça.

Cecilia corou. Evitou os olhos de Erika e foi até a cozinha a pretexto de fazer um café.

Era um dia quente e ensolarado de maio. A vegetação estava brotando e Mikael surpreendeu-se a assobiar Blossom time is coming.

Erika passou a noite no quarto de hóspedes de Henrik. Depois do jantar, Mikael perguntara a Cecilia se queria companhia. Ela respondeu que devia preparar a reunião dos conselhos de classe, que estava cansada e preferia ir dormir. Na segunda-feira de manhã bem cedo, Erika depositou um beijo no rosto de Mikael e partiu.

Quando Mikael foi para a prisão, em meados de março, a neve ainda cobria a paisagem. Agora as videiras já exibiam folhas e a relva em volta da casa verdejava, abundante. Pela primeira vez, ele tinha a oportunidade de passear pela ilha. Por volta das oito, passou na casa de Henrik para pedir uma garrafa térmica a Anna. Conversou um pouco com Henrik e pediu-lhe emprestado um mapa da ilha. Queria ver de perto a cabana de Gottfried, mencionada de maneira indireta no inquérito policial, pois Harriet estivera ali várias vezes. Henrik explicou que a cabana pertencia a Martin Vanger, mas estava desocupada havia vários anos. De vez em quando um parente de passagem a ocupava.

Mikael encontrou Martin Vanger a tempo, antes de ele ir para Hedestad trabalhar, e perguntou se podia emprestar a chave da cabana. Martin olhou para ele com um sorriso brincalhão.

— Suponho que a crônica familiar chegou agora ao capítulo sobre Harriet.

— Eu só queria dar uma olhada...

Martin Vanger foi buscar a chave e voltou em seguida.

— Posso ir então? Sem problemas?

— Por mim, pode até se instalar lá, se quiser. A não ser pelo fato de ficar no outro extremo da ilha, é um lugar bem melhor que a casa onde você está hospedado.

Mikael preparou café e sanduíches. Encheu uma garrafa com água e pôs as provisões numa mochila que jogou sobre o ombro. Seguiu um caminho estreito e em parte invadido pelo mato, ao longo da baía na costa norte da ilha. A cabana de Gottfried ficava num promontório a cerca de dois quilômetros do povoado, e ele fez o trajeto em meia hora, sem pressa.

Martin Vanger tinha razão. Ao sair de uma curva do caminho, Mikael viu abrir-se um lugar verdejante em frente ao mar, com uma ampla vista de Hedestad que abarcava a embocadura do rio, a marina à esquerda e o porto comercial à direita.

Achou surpreendente que ninguém tivesse se apossado da cabana de Gottfried. Era uma construção rústica de toras de madeira horizontais, coberta de telhas, com os caixilhos das janelas pintados de verde e uma pequena varanda na entrada. A manutenção da casa e do jardim mostrava sinais de abandono; a pintura das portas e das janelas estava descascando, e o que devia ter sido uma relva transformara-se em arbustos de um metro de altura. Seria necessário um dia de trabalho com foice e cortador de grama para pôr tudo em ordem.

Mikael destrancou a porta, entrou e abriu as janelas. Parecia o interior de um celeiro de uns trinta e cinco metros quadrados. Era uma única e grande peça, forrada de lambris, com amplas janelas que davam para o mar de um lado e de outro para a porta da frente. No fundo da peça, uma escada conduzia a um quarto-mezanino que ocupava metade da superfície da casa. Debaixo da escada havia um pequeno nicho com um fogão a gás, um balcão e um lavabo. A mobília era simples; à esquerda da entrada, um banco fixado à parede, uma escrivaninha em mau estado e uma ampla estante de madeira. Mais adiante, do mesmo lado, um armário de três portas. A direita da entrada, uma mesa redonda com cinco cadeiras de madeira e, no centro, uma lareira.

Várias lamparinas indicavam que a eletricidade não chegara até ali. No parapeito de uma janela descansava um velho transistor Grundig com a antena quebrada. Mikael acionou o botão on, mas as pilhas estavam gastas.

Subiu a escada estreita e deu uma espiada no mezanino: uma cama de casal, um colchão sem colcha, uma mesa-de-cabeceira e uma cômoda.

Mikael ficou um momento vasculhando a casa. A cômoda estava vazia, com exceção de algumas toalhas de rosto e roupas de cama cheirando a mofo. No armário havia algumas roupas de trabalho, um avental, um par de botas de borracha, um tênis gasto e uma pequena lamparina a querosene. Nas gavetas da escrivaninha encontrou papel, lápis, um bloco de desenho não usado, um baralho e alguns marcadores de página. O armário da cozinha continha louças, xícaras de café, copos, velas e pacotes esquecidos de sal, saquinhos de chá e coisas do gênero. Numa gaveta da mesa havia talheres.

Os únicos vestígios de caráter intelectual estavam na prateleira acima da escrivaninha. Mikael subiu numa cadeira para ver melhor. Na prateleira de baixo havia números antigos de Se, Rekordmagasinet, Tidsfördriv e Lektyr, do final dos anos 1950 e início dos 1960; Bildjoumalen de 1965 e 1966, Mitt Livs Novell e algumas revistas em quadrinhos: 91:an, Fantomen e Romans. Mikael abriu um número da Lektyr de 1964 e constatou que a pin-up tinha um aspecto relativamente inocente.

Uns cinquenta livros também, a metade deles romances policiais em formato de bolso da série Manhattan de Wahlström; alguns Mickey Spillane com títulos evocadores como O beijo da morte, nas capas clássicas de Bertil Hegland. Encontrou ainda seis Kitty, alguns Clube dos cinco de Enid Blyton e um volume dos Detetives gêmeos de Sivar Ahlrud — O mistério no metrô. Mikael sorriu com nostalgia. Três livros de Astrid Lindgren: Nós, os filhos de Bullerbyn, Super Blomkvist e Rasmus e Píppi Meialonga. Na prateleira de cima havia um rádio de ondas curtas, dois livros de astronomia, um sobre aves, um intitulado O império do mal, que falava da União Soviética, um sobre a guerra de inverno na Finlândia, o Catecismo de Lutero, o livro de hinos da Igreja sueca e uma Bíblia.

Mikael abriu a Bíblia e leu no interior da capa: Harriet Vanger, 12/5/1963. A Bíblia da crisma de Harriet. Consternado, devolveu o livro à estante.

Logo atrás da casa havia um pequeno depósito que abrigava lenha e ferramentas, uma foice, um ancinho, um martelo, uma caixa contendo pregos, uma plaina, uma serra e outras ferramentas. O sanitário estava situado a uns vinte metros para o Leste Europeu, no bosque. Mikael olhou um pouco por ali e depois voltou para a casa. Puxou uma cadeira, sentou-se na varanda e abriu a garrafa térmica para tomar café. Acendeu um cigarro e contemplou a baía de Hedestad através da cortina do matagal.

A cabana de Gottfried era bem mais modesta do que ele imaginara. Era esse então o lugar onde o pai de Harriet e de Martin se recolhera quando o casamento com Isabella começou a desmoronar no final dos anos 1950. Onde tinha ido viver e onde se embriagava. E mais abaixo junto ao pontão onde havia se afogado com uma taxa elevada de álcool no sangue. A vida na cabana certamente era agradável no verão, mas, quando a temperatura se aproximava do zero, devia ser bastante fria e penosa. De acordo com Henrik, Gottfried continuou a trabalhar no grupo Vanger — com interrupções nos períodos de auge da bebedeira — até 1964. O fato de morar nessa cabana de forma mais ou menos permanente e não obstante apresentar-se ao trabalho barbeado e de terno e gravata indicava, apesar de tudo, certa disciplina pessoal.

Mas também era um lugar aonde Harriet ia com frequência, tanto assim que foi um dos primeiros onde a procuraram. Henrik contou que no último ano ela tinha ido várias vezes à cabana, nos fins de semana ou nas férias. No último verão, havia morado ali durante três meses, embora fosse ao povoado todos os dias. Fora ali também que sua amiga Anita Vanger, irmã de Cecilia, lhe fizera companhia por seis semanas.

O que ela fazia na solidão? As revistas e os livros de literatura juvenil falavam por si mesmos. O bloco de desenho talvez tenha lhe pertencido. Mas havia também a Bíblia.

Queria ficar perto do pai afogado e passar ali um período de luto? Era só essa a explicação? Ou o isolamento tinha a ver com suas dúvidas religiosas? A cabana era monacal; ela vivia ali como num convento?

* * *

Mikael seguiu pela praia na direção sudeste, mas o terreno, barrado por muitas ravinas e juníperos, era quase impraticável. Retornou e andou um pouco em direção a Hedeby. De acordo com o mapa, devia haver uma picada através do bosque que levava à chamada Fortificação, e ele levou uns vinte minutos para achar o acesso, invadido pela vegetação. A Fortificação eram restos da defesa costeira que datavam da Segunda Guerra: bunkers de concreto com trincheiras distribuídas em volta de uma construção de comando. Tudo coberto de mato.

Mikael continuou no caminho até chegar a um depósito de barcos numa clareira junto ao mar. Ao lado do depósito encontrou restos de um veleiro. Retornou à Fortificação e seguiu até ir dar num cercado — eram as terras da fazenda de Östergarden.

Continuou no caminho que serpenteava através do bosque, em alguns pontos paralelo ao campo pertencente à fazenda. O caminho era de difícil acesso e ele foi obrigado a contornar alguns lodaçais. Por fim chegou a um pântano junto a um celeiro. Aparentemente o caminho terminava ali, mas ele estava a apenas cem metros da estrada de Östergarden.

Do outro lado da estrada, se elevava o monte Sul. Mikael escalou uma encosta íngreme e precisou do apoio das mãos nos últimos metros. O monte Sul terminava numa falésia quase vertical sobre o mar. Mikael retornou a Hedeby seguindo pela crista, de onde avistou as cabanas, o velho porto dos pescadores, a igreja e a pequena casa em que estava hospedado. Sentou-se numa pedra e serviu-se de um último resto de café morno.

Não tinha a menor idéia do que fazia em Hedeby, mas a vista lhe agradava.

Cecilia Vanger mantinha distância e Mikael não quis parecer insistente. Mas depois de uma semana resolveu ir visitá-la. Ela o recebeu e foi preparar um café.

— Deve estar me achando uma idiota, uma professora respeitável de cinquenta e seis anos se comportando como uma adolescente.

— Cecilia, você é uma mulher adulta e tem o direito de agir como quiser.

— Eu sei. Por isso decidi não te ver mais. Não consigo administrar...

— Você não me deve nenhuma explicação. Espero que continuemos bons amigos.

— É o que desejo também. Mas um caso com você é muito complicado para mim. Relacionamentos amorosos nunca foram o meu forte. Acho que preciso ficar só por algum tempo.


16. DOMINGO 1º DE JUNHO — TERÇA-FEIRA 10 DE JUNHO

Após seis meses de especulações infrutíferas, uma brecha se abriu no caso Harriet Vanger quando Mikael, em apenas alguns dias da primeira semana de junho, descobriu três novas peças do quebra-cabeça. Duas completamente sozinho, a terceira com um pouco de ajuda.

Depois da visita de Erika, ele reabrira o álbum de fotografias e por várias horas examinara as fotos uma após outra, tentando entender o que o fizera reagir. Depois deixou tudo de lado e voltou a trabalhar na crônica familiar.

Num dos primeiros dias de junho, Mikael foi a Hedestad. Estava pensando em outra coisa, quando o ônibus entrou na rua da Estação, e foi então que subitamente se deu conta do que havia germinado em seu cérebro. A luz o atingiu como um relâmpago num céu sem nuvens. Ficou tão abalado que continuou até o terminal da estação ferroviária e voltou imediatamente a Hedeby para verificar se suas lembranças eram exatas.

Tratava-se da primeira foto do álbum. A última de Harriet, tirada na rua da Estação em Hedestad naquele dia funesto, quando ela assistia ao desfile da Festa das Crianças.

A foto destoava no álbum. Estava ali porque fora tirada no mesmo dia, mas era a única entre as outras cento e oitenta que não mostrava o acidente na ponte. Sempre que Mikael e (supunha ele) todos os outros olhavam o álbum, eram as pessoas e os detalhes das fotos da ponte que lhes chamavam a atenção. Nada havia de dramático na fotografia de uma multidão assistindo ao desfile da Festa das Crianças em Hedestad, várias horas antes dos acontecimentos decisivos.

Henrik Vanger devia ter olhado para aquela foto milhares de vezes, constatando com pesar que nunca mais tornaria a ver Harriet. Provavelmente se irritou por a foto ter sido tirada de tão longe e de Harriet Vanger só aparecer como uma figura qualquer na multidão.

Mas não foi isso que tinha feito Mikael reagir.

A foto fora tirada do outro lado da rua, provavelmente de uma janela do primeiro andar. A grande-angular captava a frente de um dos caminhões do desfile. Sobre a carroceria, vestidas com maios de banho cintilantes e pantalonas exóticas, mulheres lançavam bombons aos espectadores. Algumas pareciam dançar. Diante do caminhão saltitavam três palhaços.

Harriet estava na calçada, na primeira fila de espectadores. A seu lado, três colegas de classe e, ao redor, pelo menos uns cem outros habitantes de Hedestad.

Foi isso que o subconsciente de Mikael registrara e que de repente veio à tona quando o ônibus passou exatamente no local onde a foto fora tirada.

Os espectadores se comportavam como costumam se comportar. Os olhos dos espectadores sempre seguem a bolinha numa partida de tênis ou o disco de borracha no hóquei sobre gelo. Os que estavam mais à esquerda olhavam os palhaços bem à frente deles. Os mais próximos do caminhão dirigiam o olhar para a carroceria com as moças escassamente vestidas. Seus rostos estavam sorridentes. Crianças apontavam com o dedo. Alguns riam. Todos pareciam felizes.

Todos exceto uma pessoa.

Harriet Vanger olhava para o lado. Suas três colegas e as pessoas ao redor olhavam os palhaços. O rosto de Harriet estava voltado uns trinta ou trinta e cinco graus para a direita. Seu olhar parecia fixo em alguma coisa do outro lado da rua, mas que não aparecia no canto inferior à esquerda da foto.

Mikael pegou a lupa e tentou distinguir os detalhes. A foto fora tirada de muito longe para que ele tivesse absoluta certeza, mas, ao contrário de todos os outros, o rosto de Harriet não exprimia nenhuma alegria. A boca era um traço estreito. Olhos muito abertos. Mãos repousadas frouxamente ao longo do corpo.

Ela parecia estar com medo. Com medo ou com raiva.

Mikael tirou a foto do álbum, enfiou-a numa folha de plástico e pegou o ônibus com destino a Hedestad. Desceu na rua da Estação e colocou-se no local onde a foto provavelmente fora tirada. Era numa das pontas do que constituía o centro da cidade. Tratava-se de um sobrado de madeira que agora abrigava uma videolocadora e uma loja de moda masculina, Sundström, existente desde 1932, conforme informava uma placa acima da porta de entrada. Ele entrou e logo percebeu que a loja ocupava os dois andares; uma escada em caracol conduzia à parte de cima.

No alto, duas janelas davam para a rua. Foi ali que o fotógrafo se instalara.

— Posso ajudá-lo? — perguntou um vendedor de certa idade, quando Mikael tirou do bolso o plástico com a fotografia. Havia pouca gente na loja.

— Bem, na verdade eu gostaria apenas de verificar de onde esta fotografia foi tirada. Posso abrir um instante a janela?

Deram-lhe permissão e ele estendeu a foto à sua frente. Podia ver o local exato onde Harriet Vanger estivera. Uma das duas casas de madeira que se viam atrás dela desaparecera, substituída por uma de tijolos. A outra casa, que sobreviveu, abrigava uma papelaria em 1966; atualmente havia ali uma loja de produtos dietéticos e um solário. Mikael fechou a janela, agradeceu e desculpou-se pelo incômodo.

Embaixo, na rua, foi se colocar no lugar onde Harriet estivera. Não teve dificuldade em se orientar entre a janela do primeiro andar da loja e a porta do solário. Virou a cabeça e reconstituiu a linha de mira de Harriet. Pelo que Mikael pôde avaliar, ela dirigira o olhar a um canto da casa que abrigava a loja de moda masculina. Era um canto de casa inteiramente comum, de onde saía uma rua lateral. O que Harriet teria visto lá?

Mikael guardou a fotografia na mochila e foi a pé até a entrada da estação, onde sentou-se num terraço e pediu um caffè latte. Sentia-se subitamente agitado.

Nos romances policiais ingleses, isso se chamava uma new evidence, o que era bem mais que um "novo dado". Ele acabava de ver algo novo, que ninguém mais observara numa investigação que se arrastava havia trinta e sete anos.

O único problema é que ele não sabia muito bem qual o valor dessa nova descoberta, nem mesmo se havia algum. No entanto ela lhe parecia importante.

O dia de setembro em que Harriet desapareceu fora dramático de diversas maneiras. Era um dia de festa em Hedestad com milhares de pessoas nas ruas, tanto jovens como velhos. E havia a reunião familiar anual na ilha. Só esses dois acontecimentos já quebravam a rotina do lugar. E o acidente na ponte, como a cereja no bolo, veio lançar sua sombra sobre o resto.

O inspetor Morell, Henrik Vanger e todos os que refletiram sobre o desaparecimento de Harriet haviam se concentrado nos acontecimentos da ilha. O próprio Morell escrevera que não conseguia afastar a suspeita de que havia uma ligação entre o acidente e o desaparecimento de Harriet. De repente Mikael se convenceu de que isso era inteiramente falso.

A cadeia de incidentes não começara na ilha, mas na cidade de Hedestad, várias horas antes naquele dia. Harriet Vanger tinha visto alguma coisa ou alguém que lhe causara medo e que a fizera voltar para casa e procurar de imediato Henrik Vanger, que infelizmente não teve tempo de lhe dar atenção. Depois aconteceu o acidente na ponte. Em seguida o assassino agiu.

Mikael fez uma pausa. Era a primeira vez que formulava conscientemente a suposição de que Harriet havia sido morta. Hesitou, mas logo percebeu que concordava com a convicção de Henrik Vanger. Harriet fora morta e agora ele buscava um assassino.

Retornou ao inquérito policial. Nos milhares de páginas, só uma parte mínima falava das horas em Hedestad. Harriet estava com três colegas de classe, e todas foram interrogadas. Elas se encontraram na entrada da estação ferroviária às nove da manhã. Uma das meninas precisava comprar um jeans e as outras a acompanharam. Tomaram um café no restaurante das lojas EPA e depois foram até a feira na praça de esportes, onde passearam entre as bancas e os pequenos lagos com patos, e onde também cruzaram com outros colegas de escola. Ao meio-dia, dirigiram-se ao centro da cidade para ver o desfile da Festa das Crianças. Um pouco antes das duas, Harriet anunciou repentinamente que precisava voltar para casa. Elas se separaram num ponto de ônibus perto da rua da Estação.

Nenhuma das colegas observou algo fora do comum. Uma delas, Inger Stenberg, afirmou que Harriet se tornara "impessoal", ao descrever sua mudança no último ano. Disse que naquele dia Harriet estava taciturna como de costume e que apenas acompanhava as outras.

O inspetor Morell entrevistou todos os que tinham visto Harriet naquele dia, mesmo os que apenas a cumprimentaram na feira ou na rua. Sua foto foi publicada nos jornais da região quando a deram por desaparecida. Vários habitantes de Hedestad entraram em contato com a polícia para dizer que julgavam tê-la visto durante o dia, mas ninguém observou nada de incomum.

Mikael passou a noite refletindo sobre como continuar investigando a pista que acabava de formular. Na manhã seguinte, foi se encontrar com Henrik Vanger no momento em que ele tomava o café-da-manhã.

— Você me disse que a família Vanger sempre teve participações no Hedestads-Kuriren.

Isso mesmo.

— Preciso consultar os arquivos fotográficos do jornal. De 1966. Henrik Vanger pousou o copo de leite e enxugou o lábio superior.

— Mikael, o que você descobriu? Ele olhou o velho bem nos olhos.

— Nada de concreto. Mas acho que podemos ter cometido um erro de interpretação no que se refere ao desenrolar dos acontecimentos.

Mostrou a foto e relatou suas conclusões; Henrik não disse nada por um longo tempo.

— Se tenho mesmo razão, devemos nos concentrar no que se passou em Hedestad naquele dia, não apenas no que se passou na ilha — disse Mikael. — Não sei o que foi feito delas depois de tantos anos, mas muitas fotografias das festividades certamente nem foram publicadas. São essas fotos que quero ver.

Henrik Vanger utilizou o telefone de parede na cozinha. Chamou Martin Vanger, explicou o que procurava e perguntou quem era hoje o responsável pelo arquivo fotográfico do Kuriren. Dez minutos mais tarde, a pessoa foi localizada e a autorização obtida.

