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ao princípio, um dos homens da al deia, por bravata, ainda deu uns quantos passos para além da linha invisível que logo iria tomar-se em fronteira cerrada, mas salomão despachou-lhe um coice de aviso que, embora não atingindo o alvo, deu lugar a um interessante debate entre eles sobre famí lias ou clãs de animais.

mulas, mulos, burros, burras, cavalos, éguas, são quadrúpedes que, como toda a gente sabe, e alguns por dolorosa experiência, dão coices, o que bem se compreende, uma vez que não dispõem de outras armas, quer ofensivas quer defen sivas, mas um elefante, com aquela tromba e aqueles dentes, com aquelas patorras enormes que lembram martelos-pilões, ainda por cima, como se fosse pou co o que já tem, é capaz de escoicear. Sugere a mansidão em figura quando se olha para ele, porém, caso seja necessário, poderá tornar-se numa fera. de estranhar é que, pertencendo à família dos animais aci ma mencionados, isto é, à famí-

lia dos que dão coices, não leve ferraduras. afinal, disse um dos campone ses, um elefante não tem muito que ver, dá-se-lhe uma volta e já está. os outros con-cordaram, dá-se-lhe uma volta e fica tudo visto. Podiam ter-se retira do para as suas casas, para o conforto dos seus lares, mas um deles disse que ainda ficava um bocado por ali, que queria ouvir o que se estava dizendo ao redor daquela fogueira. foram todos. ao princípio não compreenderam de que se estava tra-tando, não entendiam os nomes, tinham acentuações estranhas, até que tudo se lhes tornou claro quando chegaram à conclusão de que se estava a falar do ele-67


fante e que o elefante era deus. agora caminhavam para as suas casas, para o conforto dos lares, levando cada um consigo dois ou três hóspedes entre militares e ho mens de forças. Com o elefante ficaram de sentinela dois soldados de cavalaria, o que mais reforçou neles a ideia de que era urgente ir falar ao cura. as portas fecharam-se e a aldeia encolheu-se toda no meio da escuridão. Pouco depois algumas tornaram a abrir-se sigilosamente e os cinco homens que delas saíram encaminharam-se para a praça do poço, ponto de reu nião que haviam combinado. a ideia deles era ir falar com o padre, que a esta hora já estaria na cama e provavelmente a dormir. o reverendo era conhecido pelo seu péssimo humor quando o despertavam a horas inconvenientes, que para ele eram todas em que estivesse nos braços de morfeu. Um dos homens ainda aventurou uma alternativa, e se viéssemos de ma-nhã, perguntou, mas outro, mais determinado, ou simplesmente mais propenso à lógica das previsões, objectou, Se eles tiverem decidido sair ao alvorecer, arriscamo-nos a não encontrar ninguém, com boa cara de parvos ficaríamos então. estavam diante da porta do passal e parecia que nenhum dos nocturnos visitantes se ia atrever a levantar a aldraba. aldraba tinha-a também a porta da residência, mas essa era demasiado pequena para conseguir acordar o inqui-lino. Por fim, como um tiro de canhão no silêncio pé-

treo da aldeia, a aldraba do passal deu sinal de vida.

ainda teve de disparar mais duas vezes antes que de dentro se ouvisse a voz rouca e irritada do cura, Quem 68


é. obviamente, não era prudente nem cómodo falar de deus em plena rua, tendo por meio algumas paredes e um portão de madeira grossa. não tardaria muito que os vizinhos pusessem o ouvido à escuta das altas vozes com que seriam obrigadas a comuni-car-se as partes dialogantes, transformando assim uma gravíssima questão teológica na fábula da tem-porada. a porta da residência abriu-se enfim e a cabe-

ça redonda do cura apareceu, Que querem vocês a estas horas da noite. os homens deixaram o portão do passal e avançaram, arrastando os pés, para a outra porta. está alguém a morrer, perguntou o cura. todos disseram que não senhor. então, insistiu o ser vo de deus, aconchegando-se melhor com a manta que tinha lançado sobre os ombros, na rua não pode mos falar, disse um homem. o cura resmungou, Pois se não podem falar na rua, vão amanhã à igreja, te mos de falar agora, senhor padre, amanhã poderá ser tarde, o assunto que aqui nos trouxe é muito sério, é um assunto de igreja, de igreja, repetiu o cura, subitamente inquieto, pensando que o apodrecido trave-jamento do tecto tinha vindo abaixo, Sim senhor, de igreja, então entrem, entrem. empurrou-os para a cozinha em cuja lareira esbraseavam ainda uns restos de lenha queimada, acendeu uma candeia, sentou-se num mocho e disse, falem. os homens olharam uns para os outros, duvidando sobre quem deveria ser o porta-voz, mas estava claro que só tinha realmente legitimidade aquele que havia dito que ia ouvir o que se estava dizendo no grupo onde se encontravam o 69


