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o comandante tivera razão nas suas desconfian-

ças, pouco havia passado das dez horas quando do alto da torre ressoaram os gritos de alarme das atalaias, inimigo à vista, inimigo à vista. É certo que os austríacos, pelo menos na sua versão militar, não gozam de boa reputação entre esta tropa portuguesa, mas daí, sem mais aquelas, a chamar-lhes inimigos, vai uma distância que o senso comum não pode não recriminar severamente, chamando a atenção dos imprudentes para os perigos dos juízos precipitados e da tendência para as condenações sem provas. o caso, porém, tem uma explicação. Às atalaias tinha-se-lhes ordenado que dessem voz de alarme, mas ninguém se lembrou de lhes dizer, nem sequer o comandante, em geral tão precavido, em que deveria consistir essa voz.

Perante o dilema de terem de escolher entre ini migos à vista, que qualquer civil é capaz de perceber, e um tão pouco marcial as visitas estão a chegar, o uniforme que envergavam resolveu decidir por sul conta, exprimindo-se com o vocabulário e a voz que lhes são próprios. ainda a última ressonância do alerta vibra-va no ar e já os soldados acorriam às ameias para ver o tal inimigo, que, a esta distância, uns qua tro ou cinco quilómetros, não passava de uma man cha quase negra que mal parecia avançar e que, con tra as expectativas, não fazia rebrilhar as couraças que traziam pos-119


tas. Um soldado desfez a dúvida, não admira, têm o sol pelas costas, o que, reconheçamo-lo, é muito mais bonito, muito mais literário, que di zer, estão em con-traluz. os cavalos, todos zainos e alazões com a pela-gem em diversos tons de castanho, daí a mancha escura que formavam, avançavam a trote curto. Poderiam mesmo vir a passo que a dife rença não se notaria, mas isso faria com que se per desse o efeito psicológico de um avanço que pretende apresentar-se como impará-

vel, mas que, ao mesmo tempo, sabe gerir os meios de que dispõe. É evidente que um bom galope de espadas ao alto, género carga da brigada ligeira, proporciona-ria à galeria efeitos es peciais muito mais espectacula-res, mas, para uma vi tória tão fácil como esta promete vir a ser, seria ab surdo cansar os cavalos mais além do estritamente necessário. isto havia pensado o comandante austría co, homem de larga experiência em campos de bata lha da europa central, e assim o fez transmitir aos militares sob as suas ordens. entretanto, castelo rodrigo preparava-se para o combate. os soldados, depois de ensilharem os animais, levaram-nos a passo para o exterior e aí os deixaram à guarda de meia dúzia de camaradas, os mais capacitados para uma missão que pareceria de simples pastoreio se à porta do castelo houvesse alguma coisa para comer. o sargento fora avisar o alcaide de que já vinha o austrí-

aco, ainda vão demorar um bocado, mas temos de estar preparados, disse, muito bem, respondeu o alcaide, eu acompanho-o. Quando chegaram ao castelo, a tropa já estava formada em frente da entrada, tapan-120


do-lhe o acesso, e o comandante preparava-se para fazer a sua última arenga. atraída pela exibição eques-tre gratuita e pela possibilidade de que o elefante também saísse, uma boa parte da população de figueira de castelo rodrigo, homens, mulheres, infantes e anciãos, tinha vindo juntar-se na praça, o que levou o comandante a dizer em voz baixa ao alcaide, Com toda esta gente a assistir, as hostilidades são pouco prová-

veis, também penso isso, mas com o austríaco nunca se sabe, teve más experiências com eles, per guntou o comandante, nem más nem boas, nenhu mas, mas sei que o austríaco existe sempre e isso, para mim, é quanto basta. embora tivesse acenado com a cabeça em sinal de inteligência, o comandante não conseguiu captar a subtileza, salvo se se tomar austríaco como sinónimo de adversário, de inimigo. Resolveu por isso passar imediatamente à prelecção com que esperava levantar o ânimo desfalecente de algum dos homens.