A responsável pelo arquivo fotográfico do Hedestads-Kuriren chamava-se Madeleine Blomberg, mais conhecida por Maja, e tinha sessenta anos. Era a primeira mulher nessa função que Mikael encontrava em sua carreira, numa profissão em que ainda se julgava a fotografia como um domínio artístico reservado aos homens.

Era um sábado e a redação estava vazia, mas Maja Blomberg morava a apenas cinco minutos a pé dali e recebeu Mikael na porta do jornal. Ela havia trabalhado no Hedestads-Kuriren a maior parte de sua vida. Começou como revisora em 1964, a seguir trabalhou na preparação das fotos e passou muitos anos no laboratório, sendo enviada também para algumas coberturas fotográficas quando os efetivos faltavam. Acabou sendo promovida a editora e, dez anos antes, quando o ex-responsável pelo setor de fotografia se aposentou, ela assumiu a chefia do departamento. Mas isso não significava que dirigisse um vasto império. O departamento de fotografia fora integrado ao de publicidade dez anos antes e contava com apenas seis pessoas, todas encarregadas do mesmo trabalho por turno.

Mikael perguntou como os arquivos estavam organizados.

— Na verdade, o arquivo está uma grande bagunça. Depois dos computadores e das fotos digitais, passamos a arquivar tudo em CDs. Um dos nossos estagiários escaneou as fotos antigas importantes, mas isso só representa um ou dois por cento das fotos catalogadas. As mais antigas estão organizadas em arquivos de negativos, por data. Estão ou aqui na redação, ou no depósito.

— O que me interessa são as fotos tiradas no desfile da Festa das Crianças de 1966, mas também, de modo geral, fotos tiradas naquela semana.

Maja Blomberg perscrutou Mikael com o olhar.

— Não é a semana em que Harriet Vanger desapareceu?

— A senhora conhece a história?

— Impossível ter trabalhado a vida inteira no Hedestads-Kuriren e não conhecê-la, e quando Martin Vanger me chamou hoje de manhã, no meu dia de folga, tirei minhas próprias conclusões. Revisei artigos que falavam do caso nos anos 1960. Por que está investigando? Haveria novas revelações?

Maja Blomberg também parecia ter faro. Mikael balançou a cabeça com um breve sorriso e lançou seu pretexto.

— Não, e duvido muito que algum dia tenhamos a resposta para o que aconteceu com ela. Peço que não espalhe, mas estou escrevendo a biografia de Henrik Vanger. O desaparecimento de Harriet é um assunto à parte, mas também um capítulo que não se pode ignorar. Procuro fotos que possam ilustrar aquele dia, de Harriet e de suas colegas.

Maja Blomberg pareceu cética, porém como a explicação era plausível ela não tinha por que duvidar do que ele dizia.

O fotógrafo de um jornal utiliza em média entre dois e dez filmes por dia. Em épocas de grandes acontecimentos, esse número pode facilmente dobrar. Cada filme contém trinta e seis negativos, portanto não é incomum um jornal acumular mais de trezentas fotos todos os dias, das quais poucas são publicadas. Uma redação bem organizada divide os filmes em seis e põe cada tira dessas em seis envelopes numa página. Com isso, um filme equivale a mais ou menos uma página num arquivo de negativos. Um arquivo contém pouco mais de cento e dez filmes. Em um ano, acumulam-se entre vinte e trinta arquivos. Ao longo dos anos, isso acaba se transformando numa quantidade espantosa de arquivos, geralmente sem o menor valor comercial, atulhando as prateleiras da redação. No entanto, todos os fotógrafos e editores de fotografia estão convencidos de que as imagens representam um documento histórico de valor inestimável e não jogam nada fora.

Fundado em 1922, o Hedestads-Kuriren dispunha de uma editoria de fotografia desde 1937. O depósito do Kuriren abrigava mais de mil e duzentos arquivos de fotos, classificados por data. As imagens de setembro de 1966 representavam quatro arquivos de encadernação barata.

— Como eu faço? — perguntou Mikael. — Vou precisar de um negatoscópio e também copiar as fotos que me interessarem.

— Não temos mais laboratório. Escaneamos tudo. Sabe usar um escâner de negativos?

— Sim, já fiz fotos, eu mesmo tenho um Agfa em casa. Trabalho com o Photoshop.

— Então está tão bem equipado como nós.

Maja Blomberg levou Mikael para dar uma volta rápida pela redação, indicou-lhe um lugar diante de um negatoscópio e ligou um computador e um escâner. Mostrou-lhe também onde preparar café na copa. Arrumou tudo para que Mikael pudesse trabalhar sozinho e livremente, mas ele devia chamar Maja Blomberg quando fosse embora da redação, para que ela viesse trancar tudo e ligar o alarme. Ela o deixou com um jovial "Divirta-se".

Mikael precisou de várias horas para percorrer os arquivos. Dois fotógrafos trabalhavam no Hedestads-Kuriren naquela época. O que trabalhou no dia em questão foi Kurt Nylund, que Mikael já conhecia. Na época, Nylund tinha vinte anos. Mais tarde foi morar em Estocolmo e tornou-se um fotógrafo profissional reconhecido, atuando como freelancer mas também com a Pressens Bild, em Marieberg. Seus caminhos se cruzaram várias vezes nos anos 1990, quando a Millennium comprou fotos da Pressens Bild. Mikael tinha a lembrança de um homem magro de cabelos finos. Kurt Nylund utilizara um filme pouco sensível usado por muitos repórteres-fotográficos.

Mikael tirou dos envelopes as fotos do jovem Nylund e as pôs no negatoscópio, examinando uma por uma com a lupa. Mas ler negativos é uma arte que requer algum hábito, coisa que Mikael não tinha. Para saber se as fotos continham alguma informação valiosa, ele percebeu que seria obrigado a escanear cada imagem para observá-la depois no computador. Isso levaria horas. Decidiu então fazer um levantamento dos negativos que poderiam interessá-lo.

Começou selecionando as fotografias do acidente com o caminhão-tanque. Mikael constatou que o arquivo de cento e oitenta fotos de Henrik Vanger não estava completo; a pessoa que copiara a coleção — talvez o próprio Nylund — eliminara cerca de trinta fotos, ou porque estavam desfocadas, ou porque sua qualidade era medíocre para publicação.

Mikael deixou o computador do Hedestads-Kurirem e ligou o escâner em seu próprio notebook. Passou duas horas escaneando o restante das fotos.

Uma delas chamou de imediato sua atenção. Num certo momento entre 15hl0 e 15hl5, exatamente nos minutos em que Harriet desapareceu, alguém abrira a janela do quarto dela; Henrik Vanger tentara em vão descobrir quem foi. De repente, Mikael tinha na tela uma foto que devia ter sido tirada no momento em que a janela estava aberta. Era possível ver uma silhueta e um rosto, mas imprecisos, desfocados. Concluiu que a análise dessa foto poderia esperar até que ele escaneasse o resto.

Nas horas seguintes, Mikael examinou as fotos da Festa das Crianças. Kurt Nylund usou seis filmes, isto é, tirou mais de duzentas fotos. Era uma série descontínua de crianças com balões, adultos, vendedores de cachorro-quente, o desfile propriamente dito, um artista local sobre um estrado e uma distribuição de prêmios.

Mikael decidiu, por fim, escanear o conjunto de fotos. Ao cabo de seis horas, tinha um dossiê com noventa fotografias. Ele seria obrigado a voltar ao Hedestads-Kuriren.

Às nove da noite, ligou para Maja Blomberg, agradeceu e voltou para sua casa na ilha.

Ele regressou às nove da manhã do domingo. Também não havia ninguém quando Maja Blomberg o fez entrar. Mikael não se dera conta de que era feriado de Pentecostes e que o jornal só sairia na terça-feira. Pôde utilizar a mesma mesa de trabalho da véspera e passou o dia escaneando. Por volta das seis, ainda restavam quarenta fotos da Festa das Crianças. Mikael examinou os negativos e concluiu que os belos primeiros planos com crianças ou as fotos de artistas em cena não tinham o menor interesse para ele. O que lhe interessava era a animação das ruas e da multidão.

Mikael passou toda a segunda-feira de Pentecostes examinando o novo material fotográfico. Fez duas descobertas. A primeira o encheu de consternação. A segunda fez seu coração bater mais rápido.

A primeira descoberta era sobre o rosto na janela do quarto de Harriet Vanger. A foto estava desfocada por causa da movimentação e por isso fora eliminada da coleção. O fotógrafo se posicionara diante da igreja e visara a ponte. As casas se achavam no plano de fundo. Mikael enquadrou a imagem de modo a recortar apenas a janela em questão, e a seguir fez diversas tentativas, ajustando o contraste e aumentando a precisão, até obter o que julgou ser a melhor qualidade possível.

O resultado foi uma imagem granulada de tons cinza, que mostrava uma janela retangular, uma cortina, a ponta de um braço e um rosto difuso em forma de meia-lua um pouco recuado no cômodo.

Constatou que o rosto não pertencia a Harriet Vanger, que tinha cabelos pretos, mas a uma pessoa com cabelos bem mais claros.

Constatou ainda que se podia distinguir partes mais escuras onde ficavam os olhos, o nariz e a boca, mas que era impossível obter traços nítidos do rosto. Estava convencido, porém, de que via uma mulher; a parte mais clara ao lado do rosto continuava até os ombros e indicava uma cabeleira feminina. Constatou que a pessoa usava roupas claras.

Fez uma estimativa da altura dela tomando por base a janela; uma mulher de cerca de um metro e setenta.

Ao fazer desfilar outras fotos do acidente da ponte, constatou que uma pessoa correspondia exatamente aos sinais que distinguia — Cecilia Vanger, aos vinte anos.

Kurt Nylund tirara ao todo dezoito fotos postado à janela do primeiro andar da Sundström, Moda Masculina. Harriet Vanger aparecia em dezessete. Harriet e suas colegas haviam chegado à rua da Estação no mesmo instante em que Kurt Nylund começara a fotografar. Mikael calculou que as fotos deviam ter sido tiradas num lapso de tempo de cinco minutos. Na primeira, Harriet e suas colegas estavam descendo a rua e entraram no campo da imagem. Nas fotos de 2 a 7 estavam imóveis, observando o desfile. Depois se deslocaram cerca de seis metros adiante na rua. Na última foto, talvez tirada um pouco mais tarde, o grupo inteiro havia desaparecido.

Mikael reuniu uma série de imagens na qual enquadrou Harriet da cintura para cima, tentando obter o melhor contraste. Colocou as fotos numa nova pasta, abriu o programa Graphic Converter e executou a função Diaporama. O efeito foi um filme mudo e entrecortado em que cada imagem aparecia durante dois segundos.

Harriet chega, foto de perfil. Harriet se detém e olha a calçada. Harriet vira o rosto para a rua. Harriet abre a boca para dizer alguma coisa à sua colega. Harriet ri. Harriet toca a orelha da colega com a mão esquerda. Harriet sorri. Harriet parece de repente surpresa, o rosto num ângulo de aproximadamente vinte graus à esquerda da objetiva. Harriet arregala os olhos e pára de sorrir. A boca de Harriet se transforma num traço estreito. Harriet fixa o olhar em alguma coisa. Em seu rosto se pode ler... o quê? Aflição, choque, raiva? Harriet baixa os olhos. Harriet não está mais lá.

Mikael repassou a sequência várias vezes.

Ela confirmava nitidamente a hipótese que ele formulara. Alguma coisa ocorreu na rua da Estação em Hedestad. A lógica era evidente.

Ela vê alguma coisa alguém do outro lado da rua. Está chocada. Mais tarde vai procurar Henrik Vanger para uma conversa particular que nunca aconteceu. Depois desaparece sem deixar vestígios.

Alguma coisa ocorreu naquele dia. Mas as fotos não explicavam o quê.

Às duas da manhã de terça-feira, Mikael fez café e preparou sanduíches que comeu sentado no banco da cozinha. Estava ao mesmo tempo desanimado e excitado. Contra todas as expectativas, ele havia descoberto novos indícios. O problema era que, se eles jogavam uma nova luz sobre os acontecimentos, não o faziam avançar um milímetro na solução do enigma.

Refletiu muito sobre o papel que Cecilia Vanger desempenhara no drama. Henrik Vanger descrevera em detalhe as atividades de todos os protagonistas naquele dia e Cecilia não fora exceção. Em 1966 ela morava em Uppsala, mas chegou a Hedeby dois dias antes daquele sábado funesto. Estava hospedada num quarto de hóspedes da casa de Isabella Vanger. Declarou ter visto Harriet de manhã, mas não chegou a falar com ela. No sábado foi a Hedestad fazer compras. Não viu Harriet e regressou à ilha por volta da uma da tarde, no momento em que Kurt Nylund tirava a série de fotos na rua da Estação. Trocou de roupa e às duas começou a ajudar a preparar a mesa para o almoço.

Como álibi, era fraco. As horas eram aproximadas, sobretudo no que dizia respeito a seu retorno à ilha, mas Henrik Vanger nunca duvidou um segundo de que ela pudesse ter mentido. Cecilia era uma das pessoas da família que Henrik queria bem. Além disso, fora amante de Mikael. Ele tinha dificuldade de ser objetivo e não podia de modo algum imaginá-la no papel de uma assassina.

E eis que agora uma foto na janela vinha insinuar que ela mentira ao dizer que não havia entrado no quarto de Harriet. Os pensamentos se engalfinhavam na cabeça de Mikael.

Se ela mentiu sobre isso, que outras mentiras teria contado?

Mikael fez um balanço do que sabia sobre Cecilia. Via-a como uma pessoa apesar de tudo reservada, aparentemente marcada pelo passado, e o resultado é que vivia sozinha, carente de vida sexual e com dificuldade de se aproximar das pessoas. Guardava distância dos outros e, quando por um momento se deixou levar e se lançou sobre um homem, escolheu Mikael, um estranho de passagem. Cecilia disse que estava rompendo a relação deles por não suportar a idéia de que ele ia desaparecer de sua vida de uma hora para a outra. Mas foi exatamente pela mesma razão, talvez, que ousou dar um passo e iniciar um caso com ele. Como se tratava de um caso passageiro, ela não precisava temer uma transformação radical de sua vida. Mikael suspirou e deixou essas especulações psicológicas de lado.

Ele fez a segunda descoberta nessa mesma noite. A chave do enigma — ele estava convencido — era o que Harriet tinha visto na rua da Estação em Hedestad. Mikael nunca saberia o que era, a não ser que inventasse uma máquina do tempo e se colocasse atrás de Harriet para olhar por cima de seu ombro.

No momento mesmo em que esse pensamento lhe aflorou ao espírito, ele bateu na testa com a palma da mão e precipitou-se ao notebook. Clicou para fazer surgir a série de imagens não recortadas da rua da Estação e... ali estava!

Atrás de Harriet Vanger, cerca de um metro à direita dela, havia um jovem casal, ele de suéter listado e ela com uma blusa clara. Ela segurava uma máquina fotográfica na mão. Mikael ampliou a foto e teve a impressão de ver uma Kodak Instamatic com flash embutido — um aparelho barato para pessoas que não entendem de fotografia.

A mulher mantinha o aparelho na altura do queixo. Depois o levantava e fotografava os palhaços, no momento em que o rosto de Harriet mudava de expressão.

Mikael comparou a posição da máquina com a direção do olhar de Harriet. A mulher havia fotografado quase exatamente o que Harriet Vanger estivera olhando.

De repente, Mikael tomou consciência de que seu coração batia com força. Jogou o corpo para trás e tirou o maço de cigarros do bolso da camisa. Alguém havia tirado uma foto. Mas como identificar essa mulher? Como obter sua foto? Teria o filme sido aproveitado e, nesse caso, a foto existiria em algum lugar?

Mikael abriu a pasta com as fotos que Kurt Nylund havia tirado da multidão. Passou a hora seguinte ampliando cada fotografia e examinando-a centímetro quadrado por centímetro quadrado. Reencontrou o casal exatamente na última. Kurt Nylund havia fotografado outro palhaço, com balões na mão, posando diante da objetiva com um eternizado sorriso nos lábios. A foto fora tirada no estacionamento junto à praça de esportes onde se realizava a festa. Deve ter sido depois das duas da tarde — a seguir Nylund fora avisado do acidente com o caminhão-tanque e interrompera a cobertura da Festa das Crianças.

A mulher estava quase inteiramente oculta, mas via-se com clareza o perfil do homem de suéter listado. Ele tinha chaves na mão e se inclinava para abrir a porta de um carro. A imagem mostrava o palhaço em primeiro plano e a foto estava ligeiramente desfocada. Não se via toda a placa, mas ela começava por AC3 alguma coisa.

As placas dos veículos nos anos 1960 começavam com a letra das regiões, e Mikael aprendera, quando criança, a identificar a proveniência dos carros. AC designava o Västerbotten.

Depois Mikael identificou outra coisa. No vidro traseiro havia um adesivo. Deu um zoom, porém o texto desapareceu numa mancha. Realçou o adesivo e levou algum tempo trabalhando no contraste e na nitidez. Não conseguia ler o texto, mas se baseou nas formas imprecisas para determinar a que letras podiam corresponder. Muitas se assemelhavam. Um O podia ser tomado por um D, um B por um E ou várias outras letras. Trabalhando com papel e lápis, e após eliminar algumas letras, deparou com um texto incompreensível.

Fixou a imagem até seus olhos doerem. E então o texto apareceu: MARCENARIA DE NORSJÖ, seguido de sinais menores e impossíveis de ler, mas que formavam, provavelmente, um número telefônico.


17. QUARTA-FEIRA 11 DE JUNHO — SÁBADO 14 DE JUNHO

Quanto à terceira peça do quebra-cabeça, Mikael recebeu uma ajuda inesperada.

Depois de trabalhar nas fotos a noite toda, dormiu pesadamente até o meio-dia. Acordou com uma dor de cabeça difusa, tomou um banho e foi até o Café Susanne fazer seu desjejum. Não conseguia juntar as idéias. Deveria ir ver Henrik Vanger e relatar suas descobertas. Em vez disso, foi bater à porta de Cecilia. Queria lhe perguntar o que fora fazer no quarto de Harriet e por que mentira, dizendo que não havia ido lá. Ninguém atendeu.

Ele estava deixando o local quando ouviu uma voz.

— A sua puta não está em casa.

O Gollum acabava de sair da caverna. Era alto, quase dois metros de altura, mas tão curvado pela idade que os olhos ficavam na altura dos de Mikael. A pele estava manchada de sardas escuras. Vestia um pijama e um robe marrom e se apoiava numa bengala. Parecia a versão hollywoodiana do velho rabugento.

— Que foi que o senhor disse?

— Eu disse que a sua puta não está em casa.

Mikael se aproximou até quase tocar o nariz de Harald Vanger.

— E de sua própria filha que está falando, seu velho indecente.

— Não sou eu que venho vagar aqui à noite — respondeu Harald Vanger com um sorriso desdentado. Seu hálito fedia. Mikael desviou-se dele e prosseguiu seu caminho sem se virar. Foi até a casa de Henrik Vanger e o encontrou em seu escritório.

— Acabo de encontrar seu irmão — disse Mikael —, e ele mal pôde conter sua rabugice.

— Harald? Ora vejam, então ele ousou uma saída! Isso acontece uma ou duas vezes por ano.

— Eu batia à porta de Cecilia quando ele apareceu. Ele falou, abre aspas: A sua puta não está em casa. Fecha aspas.

— É bem coisa do Harald — disse Henrik Vanger calmamente.

— Ele chama de puta a própria filha!

— Há anos age assim. Por isso não se falam mais.

— Por quê?

— Cecilia perdeu a virgindade quando tinha vinte e um anos. Aconteceu aqui em Hedestad, uma história de amor que ela teve durante o verão, um ano após o desaparecimento de Harriet.

— E aí?

— O homem que ela amava chamava-se Peter Samuelsson, trabalhava no grupo Vanger como assistente financeiro. Um rapaz inteligente. Hoje trabalha para a ABB. Eu me orgulharia de tê-lo como genro se ela fosse minha filha. Mas ele tinha um defeito.

— Acho que posso adivinhar qual é.

— Harald mediu-lhe o crânio, ou verificou sua árvore genealógica, ou qualquer coisa que o valha, e descobriu que tinha antepassados judeus.

— Santo Deus!

— Desde então passou a chamá-la de puta.

— Ele sabia que Cecilia e eu...

— Todo o povoado sabe, imagino, talvez com exceção de Isabella, porque nenhuma pessoa razoável iria lhe contar qualquer coisa e por sorte ela tem o hábito de ir dormir às dez da noite. Harald provavelmente acompanhou o menor dos seus passos.

Mikael sentou-se. Sentia-se meio estúpido.

— Quer dizer então que todo mundo está sabendo...

— Evidentemente.

— E você não tem nada contra?

— Querido Mikael, isso realmente não me diz respeito.

— Onde está ela, Cecilia?

— O ano escolar terminou. No sábado passado ela viajou a Londres para visitar a irmã e depois vai partir de férias para... humm... a Flórida, acho. Voltará daqui a um mês.

Mikael se sentiu ainda mais estúpido.

— Resolvemos, digamos assim, suspender a nossa relação.

