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os lobos apareceram no dia seguinte. tanto deles temos falado aqui que, por fim, decidiram mostrar-se.
não parecem vir com ânimo de guerra, talvez porque o resultado da caçada, durante as últimas horas da noite, tenha bastado para confortar-lhes o estômago, além disso, uma coluna destas, de mais de cinquenta homens, com uma boa parte deles armados, impõe respeito e prudência, os lobos podem ser maus, mas estúpidos não são. Peritos na avaliação relativa das forças em presença, as próprias e as alheias, não vão atrás de entusiasmos, não perdem a cabeça, talvez porque não tenham bandeira nem charanga para le-vá-los à glória, quando se lançam ao ataque é para la-nhar, regra que, em todo o caso, como se verá um pouco mais adiante, admite alguma excepção. estes lobos nunca tinham visto um elefante. não é de estranhar que algum deles, mais imaginativo, tivesse pensado, se os lobos têm um pensamento paralelo aos processos mentais humanos, na sorte grande que seria para a alcateia dispor daquelas toneladas de carne logo à saída da toca, a mesa sempre posta, almoço, jantar e ceia. não sabe o ingénuo canis lupus signatus, nome latino do lobo ibérico, que naquela pele nem as balas conseguem entrar, convindo no entanto reconhecer a enorme diferença que há entre uma bala das antigas, dessas que quase nunca sabiam aonde iam, e os den-94
tes destes três representantes do povo lupino que, do alto do cabeço a que treparam, contemplam o animado espectáculo da coluna de homens, cavalos e bois que se prepara para uma nova etapa no caminho para castelo rodrigo. É bem possível que a pele de salomão não pudesse resistir por muito tempo à acção concer-tada de três dentaduras treinadas no duro ofício de comer o que aparece para sobreviver. os homens fazem comentários sobre os lobos, e um deles diz para os que estão perto, Se al-guma vez forem atacados por um bicho destes e só tiverem um pau para defender-se, arranjem-se de maneira que ele nunca consiga fin-car-lhe os dentes, Porquê, perguntou alguém, Porque o lobo irá avançando pouco a pouco ao longo do pau, sempre com os dentes cravados na madeira, até chegar ao teu alcance e saltar-te em cima, diabo de animal, Há que dizer que os lobos não são, por natureza, inimigos do homem, e, se às vezes o parecem, é porque somos para eles um obstáculo ao livre desfrute do que o mundo tem para oferecer a um lobo honrado, em todo o caso aqueles três não parecem dar mostras de hostilidade ou más ideias a nosso respeito, devem ter comido, além disso somos demasiados aqui para que se atrevessem a assaltar, por exemplo, um destes cavalos, que para eles representam um petisco de primeira classe, vão-se embora, gritou um soldado. era verdade. a imobilidade em que haviam permanecido todo o tempo desde que chegaram rompera-se. agora, recortados primeiro contra o fundo de nuvens e movendo-se como se em vez de andar deslizassem, os 95
lobos, um a um, desapareceram. voltaremos a vê-los, perguntou o soldado, É possível, quanto mais não seja para saberem se ainda continuamos por aqui ou se algum cavalo ficou para trás estropeado, disse o homem que sabia de lobos. lá adiante, o corneta fez ouvir a ordem de preparar para a marcha. mais ou menos meia hora depois a coluna, pesadamente, começou a mover-se, à frente o carro de bois, a seguir o elefante e os homens para as forças, depois a cavalaria, e, a fechar o cortejo, o carro da intendência. a fadiga era geral. entretanto, o cornaca já tinha dito ao comandante que o salomão vinha cansado, e não seria tanto por obra da distância percorrida desde lisboa como pelo péssimo estado dos caminhos, se insistirmos em chamar-lhes assim. o comandante respondeu-lhe que em um dia mais, no máximo dois, avistariam castelo rodrigo, Se formos os primeiros a chegar, acrescentou, o elefante poderá descansar os dias ou as horas que os espanhóis tardarem, descansará salomão e todos quantos aqui vão, homens e bestas, e se formos nós a chegar depois, dependo da pressa que eles tragam, das ordens que tenham, suponho que também hão-de querer descansar ao menos um dia, vossa senhoria sabe que estamos à sua conta, por mim só desejo que, até ao fim, o seu benefício seja o nosso benefício, assim há-de ser, disse o comandante. deu de esporas ao cavalo e foi adiante, a animar o boieiro, de cuja ciência de condução dependia em muito a velocidade da progressão da coluna, vamos, homem, espevita-me esses bois, gritou, castelo rodrigo já está perto, não tarda 96
muito que possamos dormir uma noite debaixo de telha, e comer como gente, espero, desabafou o boieiro em surdina, para que não o ouvissem. em todo o caso, as ordens dadas pelo comandante não caíram em saco roto. o boieiro chegou a ponteira da aguilhada ao cachaço dos bois, com efectivo e imediato resultado gritou umas palavras de incitamento no dialecto comum, um esticão brusco que se manterá talvez durante os próximos dez minutos ou um quarto de hora, assim o boieiro não deixe esmorecer a chama. acamparam já com o sol-posto e as primeiras avançadas da noite, mais mortos do que vivos, famintos mas sem vontade de comer, tal era a fadiga. felizmente, os lobos não voltaram. Se o tivessem feito poderiam ter circulado a seu bel-prazer pelo meio do acampamento e escolher, entre os cavalos, a mais suculenta vítima. É certo que um roubo tão desproporcionado não poderia prosperar, um equino é um animal demasiado grande para ser levado de arraste assim sem mais nem menos, mas se tivéssemos de descrever aqui o susto dos expedicionários quando dessem pela presença dos lobos infiltrados, de certeza não encontraríamos palavras bastante fortes, seria um salve-se quem puder.
