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não é verdade que o céu seja indiferente às nossas preocupações e anseios. o céu está Constantemente a enviar-nos sinais, avisos, e se não dizemos bons conselhos é porque a experiência de um lado e do outro, isto é, a dele e a nossa, já demonstrou que não vale a pena esforçar a memória, que todos a temos mais ou menos fraca. Sinais e avisos são fáceis de interpretar se estivermos de olho atento, como foi o caso do comandante quando sobre a caravana, em certa altura do caminho, caiu um rápido mas abundante aguaceiro. Para os homens da força, empenha-dos no penoso trabalho de empurrar o carro de bois, aquela chuva foi uma bênção, um acto de caridade pelo sofrimento em que têm vivido sujeitas as clas ses baixas. o elefante salomão e o seu cornaca subhro desfrutaram do súbito refresco, o que não impediu o guia de pensar no arranjo que lhe faria futuramente um guarda-chuva em situações como estas, principalmente no caminho para viena, de poleiro e protegido da água que caísse das nuvens. Quem não apre ciou nada o líquido meteoro foram os soldados da cavalaria, habitualmente presumidos nas suas fardas coloridas, agora manchadas e pingonas, como se estivessem a regressar vencidos de uma batalha. Quanto ao comandante, esse, com a sua já provada agili dade de es-pírito, havia compreendido imediatamente que tinha 58


ali um problema muito sério. Uma vez mais se de-monstrava que a estratégia para esta missão fora de-senhada por pessoal incompetente, inca paz de prever os acontecimentos mais correntios, como este de chover em agosto, quando a sabedoria popular já vinha avisando desde a noite dos tempos que o inverno, precisamente, é em agosto que come ça. a não ser que o aguaceiro tivesse sido uma coisa de ocasião e que o bom tempo voltasse para ficar, tinham-se acabado as noites dormidas ao ar livre sob a lua ou o arco estrela-do do caminho de santiago. e não só isso. tendo de pernoitar em lugares habita dos, era preciso que neles houvesse um espaço cober to para abrigar os cavalos e o elefante, os quatro bois, e umas boas dezenas de homens, e isso, como se pode calcular, era algo custoso de encontrar no portugal do século dezasseis, onde ainda não se tinha aprendido a construir naves indus-triais nem estala gens de turismo. e se a chuva nos apanha na estrada, não um aguaceiro como este, mas uma chuva contí nua, daquelas que não param durante horas e horas, perguntou-se o comandante, e concluiu, não teremos outro remédio que apará-la toda nas costas. levantou a cabeça, perscrutou o espaço e disse, Por agora parece ter escampado, oxalá tenha sido só um ameaço. infelizmente não tinha sido só um ameaço. Por duas vezes, antes de chegarem a porto salvo, se tal se podia chamar a duas dezenas de case-bres afas tados uns dos outros, com uma igreja descabeçada, isto é, só com meia torre, sem nave industrial à vista, ainda lhes caíram em cima duas bátegas, que o 59


comandante, já perito neste sistema de comunicações, interpretou logo como dois novos avisos do céu, decerto impaciente por não ver que estivessem a ser tomadas as medidas preventivas necessárias, as que poupariam à ensopada caravana resfriamentos, cons-tipações, defluxos e mais do que prováveis pneumonias. esse é o grande equívoco do céu, como a ele nada é impossível, imagina que os homens, feitos, segundo se diz, à imagem e semelhança do seu pode roso inqui-lino, gozam do mesmo privilégio. Queríamos ver o que sucederia ao céu na situação do comandante, indo de casa em casa com a mesma cantilena, Sou oficial de cavalaria em missão de serviço orde nada por sua alteza o rei de portugal, a de acompa nhai um elefante à cidade espanhola de valladolid, e não ver senão caras desconfiadas, aliás mais do que justificadadamente, dado que jamais se tinha ouvido falar da espécie elefantina por aquelas paragens nem havia a menor ideia do que fosse um elefante. Queríamos ver o céu a perguntar se tinham por ali um celeiro grande ou, na sua falta, uma nave industrial, onde se pudessem recolher por uma noite os animais e as pessoas, o que de todo não seria impossível basta que recordemos a peremptória afirmação daquele famoso jesus de galileia que, nos seus melhores tempos, se gabou de ser capaz de destruir e reconstruir o templo entre a manhã e a noite de um único dia ignora-se se foi por falta de mão-de-obra ou de cimento que não o fez, ou se foi por ter chegado à sensata, conclusão de que o trabalho não merecia a pena, considerando que se algo se vai des-60


truir para construí-lo outra vez, melhor será deixar tudo como estava antes. Proeza, essa sim, foi o episó-

