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dos e como, sem interromperem a marcha, se metiam dentro deles exibindo uma alegria militar poucas vezes observada na história dos exércitos. o mesmo fez, ainda que com maior discrição, o cornaca fritz, antiga-mente chamado subhro. Já aconchegado no grosso capote, ocorreu-lhe que a gualdrapa deixada ao pio gozo do bispo de valladolid teria sido de grande utilidade para um solimão que a chuva impiedosamente, lá nas alturas, maltratava. o resultado do temporal desfeito que com tanta rapidez tinha sucedido às primeiras e espaçadas bátegas, foi ter saído pouquíssima gente aos caminhos a festejar o solimão e a saudar sua alteza. mal fizeram, pois outra ocasião não terão para ver passar, nos tempos mais chegados, um elefante ao natural. Quanto a passar o arquiduque, a culpa da incerteza tem-na a insuficiência de informação anteci-pada sobre as deslocações miúdas da quase imperial pessoa, pode ser que passe, pode ser que não. mas, no que ao elefante se refere, não tenhamos dúvidas, não voltará a pisar estes caminhos. o tempo escam-pou ainda antes de entrarem em piacenza, o que permitiu uma travessia da cidade mais de acordo com a grandeza das personagens que iam na caravana, pois os couraceiros puderam despir os capotes e aparecer com todo o seu conhecido esplendor, em lugar da ri-dícula figura que tinham vindo a fazer desde a saída de génova, de casco de guerra na cabeça e um capote de surrobeco às costas. desta vez juntou-se muita gente nas ruas, e, se o arquiduque foi aplaudido por ser quem era, o elefante, pelo mesmo motivo, não o foi 170


menos. fritz não tinha despido o abrigo. achava que a grosseira indumentária lhe conferia, pela amplitu-de da confecção, mais própria de capa que de simples capote, um ar de soberana dignidade que condizia perfeitamente com a majestosa passada de solimão. a falar verdade, já não lhe importava tanto que o arquiduque lhe houvesse mudado o nome. É certo que fritz não conhecia o refrão clássico que diz que para viver em roma haverá que tornar-se romano, mas, embora não se sentisse nada inclinado a ser austríaco em áustria, cria ser aconselhável para a sua ambição de viver uma existência sossegada dar o menos possível nas vistas do vulgo, mesmo tendo que apresentar-se aos olhos da gente cavalgando um elefante, o que, porém, logo de entrada, já fazia dele um ser excepcional. aqui vai, pois, embrulhado no seu capote, aspirando com delícia o leve cheiro a bedum exalado pelos panos hú-

midos. marchava, como lhe havia sido ordenado na estrada de valladolid, atrás do coche do arquiduque, de modo que dava a ideia a quem de longe o visse de ir arrastando atrás de si a enorme fila de carroças e galeras de carga que compunham o cortejo, e em primeiro lugar, na sua peugada imediata, os carros com os fardos de forragem e a dorna da água que a chuva já fizera transbordar. era um cornaca feliz, bem longe das estreitezas da vida em portugal, onde, praticamente, o tinham deixado a vegetar durante dois anos no cercado de belém, vendo partir as naus da índia e ouvindo as cantorias dos frades jerónimos. e possível que o nosso elefante pense, se aquela enorme cabe-171


ça é capaz de semelhante proeza, pelo menos espaço não lhe falta, ter razões para suspirar pelo antigo far niente, mas isso só poderia suceder graças à sua ignorância natural de que a indolência é o mais prejudicial que há para a saúde. Pior que ela só o tabaco, como lá mais para diante se há-de ver. agora, porém, depois de trezentas léguas a andar, grande parte delas por caminhos que o diabo, apesar dos seus pés de bode, se negaria a pisar, solimão já não merece que lhe chamem indolente. tê-lo-ia sido durante a permanência em portugal, mas isso são águas passadas, bastou-lhe ter posto o pé nas estradas da europa para logo ver acordarem em si energias de cuja existência nem ele próprio havia suspeitado. tem-se observado com muita frequência este fenómeno nas pessoas que, pelas circunstâncias da vida, pobreza, desemprego, foram forçadas a emigrar. frequentemente apáticas e indiferentes na terra onde nasceram, tornam-se, quase de uma hora para a outra, activas e diligentes como se lhes tivesse entrado no corpo o tão falado mas nunca estudado bicho-carpinteiro, desse falamos, e não daqueles, comuns, que se alimentam da madeira que roem e são também conhecidos pelos nomes de ca-runcho ou carcoma. Sem esperar que o acampamento implantado nos arredores de piacenza acabasse de ser montado, solimão já descansa nos braços do morfeu dos elefantes. e fritz, a seu lado, tapado com o capote, ressona como um bendito de deus. manhã cedo, tocou a corneta. tinha chovido durante a noite, mas o céu apresentava-se limpo. oxalá não venha a cobrir-se de 172