— Entendo, mas também não é da minha conta. Como vai o trabalho?

Mikael serviu-se de café da garrafa térmica de Henrik. Olhou para o velho.

— Descobri uma novidade e vou precisar que alguém me empreste um carro.

Mikael passou longo tempo expondo suas conclusões. Tirou o notebook da mochila e apresentou a série de fotos que mostravam a reação de Harriet na rua da Estação. Mostrou também como descobrira os fotógrafos amadores e seu carro com o adesivo da Marcenaria de Norsjö. Quando terminou sua exposição, Henrik pediu para rever a sequência de fotos. Mikael tornou a passar.

Quando Henrik levantou os olhos da tela do computador, seu rosto estava pálido. Mikael sentiu um medo súbito e pôs a mão no ombro dele. Henrik fez-lhe um sinal para tranquilizá-lo e permaneceu silencioso por um momento.

— Você fez o que eu achava impossível! Descobriu algo totalmente novo. O que vai fazer agora?

— Preciso encontrar essa foto, se é que ainda existe.

Mikael nada disse sobre o rosto na janela e a suspeita contra Cecilia. O que provavelmente indicava que estava longe de ser um detetive particular objetivo.

Quando Mikael saiu, Harald Vanger havia desaparecido, certamente de volta à sua caverna. Ao fazer a curva, viu alguém de costas junto à entrada de sua casa, lendo um jornal. Por um segundo, imaginou que fosse Cecilia Vanger, mas logo viu que não. Ao se aproximar, reconheceu imediatamente a própria filha.

— Oi, papai — disse Pernilla Abrahamsson. Mikael estreitou a filha nos braços.

— Mas de onde você está vindo?!

— De casa, é claro. Vou a Skelleftea. Vim passar uma noite aqui.

— E como me descobriu?

— Mamãe sabia e perguntei ali no café onde você morava. Indicaram-me esta casa. Está contente de me ver?

— Claro que sim. Entre. Devia ter me avisado, eu teria comprado alguma coisa gostosa para comer.

— Pensei em te avisar, mas depois resolvi fazer uma surpresa para comemorar a sua saída da prisão, e você também nunca me telefonou.

— Desculpe.

— Tudo bem. Mamãe diz que você está sempre mergulhado nos seus pensamentos.

— É isso que ela fala de mim?

— Mais ou menos. Mas não faz mal. Mesmo assim eu te amo.

— Eu também, mas quero que você saiba...

— Eu sei. Acho que sou bastante madura para a minha idade.

Mikael preparou chá e serviu alguns petiscos. De repente percebeu que o que a filha dissera era verdade. Ela não era mais uma menina, tinha quase dezessete anos e em breve seria uma mulher adulta. Ele precisava aprender a não tratá-la mais como uma criança.

— E então, como foi?

— O quê?

— A prisão.

— Acredita se eu disser que foi como umas férias remuneradas para apenas pensar e escrever?

— Acredito. Acho que não há muita diferença entre uma prisão e um convento, e as pessoas sempre entram no convento para evoluir.

— Bem, é uma maneira de ver as coisas. Espero que não venha a ter problemas porque seu pai esteve na prisão.

— De modo nenhum. Estou orgulhosa e não perco uma ocasião para sublinhar que você foi preso por suas convicções.

— Minhas convicções?

— Vi Erika Berger na tevê.

Mikael empalideceu. Ele não pensara na filha quando Erika montou a estratégia, e ela o julgava totalmente inocente.

— Pernilla, eu não sou inocente. Lamento não poder falar do que se passou, mas não fui injustamente condenado. O tribunal emitiu a sentença baseado no que ficou sabendo durante o processo.

— Mas você não contou sua versão.

— Não, porque não posso prová-la. Cometi uma gafe monumental e por isso fui obrigado a ir para a prisão.

— Certo. Mas responda à minha pergunta: Wennerström é ou não é um crápula?

— É um dos crápulas mais sinistros que já conheci.

— Está vendo? Isso basta. Trouxe um presente para você.

Tirou um pacote da sacola. Mikael abriu e encontrou um CD com as melhores músicas do Eurythmics. Ela sabia que era uma de suas bandas favoritas. Ele transferiu imediatamente o CD para o notebook e escutaram juntos "Sweet dreams".

— O que vai fazer em Skelleftea? — perguntou Mikael.

— É uma reunião de estudos bíblicos com uma congregação chamada Luz da Vida — respondeu Pernilla, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Mikael sentiu um calafrio percorrer-lhe o corpo.

Percebeu o quanto sua filha e Harriet se assemelhavam. Pernilla tinha dezesseis anos, assim como Harriet quando desapareceu. Ambas tinham um pai ausente. Ambas sentiram uma atração religiosa por seitas menores; Harriet na comunidade local dos pentecostais e Pernilla na sucursal de algo tão bizarro como essa Luz da Vida.

Mikael não sabia muito bem como lidar com o interesse novo da filha pela religião. Tinha medo de interferir no seu direito de decidir por si mesma o caminho que queria seguir na vida. Por outro lado, Luz da Vida era exatamente o tipo de congregação sobre a qual ele e Erika não hesitariam em fazer uma reportagem de denúncia na Millennium. Decidiu debater a questão com a mãe de Pernilla na primeira oportunidade.

* * *

Pernilla dormiu na cama de Mikael e ele passou a noite no banco da cozinha. Despertou com torcicolo e com os músculos doloridos. Como Pernilla tinha pressa de prosseguir sua viagem, Mikael preparou logo o café-da-manhã e a acompanhou até a estação. Restavam-lhes alguns momentos antes de o trem partir. Compraram café numa lanchonete e instalaram-se num banco na extremidade da plataforma, conversando sobre vários assuntos. Pouco antes da chegada do trem, Pernilla falou:

— Acho que você não está gostando muito de eu ir a Skelleftea. Mikael não soube o que responder. Ela continuou:

— Não se preocupe. Mas você não é crente, é?

— Não. Pelo menos não um bom crente.

— Não acredita em Deus?

— Não, não acredito. Mas respeito a sua crença. Todo mundo precisa acreditar em alguma coisa.

Quando o trem chegou à estação, eles se abraçaram demoradamente. No momento em que subia a bordo, Pernilla se voltou.

— Papai, não estou querendo fazer proselitismo. Você é livre para acreditar no que bem quiser que eu vou sempre te amar. Mas acho que deveria perseverar nos seus estudos bíblicos.

— Como assim?

— Vi as citações na parede do seu quarto — ela disse. — Por que você foi procurar passagens tão sinistras? Um beijo. Tchau.

Ela acenou com a mão e entrou no trem. Perplexo, Mikael ficou na plataforma vendo o trem sumir em direção ao norte. O último vagão já desaparecia na curva quando finalmente o significado do comentário dela lhe aflorou à consciência, junto com uma sensação gelada no peito.

Mikael se precipitou para fora da estação e consultou as horas. Só haveria ônibus para Hedeby dali a quarenta minutos. Seus nervos não suportariam a espera. Correu até o ponto de táxi do outro lado da esplanada da estação e encontrou Hussein com seu sotaque carregado.

Dez minutos depois, Mikael pagava a corrida e entrava em sua saleta de trabalho. O pedaço de papel estava preso com durex acima da escrivaninha.

Olhou ao redor. Depois lembrou onde poderia encontrar uma Bíblia. Pegou o pedaço de papel, encontrou as chaves que deixara dentro de uma tigela na beirada da janela e correu até a cabana de Gottfried. Suas mãos estavam quase tremendo quando pegou a Bíblia de Harriet na prateleira.

Não eram números telefônicos que Harriet havia anotado. Os algarismos indicavam capítulos e versículos do Levítico, o terceiro livro do Pentateuco. Os castigos.

(Magda), Levítico, capítulo XX, versículo 16:

"Se uma mulher se aproximar de um animal para se prostituir com ele, será morta juntamente com o animal. Serão mortos e levarão a sua iniquidade."

(Sara), Levítico, capítulo XXI, versículo 9:

"Se a filha de um sacerdote se desonrar pela prostituição, ela desonra o pai; será

queimada no fogo."

(Rj), Levítico, capítulo I, versículo 12:

"A seguir a vítima será cortada em pedaços, com a cabeça e a gordura, que o sacerdote disporá sobre a lenha colocada sobre o fogo do altar."

(rl), Levítico, capítulo XX, versículo 27:

"Qualquer homem ou mulher que evocar os espíritos ou fizer adivinhações será

morto. Serão apedrejados e levarão a sua culpa."

(Mari), Levítico, capítulo XX, versículo 18:

"Se um homem dormir com uma mulher durante o tempo de sua menstruação e vir a sua nudez, descobrindo o seu fluxo e descobrindo-o ela mesma, serão ambos cortados do meio de seu povo."

Mikael saiu e sentou-se no patamar em frente à casa. Sem dúvida, era a isso que Harriet se referia quando anotou os algarismos na sua agenda de telefones. Cada citação estava cuidadosamente sublinhada na Bíblia de Harriet. Ele acendeu um cigarro e ficou escutando o canto dos pássaros.

Havia entendido os números, mas não os nomes: Magda, Sara, Mari, RJ e RL.

De repente, um abismo se abriu quando o cérebro de Mikael deu um salto intuitivo. Lembrou-se do sacrifício pelo fogo em Hedestad de que lhe falara o inspetor Gustav Morell: o caso Rebecka nos anos 1940, a jovem violentada e assassinada. Para matá-la, haviam posto sua cabeça sobre carvões ardentes. "A seguir a vítima será cortada em pedaços, com a cabeça e a gordura, que o sacerdote disporá sobre a lenha colocada sobre o fogo do altar." Rebecka. RJ. Qual era o sobrenome dela?

Santo Deus! Com que história de gente maluca Harriet havia se metido?

Henrik Vanger adoecera e fora se deitar à tarde, explicaram a Mikael quando ele bateu à sua porta. Mesmo assim Anna o fez entrar e ele viu o velho durante alguns minutos.

— Um resfriado de verão — explicou Henrik, fungando. — O que o traz aqui?

— Uma pergunta.

— Diga.

— Ouviu falar de um assassinato cometido aqui em Hedestad nos anos 1940? Uma moça chamada Rebecka, que foi morta por terem posto sua cabeça numa lareira?

— Rebecka Jacobsson — disse Henrik sem hesitar um segundo. — Jamais vou esquecer esse nome, mas fazia anos que eu não ouvia ninguém mencioná-lo.

— Lembra como foi o assassinato?

— E como! Rebecka Jacobsson tinha vinte e três ou vinte e quatro anos quando foi morta. Isso deve ter acontecido... acho que foi em 1949. Houve um grande inquérito, no qual tive uma pequena participação.

— Você? — exclamou Mikael, surpreso.

— Sim. Rebecka Jacobsson trabalhava num dos escritórios do grupo Vanger. Uma moça bastante conhecida, e muito bonita. Mas por que essas perguntas sobre ela de repente?

Mikael não sabia bem o que dizer. Levantou-se e se aproximou da janela.

— Não sei exatamente, Henrik, talvez eu tenha descoberto alguma coisa, mas primeiro preciso refletir um pouco.

— Está querendo me dizer que existe uma ligação entre Harriet e Rebecka? Transcorreram... mais de dezessete anos entre os dois acontecimentos.

— Dê-me mais algum tempo para refletir. Voltarei amanhã, se você estiver melhor.

Mikael não encontrou Henrik Vanger no dia seguinte. Um pouco antes da uma da manhã, ainda estava sentado à mesa da cozinha lendo a Bíblia de Harriet, quando ouviu o ruído de um carro atravessando a ponte em alta velocidade. Olhou pela janela e viu a luz giratória azul de uma ambulância.

Tomado de um mau pressentimento, Mikael precipitou-se atrás da ambulância. Ela estacionara em frente à casa de Henrik. Havia luz no andar de baixo e Mikael logo percebeu que algo acontecera. Subiu depressa a escada da frente e deu de cara com Anna Nygren, muito perturbada no vestíbulo.

— O coração — ela disse. — Ele me chamou há pouco e se queixou de dor no peito. Depois desmaiou.

Mikael estreitou nos braços a leal governanta e ali permaneceu até que os enfermeiros descessem com um Henrik Vanger inconsciente numa padiola. Martin Vanger, visivelmente aflito, logo chegou. Já havia se deitado quando Anna o avisou; estava com os pés nus metidos num par de pantufas e com a braguilha aberta. Saudou Mikael brevemente e se voltou para Anna.

— Eu vou com ele para o hospital. Chame Birger e tente entrar em contato com Cecilia em Londres. E avise Dirch Frode.

— Posso ir até a casa de Frode — propôs Mikael. — Anna fez um sinal de agradecimento com a cabeça.

Bater à porta de alguém depois da meia-noite em geral significa más notícias, pensou Mikael ao pôr o dedo na campainha de Dirch Frode. Esperou vários minutos até que ele viesse abrir a porta, ainda sonolento.

— Tenho más notícias. Acabam de levar Henrik Vanger para o hospital. Parece que foi um infarto. Martin me pediu que eu viesse até aqui avisá-lo.

— Meu Deus — disse Frode. Consultou o relógio. — Hoje é sexta-feira 13 — acrescentou, com uma lógica incompreensível e um ar de perplexidade.

Mikael voltou para casa às duas e meia da manhã. Hesitou um instante, mas depois resolveu não telefonar para Erika naquele momento. Só por volta das dez da manhã, depois de falar brevemente com Dirch Frode pelo celular e de ficar sabendo que Henrik Vanger continuava vivo, é que chamou Erika para informar que o novo sócio da Millennium fora hospitalizado, vítima de um infarto. Como era de se esperar, seu anúncio foi recebido com tristeza e inquietação.

Mais tarde, Dirch Frode passou na casa de Mikael levando notícias detalhadas sobre o estado de saúde de Henrik.

— Ele está vivo, mas nada bem. Teve um infarto sério, agravado por uma espécie de infecção.

— Chegou a vê-lo?

— Não. Está na UTI. Martin e Birger estão com ele.

— Qual é o prognóstico?

Dirch Frode balançou a mão de um lado para o outro.

— Ele sobreviveu ao infarto, e isso é sempre um bom sinal. Seu estado geral de saúde é excelente, mas é um homem idoso. Só nos resta esperar.

Calaram-se, refletindo por um momento. Mikael serviu café. Dirch Frode parecia desanimado.

— Preciso lhe fazer algumas perguntas sobre como vão ficar as coisas — disse Mikael.

Frode olhou para ele.

— Nada vai mudar no que diz respeito ao seu emprego. As condições estão definidas num contrato válido até o fim do ano, esteja Henrik Vanger vivo ou não. Não se preocupe.

— Não me refiro a isso. Gostaria de saber a quem devo entregar meus relatórios na ausência dele.

Dirch Frode suspirou.

— Mikael, você sabe tão bem quanto eu que toda essa história de Harriet Vanger é um passatempo para Henrik.

— Não estou tão certo disso.

— O que está querendo dizer?

— Descobri novos indícios — respondeu Mikael. — Ontem falei um pouco sobre isso com Henrik. Receio até que possa ter contribuído para provocar seu infarto.

Dirch Frode lançou um olhar estranho para Mikael.

— Você está brincando.

Mikael balançou negativamente a cabeça.

— Dirch, nos últimos dias desenterrei mais material sobre o desaparecimento de Harriet do que fez o inquérito oficial em trinta e cinco anos. Meu problema agora é que não definimos a quem entrego meu relatório na ausência de Henrik.

— Pode entregá-lo a mim.

— Certo. Preciso prosseguir nesse caminho. Você dispõe de algum tempo? Mikael relatou suas novas descobertas tão didaticamente quanto possível.

Mostrou a sequência de fotos da rua da Estação e expôs sua teoria. A seguir explicou como sua própria filha o levara a elucidar o mistério da agenda telefônica de Harriet. Para terminar, mencionou o brutal assassinato de Rebecka Jacobsson ocorrido em 1949.

A única informação que omitiu foi sobre o rosto de Cecilia Vanger na janela de Harriet. Queria primeiro falar com ela, antes de deixá-la numa posição em que pudessem suspeitar dela.

Rugas grossas de preocupação apareceram na testa de Dirch Frode.

— Está querendo me dizer que o assassinato de Rebecka tem algo a ver com o desaparecimento de Harriet?

— Não sei. Parece improvável, mas ao mesmo tempo há o fato de Harriet ter anotado as iniciais RJ na sua agenda com a remissão à lei bíblica sobre os holocaustos ritualistas. Rebecka Jacobsson foi queimada viva. A ligação com a família Vanger é evidente: ela trabalhava para o grupo Vanger.

— E como explica tudo isso?

— Ainda não sei. Mas quero seguir em frente e vou considerá-lo o representante de Henrik. Tomará as decisões no lugar dele.

— Talvez devêssemos informar a polícia.

— Não. De qualquer forma, não sem a autorização de Henrik. O assassinato de Rebecka está prescrito há muito tempo e o caso foi arquivado. Eles não vão reabrir o inquérito de um crime cometido há cinquenta e quatro anos.

— Entendo. E o que pretende fazer então? Mikael levantou-se e deu a volta ao redor da mesa.

— Primeiro gostaria de seguir a pista da foto. Se conseguirmos ver o que Harriet viu, acho que teremos aí uma chave. Em segundo lugar, preciso de um carro para ir a Norsjö e ver até onde essa pista me leva. E, em terceiro, gostaria de pesquisar essas citações bíblicas. Fizemos a ligação entre uma delas e um assassinato particularmente terrível. Restam outras quatro. Para conseguir isso... vou precisar de ajuda.

— Que espécie de ajuda?

— Preciso de um assistente de pesquisa que saiba vasculhar arquivos antigos de imprensa e encontre Magda, Sara e os outros nomes. Se eu não estiver enganado, Rebecka não foi a única vítima.

— Está querendo que mais alguém participe desse segredo...

— De repente estamos com uma quantidade enorme de pesquisas para serem feitas. Se eu fosse o tira responsável por alguma investigação, poderia poupar tempo e recursos e destacar muita gente para essas pesquisas. Preciso de um profissional que entenda de arquivos e que ao mesmo tempo seja de confiança.

— Entendo... Na verdade, conheço uma pessoa realmente competente. Foi ela quem fez a investigação sobre você — disse Frode, antes de se dar conta do que tinha dito.

— Fez o quê? — perguntou Mikael com voz imperiosa.

Dirch Frode percebeu tarde demais que falara mais do que devia. Estou ficando velho, pensou.

— Pensei em voz alta. Não é nada — tentou dizer.

— Mandou fazer uma investigação sobre mim?

— Nada de dramático, Mikael. Como queríamos contratá-lo, fomos verificar que tipo de homem você é.

— Então é por isso que Henrik Vanger sempre parece saber exatamente qual é a minha situação. E essa investigação? Foi muito aprofundada?

— Sim, bastante aprofundada.

— Levantou os problemas da Millennium? Dirch Frode encolheu os ombros.

— Era necessário.

Mikael acendeu um cigarro. O quinto do dia. Percebeu que aquilo estava virando um hábito.

— Houve um relatório por escrito?

— Mikael, não dê tanta importância a isso.

— Quero ler esse relatório — disse.

— Veja, Mikael, não há nada de extraordinário. Apenas quisemos saber um pouco mais sobre você antes de contratá-lo.

— Quero ler esse relatório — repetiu Mikael.

— Somente Henrik pode dar a permissão.

— Ah é? Então vou dizer de outro modo: quero esse relatório nas minhas mãos dentro de uma hora. Do contrário, peço demissão imediatamente e pego o trem da noite para Estocolmo. Onde está o relatório?

Dirch Frode e Mikael Blomkvist mediram-se com os olhos por alguns segundos. Frode então suspirou e baixou os olhos.

— Na minha casa, na minha mesa.

O caso Harriet, sem dúvida, era a história mais bizarra com a qual Mikael Blomkvist já se envolvera. De modo geral, o último ano, desde a publicação da história de Hans-Erik Wennerström, não fora senão uma longa série de montanhas-russas — com grandes quedas livres. E aparentemente não havia terminado.

Dirch Frode ainda tentou ganhar tempo e Mikael só pôs as mãos no relatório de Lisbeth Salander às seis da tarde. Um pouco mais de oitenta páginas de análise e cem páginas de cópias de artigos, diplomas e outros detalhes marcantes da vida de Mikael.

Foi uma experiência estranha ver-se descrito no que podia ser considerado uma combinação de biografia com relatório de serviço secreto. Mikael ficou pasmo de ver como o relatório era detalhado. Lisbeth Salander apresentava detalhes que ele acreditava enterrados para sempre no húmus da história. Revelava uma ligação de sua juventude com uma sindicalista brilhante, atualmente dedicada em tempo integral à política. Quem contou a ela essa história? Mencionava seu grupo de rock Bootstrap, do qual certamente ninguém mais devia se lembrar. Examinava com detalhes suas finanças. Mas que diabos! Como ela conseguiu?