dio da multiplicação dos pães e dos peixes, que se aqui chamamos à colação é tão-somente porque, por ordem do coman dante e esforço da intendência da cavalaria vai ser servida hoje comida quente para quantos humanos vão na caravana, o que não é pequeno milagre se considerarmos a falta de comodidades e a ins-tabilidade do tempo. felizmente não choverá. os homens despiram as roupas mais pesadas e puseram-nas a secar em varas a jeito de que lhes aproveitasse o ca lor das fogueiras entretanto acendidas. depois foi só esperar que o caldeirão da comida chegasse, sentir a consoladora contracção do estômago ao cheirar-lhe que a sua fome vai ser finalmente satisfeita, sentir-se um homem como aqueles outros a quem, a horas certas, como se de benéfica fatalidade do destino se tratasse, alguém vem servir um prato de comida e uma fatia de pão. este comandante não é como outros pensa nos seus homens, incluindo os colaterais, como se fossem seus filhos. além disso, preocupa-se pouco com hierarquias, pelo menos em circunstâncias como as presentes, tanto assim que não foi comer a parte, está aqui, ocupa um lugar ao redor do lume, e, se até agora tem participado pouco nas conversas, foi só para deixar os homens à vontade. aqui mesmo um da cavalaria acaba de perguntar o que tem andado na ca-beça de todos, e tu, ó cornaca, que raios, vais tu fazer com o elefante a viena, Provavelmente o mesmo que em lisboa, nada de importante, respondeu subhro, 61


irão dar-lhe muitas palmas, irá sair muita gente à rua, e depois esquecem-se dele, assim é a lei da vida, triunfo e olvido, nem sempre, aos elefantes e aos homens, sempre, embora dos homens eu não deva falar, não passo de um indiano em terra que não é sua, mas, que eu conheça, só um elefante escapou a esta lei, Que elefante foi esse, per guntou um dos homens das forças, Um elefante que eslava moribundo e a quem cortaram a cabeça de pois de morto, então acabou-se tudo aí, não, a cabe ça foi posta no pescoço de um deus que se chama ganeixa e que estava morto, fala-nos desse tal ganeixa, disse o comandante, Comandante, a religião hinduísta é muito complicada, só um indiano está capa citado para compreendê-la, e nem todos o conseguem, Creio recordar que me disseste que és cristão, e eu recordo-me de ter respondido, mais ou menos, meu comandante, mais ou menos, Que quer isso dizer na realidade, és ou não és cristão, Baptizaram-me na índia quando eu era pequeno, e depois, depois, nada, respondeu o cornaca com um encolher de ombros, nunca praticaste, não fui chamado, senhor, devem ter-se esquecido de mim, não perdeste nada com isso, disse a voz desconhecida que não foi possível locali-zar, mas que, embora isto não seja crível, pare ceu ter brotado das brasas da fogueira. fez-se um grande si-lêncio só interrompido pelos estalidos da lenha a arder. Segundo a tua religião, quem foi que criou o universo, perguntou o comandante, Brama, meu senhor, então, esse é deus, Sim, mas não o úni co, explica-te, É

que não basta ter criado o universo, é preciso também 62


quem o conserve, e essa é a tarefa de outro deus, um que se chama vixnu, Há mais deu ses além desses, cornaca, temos milhares, mas o ter ceiro em importância é siva, o destruidor, Queres dizer que aquilo que vixnu conserva, siva o destrói, não, meu comandante, com siva, a morte é entendi da como princípio gerador da vida, Se bem percebo, os três fazem parte de uma trin-dade, são uma trinda de, como no cristianismo, no cristianismo são qua tro, meu comandante, com perdão do atrevimento, Quatro, exclamou o comandante, estupefacto, quem é esse quarto, a virgem, meu senhor, a virgem está fora disto, o que temos é o pai, o filho e o espírito santo, e a virgem, Se não te explicas, corto-te a ca beça, como fizeram ao elefante, nunca ouvi pedir nada a deus, nem a jesus, nem ao espírito santo, mas a virgem não tem mãos a medir com tantos rogos, preces e solicitações que lhe chegam a casa a todas as horas do dia e da noite, Cuidado, que está aí a in quisição, para teu bem não te metas em terrenos pan tanosos, Se chego a viena, não volto mais, não regressas à índia, perguntou o comandante, Já não sou indiano, em todo o caso vejo que do teu hinduísmo pareces saber muito, mais ou menos, meu comandante, mais ou menos, Porquê, Porque tudo isto são palavras, e só palavras, fora das palavras não há nada, ganeixa é uma palavra, perguntou o coman dante, Sim, uma palavra que, como todas as mais, só por outras palavras poderá ser explicada, mas, como as palavras que tentaram explicar, quer tenham con seguido fazê-