nuvens cinzentas, como sucedeu ontem. o objectivo mais próximo é a cidade de mântua, já na lombardia, famosa por muitas e excelentes razões, sendo uma delas um certo bufão da corte ducal chamado rigolet-to, a cujas graças e desgraças, lá mais para diante, o grande giuseppe verdi porá música. a caravana não se deterá em mântua para apreciar as excelsas obras de arte que abundam na cidade. mais abundarão em verona para onde, vista a estabilidade do tempo, o arquiduque tinha mandado avançar e que será o cená-

rio escolhido por william Shakespeare para a sua the most excelent and lamentable tragedy of romeo and juliet, não porque maximiliano segundo de áustria esteja particularmente curioso de amores que não são seus, mas porque verona, se não contarmos pádua, será o último passo importante antes de veneza, daí para diante vai ser tudo a subir em direcção aos alpes, para o frio norte. ao que consta, os arquiduques já conhecem doutras viagens a bela idade dos doges, aonde, por outro lado, não seria nada fácil fazer entrar as quatro toneladas do solimão, na suposição de que pensassem levá-lo como mascote. Um elefante não é bicho para acomodar-se numa gôndola, se é que elas já existiam naquela época, pelo menos com o feitio que agora têm, com a proa levantada e a fúnebre cor negra que as distingue entre todas as marinhas do mundo, e muito menos com um gondoleiro a cantar à popa.

no fim de contas, talvez os arquiduques decidam dar uma volta pelo grande canal e sejam recebidos pelo doge, mas solimão, os couraceiros todos e a restante 173


equipagem ficarão em pádua, de cara para a basílica de santo antónio, que de lisboa é, reivindiquemo-lo, e não de pádua, num espaço limpo de árvores e outras vegetações. Cada qual no seu lugar será sempre a melhor das condições para alcançar a paz universal, salvo se a sabedoria divina dispôs outra coisa.

foi o caso, na manhã seguinte, de ter aparecido no ainda mal acordado bivaque um emissário da basí-

lica de santo antónio. embora não tivesse usado exactamente estes termos, disse vir a mandado de um superior da equipa eclesiástica do templo para falar com o tratador do elefante. três metros de altura vêem-se de longe, e o vulto de solimão quase enchia o espaço celeste, mas, mesmo assim, o padre pediu que o levassem lá. o couraceiro que o acompanhou foi sacudir o cornaca, o qual, enrolado no capote, ainda dormia, está aí um padre, disse. optara por falar em castelhano, e foi o melhor que poderia ter feito, dado que os limitados conhecimentos da língua alemã de que o cornaca se havia dotado até hoje ainda não lhe davam para compreender uma frase tão complexa. fritz abriu a boca para perguntar que é que lhe queria o padre, mas logo a fechou, não fosse criar-se ali uma confusão linguística que não se sabe aonde os levaria. levantou-se, pois, e dirigiu-se ao sacerdote, que esperava a uma distância prudente, vossa paternidade quer falar comigo, perguntou, assim é, meu filho, respondeu o visitante pondo nestas quatro palavras todas as reservas de unção de que podia dispor, Queira então dizer, padre, És cristão, foi a pergunta, fui baptizado, mas 174