Soldados, disse, o destacamento austríaco está perto.

virão reclamar o elefante para o levarem para valladolid, mas nós não acataremos o pedido, ainda que ele venha a transformar-se em im posição sustentada pela força. os soldados portugue ses acatam disciplinada-mente as ordens do seu rei e das suas autoridades militares e civis. de ninguém mais. a promessa do rei, de oferecer o elefante Salomão a sua alteza o arquiduque de áustria, será pon tualmente cumprida, mas só com o total respeito pelas formas por parte dos austríacos.

Quando, de cabeça levantada, voltemos para casa, poderemos ter a certe za de que este dia será recordado 121


para todo o sempre, de cada um de nós se há-de dizer enquanto houver portugal, ele esteve em figueira de castelo rodrigo. o discurso não pôde chegar ao seu termo natural, isto é, quando a eloquência se esgotas-se e se perdesse em lugares-comuns ainda piores, porque os austríacos já estavam a entrar na praça, trazendo à frente o seu comandante. Houve aplausos do povo reunido, mas escassos e de pouca convicção.

Com o alcaide ao lado, o comandante da hoste lusitana adiantou o cavalo os poucos metros necessários para que se percebesse que estava a receber os visitantes de acordo com as mais requintadas regras de educação. foi nesse ins tante que uma manobra dos soldados austríacos fez resplandecer de golpe, sob o sol, as couraças de aço polido. o efeito na assistência foi fulminante. Perante os aplausos e as exclamações de surpresa a saltar de todos os lados, era evidente que o império austríaco, sem disparar um só tiro, vencera a escaramuça inicial. o comandante português compreendeu que deveria contra-atacar imediatamente, mas não via a maneira. Salvou-o do transe o alcaide ao dizer em voz baixa, Como alcaide, devo ser o primeiro a falar, te nhamos calma. o comandante recuou um pouco o cavalo, consciente da enorme diferença, em potência e beleza, da sua montada em comparação com a égua alazã que o austríaco cavalgava. o alcaide já tomara a palavra, em nome da população de figueira de cas telo rodrigo, de que me honro de ser alcaide, dou as boas-vindas aos bravos militares austríacos que nos visitam e a quem desejo os melhores 122


triunfos no de sempenho da missão que aqui os trouxe, certo como estou de que eles contribuirão para o fortalecimento dos laços de amizade que unem os nossos dois países. Sejam pois bem-vindos a figueira de castelo rodrigo. Um homem montado numa mula chegou-se para a frente e falou ao ouvido do comandante austríaco, que afastou a cara com impaciência.

era o língua, o intérprete. Quando a tradução terminou, o coman dante alçou a voz poderosa, acostumada a não ser es cutada por ouvidos desatentos e muito menos deso bedecida, Sabeis por que estamos aqui, sabeis que viemos buscar o elefante para levá-lo connosco a valladolid, é importante que não percamos tempo e comecemos já com os preparativos da transferência, de modo a que possamos partir amanhã o mais cedo possível, são estas as instruções que recebi de quem podia dar-mas e que farei cumprir de acordo com a autoridade de que me encontro investido. estava cla ro que não se tratava de um convite à valsa. o alcaide murmurou, a ceia foi por água abaixo, assim parece, disse o comandante. depois levantou por sua vez a fala, as minhas instruções são diferentes, as que re cebi, também de quem mas podia dar, são simples, levar o elefante a valladolid e entregá-lo ao arquiduque de áustria pessoalmente, sem intermediários. a partir destas palavras, deliberadamente provocativas e que talvez venham a ter consequências sérias, serão eliminadas do relato as versões alternadas do intérprete a fim de não só agilizar a justa verbal, mas também para que fique habilmente insinuada a ideia pre-123