lo ou não, terão, por sua vez, de ser explicadas, o nos-63


so discurso avançará sem rumo, alter nará, como por maldição, o errado com o certo, sem se dar conta do que está bem e do que está mal, Con ta-me quem foi ganeixa, ganeixa é filho de siva e de parvati, também chamada durga ou kali, a deusa dos cem braços, Se em vez de braços tivessem sido per nas, podíamos chamar-lhe centopeia, disse um dos homens rindo-se contrafeito, como arrependido do comentário mal ele lhe saíra da boca. o cornaca não lhe prestou atenção e prosseguiu, Há que dizer, como aconteceu com a vossa virgem, que ganeixa foi gera do por sua mãe, parvati, sem intervenção do marido, siva, o que se explica pelo facto de que este, sendo eterno, não sentia nenhuma necessidade de ter filhos. Um dia, tendo parvati decidido tomar banho, suce deu que não havia guardas por ali a fim de a protege rem de alguém que quisesse entrar na sala. então ela criou um ídolo com a forma de um rapazinho, feito com a pasta que havia preparado para lavar-se, e que não devia ser outra coisa que sa-bão. a deusa infun diu vida no boneco, e este foi o primeiro nascimento de ganeixa. Parvati ordenou a ganeixa que não per mitisse a entrada de ninguém e ele seguiu à risca as ordens da mãe. Passado pouco tempo, siva regressou da floresta e quis entrar em casa, mas ganeixa não permitiu, o que, como é natural, en-fureceu siva. en tão deu-se o seguinte diálogo, Sou o esposo de par vati, portanto a casa dela é a minha casa, aqui só entra quem minha mãe quiser, e ela não me disse que tu podias entrar. Siva perdeu a paciência e lançou-se numa feroz batalha com ganeixa, que termi-64


nou com o deus cortando com o seu tridente a cabeça ao ad versário. Quando parvati saiu e viu o corpo sem vida do filho, os seus gritos de dor depressa se transfor maram em uivos de fúria. ordenou a siva que devol vesse imediatamente a vida a ganeixa, mas, por des graça, o golpe que o tinha degolado havia sido tão poderoso que a cabeça foi atirada para muito longe e nunca mais a viram. então, como último recurso, siva foi pedir auxílio a brama, que lhe sugeriu que substituísse a cabeça de ganeixa pela do primeiro ser vivo que encontrasse no caminho, desde que estives se na direcção norte. Siva mandou então o seu exér cito ce-lestial para que tomasse a cabeça de qualquer criatura que encontrassem dormindo com a cabeça na direcção norte. encontraram um elefante mori bundo que dormia desta maneira e, após a sua morte, cortaram-lhe a cabeça. Regressaram aonde estavam siva e parvati e entregaram-lhes a cabeça do elefan te, a qual foi colocada no corpo de ganeixa, trazendo-o de novo à vida. e foi assim que nasceu ganeixa depois de ter vivido e morrido. Histórias da carochi nha, resmungou um soldado, Como a daquele que, tendo morrido, ressuscitou ao terceiro dia, respon deu subhro, Cuidado, cornaca, estás a ir longe de mais, repreendeu o comandante, eu também não acredito no conto do menino de sabão que veio a tomar-se deus com um corpo de homem barrigudo e cabeça de elefante, mas foi-me pedido que explicas se quem era ganeixa, e eu não fiz mais que obedecer, Sim, mas fizeste considerações pouco amáveis sobre jesus cristo e a virgem que não 65


caíram nada bem no espírito das pessoas aqui presentes, Peço desculpa a quem se sentiu ofendido, foi sem intenção, respon deu o cornaca. ouviu-se um murmú-

rio de apazigua mento, a verdade é que àqueles homens, tanto soldados como paisanos, pouco lhes im-portavam as disputas religiosas, o que os inquietava era que se tocasse em assuntos tão retorcidos debaixo da própria cúpu la celeste. Costuma-se dizer que as paredes têm ou vidos, imagine-se o tamanho que terão as orelhas das estrelas. fosse como fosse, eram horas de ir para a cama, os lençóis e as mantas dela as roupas que tinham vestidas, o importante era que não lhes cho vesse em cima, e isso tinha-o conseguido o coman dante indo de casa em casa a pedir que dessem abri go, por esta noite, a dois ou três dos seus homens, dormiriam em cozinhas, em estábulos, em palheiros, mas desta vez com a barriga cheia, o que compensa ria esses e outros inconvenientes. Com eles dispersa ram uns quantos habitantes da aldeia, quase todos homens, que por ali tinham andado, atraídos pela novidade do elefante, do qual, por medo, não conse guiriam aproximar-se a menos de vinte passos. en rolando com a tromba uma porção de forragem que bastaria para satisfazer o primeiro apetite de um es quadrão de vacas, salomão, apesar da sua vista curta, lançou-lhes um olhar severo, dando claramente a en tender que não era um animal de concurso, mas sim um trabalha-dor honrado a quem certos infortúnios, que seria demasiado longo relatar aqui, haviam dei xado sem trabalho e, por assim dizer, entregue à ca ridade pública.

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