pela minha cor e pelas minhas feições, vossa paternidade já deve ter visto que não sou de cá, Sim, suponho que serás indiano, mas isso não é impedimento de que sejas um bom cristão, não serei eu a dizê-lo, já que tenho entendido que elogio em boca própria é vitu-pério, venho fazer-te um pedido, mas antes quero que me digas se o teu elefante é dos ensinados, ensinado, o que se chama ensinado, no sentido de saber umas quantas habilidades de circo, não o é, mas costuma comportar-se com a dignidade de um elefante que se respeita, Serás capaz de fazê-lo ajoelhar, nem que seja só com uma perna, Saiba vossa paternidade que nunca experimentei, mas tenho observado que o solimão se ajoelha motu proprio quando quer deitar-se, agora do que não posso ter a certeza é de que o faça se eu lho mandar, Podes experimentar, Saiba vossa paternidade que a ocasião não é a melhor, de manhã solimão está quase sempre maldisposto, Posso voltar mais tarde, se achares conveniente, o que aqui me traz não é sangria desatada, embora muito conviesse aos interesses da basílica que acontecesse hoje, antes que sua alteza o arquiduque de áustria partisse para o norte, acontecesse hoje, quê, se não sou de-masiado confiado em perguntar, o milagre, disse o padre juntando as mãos, Que milagre, perguntou o cornaca ao mesmo tempo que sentia a cabeça a dar-lhe uma volta, Se o elefante fosse ajoelhar-se à porta da basílica, não te parece que seria um milagre, um dos grandes milagres da nossa época, perguntou o sacerdote tornando a unir as mãos, não sei nada de milagres, na minha 175


terra, lá onde eu nasci, não os há desde que o mundo ficou criado, imagino que toda a criação terá sido um milagre pegado, mas depois acabaram-se, agora estou a ver que afinal não és cristão, vossa paternidade decidirá, a mim deram-me uma besuntadela de cristianismo e baptizado sou, mas talvez ainda se perceba o que está por baixo, e que é o que está por baixo, Por exemplo, ganeixa, o deus elefante, aquele que está ali a sacudir as orelhas, vossa paternidade vai já perguntar-me como sei eu que o elefante solimão é um deus, e eu responderei que se há, como há, um deus elefante, tanto poderá ser aquele como qualquer outro, Pelo que ainda espero de ti, perdoo-te as blasfémias, mas, quando isto terminar, terás de confessar-te, e que espera vossa paternidade de mim, Que leves o elefante à porta da basílica e o faças ajoelhar-se ali, não sei se serei capaz, tenta-o, imagine vossa paternidade que eu levo lá o elefante e ele se recusa a ajoelhar-se, embora eu não entenda muito destes assuntos, suponho que pior que não haver milagre é encontrar-se com um milagre falhado, nunca terá sido falhado se dele ficaram testemunhas, e quem vão ser essas testemunhas, em primeiro lugar, toda a comunidade religiosa da basílica e quantos cristãos dispostos consigamos reunir à entrada do templo, em segundo lugar, a voz pública que, como sabemos, é capaz de jurar o que não viu e afirmar o que não sabe, incluindo acreditar em milagres que nunca existiram, perguntou o cornaca, São esses os mais saborosos, dão trabalho a preparar, mas o esforço que pedem é em geral com-176


pensador, além disso, aliviamos de maiores responsabilidades os nossos santos, e as de deus, a deus nunca o importunamos para que faça um milagre, é preciso respeitar a hierarquia, quando muito recorremos à virgem, que também é dotada de talentos taumatúrgicos, Quer-me parecer, disse o cornaca, que pela vossa igreja católica anda muito cinismo, talvez, mas, se te falo com tanta franqueza, respondeu o sacerdote, é para que percebas que necessitamos mesmo esse milagre, esse ou qualquer outro, Porquê, Porque lutero, apesar de morto, anda a causar grande prejuízo à nossa santa religião, tudo quanto possa ajudar-nos a reduzir os efeitos da predicação protestante será bem-vindo, recorda que ainda só há pouco mais de trinta anos foram afixadas as suas nefandas teses às portas da igreja do castelo de wittenberg e o protestantismo vai alastrando como uma inundação por toda a europa, não sei nada dessas teses, ou lá o que seja, nem precisas de saber, basta que tenhas fé, fé em deus, ou no meu elefante, perguntou o cornaca, em ambos, respondeu o padre, e quanto vou eu ganhar com isto, a igreja não se pede, dá-se, nesse caso, vossa paternidade deveria falar antes com o elefante, visto que dele é que dependerá o bom resultado da operação milagrosa, tens uma língua descarada, tem cuidado, não a percas, Que é que me acontece se eu levar o elefante à porta da basílica e ele não se ajoelhar, nada, a não ser que suspeitemos que a culpa seja tua, e se assim fosse, terias fortes motivos para te arrependeres. o cornaca achou mais conveniente render-se, a que horas deseja 177