dêmos graças ao céu por lermos escapado a essa prova. dêmos também graças ao céu porque já se avistam as imponentes torres do castelo, dá vontade de dizer como o outro, Hoje estarás comigo no paraíso, ou, repetindo as palavras mais terrenais do comandante, Hoje dormiremos debaixo de telha, é bem certo que os paraísos não são todos iguais, há-os com huris e sem 97
huris, porém, para sabermos em que paraíso estamos basta que nos deixem espreitar à porta. Uma parede que proteja da nortada, um telhado que defenda da chuva e do sereno, e pouco mais é preciso para viver no maior conforto do mundo. ou nas delícias do pa-raíso.Quem venha seguindo com suficiente atenção este relato, terá já estranhado que depois do divertido episódio da patada que salomão aplicou ao padre da aldeia não tenha havido referência a outros encontros com os habitantes destas terras, como se viéssemos atravessando um deserto e não um país europeu civilizado que, ainda por cima, como nem a mocidade das escolas ignora, deu novos mundos ao mundo. encontros, houve-os, mas de passagem, no sentido mais imediato do termo, isto é, as pessoas saíam das suas casas para ver quem vinha e davam com o elefante que a uns os fazia benzerem-se de pasmo e apreensão e a outros, ainda que apreensão também, suscitava o riso, é de crer que por causa da tromba. nada, portanto, que se compare ao entusiasmo e à quantidade de rapazes e algum adulto desocupado que vêm correndo desde a vila à notícia da viagem do elefante, que não se sabe como chegou aqui, à notícia nos referimos, não ao elefante, que esse ainda tardará. nervoso, excitado, o comandante deu ordem ao sargento para que mandasse perguntar a um dos rapazes mais crescidos se os militares espanhóis já tinham chegado. o rapaz devia ser galego porque respondeu à pergunta com outra pergunta, Que vêm eles cá fazer, vai haver 98
guerra, Responde, chegaram, ou não chegaram os espanhóis, não senhor, não chegaram. a informação foi levada ao comandante em cuja boca, no mesmo instante, apareceu o mais feliz dos sorrisos. não havia dúvida, a sorte parecia decidida a favorecer as armas de portugal.
ainda demoraram quase uma hora a entrar na vila, uma caravana de homens e animais perdidos de cansaço, que mal tinham forças para levantar o bra-
ço ou acenar com as orelhas em agradecimento aos aplausos com que os vizinhos de castelo rodrigo a recebiam. Um representante do alcaide guiou-os até à praça de armas da fortificação, onde podiam caber pelo menos dez caravanas como aquela. aí esperavam-nos três membros da família dos castelões, que depois acompanharam o comandante a inspeccionar os espaços disponíveis para abrigar os homens, sem esquecer os que os espanhóis viriam a necessitar no caso de não bivacarem fora do castelo. o alcaide, a quem o comandante foi apresentar os seus respeitos depois da inspecção, disse, o mais provável é que ins-talem o acampamento fora das muralhas do castelo, o que, além do resto, teria a grande vantagem de reduzir a possibilidade de confrontações, Por que pensa vossa senhoria que poderá haver confrontações, perguntou o comandante, Com estes espanhóis nunca se sabe, desde que têm um imperador parece que andam com o rei na barriga, e muito pior ainda seria se em vez de virem os espanhóis viessem os austríacos, É
má gente, perguntou o comandante, Julgam-se supe-99
riores aos mais, isso é pecado geral, eu, por exemplo, julgo-me superior aos meus soldados, os meus soldados julgam-se superiores aos homens que vieram para o trabalho pesado, e o ele-fante, perguntou o alcaide, sorrindo, o elefante não joga, não é deste mundo, respondeu o comandante, vi-o chegar de uma janela, de facto é um animal soberbo, gostaria de olhá-lo de mais perto, É todo seu quando quiser, não saberia que fazer com ele, a não ser alimentá-lo, Previno vossa senhoria de que este bicho requer muito alimento, assim tenho ouvido dizer, e não me apresento para ser proprietá-