Como jornalista, Mikael passara anos buscando informações com diferentes pessoas e por isso era capaz de avaliar profissionalmente a qualidade desse trabalho. Lisbeth Salander era, sem a menor dúvida, um ás da pesquisa. Ele mesmo não se achava capaz de produzir um relatório como aquele, sobre uma pessoa totalmente desconhecida.

Mikael concluiu que não houve razão para que ele e Erika tivessem mantido uma distância polida na frente de Henrik Vanger; ele conhecia muito bem a relação dos dois e o triângulo que formavam com Lars Beckman. Lisbeth Salander também avaliara com espantosa exatidão a situação da Millennium; Henrik Vanger sabia o quanto as coisas iam mal quando entrou em contato com Erika e se ofereceu como sócio. Qual era exatamente o jogo dele?

O caso Wennerström era abordado apenas superficialmente, mas Lisbeth Salander com certeza assistira a algumas audiências no tribunal. Ela também comentava a estranha recusa de Mikael em se pronunciar durante o processo. Uma garota esperta, seja ela quem for.

Um segundo depois, Mikael ficou estarrecido, sem acreditar no que lia. Lisbeth Salander escrevera um breve texto sobre como vira a sequência de acontecimentos depois do processo. Reproduzia quase literalmente o comunicado de imprensa que ele e Erika enviaram quando ele deixou o cargo de editor responsável da Millennium.

Lisbeth Salander teria usado o rascunho original dele? Ele olhou outra vez a primeira página do relatório. A data era anterior ao comunicado à imprensa, três dias antes de Mikael Blomkvist receber sua sentença. Impossível.

Até então o comunicado só existia num único lugar do mundo: no computador de Mikael. Em seu notebook pessoal, não no computador que ele usava na redação. O texto nunca fora impresso. A própria Erika Berger não tinha uma cópia dele, embora os dois tivessem discutido em linhas gerais o assunto.

Mikael Blomkvist pousou lentamente o relatório que Lisbeth Salander fizera sobre ele. Decidiu não fumar mais um cigarro. Em vez disso, pôs um blusão e saiu na noite clara, uma semana antes do solstício de verão. Seguiu pela praia ao longo do canal, passou em frente da casa de Cecilia Vanger, depois diante do luxuoso iate ancorado defronte à casa de Martin Vanger. Caminhava devagar e refletia. Por fim, sentou-se numa pedra e olhou as luzes das balizas piscando na baía de Hedestad. Só havia uma conclusão possível.

Você entrou no meu computador, senhorita Salander, disse a si mesmo em voz alta. Você é uma hacker fodida!


18. QUARTA-FEIRA 18 DE JUNHO

Lisbeth Salander emergiu sobressaltada de um sono sem sonhos. Sentia uma ligeira náusea. Não precisou virar a cabeça para saber que Mimmi já fora trabalhar, mas o cheiro dela permanecia no ar confinado do quarto. Havia bebido cerveja demais na reunião de terça à noite no Moulin com as Evil Fingers. Pouco antes de o bar fechar, Mimmi aparecera e a acompanhara até sua casa e até sua cama.

Ao contrário de Mimmi, Lisbeth Salander nunca se considerou uma autêntica lésbica. Nunca se preocupou em saber se era hétero, homo ou talvez bissexual. De modo geral, dava pouca importância a rótulos e achava que não competia a ninguém saber com quem ela passava a noite. Se fosse absolutamente necessário escolher, sua preferência sexual seria os rapazes — pelo menos eles lideravam as estatísticas. O único problema era encontrar um que não fosse um debilóide e fosse bom de cama, e Mimmi representava uma boa solução-tampão, capaz de mantê-la acesa. Ela a conhecera um ano antes numa barraca de cerveja da festa do Orgulho Gay, e fora a única pessoa que Lisbeth tinha apresentado às Evil Fingers. A relação se manteve com altos e baixos ao longo do ano, mas ainda não ia além de um passatempo para ambas. Mimmi era um corpo gostoso junto ao qual Lisbeth podia se aquecer, e também um ser humano em cuja companhia era bom acordar de manhã e fazer o desjejum.

O relógio na mesa-de-cabeceira indicava nove e meia e ela se perguntava o que a fizera acordar, quando a campainha da porta tocou de novo. Atônita, sentou-se na cama. Ninguém jamais tocava a sua campainha àquela hora da manhã. Aliás, quase ninguém tocava a sua campainha. Ainda sonolenta, enrolou-se no lençol e foi cambaleando até o vestíbulo para abrir a porta. Viu-se cara a cara com Mikael Blomkvist, sentiu o pânico invadir seu corpo e sem querer deu um passo para trás.

— Bom dia, senhorita Salander — ele saudou cordialmente. — Vejo que a noite foi movimentada. Posso entrar?

Sem esperar ser convidado, ele passou pela porta e a fechou atrás de si. Contemplou com curiosidade as roupas espalhadas no chão do vestíbulo, as pilhas de jornais, e lançou um olhar pela porta do quarto, enquanto o mundo de Lisbeth Salander parecia oscilar — quem, o quê, como? Mikael Blomkvist divertia-se com o olhar espantado dela.

— Como achei que você ainda não havia tomado o café-da-manhã, trouxe uns sanduíches. Um de rosbife, um de peru com mostarda de Dijon e um vegetariano com abacate. Não sei qual você prefere. O de rosbife? — Ele desapareceu na cozinha e logo encontrou a cafeteira elétrica. — Onde guarda o café? — perguntou. Salander permaneceu como que paralisada no vestíbulo até ouvir a torneira ser aberta. Deu três passos rápidos.

— Pare! — Percebeu que dera um grito e baixou o tom. — Não pode ir entrando assim na casa das pessoas, porra! Aqui não é a sua casa. Nós nem nos conhecemos.

Mikael Blomkvist parou de pôr água na cafeteira e virou a cabeça na direção dela. Respondeu com uma voz grave.

— Negativo! Você me conhece melhor que a maioria das pessoas. Não é mesmo?

E virou-se para continuar enchendo a cafeteira com água. Depois começou a abrir as portas do armário da cozinha.

— Aliás, eu sei como você faz. Conheço os seus segredos.

Lisbeth Salander fechou os olhos e quis que o chão se abrisse sob seus pés. Sentia-se num estado de paralisia mental. Estava com a boca seca. A situação era irreal e seu cérebro recusava-se a funcionar. Nunca antes havia estado face a face com um de seus objetos de investigação. Ele sabe onde eu moro! Ele estava em sua cozinha. Impossível! Isso não podia estar acontecendo. Ele sabe quem eu sou!

De repente ela se deu conta de que o lençol escorregara e o apertou ainda mais em volta do corpo. Ele disse alguma coisa que ela no começo não entendeu.

— Eu e você precisamos conversar — ele repetiu. — Mas tenho a impressão de que primeiro você precisa tomar um banho.

Ela tentou se expressar de modo coerente.

— Olha aqui, se veio criar problema, não é comigo que deve falar. Fiz um trabalho. Vá discutir com o meu chefe.

Ele se plantou diante dela e levantou as mãos, com as palmas à vista. Não estou armado. Um sinal de paz universal.

— Já falei com Dragan Armanskij. Aliás, ele pediu para você ligar, mas você não respondeu à chamada dele no celular ontem à noite.

Ele se aproximou. Ela não se sentiu ameaçada, mas recuou alguns centímetros quando ele roçou em seu braço e indicou a porta do banheiro. Não gostava de que a tocassem sem autorização, mesmo com intenção amistosa.

— Não vim criar problema — disse ele com uma voz calma. — Mas preciso muito falar com você. Assim que tiver despertado, é claro. O café estará pronto quando estiver vestida. Vamos, vá tomar seu banho.

Ela obedeceu passivamente. Lisbeth Salander nunca é passiva, pensou.

No banheiro, ela se apoiou contra a porta e tentou juntar os pensamentos. Estava mais abalada do que achava que devia ficar. Depois, lentamente tomou consciência de que sua bexiga estava a ponto de explodir e de que um banho não era apenas um bom conselho mas uma necessidade após a noite agitada. Quanto terminou, entrou no quarto, vestiu uma calcinha, um jeans e uma camiseta com a inscrição Armageddon was yesterday today we have a serious problem.

Após um segundo de reflexão, pegou a jaqueta de couro que deixara sobre uma cadeira. Tirou do bolso o bastão elétrico, verificou se estava carregado e o colocou no bolso de trás do jeans. Um cheiro de café se espalhou pelo apartamento. Ela respirou fundo e voltou para a cozinha.

— Nunca limpa a casa? — perguntou Mikael em tom brincalhão.

Ele havia posto toda a louça suja na pia, esvaziado os cinzeiros, jogado fora as caixas de leite vazias, limpado a mesa atulhada de jornais de cinco semanas, distribuído nela as xícaras e — viu que não tinha sido brincadeira — os sanduíches prontos. Pareciam apetitosos e Lisbeth realmente tinha fome depois da noite com Mimmi. Está bem, veremos aonde tudo isso vai levar. Ela se instalou diante dele, com um pé atrás.

— Não respondeu à minha pergunta. Rosbife, peru ou vegetariano?

— Rosbife.

— Fico então com o de peru.

Comeram em silêncio, observando-se mutuamente. Quando ela terminou o sanduíche, devorou também a metade do vegetariano. Encontrou um maço de cigarros amarrotado na beirada da janela e tirou um de lá.

Ele rompeu o silêncio.

— Talvez eu não seja tão bom como você em investigações pessoais, mas noto que não é nem vegetariana nem — como pensava Dirch Frode — anoréxica. Vou incluir esses dados no meu relatório a seu respeito.

Salander o encarou, mas ao ver sua expressão percebeu que ele estava brincando com ela. Parecia divertir-se tanto que ela não pôde deixar de retribuir com um sorriso de esguelha. A situação era absurda. Ela afastou o prato. Os olhos desse cara eram amistosos. Concluiu, por fim, que não era um mau sujeito. A investigação que ela fizera também não dava a entender que fosse um cafajeste pronto para espancar suas companheiras, ou coisa do gênero. Lembrou que ela é que sabia tudo a respeito dele — não o contrário. Conhecimento é poder.

Do que está rindo? — ela perguntou.

— Desculpe. É que não imaginei que fosse ser assim. Não tinha a intenção de assustá-la, mas foi o que aconteceu. Precisava ter visto a sua cara quando abriu a porta. Impagável. Não resisti à tentação de brincar um pouco com você.

Silêncio. Para a sua grande surpresa, Lisbeth Salander achou aceitável, de repente, a companhia daquele intruso — ou pelo menos não desagradável.

— Considere que me vinguei por você ter vasculhado a minha vida — disse ele num tom alegre. — Está com medo de mim?

— Não — respondeu Salander.

— Melhor. Não estou aqui para lhe fazer mal nem para criar problemas.

— Se tentar me tocar, eu lhe farei muito mal. Sério.

Mikael a observou. Ela media pouco mais de um metro e meio e parecia não ter como se defender se ele fosse um malfeitor que tivesse entrado em seu apartamento. Mas os olhos dela eram inexpressivos e calmos.

— Não será necessário — ele disse por fim. — Minhas intenções são boas. Preciso falar com você. Se quiser que eu vá embora, é só dizer. — Refletiu um segundo. — E curioso, tenho a impressão de... não, nada — ele se interrompeu.

— Diga.

— Não sei se o que vou dizer faz sentido, mas há quatro dias eu nem sabia da sua existência. Depois li a avaliação que você fez de mim — remexeu dentro da bolsa e encontrou o relatório —, o que não foi exatamente uma leitura divertida.

Calou-se e olhou um momento pela janela.

— Será que posso filar um cigarro seu? — Ela empurrou o maço na direção dele.

— Você disse agora há pouco que não nos conhecíamos e eu respondi que não era verdade. — Ele mostrou o relatório. — Ainda não alcancei você, fiz apenas algumas checagens de rotina para saber seu endereço, data de nascimento, estado civil et cetera. Mas você sabe muito a meu respeito. Boa parte são coisas pessoais que só meus amigos íntimos conhecem. E agora eu estou aqui na sua cozinha, comendo sanduíches com você. Faz meia hora que nos conhecemos e tenho a sensação de que nos conhecemos há anos. Entende o que quero dizer?

Ela assentiu com a cabeça.

— Você tem olhos lindos — ele disse.

— Você tem olhos gentis — ela respondeu.

Ele não conseguiu definir se era uma ironia.

Silêncio.

— O que está fazendo aqui? — ela perguntou.

Super-Blomkvist — o apelido lhe ocorreu e ela conteve o impulso de dizê-lo em voz alta — assumiu de repente um ar sério. Ela captou cansaço em seu olhar. A segurança que demonstrara ao entrar no apartamento dela havia desaparecido e ela concluiu que as brincadeiras tinham acabado ou pelo menos estavam suspensas. Pela primeira vez, sentiu que ele a examinava com intensidade e reflexão. Não conseguiu imaginar o que se passava na cabeça dele, mas sentiu imediatamente que a visita adquiria um tom mais sério.

Lisbeth Salander tinha consciência de que sua calma era apenas aparente. Ela não controlava de fato seus nervos. A visita inesperada de Blomkvist mexera com ela de um modo que nunca sentira antes em seu trabalho. Ganhava a vida espionando as pessoas. Na realidade, nunca classificara o que fazia para Dragan Armanskij como um trabalho de verdade, e sim como um passatempo complexo, quase um hobby.

Fazia tempo que chegara à conclusão de que na verdade gostava de fuçar a vida dos outros e revelar segredos que as pessoas tentavam esconder. Agia assim — de uma forma ou de outra — desde que se conhecia como gente. E era o que continuava fazendo não só quando Armanskij lhe passava missões, mas às vezes apenas por prazer. Aquilo lhe dava uma espécie de satisfação — exatamente como num videogame complicado, com a diferença de que se tratava de pessoas reais. E eis que de repente seu hobby estava instalado na sua cozinha oferecendo-lhe sanduíches. Uma situação absurda.

— Tenho um problema fascinante — disse Mikael. — Me diga uma coisa: quando você fez suas investigações sobre mim para Dirch Frode, sabia qual era a finalidade delas?

— Não.

— O objetivo era obter informações a meu respeito porque Frode — ou, melhor, o seu cliente — queria me contratar para um trabalho freelance.

Entendo.

Ele dirigiu-lhe um breve sorriso.

— Algum dia eu e você teremos uma conversa sobre os aspectos éticos de bisbilhotar a vida dos outros. Mas por enquanto preciso resolver um problema... O trabalho que me passaram, e que por uma razão incompreensível aceitei, é sem dúvida a missão mais estranha que já tive. Será que posso confiar em você, Lisbeth?

— Como assim?

— Dragan Armanskij disse que você é uma pessoa totalmente confiável. Mesmo assim eu pergunto: se eu te contar alguns segredos, você promete que não os divulgará, não importa a quem for?

— Espere um pouco. Então você falou com Dragan; foi ele que te mandou aqui?

Vou acabar com a raça daquele armênio cretino.

— Não exatamente. Você não é a única pessoa que sabe levantar um endereço. Na verdade fiz isso sozinho. Pesquisei nos registros do cartório. Há três pessoas chamadas Lisbeth Salander, e as outras duas estavam fora de cogitação. Mas ontem entrei em contato com Armanskij e tivemos uma longa conversa. No começo, ele também pensou que eu quisesse vir aqui criar problemas por você ter se intrometido na minha vida, mas depois acabou entendendo que o meu objetivo é bastante legítimo.

— O que você quer dizer?

— Bem, um cliente de Dirch Frode me contratou para um trabalho e cheguei a um ponto em que preciso da ajuda de um investigador qualificado, e com urgência. Frode me falou de você e da sua competência. Ele bateu com a língua nos dentes e acabei sabendo que você tinha feito uma investigação a meu respeito. Ontem falei com Armanskij e expliquei o que queria. Ele autorizou e tentou falar com você por telefone, mas você não respondeu. E assim... aqui estou eu. Pode ligar para Armanskij e confirmar tudo, se quiser.

Lisbeth Salander precisou de alguns minutos para localizar seu celular debaixo das roupas que Mimmi a ajudara a tirar na noite anterior. Mikael Blomkvist contemplou sua busca caótica com interesse, enquanto andava pelo apartamento. Todos os móveis, sem exceção, pareciam ter sido pegos na rua. Numa pequena mesa de trabalho destacava-se uma imponente instalação de informática. Havia um aparelho de CD numa prateleira, mas a coleção de discos era pequena e formada por bandas das quais Mikael jamais ouvira falar, com artistas na capa que pareciam vampiros saídos dos confins do espaço. Música, de fato, não era o forte de Lisbeth.

Salander constatou que Armanskij a chamara pelo menos sete vezes durante a noite e duas de manhã. Ela digitou o número dele enquanto Mikael se encostava no batente da porta para escutar a conversa.

— Sou eu... Desculpe, desliguei o celular... Sei que ele quer me contratar... Não, está aqui em casa... — Ela levantou a voz. — Dragan, estou com a boca seca e com dor de cabeça, por favor, fale logo; você autorizou ou não?... Obrigada.

Lisbeth Salander espiou Mikael Blomkvist pelo vão da porta. Ele olhava seus CDs e tirava livros das prateleiras; viu-o pegar um frasco de remédio marrom, sem etiqueta, e examiná-lo contra a luz com curiosidade. Quando se preparava para abrir a tampa, ela estendeu a mão e tomou-lhe o frasco; depois foi para a cozinha, sentou-se, massageou as têmporas e esperou que Mikael voltasse a se sentar.

— As regras são simples — ela disse. — Nada do que conversar comigo ou com Dragan chegará a alguém de fora. Vamos assinar um contrato no qual a Milton Security se compromete a manter sigilo. Quero saber em que consiste o trabalho antes de decidir se vou querer ou não trabalhar para você. Isso significa que manterei sigilo sobre o que me contar, quer aceite ou não o trabalho, contanto que não se trate de uma atividade criminosa séria. Nesse caso, farei um relatório a Dragan, que, por sua vez, avisará a polícia.

— Certo. — Ele hesitou. — Armanskij talvez não saiba exatamente por que quero contratá-la...

— Ele disse que você precisa de ajuda para uma pesquisa histórica.

— Sim, isso mesmo. Mas o que eu quero que você faça é me ajudar a descobrir um assassino.

Mikael levou mais de uma hora contando todos os detalhes confusos do caso Harriet Vanger. Não omitiu nenhum. Tinha a autorização de Frode para contratá-la e, para tanto, via-se na obrigação de conquistar sua inteira confiança.

Falou também do seu relacionamento com Cecilia Vanger e de como descobrira seu rosto na janela de Harriet. Deu a Lisbeth o máximo de informações possíveis sobre a personalidade dela. Começava a admitir que Cecilia figurava entre os principais suspeitos. Mas estava longe de entender como Cecilia podia estar ligada a um assassino em atividade, numa época em que ela ainda era jovem.

Depois, entregou a Lisbeth Salander uma cópia da lista da agenda telefônica de Harriet.

— O que quer que eu faça?

— Identifiquei RJ, Rebecka Jacobsson, e fiz a conexão entre ela e uma citação da Bíblia que fala dos sacrifícios por imolação. Ela foi morta de um modo semelhante ao que está descrito na citação — sua cabeça foi posta sobre brasas. Se eu não estiver enganado, encontraremos outras quatro vítimas — Magda, Sara, Mari e RL.

— Acredita que foram mortas?

— Por um assassino que agia nos anos 1950, talvez 60. E que, de uma maneira ou de outra, está ligado a Harriet Vanger. Examinei números antigos do Hedestads-Kuriren. O assassinato de Rebecka é o único crime monstruoso que, pelo que descobri, tem a ver com Hedestad. Quero que continue pesquisando em toda a Suécia.

Lisbeth Salander permaneceu mergulhada em pensamentos e num silêncio inexpressivo tão longo que Mikael começou a se impacientar. Perguntava-se se havia escolhido a pessoa certa quando ela por fim ergueu os olhos.

— Está certo, aceito o trabalho. Mas primeiro assine o contrato com Armanskij.

Dragan Armanskij imprimiu o contrato que Mikael Blomkvist ia levar a Hedestad para que Dirch Frode o assinasse. Ao voltar à saleta de trabalho de Lisbeth Salander, viu, através da divisória envidraçada, que ela e Mikael Blomkvist estavam inclinados sobre o Powerbook dela. Mikael pousava a mão em seu ombro — ele a tocava — e lhe indicava alguma coisa. Armanskij esperou algum tempo.

Mikael disse algo que pareceu surpreender Salander e ela riu ruidosamente.

Armanskij nunca a ouvira rir, embora tivesse tentado ganhar sua confiança naqueles anos todos. Mikael Blomkvist a conhecia havia poucas horas e ela já ria na companhia dele.

De repente detestou Mikael Blomkvist com uma intensidade que o surpreendeu. Pigarreou ao cruzar a porta e depositou sobre a mesa o envelope de plástico com o contrato.

Mikael teve tempo para fazer uma rápida visita à redação da Millennium à tarde. Era a primeira vez que entrava lá desde que fora limpar sua mesa antes do Natal, e de repente lhe pareceu estranho subir aquelas escadas tão familiares. O código de acesso não tinha sido alterado; entrou pela porta da redação sem ser notado e ficou um instante comprazendo-se em olhar tudo por ali.