vossa paternidade que eu leve o animal, perguntou, Quero-te lá ao meio-dia em ponto, nem um minuto mais, e eu espero que o tempo me chegue para meter na cabeça de solimão que terá de se ajoelhar aos pés de vossas paternidades, não aos nossos, que indignos somos, mas do nosso santo antónio, e com estas pias palavras retirou-se o padre a dar conta aos seus superiores dos resultados da evangélica diligência, mas há esperanças, perguntaram-lhe, as melhores, embora estejamos nas mãos do elefante, Um elefante não é um cavalo, não tem mãos, foi uma maneira de falar, como dizer, por exemplo, que estamos nas mãos de deus, Com a grande diferença de que, efectivamente, estamos nas mãos de deus, louvado seja o seu nome, louvado seja, mas, tornando à vaca-fria, porquê estamos nós nas mãos do elefante, Porque não sabemos o que ele fará quando se encontrar diante da porta da basílica, fará o que lhe mandar o cornaca, para isso é que está o ensino, Confiemos na benevolente compreensão divina dos factos deste mundo, se deus, como supomos, quer ser servido, convirá que dê uma ajuda aos seus próprios milagres, aqueles que melhor falarão da sua glória, irmãos, a fé pode tudo, deus obrará no que faça falta, amém, vozeou em coro a congrega-

ção preparando em mente o arsenal de orações adju-vantes.

entretanto, fritz procurava, por todos os meios, que o elefante compreendesse o que pretendia dele.

não era tarefa fácil para um animal com opiniões firmes, que imediatamente associaria a acção de dobrar 178


os joelhos à acção seguinte de deitar-se a dormir. Pouco a pouco, porém, depois de muitos golpes, um sem-número de pragas e algumas súplicas desesperadas, começou a fazer-se luz no até então renitente cérebro de solimão, isto é, que devia pôr-se de joelhos, mas não deitar-se. a minha vida, chegou a dizer-lhe fritz, está nas tuas mãos, o que mostra como as ideias podem propagar-se, não só por via directa, da boca ao ouvido, mas simplesmente porque pairam nas correntes atmosféricas que nos rodeiam, constituindo, por assim dizer, um autêntico banho de imersão no qual se aprende sem dar por isso. dada a escassez de relógios, o que mandava naquela época era a altura do sol e o tamanho da sombra que ele fazia projectar no chão. foi assim que fritz soube que o meio-dia se aproximava, portanto tempo de levar o elefante à porta da basílica, e a partir daí que seja o que deus quiser.

lá vai, cavalgando o cachaço de solimão, como outras vezes o temos visto, mas agora tremem-lhe as mãos e o coração, como se fosse um mísero aprendiz de cornaca. Penas perdidas foram. Chegado à porta da basí-

lica, perante uma multidão de testemunhas que por todos os tempos vindouros irão certificar o milagre, o elefante, obedecendo a um ligeiro toque na orelha direita, dobrou os joelhos, não um, com o que já se daria por satisfeito o padre que viera com o requerimento, mas ambos, assim se vergando à majestade de deus no céu e dos seus representantes na terra. Solimão recebeu em troca uma generosa aspersão de água benta que chegou a salpicar o cornaca lá em cima, enquanto 179


a assistência, unanimemente, caía de joelhos e a mú-

mia do glorioso santo antónio estremecia de gozo no túmulo.

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