rio de um elefante, sou um simples alcaide do interior, isto é, nem rei nem arquiduque, tal qual, nem rei nem arquiduque, só disponho do que posso chamar meu. o comandante levantou-se, não lhe ocupo mais tempo, senhor, muito obrigado pela atenção com que me recebeu, foi serviço do rei, comandante, só seria servi-
ço meu se aceitasse ser hóspede desta casa enquanto permanecesse em castelo rodrigo, agradeço o convite, que me honra muito mais do que poderá imaginar, mas devo estar com os meus homens, Compreendo, tenho obrigação de compreender, no entanto espero que não se escusará a uma ceia num dos próximos dias, Com todo o gosto, embora dependa do tempo que tiver de esperar, imagine que os espanhóis aparecem já amanhã, ou mesmo ainda hoje, tenho esculcas no outro lado encarregados de dar aviso, Como o fazem, Com pombos-correios. o comandante pôs cara de dú-
vida, Pombos-correios, estranhou, tenho ouvido falar deles, mas, francamente, não acredito que um pombo 100
seja capaz de voar durante tantas horas como dizem, em distâncias enormes, para ir dar, sem se enganar, ao pombal onde nasceu, Pois vai ter ocasião de verificar com os seus próprios olhos, se me permite mandarei chamá-lo quando o pombo chegar para que assista à retirada e à leitura da mensagem que ele trará atada a uma pata, Se isso acontecer, só faltará que as mensa-gens nos passem a chegar pelo ar sem precisarem das asas de nenhum pombo, Suponho que seria um pouco mais difícil, sorriu o alcaide, mas, havendo mundo, tudo poderá suceder, Havendo mundo, não existe outra maneira, comandante, o mundo é indispensável, não devo roubar-lhe mais tempo, deu-me uma grande satisfação conversar com vossa mercê, Para mim, senhor alcaide, depois desta viagem, foi como um copo de água fresca, Um copo de água fresca que não lhe ofereci, fica para a próxima vez, não se esqueça do meu convite, disse o alcaide quando o comandante já descia a escadaria de pedra, Serei pontual, senhor.
mal entrou no castelo, ordenou que se apresentasse o sargento, a quem deu instruções sobre o destino próximo dos trinta homens que tinham vindo para os trabalhos pesados. Uma vez que haviam deixado de ser necessários, ficariam ainda a descansar amanhã, mas regressariam no dia seguinte, avise o pessoal da intendência para que prepare uma razoável quantidade de alimentos, trinta homens são trinta bocas, trinta línguas e uma quantidade enorme de dentes, claro que não será possível provê-los de comida para todo o tempo que levarem a chegar a lisboa, mas eles que se 101
governem pelo caminho, trabalhando ou, ou rouban-do, acudiu o sargento à suspensão para não deixar a frase inacabada, Que se arranjem como puderem, disse o comandante, recorrendo, à falta de melhor, a uma das frases que compõem a panaceia universal, à ca-beça da qual se exibe, como exemplo perfeito da mais descarada hipocrisia pessoal e social, aquela que reco-mendava paciência ao pobre a quem se tinha acabado de negar a esmola. os homens que haviam exercido de capatazes quiseram saber quando poderiam ir cobrar pelo trabalho, e o comandante mandou dizer que não sabia, mas que se apresentassem no paço e mandas-sem recado ao secretário ou a quem por ele pudesse responder, mas aconselho-vos, a frase repetiu-a o sargento, palavra por palavra, a que não vades para lá todos juntos, pelo mau ar que dariam trinta maltrapilhos à porta do paço como se quisessem assaltá-lo, em minha opinião deverão ir os capatazes, e ninguém mais, e esses que tratem de ir tão asseados quanto lhes seja possível. Um deles, mais tarde, encontrando por acaso o comandante, pediu-lhe licença para falar, só queria dizer que tinha muita pena de não poder ir a valladolid. o comandante não soube que responder, durante alguns segundos olharam-se um ao outro em silêncio, e logo foi cada qual à sua vida.