A sede da Millennium tinha a forma de um L. A entrada propriamente dita era um grande hall que ocupava uma ampla área inutilizada. Havia ali um canapé e poltronas para os visitantes. Atrás do canapé abria-se uma copa com quitinete, sanitários e dois cubículos onde eram guardados os arquivos. Havia também uma mesa para o estagiário. A direita da entrada, uma divisória envidraçada dava para o estúdio de Christer Malm, cuja empresa, com entrada separada no corredor do edifício, ocupava uma área de oitenta metros quadrados. A esquerda ficava a redação, cerca de cento e cinquenta metros quadrados com vista para a rua Götgatan.

Erika concebera o projeto e instalara divisórias envidraçadas para criar três ambientes individuais e uma ampla sala comum para os outros três colaboradores. Ficara com a maior, no fundo da redação, e Mikael fora colocado na outra ponta. Era a única sala que se podia ver da entrada. Ele notou que ninguém havia se instalado ali.

A terceira peça, um pouco afastada, era ocupada por Sonny Magnusson, de sessenta anos, o eficiente vendedor de publicidade da Millennium já há alguns anos. Erika descobriu Sonny quando ele se viu desempregado após a reestruturação da empresa onde trabalhou a maior parte de sua vida. Sonny estava então na idade em que não era fácil conseguir emprego. Erika o escolheu de propósito; ofereceu-lhe um pequeno salário fixo e uma porcentagem sobre as receitas publicitárias. Sonny aceitou e os dois ficaram satisfeitos. Mas no último ano, por melhor vendedor que fosse, as receitas tinham desabado. Os rendimentos de Sonny diminuíram demais; contudo, em vez de tentar outra coisa, ele apertou o cinto e permaneceu fiel a seu cargo. Diferentemente de mim, que sou a causa dessa degringolada toda, pensou Mikael.

Ele reuniu coragem e entrou por fim na redação, quase vazia naquela hora. Viu Erika em sua sala, com um telefone colado à orelha. Somente dois colaboradores estavam na redação. Monika Nilsson, de trinta e sete anos, experiente repórter geral, especializada em vigilância política e provavelmente a pessoa mais entendida em cinismo que Mikael já conhecera. Trabalhava na Millennium havia nove anos e divertia-se imensamente. Henry Cortez tinha vinte e quatro anos e era o mais jovem colaborador da redação; dois anos antes, assim que se formou no instituto de jornalistas JMK, procurou Erika e disse que queria trabalhar na Millennium e em nenhum outro lugar. Erika não tinha dinheiro para contratá-lo, mas propôs-lhe um estágio, ofereceu-lhe uma sala num canto e depois o absorveu como freelancer fixo.

Os dois gritaram de contentamento ao ver Mikael, que foi recebido com beijos e tapas nas costas. Logo lhe perguntaram se estava voltando ao trabalho, mas se decepcionaram quando ele explicou que lhe restavam mais seis meses no Norrland, e que apenas estava passando para dar um alô e falar com Erika.

Erika também ficou contente em vê-lo, serviu café e fechou a porta de sua sala. Começou pedindo notícias de Henrik Vanger. Mikael não sabia muito mais do que Dirch Frode relatara; o estado dele era grave, mas o velho continuava vivo.

— O que você está fazendo na cidade?

Mikael sentiu-se subitamente embaraçado. Passara na redação sem pensar muito, a Milton Security ficava a poucos passos dali. Pareceu-lhe difícil explicar a Erika que tinha acabado de contratar a consultora particular em segurança que invadira seu computador. Limitou-se a encolher os ombros e dizer que fora obrigado a vir a Estocolmo por causa de alguns assuntos ligados a Vanger e que já estava voltando para o norte. Perguntou como iam as coisas na redação.

— Junto com as boas notícias do volume de publicidade e do número de assinantes que não param de crescer, há uma nuvem escura se formando no horizonte.

— Quem?

— Janne Dahlman. Fui obrigada a ficar de olho nele logo depois que soltamos a notícia da entrada de Henrik Vanger na sociedade. Não sei se é apenas a natureza dele ou se tem a ver com alguma coisa mais profunda. Ele está fazendo uma espécie de jogo.

— O que aconteceu?

— Não confio mais nele. Depois que assinamos o acordo com Henrik Vanger, Christer e eu ficamos pensando se informávamos imediatamente toda a redação de que não corríamos mais o risco de fechar no outono ou se...

— Ou se informavam apenas alguns colaboradores.

— Exatamente. Talvez eu seja paranóica, mas não queria que Dahlman espalhasse a história. Então decidimos avisar toda a redação só no dia em que o acordo se tornasse público. Portanto, guardamos segredo por um mês.

— E?

— Bem, eram as primeiras boas notícias que a redação recebia depois de um ano. Todos festejaram, com exceção de Dahlman. Claro, não somos a maior redação do mundo, mas três pessoas se alegraram, o estagiário também, e uma se zangou por não termos passado a informação mais cedo.

— Ele teve um pouco de razão...

— Eu sei. Mas o fato é que continuou falando disso o tempo todo e despejando mau humor pela redação. Depois de duas semanas, chamei-o à minha sala e expliquei que, se eu não havia informado a redação, é porque não tinha confiança nele e não estava certa de que ele guardaria segredo.

— Como ele reagiu?

— Ficou muito magoado, claro, e furioso. Não recuei e dei a ele um ultimato: ou fazia um esforço para melhorar ou começasse a procurar outro emprego.

— E ele?

— Resolveu se esforçar. Mas permanece distante e há muita tensão entre ele e o resto da equipe. Christer não o suporta mais e demonstra isso claramente.

— E o que suspeita que Dahlman esteja fazendo? Erika suspirou.

— Não sei. Nós o contratamos há um ano, quando já estávamos em campanha contra Wennerström. Não posso provar absolutamente nada, mas pressinto que ele não trabalha para nós.

Mikael assentiu com a cabeça.

— Confie nos seus instintos.

— Talvez não passe de um pobre-coitado cheio de mau humor por não estar no seu lugar.

— É possível. Mas concordo com você que cometemos um erro de avaliação ao contratá-lo.

Vinte minutos depois, Mikael pegava as vias expressas do Slussen rumo ao norte, no carro que emprestara da mulher de Dirch Frode, um Volvo de dez anos que ela nunca utilizava e que Mikael agora podia usar quando quisesse.

Os detalhes eram mínimos e sutis, e Mikael poderia nem tê-los percebido se não estivesse atento. Uma pilha de papéis um pouco mais inclinada do que antes. Um arquivo um pouco fora de lugar na prateleira. A gaveta da escrivaninha inteiramente fechada — Mikael lembrava-se muito bem de tê-la deixado um pouco entreaberta na véspera, quando foi para Estocolmo.

Ficou imóvel por um momento, em dúvida. Depois, uma certeza se impôs: alguém entrara na casa.

Foi até o patamar de entrada e olhou ao redor. Ele trancara a porta, mas como se tratava de uma fechadura velha e bastante comum provavelmente podia ser aberta com uma chave de fenda, e não havia como saber se existiam cópias daquela chave. Voltou a entrar na casa e passou em revista, sistematicamente, a saleta de trabalho para verificar se algo desaparecera. Depois de algum tempo, concluiu que tudo parecia ainda estar ali.

Mas o fato é que alguém havia entrado, se instalado em sua saleta de trabalho e folheado seus papéis e arquivos. Ele levara o computador consigo, portanto a pessoa não tivera acesso a ele. Duas questões se apresentavam. Quem? E será que o visitante misterioso tinha podido concluir alguma coisa do que vira ali?

Os arquivos eram uma parte dos que ele trouxera de volta da casa de Henrik Vanger após sair da prisão. Não havia nenhum material novo. Os cadernos de anotações eram indecifráveis para um não-iniciado. Mas será que a pessoa que vasculhara sua mesa era uma não-iniciada?

O mais preocupante era o pequeno envelope de plástico em cima da mesa, onde ele pusera a lista de números da agenda telefônica de Harriet e uma cópia das citações bíblicas às quais eles se referiam. A pessoa que vasculhara a saleta agora sabia que ele havia decifrado o código da Bíblia.

Quem?

Henrik Vanger estava no hospital. Ele não suspeitava de Anna, a governanta. Dirch Frode? Mas Mikael já havia lhe contado todos os detalhes... Cecilia Vanger adiara a viagem à Flórida e voltara de Londres com a irmã. Ele a vira na noite anterior, atravessando a ponte de carro. Martin Vanger? Harald Vanger? Birger Vanger regressara para participar de uma reunião de família, à qual Mikael não fora convidado, no dia seguinte ao infarto de Henrik. Alexander Vanger? Isabella Vanger? Ela era tudo menos simpática.

Com quem Frode havia falado? Deixara escapar alguma coisa? Quantos, dos mais próximos, haviam percebido que Mikael descobrira algo novo nas investigações?

Passava de oito da noite. Ele telefonou para um serralheiro em Hedestad e pediu uma nova fechadura. O serralheiro explicou que só poderia ir na manhã seguinte. Mikael prometeu pagar o dobro se ele fosse imediatamente, e ele concordou em passar às dez e meia para instalar uma nova fechadura na casa.

Enquanto esperava o serralheiro, Mikael foi até a casa de Dirch Frode, por volta das oito e meia. A mulher de Frode apontou para o jardim atrás da casa e lhe propôs uma cerveja gelada, que Mikael aceitou com prazer. Ele pediu a Frode notícias de Henrik.

— Foi operado. Tem arteriosclerose nas coronárias. O médico disse que seu estado continua crítico, mas que ainda há esperanças.

Ficaram um instante em silêncio, bebendo cerveja.

— Suponho que não conseguiu falar com ele.

— Não, não está em condições de falar. E como foi lá em Estocolmo?

— Lisbeth Salander aceitou. Eu trouxe o contrato de Dragan Armanskij. Precisa assiná-lo e enviá-lo de volta.

Dirch Frode leu o documento.

— Ela não cobra barato — constatou.

— Henrik pode pagar.

Frode foi buscar uma caneta e assinou.

— Ainda posso assinar este contrato por Henrik enquanto ele estiver vivo. Pode deixá-lo na caixa de correspondência do Konsum quando voltar para casa?

* * *

A meia-noite, Mikael já estava na cama, porém não conseguia dormir. Até então, sua temporada na ilha de Hedeby limitara-se a desencavar extravagâncias históricas. Mas quem sabe o passado não estivesse mais próximo do presente do que ele imaginava, se alguém suficientemente interessado no que ele fazia foi capaz de se introduzir na sua saleta de trabalho?

De repente lhe ocorreu que outras pessoas fora da ilha também podiam estar interessadas nas atividades dele. A súbita entrada de Henrik Vanger no conselho administrativo da Millennium não devia ter passado despercebida a Hans-Erik Wennerström. Ou esse tipo de pensamento indicava que ele estava ficando paranóico?

Mikael levantou-se, postou-se completamente nu diante da janela da cozinha e olhou pensativo para a igreja do outro lado da ponte. Acendeu um cigarro.

Não conseguia entender Lisbeth Salander. Ela tinha um comportamento estranho, fazia longas pausas no meio da conversa. Seu apartamento era um caos, com montanhas de jornais no vestíbulo e uma cozinha que não passava por uma limpeza havia bem um ano. Roupas espalhadas pelo chão, com certeza ele a tinha encontrado depois de uma noite de farra. No pescoço havia vestígios de chupadas, reveladoras de grande atividade noturna. Tinha várias tatuagens pelo corpo, piercings no rosto e provavelmente também em lugares que ele não vira. Ou seja, uma criatura especial.

Por outro lado, Armanskij garantira que ela era indiscutivelmente a melhor investigadora de sua empresa, e a investigação que fizera sobre ele indicava com certeza que ela ia fundo nas coisas. Uma garota estranha.

Lisbeth Salander estava diante do seu Powerbook refletindo sobre como reagira a Mikael Blomkvist. Em toda a sua vida adulta, jamais deixara entrar em sua casa alguém que não tivesse sido expressamente convidado, e podia-se contar tais pessoas nos dedos de uma mão. Sem a menor cerimônia, Mikael se intrometera em sua vida e ela não reagira senão com uns protestos frouxos.

E não foi tudo — ele havia mexido com ela, zombado dela.

De hábito, esse tipo de comportamento a teria levado a mentalmente engatilhar uma arma. No entanto, não sentiu a menor ameaça, nenhuma hostilidade vinda de Mikael Blomkvist. Ele tinha todos os motivos para estar zangado — e até mesmo para processá-la depois de ter descoberto que ela invadira seu computador. Mas não, levou isso também na brincadeira.

Foi a parte mais delicada da conversa que tiveram. Como se Mikael propositalmente não quisesse tocar no assunto. Por fim, ela mesma não conseguiu evitar.

— Você disse que sabe o que eu fiz.

— Você invadiu o meu computador, é uma hacker.

— Como sabe disso? — Lisbeth tinha a certeza de que não havia deixado vestígios e de que não seria descoberta, a menos que alguém muito experiente em segurança estivesse escaneando o disco rígido no momento em que ela o invadiu.

— Você cometeu um erro. — Ele explicou que ela reproduzira um texto que só existia no computador dele e em nenhum outro lugar.

Lisbeth Salander ficou em silêncio por um bom tempo. Por fim, fixou nele uns olhos inexpressivos.

— Como conseguiu? — ele perguntou.

— Segredo. O que pretende fazer? Mikael encolheu os ombros.

— O que eu posso fazer? No máximo, deveria levar um papo com você sobre ética e moral, e sobre os perigos de bisbilhotar a vida alheia.

— Que é exatamente o que você faz como jornalista. Ele concordou com a cabeça.

— Sem dúvida. É justamente por isso que nós, jornalistas, temos um comitê de ética nos vigiando nas questões morais. Quando escrevo um texto sobre um corrupto do mundo financeiro, deixo de lado, por exemplo, sua vida sexual. Não escrevo que uma estelionatária é lésbica ou que sonha trepar com seu cachorro, ou coisas do gênero, ainda que seja verdade. Mesmo os corruptos têm direito a uma vida privada, e é muito fácil prejudicar alguém atacando sua maneira de viver. Entende o que quero dizer?

— Sim.

— Portanto, você atentou contra a minha integridade. Henrik Vanger não precisava saber com quem eu faço amor. É problema meu.

Um sorriso acanhado despontou nos lábios de Lisbeth Salander.

— Acha então que eu não devia ter falado disso?

— No que me diz respeito, não faz muito diferença. Metade da cidade sabe da minha ligação com Erika. Estou falando é do princípio.

— Talvez você ache divertido saber que eu também tenho princípios que correspondem ao do seu comitê de ética. É o que chamo de Princípio Salander. Na minha opinião, um corrupto sempre será um corrupto e, se posso prejudicá-lo desencavando sujeiras a seu respeito, ele tem o que merece. Não faço senão dar-lhe o troco.

— Certo — disse Mikael Blomkvist sorrindo. — Meu raciocínio não é inteiramente diferente do seu, mas...

— A verdade é que ao fazer uma investigação levo em conta também o que a pessoa me inspira. Não fico neutra. Se julgo que se trata de uma pessoa boa, posso ser discreta no meu relatório.

— É mesmo?

— No seu caso, fui discreta. Poderia ter escrito um livro sobre a sua vida sexual. Poderia ter contado a Frode que Erika Berger tem um passado no clube Xtreme e que flertava com o BDSM nos anos 1980, o que inevitavelmente teria criado algumas associações de idéias sobre a vida sexual de vocês.

Mikael Blomkvist encarou o olhar de Lisbeth Salander. Depois de um momento, olhou pela janela e deu uma gargalhada.

— Realmente nada te escapa. Por que não pôs isso no relatório?

— Você e Erika Berger são adultos e parecem gostar muito um do outro. O que fazem na cama não interessa a ninguém, e tudo que eu conseguiria, ao falar dela, seria só prejudicar você ou oferecer material de chantagem a alguém. Sei lá, não conheço Dirch Frode, e esse material poderia chegar às mãos de Wennerström.

— E você não quer fornecer material a Wennerström?

— Se eu precisasse escolher entre você e ele, escolheria o seu lado do ringue.

— Eu e Erika temos um... nosso relacionamento é...

— Estou pouco me lixando para o relacionamento de vocês. Mas não respondeu à minha pergunta: o que pretende fazer agora que sabe que eu invadi o seu computador?

A pausa de Mikael foi quase tão longa quanto a dela.

— Lisbeth, eu não vim aqui para aborrecê-la, não vou denunciar você.

Estou aqui para pedir sua ajuda numa investigação. Responda sim ou não. Se disser não, vou embora, procuro outra pessoa e não terá mais notícias de mim. — Ele refletiu um segundo e depois sorriu. — Com a condição de eu não pegar você de novo no meu computador, é claro. Ela o olhou com uma expressão vazia.


19. QUINTA-FEIRA 19 DE JUNHO — DOMINGO 29 DE JUNHO

Mikael passou dois dias estudando seus documentos, enquanto aguardava notícias sobre se Henrik Vanger sobreviveria ou não. Permanecia em contato com Dirch Frode. Na quinta-feira à noite, Frode foi vê-lo na casa dos convidados para anunciar que a crise parecia superada por enquanto.

— Ele está fraco, mas consegui falar um pouco com ele hoje. Quer te ver o mais breve possível.

A uma da tarde do sábado, dia do solstício de verão, Mikael foi ao hospital de Hedestad e dirigiu-se ao setor onde Henrik Vanger estava internado. Deparou com Birger Vanger, muito irritado, que lhe barrou o caminho dizendo, com muita autoridade, que Henrik não estava em condições de receber visitas. Sem perder a calma, Mikael contemplou o conselheiro municipal.

— E estranho. Henrik Vanger me mandou um recado muito claro de que desejava me ver hoje.

— Você não é da família e não tem nada o que fazer aqui.

— É verdade, não faço parte da família. Mas vim atender um pedido expresso de Henrik, e só recebo ordens dele.

A troca de palavras poderia ter virado uma disputa violenta se Dirch Frode não tivesse saído do quarto de Henrik justamente naquele momento.

— Ah, aí está você. Henrik acabou de perguntar onde você estava. Frode manteve a porta aberta e Mikael entrou no quarto, passando por

Birger Vanger.

Henrik parecia ter envelhecido dez anos em uma semana. Suas pálpebras permaneciam semicerradas, um tubo de oxigênio entrava pelo nariz e seus cabelos estavam mais emaranhados do que nunca. Uma enfermeira deteve Mikael, pondo a mão em seu braço.

— Só dois minutos. E evite emoções. — Mikael assentiu com a cabeça e sentou-se numa cadeira de modo a poder ver o rosto de Henrik. Ficou surpreso por sentir-se tão enternecido e estendeu a mão para apertar suavemente a do velho, muito frouxa. Henrik Vanger falou com voz fraca, entrecortada.

— Novidades?

Mikael fez que sim com a cabeça.

— Farei um relatório assim que você melhorar. Ainda não resolvi o mistério, mas descobri novos elementos e estou seguindo algumas pistas. Dentro de uma semana ou duas, poderei dizer se isso nos leva a algum lugar.

Henrik tentou balançar a cabeça. Foi com um bater de pálpebras que indicou haver entendido.

— Vou me ausentar por alguns dias.

As sobrancelhas de Henrik se contraíram.

— Não, não estou abandonando o navio. Vou fazer uma investigação. Combinei com Dirch Frode de passar meus relatórios a ele. Está de acordo?

— Dirch é... meu mandatário... em todos os assuntos. Mikael assentiu com a cabeça.

— Mikael... se por acaso... eu vier a... quero que termine... o trabalho assim mesmo.

— Prometo que vou terminar.

— Dirch tem todas as... procurações.

— Henrik, quero que se restabeleça logo. Eu ficaria muito chateado com você se desaparecesse agora que avancei tanto em meu trabalho.

— Dois minutos — disse a enfermeira.

— Preciso ir. Da próxima vez que eu vier, espero ter uma longa conversa com você.

Birger Vanger esperava Mikael quando ele saiu no corredor e o deteve pondo uma mão em seu ombro.

— Não quero que perturbe Henrik outra vez. Ele está gravemente doente e não deve ser incomodado, seja qual for o motivo.

— Entendo sua preocupação. Não vou mais perturbá-lo.

— Todos sabem que Henrik o contratou para investigar seu pequeno hobby... Harriet. Dirch Frode me contou que Henrik ficou muito perturbado depois de uma conversa que vocês tiveram pouco antes do infarto. Disse que você mesmo achou que ela pode ter deflagrado a crise.

— Não penso mais assim. Henrik Vanger tem uma arteriosclerose nas coronárias. Poderia ter sofrido um infarto ao ir ao banheiro. Tenho certeza de que você também sabe muito bem disso.

— Quero ter o direito de fiscalizar todas essas bobagens. É na minha família que você está se metendo.

— Bem, como eu disse... trabalho para Henrik, não para a sua família.