comandante e o cornaca. não foi preciso votar, o homem em questão tinha tomado a palavra, Senhor padre, deus é um elefante. o padre suspirou de alí vio, era preferível isto a ter caído o telhado, além do mais, a herética afirmação era de fácil resposta, deus está em todas as suas criaturas, disse. os homens move-ram as cabeças no modo afirmativo, mas o por ta-voz, muito consciente dos seus direitos e das suas responsabilidades, retorquiu, mas nenhuma delas é deus, era o que faltava, respondeu o cura, teríamos aí um mundo a abarrotar de deuses, e ninguém se en-tenderia, cada um a puxar a brasa à sua sardinha, Senhor padre, o que nós ouvimos, com estes ouvidos que a terra há-de comer, é que o elefante que aí está é deus, Quem foi que proferiu semelhante barbarida de, perguntou o cura usando uma palavra não cor rente na aldeia, o que nele era claro sinal de enfado, o comandante da cavalaria e o homem que viaja em cima, em cima de quê, de deus, do animal. o cura respirou fundo, sujeitou o ânimo que o estava impe lindo a maiores extremos e perguntou, vocês estão bêbados, não, senhor padre, respondeu o coro, é di fícil estar bêbado nos tempos que correm, o vinho está caro, en-tão, se não estão bêbados, se apesar des se conto de perlimpimpim continuam a ser bons cris tãos, ouçam-me bem. os homens aproximaram-se para não perde-rem uma palavra, e o cura, depois de ter limpado a carraspeira que sentia na garganta e que, pensava ele, era resultado de ter saído brusca mente da quentura dos lençóis para o frio ambiente exterior, começou o 70


sermão, eu podia mandá-los para casa com uma peni-tência, uns quantos padre-nossos e umas quantas ave-marias, e não pensar mais no caso, mas como todos me pareceis de boa-fé, amanhã de manhã, antes de nascer o sol, iremos eu e vocês, com as vossas famílias, e também todos os outros vizinhos da aldeia, a quem tereis de avisar, aonde se encontra o elefante, não para o excomun gar, uma vez que, sendo um animal, não recebeu o santo sacramento do baptismo nem pôde acolher-se aos bens espirituais concedidos pela igreja, mas para o limpar de qualquer possessão diabólica que haja sido introduzida pelo maligno na sua natureza de bruto, como aconteceu aos dois mil porcos que se afogaram no mar da galileia, como deveis estar lem brados. abriu espaço para uma pausa, e logo pergun tou, entendidos, Sim senhor, responderam todos, excepto o porta-voz que ia tomando cada vez mais a sério a sua função, Senhor padre, disse, esse caso sempre me fez confusão na cabeça, Porquê, não per cebo por que tinham esses porcos que morrer, está bem que jesus tenha feito o milagre de expulsar os es-píritos imundos do corpo do geraseno, mas con sentir que eles entrassem nuns pobres porcos que nada tinham que ver com o caso, nunca me pareceu uma boa maneira de acabar o trabalho, tanto mais que, sendo os demónios imortais, porque se não o fossem deus ter-lhes-ia acabado com a raça logo à nascença, o que eu quero dizer é que antes que os porcos tivessem ca-

ído à água já os demónios se ha viam escapado, em minha opinião jesus não pensou bem, e tu quem és para 71


dizeres que jesus não pensou bem, está escrito, padre, mas tu não sabes ler, não sei ler, mas sei ouvir, Há alguma bíblia em tua casa, não, padre, só os evangelhos, faziam parte de uma bíblia, mas alguém os arrancou de lá, e quem os lê, a minha filha mais velha, é verdade que ainda não consegue ler de corrido, mas, graças às vezes que já leu o mesmo, vamos percebendo-a cada vez melhor, em compensação, o pior é que, com tais pensamen tos e opiniões, se a inquisição aqui chega serás o pri meiro a ir para a fogueira, a gente de alguma coisa terá de morrer, padre, não me venhas com estupide zes, deixa-te de evangelhos e dá mais atenção ao que eu digo na igreja, apontar o caminho recto é missão minha e de mais ninguém, lembra-te de que quem se mete por atalhos, nunca sai de sobressaltos, Sim, pa dre, do que aqui se disse, nem uma palavra, se al guém, fora dos que aqui estão, me vier falar destes assuntos, aquele que de vocês tiver dado com a lín gua nos dentes sofrerá pena de excomunhão maior, nem que eu tenha de ir andando a roma para dar testemunho pessoalmente. o cura fez uma pausa dramática, e depois perguntou em voz cavernosa, entendidos, Sim, padre, entendidos, amanhã, antes que o sol nasça, quero toda a gente no adro da igreja, eu, vosso pastor, irei na dianteira, e juntos, com a minha palavra e a vossa presença, pelejaremos pela nossa santa religião, lembrai-vos, o povo unido jamais será vencido.