aos soldados, o comandante fez-lhes um rápido resumo da situação, esperariam ali que chegassem os espanhóis, ainda não se sabe quando será, por enquanto não há notícias, neste ponto conteve no último instante a referência aos pombos-correios, consciente 102
dos inconvenientes de qualquer espécie de relaxação da disciplina. não sabia que entre os subordinados havia dois amantes dos pombos, dois columbófilos, palavra talvez ainda não existente na época, salvo porventura entre iniciados, mas que já devia andar a bater às portas, com aquele ar falsamente distraído que têm as palavras novas, a pedir que as deixem entrar.
os soldados estavam de pé, em posição de repouso, postura esta que era executada ad libitum, sem preocupações de harmonia corporal. tempo virá em que estar em repouso formal custará quase tanto esforço a um militar como a mais tensa das sentinelas, com o inimigo emboscado no outro lado da estrada. no solo, estendidas, havia paveias de feno com espessura suficiente para que as asas das omoplatas não tivessem de sofrer demasiado no contacto com a dureza intratável das lajes. ensarilhadas, as espingardas alinhavam-se ao longo de uma parede. Provera a deus que não venha a ser necessário dar-lhes uso, pensou o oficial, preocupado com a possibilidade de que a entrega de salomão viesse a descambar, por falta de tacto de um lado ou do outro, em casus belli. tinha bem presentes na memória as palavras do secretário pêro de alcáço-va carneiro, também as explícitas, claro, mas sobretudo as que, apesar de não terem sido escritas, se su-bentendiam, isto é, se os espanhóis, ou os austríacos, ou uns e outros, vierem a mostrar-se antipáticos ou provocadores, deverá proceder-se em conformidade.
o comandante não conseguia imaginar sob que pretexto os soldados que vinham a caminho, espanhóis 103
ou austríacos sejam eles, se mostrariam provocadores, ou sequer apenas antipáticos. Um comandante de cavalaria não tem as luzes nem a experiência política de um secretário de estado, portanto fará bem em deixar-se guiar por quem mais sabe, até chegar, no caso de que chegue, a hora da acção. estava o comandante dando voltas a estes pensamentos quando subhro fez a sua entrada na improvisada camarata onde algumas paveias de feno lhe haviam sido reservadas por diligência do sargento. ao vê-lo, o comandante sentiu um desconforto que só poderia ler atribuído à incómoda consciência de que não se havia interessado pelo estado de saúde de salomão, nao o tinha ido ver, como se, com a chegada a castelo rodrigo, a sua missão tivesse terminado. Como está o salomão, perguntou, Quando o deixei, dor mia, respondeu o cornaca, valente animal, exclamou com falso entusiasmo o comandante, veio aonde o trouxeram, a força e a resistência nasceram com ele, não são virtude própria, vejo-te muito severo com o pobre do salomão, talvez seja por causa da história que um dos ajudas me acabou de contar, Que história é essa, perguntou o comandante, a história de uma vaca, as vacas têm história, tornou o comandante a perguntar, sorrindo, esta, sim, foram doze dias e doze noites nuns montes da galiza, com frio, e chuva, e gelo, e lama, e pedras como navalhas, e mato como unhas, e breves intervalos de descanso, e mais combates e investidas, e uivos, e mugidos, a história de uma vaca que se perdeu nos campos com a sua cria de leite, e se viu rodeada de lobos durante doze dias 104
e doze noites, e foi obrigada a defender-se e a defender o filho, uma longuíssima batalha, a agonia de viver no limiar da morte, um círculo de dentes, de goelas abertas, as arremetidas bruscas, as cornadas que não podiam falhar, de ter de lutar por si mesma e por um animalzinho que ainda não se podia valer, e também aqueles momentos em que o vitelo procurava as te-tas da mãe, e sugava lentamente, enquanto os lobos se aproximavam, de espinhaço raso e orelhas aguçadas. Subhro respirou fundo e prosseguiu, ao fim dos doze dias a vaca foi encontrada e salva, mais o vitelo, e foram levados em triunfo para a aldeia, porém o conto não vai acabar aqui, continuou por mais dois dias, ao fim dos quais, porque se tinha tor-nado brava, porque aprendera a defender-se, porque ninguém podia já dominá-la ou sequer aproximar-se dela, a vaca foi morta, mataram-na, não os lobos que em doze dias vencera, mas os mesmos homens que a haviam salvo, talvez o próprio dono, incapaz de compreender que, tendo aprendido a lutar, aquele untes conformado e pacífico animal não poderia parar nunca mais.
Um silêncio respeitoso reinou durante alguns segundos na grande sala de pedra. os soldados presentes, embora não muito experimentados em guerras, haste dizer que os mais novos nunca haviam cheirado a pólvora nos campos de batalha, assombravam-se no seu foro íntimo pela coragem de um irracional, uma vaca, imagine-se, que havia mostrado possuir sentimentos tão humanos como o amor de família, o dom do sacrifício pessoal, a abnegação levada ao extremo.