cursora de que a esgrima de argumentos de um lado e do outro estará a ser percebida por ambas as partes em tempo real. ouve-se agora o comandante austría-co, Receio que a sua pouco compreensiva atitude esteja a impedir uma solução pacífica do diferendo que nos opõe, é evidente que o ponto central está em que o elefante, seja quem for que o leve, terá de ir para valladolid, porém, há pormenores prioritários a tomar em consideração, o primeiro dos quais é o facto de que o arquiduque maximiliano, ao declarar aceitar o presente, se tornou ipso facto proprietário do elefante, o que significa que as ideias de sua alteza o arquiduque sobre o assunto terão de prevalecer sobre quaisquer outras, por muito merecedoras de respeito que presumam ser, portanto, insisto, o elefante deve ser-me entregue agora mesmo, sem mais dilação, como única maneira de evitar que os meus soldados penetrem no castelo pela força e se apoderem do animal, gostaria de ver como o lograriam, mas tenho trinta homens a cobrir a entrada do castelo e não estou a pensar em dizer-lhes que se retirem ou que abram alas para deixar passar os seus quarenta. nesta altura a praça já estava quase deserta de paisanos, o ambiente começara a cheirar a esturro, em casos como este há sempre a possibilidade de uma bala perdida ou de uma pranchada cega pelas costas abaixo, enquanto a guerra não passa de um espectáculo, bem está, o mau é quando pretendem converter-nos em fi-gurantes nela, ainda por cima sem preparação nem experiência. foram, portanto, já poucos os que ainda 124


ouviram a réplica do comandante austríaco à insolência do português, os couraceiros sob o meu comando poderão, a uma simples ordem, varrer do campo, em menos tempo do que levo a dizê-lo, a fraca força militar que se lhes opõe, mais simbólica que efectiva, e assim será feito se não for imediatamente deposta a insensata obstinação de que o seu comandante está dando mostras, o que me obriga a avisar de que as inevitáveis perdas humanas, que no lado português, dependendo do grau de resistência, poderão vir a ser totais, serão de sua inteira e única responsabilidade, depois não venham para cá queixar-se, Uma vez que, se bem entendi, vossa senhoria se propõe matar-nos a todos, não vejo como poderemos depois queixar-nos, suponho que irá ter alguma dificuldade em justificar uma acção a esse ponto violenta contra soldados que não fazem mais que defender o direito do seu rei a estabelecer as regras para a entrega do elefante oferecido ao arquiduque maximiliano de áustria, que, neste caso, me parece ter sido muito mal aconselhado, tanto no plano político como no plano militar. o comandante austríaco não respondeu imediatamente, a ideia de que teria de justificar perante viena e lisboa uma acção de tão drásticas consequências dava-lhe voltas na cabeça, e a cada volta lhe parecia mais complicada a questão. Por fim, julgou ter encontrado uma plata forma conciliatória, propor que lhes fosse permitido, a ele e aos seus homens, entrar no castelo para se certificarem do estado de saúde do elefante. Suponho que os seus soldados não são alveitares, respondeu o 125


comandante português, quanto a vossa senhoria, não sei, mas não creio que se tenha especializado na arte de curar bestas, portanto não vejo qualquer utilidade em deixá-los entrar, pelo menos antes que me seja re-conhecido o direito a ir a valladolid fazer, pessoalmente, entrega do elefante a sua alteza o arquiduque de áustria. novo silêncio do comandante austríaco.

vendo que a resposta não chegava, o alcaide disse, eu falo com ele. ao fim de alguns minutos regressava com uma expressão de contentamento no rosto, está de acordo, diga-lhe então, pediu o comandante português, que para mim será uma honra acompanhá-lo na visita. enquanto o alcaide ia e vinha, o comandan te português deu ordem ao sargento para mandar formar a tropa em duas alas. adiantou o cavalo quando a manobra ficou concluída, até o pôr ao lado da égua do austríaco, e pediu ao intérprete que traduzisse, Seja outra vez bem-vindo a castelo rodrigo, vamos ver o elefante.

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