o dia amanheceu nevoento, mas ninguém se havia perdido, toda a gente encontrou, no meio de uma 72


neblina quase tão espessa como uma sopa feita só de batatas cozidas, um caminho para chegar à igreja como antes encontraram o acampamento os hóspedes a quem os aldeões haviam dado abrigo. estavam ali todos, desde a mais tenra criancinha ao colo de sua mãe até ao ancião mais velho da aldeia ainda capaz de andar, graças ao auxílio do pau que funcio nava como sua terceira perna. não as tinha tantas como a centopeia, que quando chegam a velhas têm necessidade de uma grande quantidade de bastões, o que afinal resulta em saldo a favor da espécie huma na, que só precisa de três, salvo casos mais graves, em que os ditos bastões mudam de nome e passam a chamar-se muletas.

destes, graças à divina provi dência que por todos nós vela, não os havia na al deia. a coluna caminhava em passo bastante firme, fazendo das fraquezas forças, pronta para escrever uma nova página de abnegado heroísmo nos anais da aldeia, as outras não tinham muito para oferecer à leitura dos eruditos, somente que nascemos, traba lhamos e morremos. Quase todas as mulheres iam armadas dos seus rosários e murmu-ravam preces, provavelmente para reforçar o ânimo do cura, que avançava à frente, munido do aspersório e da caldeirinha de água benta. Por causa da neblina, os homens da caravana não se haviam dispersado como teria sido natural, esperavam em pequenos grupos a bu cha da manhã, incluindo os militares, que, mais ma drugadores, já tinham arreado os cavalos.

Quando os vizinhos começaram a sair da sopa de batata, o pes soal responsável pelo elefante moveu-se 73


instintiva mente ao seu encontro, levando na vanguarda, por dever de ofício, os soldados de cavalaria. ao chega rem ao alcance da voz o cura deteve-se, levantou a mão em sinal de paz, deu de lá os bons-dias e perguntou, onde está o elefante, queremos vê-lo. o sargento considerou razoáveis tanto a pergunta como o pedido e respondeu, atrás daquelas árvores, agora para verem o elefante terão de falar primeiro com o comandante do pelotão e com o cornaca, Quem é o cornaca, É o homem que vai em cima, em cima de quê, em cima do elefante, de que havia de ser, Quer dizer que cornaca significa o que vai em cima, não sei o que significa, só sei que vai em cima, a palavra parece que veio da índia. a conversação, por este an dar, ameaçaria eternizar-se se não fosse o caso de se estarem aproximando o comandante e o cornaca, atraídos pela curiosidade de haverem vislumbrado, através da né-

voa que ali começara a desfazer-se um pouco, o que podiam ser dois exércitos enfrentados. lá vem o comandante, disse o sargento, feliz por fi car fora de uma conversação que já estava a pô-lo nervoso. o comandante disse, Bons dias a todos, e perguntou, em que posso servi-los, gostaríamos de ver o elefante, a hora não é a melhor, interveio o cornaca, o elefante tem mau acordar. a isto o padre respondeu, e que além de o verem as minhas ove lhas e eu, também o queria benzer para a viagem, trago aqui o aspersório e a caldeirinha de água benta, É uma bonita ideia, disse o comandante, até agora nenhum sacerdote dos que viemos encontrando pelo caminho se tinha oferecido 74