Birger Vanger não estava aparentemente habituado a que alguém o contrariasse. Por um breve instante, encarou Mikael com um olhar destinado a lhe inspirar respeito, mas que lhe dava sobretudo o aspecto de um alce presunçoso. Depois, girou os calcanhares e entrou no quarto de Henrik.

Mikael conteve o riso. Não era muito conveniente rir no corredor tão perto do leito onde Henrik se achava enfermo, que também poderia vir a ser seu leito de morte. Mas Mikael se lembrou de repente de uma estrofe de um abecedário rimado de Lennart Hyland, divulgado no rádio nos anos 1960, e que por uma razão incompreensível ele memorizara quando estava sendo alfabetizado: Era a letra A: o Alce soberbo e solitário insiste/ em olhar o bosque arruinado e triste.

Na entrada do hospital, Mikael topou com Cecilia Vanger. Havia ligado para o celular dela dezena de vezes desde que ela retornara de suas férias interrompidas, mas não obtivera resposta. Ela também não estava em sua casa na ilha quando ele passou por lá e bateu na porta.

— Oi, Cecilia — ele disse. — Lamento o que aconteceu com Henrik. Ela agradeceu com um gesto de cabeça. Mikael tentou captar seus sentimentos, mas não percebeu nem calor nem frieza.

— Precisamos conversar.

— Sinto muito ter te excluído daquela forma. Entendo que esteja furioso, mas estou passando por um momento difícil.

Mikael franziu o cenho até entender o que ela queria dizer. Pôs a mão no braço de Cecilia e sorriu.

— Espere, não é isso, Cecilia. Não estou nem um pouco furioso com você. Queria muito continuar seu amigo, mas se não tem vontade de me ver... se for essa a sua decisão, eu respeitarei.

— Os relacionamentos nunca foram o meu forte — ela disse.

— Nem o meu. Vamos tomar um café?

Ele fez um sinal com a cabeça em direção à cafeteria do hospital. Cecilia hesitou.

— Não, hoje não. Gostaria de ver Henrik agora.

— Tudo bem, mas mesmo assim preciso falar com você. Sobre trabalho.

— O que está querendo dizer? — Ela se pôs em guarda.

— Lembra-se quando nos vimos pela primeira vez, quando você veio me ver em janeiro? Eu disse que tudo o que falássemos seria off the record e que quando eu tivesse perguntas de verdade para lhe fazer, eu avisaria. É sobre Harriet.

O rosto de Cecilia inflamou-se num furor súbito.

— Seu filho-da-puta!

— Cecilia, descobri coisas sobre as quais preciso falar com você. Ela deu um passo para trás.

— Você não entende que essa maldita investigação dessa maldita Harriet é só uma maneira de Henrik se ocupar? Não entende que ele talvez esteja morrendo lá em cima e que a última coisa que ele precisa agora é ser perturbado e que lhe dêem falsas esperanças?...

Ela se calou.

— Talvez seja um hobby para Henrik, mas o fato é que descobri novos elementos que não tinham sido descobertos em trinta e cinco anos. Há questões nessa investigação que ficaram sem resposta, e estou trabalhando de acordo com as instruções de Henrik.

— Se Henrik morrer, esta droga de investigação vai acabar em seguida e você será o primeiro a cair fora — disse Cecilia, afastando-se e cruzando a porta.

* * *

Tudo estava fechado, Hedestad praticamente deserta. A população parecia ter ido ao campo para as festividades de São João. Mikael encontrou por fim o terraço do Grande Hotel e ali pediu um café e um sanduíche enquanto lia os jornais da tarde. Nada de importante acontecera no mundo.

Deixou os jornais e refletiu sobre Cecilia Vanger. Não havia contado nem a Henrik nem a Dirch Frode que suspeitava que ela tinha aberto a janela do quarto de Harriet. Não queria transformá-la em suspeita e a última coisa que desejava era prejudicá-la. Mas cedo ou tarde seria preciso tocar nessa questão.

Permaneceu no terraço por uma hora até decidir deixar de lado aquele problema e dedicar o Dia de São João a outra coisa que não à família Vanger. Seu celular permanecia silencioso. Erika viajara no fim de semana e se divertia em algum lugar com o marido, e ele não tinha com quem falar.

Regressou à ilha por volta das quatro da tarde e tomou outra decisão — parar de fumar. Ele se exercitava com regularidade desde a época do serviço militar, ginástica e jogging ao longo da Söder Mälarstrand, mas parara completamente quando os problemas com Hans-Erik Wennerström começaram. Em Rullaker tentou desenferrujar o corpo, sobretudo como terapia, mas desde que deixara a prisão não fizera muitos progressos. Era hora de recomeçar. Com determinação, vestiu um abrigo e se pôs a correr em marcha lenta pelo caminho que conduzia à cabana de Gottfried, pegou a trilha para a Fortificação e empregou um ritmo mais forte fora da pista. Não praticava corrida de percurso desde o serviço militar, mas sempre preferira correr no bosque do que nas pistas de treinamento. Passou pela fazenda de Östergarden para voltar ao povoado. Sentia-se exausto quando completou, bufando, os últimos metros até a casa dos convidados.

Às seis da tarde tomou um banho. Adepto, mesmo contra a vontade, do tradicional jantar de São João, pôs algumas batatas para cozinhar, preparou o arenque marinado com cebolinha e ovos duros e instalou-se numa mesa frágil, fora de casa, no lado que dava para a ponte. Serviu-se de aquavita e brindou sozinho. Depois abriu um romance policial intitulado O canto das sereias, de Vai McDermid.

Por volta das sete da noite, Dirch Frode passou para vê-lo e instalou-se pesadamente numa cadeira do jardim diante dele. Mikael ofereceu-lhe uma dose de aquavita.

— Você causou muitos ressentimentos hoje — disse Frode.

— Eu percebi.

— Birger Vanger é um fanfarrão.

— Eu sei.

— Mas Cecilia Vanger não é, e está furiosa com você. Mikael assentiu com a cabeça.

— Ela me falou que você precisa parar de remexer nos assuntos da família.

— Entendo. E o que você respondeu?

Dirch Frode olhou seu copo de aquavita e o esvaziou num trago.

— Respondi que Henrik deu instruções muito claras sobre o que deseja que você faça. Enquanto ele não modificar essas instruções, você segue o contrato que fizemos. Espero que faça o possível para cumprir sua parte no contrato.

Mikael concordou com a cabeça. Olhou o céu, onde nuvens de chuva se acumulavam.

— Há uma tempestade no ar — disse Frode. — Se os ventos começarem a soprar muito fortes, estarei aqui para ajudá-lo.

— Obrigado.

Ficaram um instante em silêncio.

— Pode me servir mais um trago? — pediu Frode.

Alguns minutos depois de Dirch Frode ter voltado para casa, Martin Vanger estacionou o carro em frente à casa dos convidados. Desceu e foi cumprimentar Mikael, que lhe desejou boa Festa de São João e lhe ofereceu uma bebida.

— Não, obrigado. Vim à ilha só para trocar de roupa. Vou voltar agora à cidade para passar a noite com Eva.

Mikael esperou.

— Falei com Cecilia. Ela está um pouco perturbada, é muito apegada a Henrik. Espero que a perdoe se ela disse coisas... desagradáveis.

— Gosto muito de Cecilia — respondeu Mikael.

— Eu sei. Mas ela tem lá seus humores. Saiba apenas que Cecilia é totalmente contra você remexer no passado.

Mikael suspirou. Todo mundo em Hedestad parecia saber por que Henrik o contratara.

— E você?

Martin afastou as mãos num gesto de perplexidade.

— Há décadas Henrik está obcecado com essa história da Harriet. Não sei o que dizer... Harriet era minha irmã, mas de certo modo já está distante de mim. Dirch Frode me disse que você tem um contrato que somente Henrik pode romper. Considerando seu atual estado de saúde, creio que isso cause mais mal do que bem.

— E você, quer que eu continue?

— Descobriu alguma coisa?

— Desculpe, Martin, mas eu quebraria o contrato se lhe contasse alguma coisa sem a autorização de Henrik.

— Entendo. — Ele sorriu de repente. — Henrik gosta muito de conspirações, tem um monte de teorias a respeito, mas eu não gostaria que você lhe desse falsas esperanças.

— Fique tranquilo. A única coisa que apresento a ele são fatos que posso comprovar através de documentos.

— Bem... Aliás, por falar nisso, precisamos pensar também no outro contrato. Como Henrik está doente e impossibilitado de cumprir suas obrigações no conselho administrativo da Millennium, me ofereço para ficar no seu lugar.

Mikael esperou.

— Precisamos convocar uma reunião para avaliar a situação.

— É uma boa idéia, mas, pelo que entendi, a próxima reunião já foi marcada para agosto.

— Sim, mas talvez possamos antecipá-la. Mikael sorriu polidamente.

— Sem dúvida. Mas está falando com a pessoa errada. Por enquanto não faço parte do conselho administrativo da Millennium. Deixei a revista em dezembro e nada posso dizer sobre as decisões tomadas pelo conselho. Sugiro que converse com Erika Berger sobre isso.

Martin Vanger não esperava essa resposta. Refletiu um momento antes de se levantar.

— Tem razão, claro. Vou telefonar para ela. — Deu um tapinha no ombro de Mikael para se despedir e foi se encaminhando para o carro.

Mikael olhou para ele pensativamente. Nada de preciso fora dito, mas pairava no ar uma clara ameaça. Martin Vanger havia colocado a Millennium na balança. Um instante depois, Mikael serviu-se de uma nova dose de aquavita e voltou à sua leitura de Vai McDermid.

Por volta das nove da noite, o gato ruivo chegou e se esfregou em suas pernas. Ele o acariciou atrás das orelhas.

— É isso aí, meu velho. Vamos nos aborrecer juntos na noite de São João — disse.

Quando caíram as primeiras gotas de chuva, entrou para se deitar. O gato preferiu ficar lá fora.

Lisbeth Salander passou o Dia de São João fazendo uma boa revisão na sua Kawasaki. Uma moto de 125 cilindradas não era a máquina ideal, mas ela sabia conduzi-la e a reformara, peça por peça, inclusive ajustando-a para poder correr um pouco acima da velocidade autorizada.

À tarde, pôs o capacete e a jaqueta de couro e foi até a casa de saúde de Äppelviken, onde passou algumas horas com sua mãe no jardim. Saiu de lá com uma ponta de preocupação e com maus pressentimentos. A mãe parecia mais ausente do que nunca. Durante as três horas em que ficaram juntas, só trocaram umas poucas palavras, e sua mãe nem parecia saber com quem falava.

Mikael passou dias tentando identificar o carro com placa AC. Embora tenha ficado um pouco perdido no início, acabou encontrando um mecânico aposentado em Hedestad que identificou o veículo como um Ford Anglia, modelo aparentemente comum, do qual, porém, Mikael nunca tinha ouvido falar. Depois entrou em contato com um funcionário do Departamento de Trânsito, para ver se era possível conseguir uma relação de todos os Ford Anglia de 1966 com placa iniciada por AC3 alguma coisa. Estava tentando seguir outras pistas, quando veio a resposta de que um exame de registros até era possível, só que demoraria algum tempo por ser algo muito diferente do que se podia considerar como informação de interesse público.

Vários dias depois do fim de semana de São João, Mikael sentou-se ao volante do Volvo emprestado e pegou a rodovia E4 rumo ao norte. Dirigia sem pressa, como sempre. Pouco antes da ponte de Härnösand, parou para tomar um café na confeitaria de Vesterlund.

A parada seguinte foi Umea, onde pediu o prato do dia num hotel. Comprou um mapa rodoviário e prosseguiu até Skelleftea, entrando depois à esquerda em direção a Norsjö. Chegou por volta das seis da tarde e hospedou-se no hotel Norsjö.

Começou suas pesquisas logo cedo na manhã seguinte. Não existia nenhuma Marcenaria de Norsjö no anuário da cidade. A recepcionista desse pequeno hotel nos confins do norte, uma jovem de uns vinte anos, nunca ouvira falar dessa marcenaria.

— Quem poderia me informar?

Por um instante ela pareceu um pouco confusa, mas em seguida disse que ia telefonar para o pai. Dois minutos depois, voltou e explicou que a Marcenaria de Norsjö fechara no começo dos anos 1980. Se Mikael quisesse conversar com alguém que sabia um pouco mais sobre a empresa, devia procurar um tal de Hartman que trabalhara ali como contramestre e agora morava no bairro dos Girassóis.

Norsjö era um vilarejo nascido ao longo de uma rua que, muito apropriadamente, fora batizada de Rua Principal; os estabelecimentos comerciais atravessavam a localidade de ponta a ponta, enquanto as moradias ficavam nas ruas transversais. Na entrada do vilarejo havia uma pequena zona industrial e estrebarias; na saída, a oeste, erguia-se uma bela igreja de madeira. Mikael notou que a aldeia abrigava também uma congregação de missionários e uma de pentecostais. Um cartaz fixado num painel do ponto de ônibus falava de um Museu da Caça e de um Museu do Esqui. Outro anunciava que Veronika cantaria na Festa de São João. Ele percorreu o vilarejo de ponta a ponta, a pé, em pouco mais de vinte minutos.

O bairro dos Girassóis era um condomínio residencial situado a uns cinco minutos do hotel. Hartman não estava em casa. Eram nove e meia da manhã e ele supôs que o homem estivesse trabalhando ou saíra para fazer compras.

A etapa seguinte foi o armazém da Rua Principal. Quem mora em Norsjö deve passar, uma hora ou outra, no armazém, pensou Mikael. Havia dois vendedores; Mikael escolheu o mais velho, de uns cinquenta anos.

— Bom dia, estou procurando um casal que deve ter morado aqui em Norsjö nos anos 1960. O homem parece que trabalhava na marcenaria. Não sei como se chamavam, mas tenho aqui duas fotos deles, de 1966.

O vendedor olhou demoradamente as fotos, mas disse que não conhecia nem o homem nem a mulher.

Na hora do almoço, Mikael pediu um cachorro-quente no quiosque ao lado do ponto de ônibus. Depois das lojas, passou pela prefeitura, pela biblioteca, pela farmácia. Não havia ninguém na delegacia e ele começou a conversar ao acaso com pessoas mais velhas. Por volta das duas da tarde, abordou duas mulheres mais jovens que, mesmo não reconhecendo o casal da foto, lhe deram uma boa idéia.

— Se a foto foi tirada em 1966, essas pessoas devem ter hoje uns sessenta anos. Por que não vai até a Casa da Terceira Idade em Solbacka?

Mikael foi até lá e apresentou-se a uma mulher de uns trinta anos, explicando o que queria. Ela o olhou desconfiada, mas acabou cedendo. Acompanhou Mikael à sala de convivência, onde ele passou meia hora mostrando as fotos a um grande número de pensionistas de setenta anos ou mais. Apesar da amabilidade deles, ninguém identificou as pessoas fotografadas em Hedestad em 1966.

Por volta das cinco, retornou ao bairro dos Girassóis e dessa vez encontrou Hartman em casa. Ele e a mulher, ambos aposentados, haviam passado o dia fora. Fizeram-no entrar na cozinha, onde a mulher imediatamente foi preparar um café enquanto Mikael explicava o que procurava. Como nas outras tentativas do dia, não teve sorte. Hartman coçou a cabeça, acendeu o cachimbo e depois de um momento admitiu que não reconhecia as pessoas da foto. Marido e mulher falavam num dialeto local que Mikael às vezes tinha dificuldade em compreender. A mulher certamente quis dizer "cabelos encaracolados" quando comentou que a moça da foto tinha "knövelhära".

— Mas o senhor não se enganou, é um adesivo da marcenaria — disse o marido. — Soube reconhecê-lo muito bem. O problema é que distribuíamos esses adesivos a torto e a direito. Aos motoristas, aos clientes que compravam ou forneciam madeira, aos técnicos das máquinas e a muitas outras pessoas.

— Então vai ser mais difícil encontrá-los do que eu imaginava.

— Por que precisa encontrá-los?

Mikael havia decidido dizer a verdade se as pessoas perguntassem. Qualquer história que ele tentasse inventar sobre o casal da foto soaria de todo modo inverossímil e só criaria confusão.

— É uma longa história. Estou investigando um crime ocorrido em He-destad em 1966, e acho que há uma possibilidade, embora pequena, de que as pessoas dessa foto tenham visto o que aconteceu. Elas não são suspeitas de absolutamente nada e acredito que talvez nem saibam que possuem informações que poderiam solucionar esse crime.

— Um crime? Que tipo de crime?

— Sinto muito, mas não posso dizer mais nada. Sei que deve parecer misterioso alguém vir aqui procurar essas pessoas quarenta anos depois, mas o crime nunca foi solucionado e só há pouco tempo alguns novos elementos vieram à tona.

— Entendo. Sim, de fato é uma pesquisa estranha essa que está fazendo.

— Quantas pessoas trabalhavam na marcenaria?

— A equipe completa tinha quarenta pessoas. Trabalhei ali desde os dezessete anos, em meados dos anos 1950, até a empresa fechar as portas. Depois virei motorista de caminhão.

Hartman refletiu por um momento.

— Posso garantir que o rapaz da foto nunca trabalhou na marcenaria. A menos que fosse um motorista, mas acho que mesmo assim eu o teria reconhecido. Quem sabe não era pai desse moço da foto ou alguém da família que trabalhava na fábrica? Talvez o carro não fosse dele.

Mikael assentiu com a cabeça.

— E verdade, as possibilidades são muitas. O senhor sabe de alguém com quem eu possa falar?

— Sim — disse Hartman, levantando o indicador. — Passe aqui amanhã de manhã, e daremos uma volta para conversar com os velhos.

Lisbeth Salander estava diante de um problema metodológico. Ela era uma especialista na arte de obter informações sobre qualquer pessoa, mas sempre dispunha, como ponto de partida, do nome e do número de identidade de um indivíduo ainda vivo. Se a pessoa figurasse num banco de dados, o que inevitavelmente acontecia com todo mundo, poderia ser localizada bem rápido em sua teia de aranha. Se possuísse um computador conectado à internet, e-mail e até mesmo um site, o que era o caso de quase todos que se encaixavam em seu tipo de pesquisa, ela podia penetrar em seus segredos mais íntimos.

O trabalho que aceitara fazer para Mikael Blomkvist era completamente diferente. Desta vez a tarefa consistia em identificar quatro números pessoais a partir de dados extremamente vagos. Além disso, essas pessoas tinham vivido várias dezenas de anos atrás, o que talvez eliminasse a possibilidade de constarem num banco de dados.

A tese de Mikael, baseada no caso Rebecka Jacobsson, era que essas pessoas haviam sido assassinadas. Portanto, deveriam estar em inquéritos policiais não resolvidos. Ela não dispunha de nenhuma pista sobre a data e o lugar onde esses crimes teriam sido cometidos, exceto que ocorreram, sem dúvida, antes de 1966. Do ponto de vista da pesquisa, uma situação inteiramente nova.

Bem, o que é que eu faço então?

Ligou o computador e entrou no Google com as palavras-chave Magda + crime. Era a forma de pesquisa mais simples que podia fazer. Para sua grande surpresa, uma porta abriu-se imediatamente em suas investigações. A primeira ocorrência era a programação da TV-Värmland em Karlstad, que indicava um episódio da série Crimes no Värmland levada ao ar em 1999. Depois, ela encontrou um breve artigo no Värmlands Folkblad.

Um novo episódio da série Crimes no Värmland focaliza o caso Magda Lovisa Sjöberg, de Ranmoträsk, um crime misterioso e abominável que mobilizou a polícia de Karlstad dezenas de anos atrás. Em abril de 1960, a proprietária rural Lovisa Sjöberg, de quarenta e seis anos, foi encontrada no estábulo de seu sítio, assassinada de maneira brutal. O repórter Claes Gunnars reconstitui seus últimos momentos e a busca infrutífera do criminoso. Esse crime provocou muita comoção na época e inúmeras teorias sobre o culpado. No programa, um parente mais jovem, suspeito do crime, conta o quanto sua vida foi destruída por essa acusação. 20 horas.

Lisbeth encontrou informações mais consistentes no artigo "O caso Lovisa abalou toda uma região", publicado na revista Värmlandskultur, cujo texto aparecia na net reproduzido na íntegra. Num tom persuasivo e envolvente, contava como o marido de Lovisa, o lenhador Holger Sjöberg, encontrara a mulher morta ao voltar do trabalho, às cinco da tarde. Ela fora violentada, apunhalada e por fim morta com um forcado. O crime ocorrera no estábulo da família, mas o que causara mais comoção é que o assassino, depois de cometer o crime, a pusera de joelhos numa baia de cavalo.

Mais tarde, descobriu-se que um dos animais do sítio, uma vaca, recebera uma facada no pescoço.

De início suspeitaram do marido, mas ele apresentou um álibi sólido. Estava com os colegas de trabalho desde as seis da manhã numa área de corte a quarenta quilômetros do sítio. Lovisa Sjöberg ainda estava viva às dez da manhã, quando uma vizinha passou para vê-la. Ninguém viu nem ouviu nada; o sítio mais próximo ficava a cerca de quatrocentos metros.