para abençoar o salomão, Quem é o salomão, perguntou o cura, o elefante chama-se salomão, respondeu o cornaca, não me parece próprio dar a um animal o nome de uma pes soa, os animais não são pessoas e as pessoas tão-pouco são animais, não tenho tanto a certeza disso, respondeu o cornaca, que começava a em-birrar com a parlenga, É a diferença entre quem fez estudos e quem não os tem, rematou, com censurável sobran ceria, o cura. dito isto, virou-se para o comandante e perguntou, dá vossa senhoria licença que eu cumpra a minha obrigação de sacerdote, Por mim, sim, pa dre, ainda que o elefante não esteja sob o meu poder, mas do cornaca. em vez de esperar que o cura lhe dirigisse a palavra, subhro acudiu em tom suspeitosamente amável, Por quem é, senhor padre, o salomão é todo seu. ora, é tempo de avisar o leitor de que há aqui duas personagens que não estão de boa-fé. em primeiríssimo lugar, o cura, que, ao contrário do que disse, não traz na caldeirinha água benta, mas água do poço, transvasada directamente do cântaro da cozinha, sem passagem, real ou simbólica, pelo empíreo, em segundo lugar o cornaca, que espera que algo aconteça e que está fazendo preces ao deus ganeixa para que aconteça mesmo. não se chegue demasiado, preveniu o comandante, olhe que ele tem três metros de altura e pesa umas quatro toneladas, se não mais, não pode ser tão perigoso como a besta do leviatão, e a esse o tem subjugado por toda a vida a santa religião católica, apostólica e romana a que pertenço, eu avisei, a responsabilidade é sua, disse o comandante, que 75


na sua experiência de militar havia escutado muitas bravatas e constatado o triste resul tado de quase todas elas. o cura mergulhou o aspersório na água, deu três passos em frente e salpicou com ele a cabeça do elefante, ao mesmo tempo que murmurava umas palavras que tinham todo o ar de ser latinas, mas que ninguém entendeu, nem sequer a reduzidíssima parte ilustrada da assistência, isto é, o comandante, que es-tivera alguns anos no seminá rio, resultado de uma crise mística, que viria a curar-se por si mesma. o reverendo continuava o seu tra balho e, aos poucos, ia-se aproximando da outra ex tremidade do animal, movimento que coincidiu com a aceleração das preces do cornaca ao deus ganeixa e com o súbito descobrimento, por parte do coman dante, de que as palavras e os gestos que o padre vi nha fazendo pertenciam ao manual do exorcismo, como se o pobre do elefante pudesse estar possesso de algum demónio. este homem está doido, pensou o comandante, e no instante mesmo em que o pen sou, viu o cura ser atirado ao chão, caldeirinha para um lado, aspersório para outro, a água derramada. as ovelhas avançaram para acudir ao seu pastor, mas os soldados interpuseram-se para evitar atropelos e confusões, e, se bem o pensaram, melhor o fizeram, porque o cura, ajudado pelos hércules locais, já ten tava levantar-se, manifestamente do-rido da anca es querda, mas, por todos os indícios, sem nenhum osso partido, o que, tendo em conta a avança-da idade e a flácida corpulência do indivíduo, quase se poderia considerar um dos mais acabados milagres 76


da santa padroeira da terra. o que realmente sucedeu, e não viremos a conhecer nunca a causa, mistério inexpli cável a juntar a tantos outros, foi que salomão, a me nos de um palmo do alvo do tremendo coice que ti nha começado por desferir, travou e suavizou o impacte, de modo a que os efeitos não fossem além dos que resultariam de um empurrão sério, mas sem acin-te, e muito menos com intenção de matar. fal tando-lhe, como a nós, esta importante informação, o cura limitava-se a dizer, azamboado, foi castigo do céu, foi castigo do céu. a partir de hoje, quando se falar de elefantes na sua presença, e hão-de ser muitas as vezes, haja vista o que aconteceu aqui, em manhã brumosa, perante tantas testemunhas presenciais, sempre dirá que esses animais, aparentemente brutos, são tão in-teligentes que, além de terem umas luzes de latim, até são capazes de distinguir a água benta da quela que o não é. manquejando, o cura deixou-se conduzir para a cadeira de braços de pau-preto, de es tilo abacial, uma preciosa obra de ensamblador que quatro dos seus mais dedicados fâmulos haviam ido buscar à igreja. Já não estaremos aqui quando se orga nizar o regresso à aldeia. a discussão será brava, como é natural esperar de seres pouco dados aos exercícios da razão, homens e mulheres que por dá cá aquela palha chegam às mãos, mesmo quando, como neste caso, se trate de decidir sobre uma obra tão pia como a de carregar com o seu pastor até casa e metê-lo na cama. o cura não será de grande ajuda para dirimir o pleito porquanto cairá num torpor que preocupará toda a gente, 77


menos a bruxa da terra, Sosseguem, dis se, não há sinais de morte próxima, nem para hoje, nem para amanhã, nada que não possa resolver-se com umas boas fricções nas partes afectadas e umas tisanas para de-purar o sangue e não o deixar corrom per-se, e, já agora, deixem-se de zaragatas que sempre acabam em cabeças partidas, o que devem fazer é re vezar-se de cinquenta em cinquenta passos, e todos muito amigos. tinha razão a bruxa.