Depois de abandonar o marido como principal suspeito, o inquérito policial voltou-se para um sobrinho da mulher assassinada, um jovem de vinte e três anos. Ele já tivera vários problemas com a Justiça, estava seriamente endividado e quase sempre pedia dinheiro emprestado à tia. Seu álibi era bem mais frágil. Ele foi detido para investigações e depois solto por falta de provas. Mesmo assim, muitos habitantes da aldeia o consideravam o mais provável culpado.

A polícia também seguiu outras pistas. Grande parte das investigações girou em torno de um misterioso caixeiro-viajante visto na região; circulava ainda um boato sobre um grupo de supostos ciganos que teriam praticado uma série de roubos. Nada se falava, porém, sobre a razão que os teria levado a cometer um assassinato brutal de caráter sexual, sem que nada tivesse sido roubado.

Por um momento, o interesse se voltou para um vizinho da aldeia, um homem solteiro que na juventude fora suspeito de um crime homossexual — isso numa época em que a homossexualidade ainda era crime — e que, segundo várias declarações, tinha a reputação de ser "estranho". Mas tampouco ficou esclarecido por que um eventual homossexual cometeria um crime sexual contra uma mulher. Nenhuma dessas ou outras pistas jamais levou a uma detenção ou condenação.

Lisbeth Salander achou que a ligação com a lista da agenda telefônica de Harriet era evidente. A citação do Levítico XX, 16 dizia: "Se uma mulher se aproximar de um animal para se prostituir com ele, será morta juntamente com o animal. Serão mortos e levarão a sua iniquidade." Impossível atribuir ao acaso o assassinato de uma camponesa de prenome Magda, proprietária de um estábulo, e seu corpo ter sido colocado numa baia de cavalo.

Mas por que Harriet Vanger anotara o prenome Magda, e não Lovisa, como a vítima era mais conhecida? Se o nome completo dela não estivesse na programação de tevê, Lisbeth nada teria percebido.

E permanecia, claro, a questão fundamental: havia uma ligação entre o assassinato de Rebecka em 1949, o de Magda Lovisa em 1960 e o desaparecimento de Harriet Vanger em 1966? Em caso afirmativo, como Harriet Vanger soube disso?

No sábado, Hartman acompanhou Mikael em um passeio sem muitas expectativas até Norsjö. De manhã, visitaram cinco ex-funcionários da marcenaria que moravam suficientemente perto um do outro para que pudessem ir a pé. Três moravam no centro e dois em Sörbyn, na periferia do vilarejo. Todos ofereceram café. Todos examinaram as fotos e sacudiram negativamente a cabeça.

Após um almoço trivial na casa dos Hartman, saíram de carro para mais uma volta. Foram a quatro aldeias nos arredores de Norsjö onde moravam outros ex-funcionários da marcenaria. A cada parada, Hartman era calorosamente recebido, mas ninguém foi capaz de ajudá-los. Mikael começava a se desesperar e a achar que a viagem a Norsjö não serviria para nada.

Por volta das quatro da tarde, Hartman estacionou o carro em frente a uma casa pintada de vermelho, típica do Västerbotten, em Norsjövallen, ao norte de Norsjö, e apresentou Mikael a Henning Forsman, marceneiro aposentado.

— Sim, é o filho de Assar Brännlund — disse Henning Forsman assim que Mikael mostrou a fotografia.

Bingo!

— E onde posso encontrá-lo?

— Esse rapaz? Bem, vai ter que cavar. Chamava-se Gunnar, morreu numa explosão em meados dos anos 1970.

Droga!

Mas a mulher dele ainda está viva. É essa da foto. Chama-se Mildred e mora em Bjursele.

— Bjursele?

— Fica a uns dez quilômetros logo que se pega a estrada de Bastuträsk. Mora numa casinha vermelha à direita, na entrada na aldeia. A terceira casa. Conheço bem a família.

"Bom dia, meu nome é Lisbeth Salander. Estou fazendo uma tese de criminologia sobre a violência contra as mulheres no século XX e gostaria de saber se é possível passar no distrito policial de Landskrona para examinar documentos sobre um caso de 1957. Trata-se do assassinato de uma mulher de quarenta e cinco anos chamada Rakel Lunde. Por acaso sabe onde esses documentos podem estar hoje?"

Bjursele parecia uma publicidade viva da vida rural do Västerbotten. A aldeia era composta de umas vinte casas, relativamente próximas, que formavam um semicírculo na extremidade de um lago. No meio da aldeia havia um cruzamento com uma placa indicando Hemmingen, 11 km, e outra apontando para Bastuträsk, 17 km. Ao lado do cruzamento, uma pequena ponte cruzava um riacho que Mikael supôs ser o sele de Bjursele. Nessa época, em pleno verão, era tão bonito como um cartão-postal.

Mikael estacionou no pátio de um supermercado Konsum definitivamente fechado, do outro lado da estrada, a pouca distância da terceira casa à direita. Quando bateu à porta, ninguém atendeu.

Andou durante uma hora pela estrada de Hemmingen. Passou num lugar onde o riacho se transformava numa torrente impetuosa, viu dois gatos e uma cabra antes de retornar, mas nenhum ser humano. A porta de Mildred Brannlund continuava fechada.

Num poste junto à ponte, um pequeno cartaz convidava para assistir ao BTCC, o Bjursele Tukting Car Championship 2002. Mikael olhou pensativamente para o cartaz. Tukt a car parecia ser uma distração de inverno que consistia em conduzir um veículo sobre o lago gelado até arrebentá-lo.

Esperou até as dez da noite antes de desistir e retornar a Norsjö, onde jantou tarde e recolheu-se para terminar de ler o policial de Vai McDermid.

Um final abominável.

* * *

Às dez da noite, Lisbeth Salander acrescentou outro nome à lista de Harriet Vanger. Fez isso com muita hesitação, depois de refletir por horas.

Ela descobrira um atalho. Regularmente eram publicados artigos sobre crimes não solucionados, e no suplemento de um jornal vespertino topou com um artigo de 1999 intitulado "Matadores de mulheres continuam em liberdade". O artigo era conciso, mas trazia os nomes e as fotos de várias vítimas que fizeram correr muita tinta. O caso Solveig em Norrtälje, o assassinato de Anita em Norrköping, o de Margareta em Helsingborg e uma série de outros mistérios.

Os casos mais antigos datavam dos anos 1960 e nenhum dos crimes figurava na lista que Mikael passara a Lisbeth. No entanto, um deles chamou sua atenção.

Em junho de 1962, uma prostituta de trinta e dois anos, Lea Persson, de Göteborg, foi a Uddevalla para visitar sua mãe e seu filho de nove anos de quem a mãe tinha a guarda. Alguns dias depois, Lea abraçou a mãe, despediu-se e partiu para pegar o trem de volta a Göteborg. Foi encontrada dois dias depois atrás de um contêiner abandonado num terreno baldio industrial. Fora violentada e seu corpo sofrera sevícias particularmente brutais.

O assassinato de Lea foi objeto de várias matérias folhetinescas na imprensa, mas o culpado jamais foi identificado. O nome Lea não estava na lista de Harriet Vanger e nenhuma das citações bíblicas correspondia a esse crime.

Contudo, um detalhe muito bizarro levantou as antenas de Lisbeth Salander. A cerca de dez metros do local onde o corpo de Lea foi encontrado, descobriram um vaso de flores com um pombo dentro. Alguém pusera um cordão em volta do pescoço do pombo e o puxara pelo buraco no fundo do vaso. Depois, o vaso foi colocado sobre um pequeno fogo entre dois tijolos. Nada provava que essa crueldade com o animal tivesse relação com o assassinato de Lea; talvez apenas crianças se divertindo dessa maneira ignóbil. Na imprensa, porém, o caso ficou conhecido como "O crime do pombo".

Lisbeth Salander não lia a Bíblia — nem mesmo possuía uma —, mas no fim da tarde foi até a igreja de Högalid e, depois de insistir um pouco, emprestaram-lhe uma Bíblia. Ela se instalou num banco no adro da igreja e leu o Levítico. Ao chegar ao capítulo XII, versículo 8, levantou as sobrancelhas. O capítulo XII falava da purificação da mulher que deu à luz:

"Se as suas posses não lhe permitirem trazer um cordeiro, ela tomará duas rolas ou dois pombinhos, um para o holocausto e outro para o sacrifício pelo pecado. O sacerdote fará por ela a expiação e ela será purificada."

Lea poderia perfeitamente ter figurado na lista de Harriet Vanger como Lea 31208.

De repente Lisbeth Salander percebeu que as investigações que fizera até então não possuíam, nem de longe, as dimensões de sua atual missão.

Mildred Brännlund, que voltara a se casar e agora tinha o nome Berggren, atendeu Mikael Blomkvist quando ele bateu à sua porta às dez horas da manhã do domingo. Com quarenta anos a mais, a mulher parecia ter engordado também uns quarenta quilos. Mas Mikael a reconheceu de imediato.

— Bom dia, meu nome é Mikael Blomkvist. É Mildred Berggren, imagino.

— Sim, sou eu.

— Desculpe incomodá-la, mas há algum tempo venho tentando encontrá-la por causa de um assunto bastante difícil de explicar. — Mikael sorriu. — Será que posso entrar e tomar um pouquinho do seu tempo?

Como o marido de Mildred e seu filho de trinta e cinco anos estavam em casa, sem muita hesitação ela convidou Mikael a entrar e a se sentar na cozinha. Mikael bebera mais café do que nunca nos últimos dias, mas sabia que uma recusa, no Norrrland, seria uma descortesia. Quando as xícaras foram postas na mesa, Mildred sentou-se e perguntou, muito curiosa, o que podia fazer por ele. Como Mikael não compreendia bem seu dialeto de Norsjö, ela passou a falar no sueco de Estocolmo.

Mikael respirou fundo.

— E uma longa e estranha história. Em setembro de 1966, a senhora estava em Hedestad com seu marido, na época Gunnar Brännlund.

Ela parecia estupefata. Ele esperou até que ela assentisse com a cabeça e depois colocou na mesa a foto tirada na rua da Estação.

— E então tiraram essa foto. Lembra-se da ocasião?

— Santo Deus — disse Mildred Berggren. — Faz uma eternidade. O segundo marido e o filho olharam a foto por cima de seu ombro.

— Era uma viagem de núpcias. Fomos a Estocolmo e a Sigtuna de carro, estávamos voltando e simplesmente paramos em qualquer lugar. O senhor disse Hedestad?

— Sim, Hedestad. Essa foto foi tirada por volta da uma da tarde. Já há algum tempo venho tentando identificar a senhora. Não foi nada fácil.

— Descobriu uma velha foto minha e me encontrou. Nem consigo imaginar como fez isso.

Mikael mostrou-lhe a foto do estacionamento.

— Foi graças a esta outra foto, tirada um pouco mais tarde no mesmo dia, que pude seguir sua pista. — Mikael explicou como, através da Marcenaria de Norsjö, encontrara Hartman, que, por sua vez, o levou a Henning Forsman em Norjösvallen.

— Suponho que tenha uma boa razão para estar fazendo essa estranha pesquisa.

— De fato. A jovem na foto diante da senhora chamava-se Harriet. Ela desapareceu nesse dia e muitos acham que foi morta. Por favor, deixe que eu lhe mostre.

Mikael pegou seu notebook e, enquanto o computador iniciava, foi explicando todo o contexto da história. Depois passou a sequência que mostrava a mudança de expressão do rosto de Harriet.

— Foi ao examinar essas fotos antigas que eu a vi. A senhora está bem atrás de Harriet, tem na mão uma máquina fotográfica e parece estar fotografando justamente o que ela está vendo e que provocou essa reação nela. Sei que é uma aposta insensata. Mas a razão que me levou a procurá-la é que talvez a senhora ainda conserve as fotos desse dia.

Mikael esperava que Mildred Berggren abanasse as mãos dizendo que não sabia o que fora feito das fotos, que as jogara fora ou que o filme nunca fora revelado. Em vez disso, ela fitou Mikael com seus olhos azul-claros e anunciou, como se fosse a coisa mais natural do mundo, que ainda guardava todas as fotos de suas viagens.

Foi até outro cômodo e voltou depois de um minuto ou dois com uma caixa contendo álbuns onde havia um grande número de fotos. Não demorou muito para encontrar as da viagem a Hedestad. Ela tirara três fotos na cidade. Uma estava desfocada e mostrava a rua principal. Na outra estava seu ex-marido. Na terceira, viam-se os palhaços no desfile.

Mikael se aproximou, muito excitado. Viu uma pessoa do outro lado da rua. A foto não lhe dizia absolutamente nada.


20. TERÇA-FEIRA 1º DE JULHO — QUARTA-FEIRA 2 DE JULHO

A primeira coisa que Mikael fez de manhã assim que chegou a Hedestad foi procurar Dirch Frode para ter notícias de Henrik Vanger. O estado de saúde do velho havia melhorado consideravelmente durante a semana. Ainda estava fraco e frágil, mas já podia se sentar na cama. Seu estado não era mais considerado crítico.

— Graças a Deus! — disse Mikael. — Descobri que gosto muito dele.

— Eu sei. Henrik também gosta de você — respondeu Frode balançando a cabeça. — E a viagem ao Grande Norte, como foi?

— Bem-sucedida e insatisfatória. Mais tarde eu conto. Agora tenho uma pergunta a lhe fazer.

— Diga.

— O que acontecerá à Millennium se Henrik falecer?

— Nada de especial. Martin assumirá o lugar dele no conselho administrativo.

— Há um risco, mesmo hipotético, de que Martin crie problemas para a Millennium se eu não parar de investigar o desaparecimento de Harriet Vanger?

Dirch Frode lançou um olhar inquiridor a Mikael.

— O que aconteceu?

— Para dizer a verdade, nada. — Mikael relatou a conversa que teve com Martin na noite de São João. — Quando voltei de Norsjö, Erika me telefonou para dizer que Martin entrou em contato com ela e lhe pediu que insistisse comigo que eles estão precisando de mim na redação.

— Entendo. Suponho que Cecilia foi importuná-lo. Mas não acredito que Martin faria barganhas. Ele é muito honesto para isso. E lembre-se que eu também participo do conselho administrativo da pequena sociedade paralela que criamos no momento que entramos na Millennium.

— Mas, caso a situação se complique, qual seria a posição dele?

— Contratos são feitos para ser respeitados. Trabalho para Henrik. Ele e eu somos amigos há quarenta e cinco anos e atuamos mais ou menos da mesma forma nesse tipo de contexto. Se Henrik morrer, serei eu, e não Martin, o sucessor dele na sociedade paralela. O contrato estipula claramente que nos comprometemos a gerar recursos para a Millennium durante quatro anos. Se Martin quiser criar obstáculos — o que não acredito —, poderá, teoricamente, barrar a entrada de alguns novos anunciantes.

— O que é a base da existência da Millennium.

— Sim, mas considere as coisas deste modo: entregar-se a tais baixezas toma tempo. Martin está lutando por sua própria sobrevivência industrial e trabalha catorze horas por dia. Não tem tempo de se dedicar a outras coisas.

Mikael ficou em silêncio, pensativo.

— Se me permite uma pergunta: sei que isto não me diz respeito, mas qual é a situação geral do grupo?

Dirch Frode assumiu um ar mais grave.

— Estamos com problemas.

— Certo, mesmo um simples jornalista econômico como eu percebeu isso. Mas até que ponto são problemas sérios?

— Promete que fica entre nós?

— Com certeza.

— Nas últimas semanas perdemos dois grandes pedidos na indústria eletrônica e estamos sendo ejetados do mercado russo. Em setembro, seremos obrigados a demitir mil e seiscentos funcionários em Örebro e em Trollhättan. Uma triste recompensa para pessoas que trabalham há tantos anos no grupo. Sempre que fechamos uma fábrica, a confiança no grupo fica abalada.

— Martin está sob pressão?

— É um boi de carga pisando em ovos.

Mikael voltou para casa e ligou para Erika. Ela não estava na redação e ele discutiu o assunto com Christer Malm.

— E o seguinte: Erika me telefonou ontem quando voltei de Norsjö. Martin Vanger conversou com ela e a estimulou, por assim dizer, a propor que eu voltasse a trabalhar na redação.

— É o que eu também acho — disse Christer.

— Entendo. Mas o fato é que tenho um contrato com Henrik Vanger que não posso romper e Martin age a pedido de uma pessoa que deseja que eu pare de investigar e desapareça da aldeia. A proposta dele, portanto, não passa de uma tentativa de me afastar daqui.

— Entendo.

— Diga a Erika que só voltarei para Estocolmo quando eu tiver terminado tudo, não antes.

— Está bem, transmitirei seu recado. Mas você é completamente louco.

— Christer, está acontecendo algo aqui, e eu não tenho a menor intenção de recuar.

Christer deu um forte suspiro.

Mikael foi procurar Martin Vanger. Eva Hassel abriu a porta e o saudou amigavelmente.

— Bom dia. Martin está?

Em resposta à pergunta, Martin apareceu com sua pasta de executivo na mão. Beijou o rosto de Eva e cumprimentou Mikael.

— Estou indo para o escritório. Quer falar comigo?

— Posso esperar, se está com pressa.

— Vamos, fale.

— Não tenho a intenção de voltar para a redação da Millennium antes de terminar o trabalho que Henrik me confiou. Aviso desde já, para que não conte comigo no conselho administrativo antes do fim do ano.

Martin Vanger balançou-se nos calcanhares para a frente e para trás.

— Entendo. Acha que estou querendo me livrar de você. — Fez uma pausa. — Mikael, falaremos disso mais tarde. Não tenho realmente tempo para me dedicar a uma atividade no conselho administrativo da revista e preferia não ter aceitado a proposta de Henrik. Mas, acredite, farei o melhor que puder para que a Millennium sobreviva.

— Nunca duvidei disso — respondeu Mikael polidamente.

— Faremos uma reunião na semana que vem para avaliar toda a situação financeira e depois eu lhe darei uma opinião a esse respeito. Mas acredito sinceramente que a Millennium não pode se dar ao luxo de ter um de seus principais representantes ocioso aqui em Hedebyön. Gosto da revista e estou certo de que poderemos recuperá-la, mas você é indispensável para esse trabalho. Quanto a mim, vejo-me pressionado por um conflito de interesses: seguir a vontade de Henrik ou cumprir meu trabalho no conselho administrativo da Millennium.

Mikael vestiu uma roupa esportiva e saiu para praticar jogging até a Fortificação. Depois passou pela cabana de Gottfried antes de voltar, num ritmo mais lento, beirando a praia. Dirch Frode estava sentado à mesa do jardim. Ele esperou pacientemente que Mikael esvaziasse uma garrafa de água e enxugasse o rosto.

— Tem certeza de que é bom para a saúde com esse calor?

— Ora, vamos! — respondeu Mikael.

— Eu me enganei. Não é Cecilia quem está importunando Martin. É Isabella que está mobilizando todo o clã Vanger para arrancar as suas penas e, se possível, assar você na panela. Ela é apoiada por Birger.

— Isabella?

— É uma mulher maldosa e mesquinha que, de modo geral, não gosta de ninguém. Neste momento, o ódio dela se dirige a você em particular. Espalhou boatos de que você é um vigarista que convenceu Henrik a contratá-lo e que o excitou a ponto de causar-lhe um infarto.

— E alguém acreditou nisso?

— Há sempre gente pronta a acreditar nas más-línguas.

— Estou tentando descobrir o que aconteceu com a filha dela e ela me odeia. Se fosse a minha filha, acho que eu reagiria de outro modo.

* * *

Por volta das duas da tarde, o celular de Mikael tocou.

— Bom dia, meu nome é Cony Torsson, trabalho no Hedestads-Kuriren. Teria um tempinho para responder a algumas perguntas? Obtivemos informações confidenciais de que está morando aqui na aldeia.

— Nesse caso as informações demoraram um pouco a chegar. Estou morando aqui desde 1º de janeiro.

— Eu não sabia. E o que faz em Hedeby?

— Estou escrevendo. E tendo uma espécie de ano sabático.

— Está escrevendo sobre o quê?

— Saberá quando for publicado.

— Você acaba de sair da prisão...

— E...?

— Qual é a sua opinião sobre jornalistas que falsificam dados?

— Jornalistas que falsificam dados são imbecis.

— Está querendo dizer que é um imbecil?

— Por que eu diria isso? Nunca falsifiquei dados.

— Mas foi condenado por difamação.

— E...?

O repórter Conny Torsson hesitou tanto tempo que Mikael foi obrigado a explicar.

— Fui condenado por difamação, não por ter falsificado dados.

— Mas publicou esses dados.

— Se telefonou para falar da minha condenação, não tenho nenhum comentário a fazer.

— Gostaria de entrevistá-lo.

— Sinto muito, nada tenho a dizer sobre esse assunto.

— Então não quer conversar sobre o processo?

— Isso mesmo — respondeu Mikael, pondo fim à conversa. Ele refletiu um bom tempo antes de voltar ao computador.

Lisbeth Salander seguiu as instruções que lhe deram e cruzou a ponte na sua Kawasaki. Parou diante da primeira casa à esquerda. Era um lugar distante, mas estaria disposta a ir ao Pólo Norte se estivesse sendo paga para isso. Além do mais, fora bom correr a toda a velocidade pela rodovia E4. Estacionou a moto e desatou a correia que prendia sua sacola de viagem.

Mikael Blomkvist abriu a porta e acenou com a mão. Saiu e inspecionou a moto com um assombro sincero.

— Uau! Você veio de moto!

Lisbeth Salander não disse nada, mas observou-o atentamente tocar o volante e experimentar o acelerador. Ela não gostava que mexessem nas suas coisas, mas viu o sorriso dele, um sorriso de garoto, e considerou aquilo como uma circunstância atenuante. Em geral, as pessoas interessadas por motocicletas sentiam desprezo pela sua moto de baixa cilindrada.

— Quando eu tinha dezenove anos, tive uma moto — disse Mikael virando-se para ela. — Obrigado por ter vindo. Entre. Vou mostrar a casa.

Mikael pedira emprestada uma cama de armar a Nilsson, do outro lado da estrada, e a instalara na saleta de trabalho. Desconfiada, Lisbeth Salander deu uma volta pela casa, mas relaxou após constatar que não havia nenhuma armadilha. Mikael indicou o banheiro.

— Não quer tomar um banho e se refrescar?

— Preciso me trocar. Não pretendo ficar com este macacão de couro.

— Vá, enquanto isso eu vou fazendo o jantar.

Mikael preparou costeletas de cordeiro ao molho de vinho tinto e pôs a mesa fora, enquanto Lisbeth tomava um banho e trocava de roupa. Saiu de pés descalços, vestindo uma regata preta e uma saia jeans curta. O cheiro da comida era bom e ela devorou duas porções. Mikael observou discretamente sua tatuagem nas costas.

Cinco mais três — disse Lisbeth Salander. — Cinco casos da lista da sua Harriet e mais três que, na minha opinião, também deveriam figurar.

— Me conte tudo.

— Faz apenas onze dias que trabalho nisso e não tive tempo de ver todos os inquéritos policiais. Alguns foram transferidos para os arquivos nacionais, outros ainda estão no distrito responsável pelo caso. Em um dia visitei três distritos diferentes, não deu tempo de fazer mais. Mas os cinco estão identificados.

Lisbeth Salander pôs uma pilha impressionante de papéis sobre a mesa, mais de quinhentas folhas de papel ofício. Rapidamente distribuiu o material em diferentes partes.

— Vamos ver por ordem cronológica. — Ela entregou uma lista a Mikael.

1949 — Rebecka Jacobsson, Hedestad (30112)

1954 — Mari Holmberg, Kalmar (32018)

1957 — Rakel Lunde, Landskrona (32027)

1960 — (Magda) Lovisa Sjöberg, Karlstad (32016)

1960 — Liv Gustavsson, Estocolmo (32016)

1962 — Lea Persson, Uddevalla (31208)

1964 — Sara Witt, Ronneby (32109)

1966 — Lena Andersson, Uppsala (30112)

— O primeiro caso dessa série parece ser Rebecka Jacobsson, 1949, do qual você já conhece os detalhes. O caso seguinte que encontrei é Mari Holmberg, uma prostituta de trinta e dois anos de Kalmar, morta em sua casa em outubro de 1954. Não se sabe exatamente quando ela foi assassinada, pois só foi encontrada algum tempo depois, provavelmente nove ou dez dias.

— E como você fez a ligação entre ela e a lista de Harriet?

— Ela tinha as mãos e os pés amarrados e o corpo coberto de ferimentos terríveis, mas a causa da morte foi asfixia. O assassino enfiou um guardanapo na garganta dela.

Mikael ficou em silêncio antes de abrir a Bíblia no local indicado, capítulo XX do Levítico, versículo 18.

"Se um homem dormir com uma mulher durante o tempo de sua menstruação e vir a sua nudez, descobrindo o seu fluxo e descobrindo-o ela mesma, serão ambos cortados do meio de seu povo."

Lisbeth concordou com a cabeça.

— Harriet Vanger fez a mesma ligação. Bem, vamos ao próximo.

— Maio de 1957, Rakel Lunde, quarenta e cinco anos. Era dona de casa e considerada uma espécie de excêntrica da região. Via a sorte das pessoas consultando as cartas, lendo a mão e coisas do gênero. Rakel morava numa casa bem isolada na periferia de Landskrona, onde foi morta ao amanhecer. Encontraram-na nua e amarrada a um varal de roupa no pátio, com a boca tapada por uma fita adesiva. Causa da morte: foi agredida com uma pedra pesada várias vezes. Apresentava várias contusões e fraturas.

— Que horror, Lisbeth! Tudo isso é monstruoso.

— E é só o começo. As iniciais RL coincidem — achou a citação?

— É evidente. "Qualquer homem ou mulher que evocar os espíritos ou fizer adivinhações, será morto. Serão apedrejados e levarão a sua culpa."

— A seguir vem Lovisa Sjöberg em Ranmo, perto de Karlstad. É a que Harriet se refere como Magda. Seu nome completo era Magda Lovisa, mas todos a chamavam de Lovisa.

Mikael escutou com atenção Lisbeth relatar os detalhes bizarros do assassinato de Karlstad. Quando ela acendeu um cigarro, ele a interrogou com o olhar, mostrando o maço. Ela o empurrou para ele.

— Então o assassino também atacou o animal?

— A Bíblia diz que, se uma mulher se acasala com um animal, os dois serão mortos.

— Mas é pouco provável que essa mulher tenha se acasalado com uma vaca!

— A citação pode ser interpretada em sentido amplo. Basta que ela tenha entrado em contato com um animal, o que uma proprietária rural certamente precisa fazer todos os dias.

— Certo. Continue.

— O próximo caso da lista de Harriet é Sara. Identifiquei-a como Sara Witt, trinta e sete anos, residente em Ronneby. Foi morta em janeiro de 1964. Encontraram-na amarrada à cama. Sofreu graves sevícias sexuais, mas a causa da morte foi asfixia. Morreu estrangulada. O assassino também provocou um incêndio criminoso. A intenção era que a casa toda queimasse, só que uma parte do fogo só extinguiu sozinha e outra parte foi controlada pelos bombeiros.

— E a ligação?

— Escute mais um pouco. Sara Witt era filha de pastor e mulher de pastor. O marido estava fora justamente naquele fim de semana.

"Se a filha de um sacerdote se desonrar pela prostituição, ela desonra o pai; será queimada no fogo." De fato, confere com a lista. Você disse que descobriu outros casos.

— Descobri outras três mulheres mortas em circunstâncias tão estranhas que poderiam ter figurado na lista de Harriet. O primeiro caso é o de uma jovem chamada Liv Gustavsson. Ela tinha vinte e dois anos e morava em Farsta.

Era apaixonada por equitação; participava de competições e era muito bem-dotada. Tinha também uma pequena pet shop com a irmã.

— E?

— Foi encontrada na loja, onde ficara sozinha até mais tarde fazendo a contabilidade. Deve ter deixado o assassino entrar voluntariamente. Foi estuprada e estrangulada.

— Isso não parece ter muito a ver com a lista de Harriet.

— Não, se não fosse por uma coisa. O assassino encerrou seu trabalho enfiando um periquito na vagina dela e soltando todos os animais que havia na loja. Gatos, tartarugas, hamsters, coelhos, aves. Até os peixes do aquário. Imagine o espetáculo terrível que a irmã presenciou na manhã seguinte.

Mikael assentiu com a cabeça.

— Ela foi morta em agosto de 1960, quatro meses depois do assassinato de Magda Lovisa em Karlstad. Nos dois casos, trata-se de mulheres cuja profissão as punham em contato com animais, e em ambos houve sacrifício de animais. A vaca em Karlstad sobreviveu, é verdade, mas imagino que seja bem difícil matar uma vaca com uma simples facada. Matar um periquito é mais fácil. Sem contar que há um outro sacrifício de animal na lista.

— Qual?

— Lisbeth contou do estranho "Crime do pombo" de Lea Persson em Uddevalla. Mikael ficou refletindo tanto tempo em silêncio que Lisbeth se impacientou.

— Certo, concordo com a sua teoria — ele acabou por dizer. — Há mais um caso.

— Um dos que descobri. Não sei quantos outros me escaparam.

— Me conte.

— Fevereiro de 1966, em Uppsala. A vítima, a mais jovem de todas, foi uma colegial de dezessete anos chamada Lena Andersson. Desapareceu após uma festa da sua turma e foi encontrada três dias depois numa vala da planície de Uppsala, bastante longe da cidade. Foi morta em outro lugar e levada para lá.

Mikael assentiu com a cabeça.

— Esse assassinato deu o que falar, mas as circunstâncias exatas sobre a morte nunca foram divulgadas. A moça foi torturada de maneira atroz. Li o relatório do legista. Foi torturada com fogo; as mãos e os seios estavam gravemente queimados e o corpo apresentava queimaduras em diversos pontos. Foram encontradas manchas de estearina, sugerindo que uma vela deve ter sido utilizada, mas as mãos estavam tão carbonizadas que certamente foram postas num fogo mais intenso. Para terminar, o assassino serrou a cabeça e a deixou ao lado do corpo. Mikael empalideceu.

— Meu Deus! — disse.

— Não encontrei nenhuma citação bíblica que encaixe, mas há várias passagens que falam de imolação e de sacrifício pelo pecado, e em alguns trechos se preconiza que o animal de sacrifício, geralmente um touro, seja decepado de modo que a cabeça se separe da gordura. A utilização do fogo lembra também o primeiro assassinato, o de Rebecka aqui em Hedestad.

Quando os mosquitos começaram sua dança noturna, Mikael e Lisbeth deixaram a mesa de jardim e se instalaram na cozinha para continuar a conversa.

— O fato de você não ter encontrado uma citação bíblica exata não quer dizer grande coisa. Não se trata de citações, mas de uma paródia grotesca do que diz a Bíblia; são mais associações com versículos esparsos.

— Eu sei. Um exemplo dessa falta de lógica é a citação de que os dois devem ser exterminados se um homem faz amor com uma mulher menstruada. Se interpretarmos literalmente, o assassino deveria ter se suicidado.

— E tudo isso nos leva a quê? — perguntou Mikael.

— Ou a sua Harriet tinha o estranho hobby de colecionar citações bíblicas para associá-las a vítimas de crimes dos quais ouviu falar, ou ela sabia da existência de uma ligação entre os crimes.

— Entre 1949 e 1966, talvez antes e depois também, teria existido um louco furioso e sádico que andou com uma Bíblia debaixo do braço matando mulheres durante dezessete anos sem que ninguém tivesse feito uma ligação entre os crimes. Parece inacreditável.

Lisbeth Salander afastou a cadeira e foi buscar café no fogão. Acendeu um cigarro e soprou a fumaça ao redor. Mikael praguejou por dentro e lhe pediu mais um cigarro.

— Não, não é nada inacreditável. Primeiro — disse ela erguendo o polegar —, há dezenas e dezenas de assassinatos de mulheres não solucionados na Suécia do século XX. Certa vez ouvi Persson, o professor de criminologia, dizer na tevê que os assassinos seriais são muito raros na Suécia, embora alguns jamais tenham sido identificados.

Mikael assentiu com a cabeça. Ela levantou um segundo dedo.

— Esses crimes foram cometidos num período muito longo e em diferentes regiões do país. Dois ocorreram sucessivamente em 1960, mas em circunstâncias relativamente diferentes — uma camponesa em Karlstad e uma moça de vinte e dois anos apaixonada por equitação em Estocolmo.

Três dedos.

— Não há um esquema claro, marcante. Os crimes foram cometidos de formas diferentes e não há uma verdadeira assinatura, apesar de alguns elementos retornarem toda vez. Animais. Fogo. Violências sexuais graves. E, como você disse, uma paródia de conhecimentos bíblicos. Mas, pelo que se sabe, nenhum dos investigadores da polícia usou a Bíblia para interpretar os crimes.

Mikael concordou com a cabeça e a examinou discretamente. Com seu corpo frágil, sua regata preta, as tatuagens e os piercings no rosto, Lisbeth Salander era de fato uma figura estranha na casa dos convidados em Hedeby. Quando ele tentara ser sociável durante o jantar, ela permaneceu taciturna e mal respondeu. Mas trabalhando era uma profissional dos pés à cabeça. Seu apartamento em Estocolmo parecia uma ruína após um bombardeio, porém Mikael foi obrigado a reconhecer que Lisbeth Salander tinha a cabeça muito bem organizada. Que estranho!

— É difícil ver a relação entre uma prostituta de Uddevalla assassinada atrás de um container num terreno baldio industrial e a mulher do pastor de Ronneby estrangulada e vítima de um incêndio criminoso. A menos que encontremos a chave que Harriet nos deixou, é claro.

— O que nos leva à próxima questão — disse Lisbeth.

— Como Harriet foi se envolver com toda essa merda? Ela, uma menina de dezesseis anos que vivia num meio bastante protegido.

— Só há uma resposta — disse ela. Mikael assentiu com a cabeça outra vez.

— Existe, necessariamente, uma ligação com a família Vanger.

Por volta das onze da noite, eles haviam repassado a série de crimes e discutido relações e detalhes curiosos, a ponto de os pensamentos girarem sem parar na cabeça de Mikael. Ele esfregou os olhos, se espreguiçou e perguntou se Lisbeth não tinha vontade de dar uma caminhada. Ela pareceu achar esse tipo de exercício uma perda de tempo, mas, depois de refletir um instante, concordou. Mikael sugeriu que ela vestisse uma calça comprida por causa dos mosquitos.

Deram uma volta pelo porto de recreio, passaram junto à ponte e seguiram em direção ao promontório onde Martin Vanger morava. Mikael apontou as casas e contou quem eram seus moradores. Teve dificuldade de falar sobre Cecilia Vanger quando mostrou sua casa. Lisbeth olhou para ele discretamente.

Passaram em frente ao luxuoso iate de Martin Vanger e chegaram ao promontório, onde se sentaram numa pedra e dividiram um cigarro.

— Há um outro tipo de ligação entre as vítimas — disse Mikael de repente. — Talvez já tenha lhe ocorrido isso.

— O quê?

— Os prenomes.

Lisbeth Salander refletiu por um instante e depois balançou negativamente a cabeça.

— Todas têm prenomes bíblicos.

— Não, não é verdade — respondeu Lisbeth vivamente. — Não há nem Liv nem Lena na Bíblia.

— Pois eu digo que sim — replicou Mikael. — Liv significa "viver", que é o sentido bíblico do prenome Eva. E, pense um pouco, Lisbeth: Lena é uma redução de quê?

Lisbeth Salander contraiu os olhos com força, irritada consigo mesma. Mikael raciocinara mais rápido que ela, e ela não gostava disso.

— De Magdalena, assim como Magda. Ou seja, Madalena — ela disse.

— A pecadora, a primeira mulher, a Virgem Maria... eis todas elas reunidas. É uma história bem maluca, capaz de fundir a cabeça de qualquer psicólogo. Mas, na verdade, ainda estou pensando em outra coisa sobre os prenomes.

Lisbeth aguardou pacientemente.

— São também prenomes femininos judaicos tradicionais. A família Vanger teve um bom contingente de doidos anti-semitas, nazistas e teóricos da conspiração. Harald Vanger, no topo da lista, tem mais de noventa anos e estava no auge de sua forma nos anos 1960. A única vez em que o encontrei, disse com desprezo que sua filha era uma puta. Ele claramente tem problemas com as mulheres.

De volta à casa, eles prepararam sanduíches e esquentaram o café. Mikael lançou um olhar às quinhentas páginas que a investigadora favorita de Dragan Armanskij havia produzido.

— Fez um trabalho de pesquisa fantástico num tempo recorde. Obrigado. E obrigado também pela gentileza de vir até aqui me trazer o relatório.

— E o que faremos agora? — perguntou Lisbeth.

— Falarei com Dirch Frode amanhã de manhã para que paguem você.

— Não foi isso que eu quis dizer. Mikael olhou para ela.

— Bem... o trabalho de pesquisa para o qual eu a contratei terminou — ele disse com prudência.

— Ainda não acabei de resolver essa história.

Mikael inclinou-se para trás no banco da cozinha e sondou os olhos dela. Não conseguiu detectar absolutamente nada. Durante seis meses havia trabalhado sozinho no desaparecimento de Harriet e de repente outra pessoa — uma investigadora habilidosa — captava todas as implicações do caso. Ele tomou uma súbita decisão.

— Entendo. Essa história também está mexendo com os meus nervos. Falarei com Dirch Frode amanhã. Contrataremos você por mais uma semana ou duas como... humm... assistente de pesquisa. Não sei se ele está disposto a pagar o mesmo que paga a Armanskij, mas daremos um jeito de conseguir uma remuneração satisfatória.

Lisbeth agradeceu com um breve sorriso. Ela não tinha a menor vontade de ficar inativa e teria aceitado de bom grado o trabalho de graça.

— Vou dormir — ela anunciou. E, sem dizer mais nada, foi para o quarto e fechou a porta.

Dez minutos depois, abriu a porta e pôs a cabeça para fora.

— Acho que você está enganado. Ele não é um assassino serial, um doente que leu a Bíblia demais. É simplesmente um canalha ordinário que odeia as mulheres.


21. QUINTA-FEIRA 3 DE JULHO — QUINTA-FEIRA 10 DE JULHO

Lisbeth Salander acordou antes de Mikael, às seis da manhã. Pôs a água do café para esquentar e tomou um banho. Quando Mikael acordou por volta das sete e meia, encontrou-a lendo seu resumo do caso Harriet Vanger no notebook. Foi até a cozinha, com uma toalha de banho em volta da cintura, e esfregou os olhos para espantar o sono.

— O café está pronto — disse Lisbeth. Mikael olhou por cima do ombro dela.

— Esse documento estava protegido por uma senha de acesso — disse. Ela virou a cabeça e olhou para ele.

— Em trinta segundos pode-se baixar um programa na internet que abre as senhas do Word — ela disse.

— Nós dois precisamos ter uma conversinha sobre o que lhe pertence e o que me pertence — disse Mikael, e foi tomar seu banho.

Quando voltou, Lisbeth já havia fechado e recolocado o computador de Mikael na saleta de trabalho, e trabalhava no seu próprio Powerbook. Ele podia jurar que ela já havia transferido todo o conteúdo do seu computador para o dela.

Lisbeth Salander era uma junkie da informática com uma concepção muito liberal a respeito de moral e ética.

* * *

Mikael tinha acabado de se sentar à mesa para tomar o café-da-manhã, quando bateram à porta. Ao abrir, deu com um Martin Vanger tão crispado que, por um instante, acreditou que ele vinha anunciar a morte de Henrik.

— Não, o estado de Henrik continua o mesmo. Venho por outro motivo. Será que posso entrar um momento?

Mikael o fez entrar e o apresentou à sua "colaboradora" Lisbeth Salander. Ela o cumprimentou com um breve aceno de cabeça antes de voltar ao computador. Martin Vanger respondeu com uma saudação automática, mas dava a impressão de estar tão distraído que nem pareceu notá-la. Mikael serviu-lhe uma xícara de café e o convidou a se sentar.

— O que aconteceu?

— Você é assinante do Hedestads-Kuriren?

— Não. Leio o jornal de vez em quando no Café Susanne.

— Então não leu a edição de hoje?

— Pelo jeito, acho que eu deveria ter lido.

Martin Vanger pôs o Hedestads-Kuriren em cima da mesa, na frente de Mikael. Havia duas colunas dedicadas a ele na primeira página, com uma continuação na página 4. Ele leu a manchete.

jornalista condenado por difamação se esconde entre nós

O texto era ilustrado por uma foto de Mikael saindo de casa, tirada da igreja, do outro lado da ponte, com teleobjetiva.

O repórter Conny Torsson traçava um perfil grosseiro e devastador de Mikael. O artigo recapitulava o caso Wennerström, sublinhava que Mikael deixara a Millennium com o rabo entre as pernas e que acabava de amargar uma pena de prisão. O texto terminava informando, segundo a fórmula-padrão, que Mikael se recusara a conceder uma entrevista ao Hedestads-Kuriren. A idéia da matéria era fazer o habitante de Hedestad acreditar que um vagabundo da capital, um indivíduo perigoso, se encontrava nas imediações. Nenhuma das afirmações era abertamente caluniosa, mas todas procuravam jogar uma luz suspeita sobre Mikael; a foto e o texto adotavam a linha "descrição de terroristas políticos". A Millennium era apresentada como uma "revista de agitadores" pouco digna de crédito, e o livro de Mikael sobre jornalismo econômico como um amontoado de afirmações destinadas a denegrir jornalistas respeitados.

— Mikael... não tenho palavras para dizer o que senti quando li esse artigo. É ignóbil.

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