a caravana de homens, cavalos, bois e elefante foi engolida definitivamente pela bruma, nem sequer se distingue a mancha do extenso vulto do ajunta mento que formam. vamos ter de correr para alcan çá-la. felizmente, considerando o pouco tempo que ficámos a assistir ao debate dos hércules da aldeia, o pessoal não poderá ir muito longe. em situação de visibilidade normal ou de bruma menos parecida com puré que esta, bastaria seguir os rastos das gros sas rodas do carro de bois e do carro da intendência no chão amo-lecido, mas, agora, nem mesmo com o nariz a roçar a terra se conseguia descobrir que por aqui passou gente. e não só gente, também animais, como ficou dito, alguns de certo porte, como os bois e os cavalos, e em particular o paquiderme conheci do na corte portuguesa como salomão, cujos pés, só por si, teriam deixado no solo a marca de umas pega das enormes, quase circulares, como as dos dinos sauros de pés redondos, se alguma vez existiram. Já que estamos falando de animais, o que parece im possível é que ninguém em lisboa se tenha lembrado de mandar trazer dois 78


ou três cães. Um cão é um se guro de vida, um rastrea-dor de rumos, uma bússola com quatro patas. Bastaria dizer-lhe, Busca, e em menos de cinco minutos o teríamos de volta, com o rabo a abanar e os olhos a brilharem de felicidade. não há vento, porém a névoa parece mover-se em lentos turbilhões como se o pró-

prio bóreas, em pes soa, a estivesse soprando desde o mais recôndito norte e dos gelos eternos. o que não está bem, confessemo-lo, é que, em situação tão delicada como esta, alguém se tenha posto aqui a puxar o lustro à prosa para sacar alguns reflexos poéticos sem pinta de originalidade. a esta hora os companheiros da ca ravana já deram com certeza pela falta do ausen-te, dois deles declararam-se voluntários para voltar atrás e salvar o desditoso náufrago, e isso seria muito de agradecer se não fosse a fama de poltrão que o iria acompanhar para o resto da vida, imaginem, diria a voz pública, o tipo ali sentado, à espera de que apa-recesse alguém a salvá-lo, há gente que não tem vergonha nenhuma. É verdade que tinha estado sentado, mas agora já se levantou e deu corajosamente o primeiro passo, a perna direita adiante, para esconjurar os malefícios do destino e dos seus poderosos alia dos, a sorte e o acaso, a perna esquerda de repente duvidosa, e o caso não era para menos, pois o chão deixara de poder ver-se, como se uma nova maré de nevoeiro tivesse começado a subir. ao terceiro passo já não consegue nem sequer ver as suas próprias mãos estendidas à frente, como para proteger o nariz do choque contra uma porta inesperada. foi então que uma ou-79


tra ideia se lhe apresentou, a de que o caminho fizesse curvas para um lado ou para o outro, c que o rumo que tomara, uma linha que não queria apenas ser recta, uma linha que queria também man ter-se constante nessa direcção, acabasse por condu zi-lo a páramos onde a perdição do seu ser, tanto da alma como do corpo, estaria assegurada, neste últi mo caso com consequências imediatas. e tudo isto, ó sorte mofina, sem um cão para lhe enxugar as lágri mas quando o grande momento chegasse. ainda pensou em voltar para trás, pedir abrigo na aldeia até que o banco de nevoeiro se desfizesse por si mesmo, mas, perdido o sentido de orientação, confundidos os pontos cardeais como se estivesse num qualquer espaço exterior de que nada soubesse, não achou melhor resposta que sentar-se outra vez no chão e esperar que o destino, a casualidade, a sorte, qual quer deles ou todos juntos, trouxes-sem os abnegados voluntários ao minúsculo palmo de terra em que se encontrava, como uma ilha no mar oceano, sem comu nicações. Com mais propriedade, uma agulha em palheiro. ao cabo de três minutos, dormia. estranho animal é este bicho homem, tão capaz de tremendas insónias por causa de uma insignificância como de dormir à perna solta na véspera da batalha. assim sucedeu. ferrou no sono, e é de crer que ainda hoje estaria a dormir se salomão não tivesse soltado, de repente, em qualquer parte do nevoeiro, um barrito atroador cujos ecos deveriam ter chegado às distan tes margens do ganges. aturdido pelo brusco desper tar, não conseguiu discernir em que di-80


recção poderia estar o emissor sonoro que decidira salvá-lo de um enregelamento fatal, ou pior ainda, porque isto é ter ra de lobos, e um homem sozinho e desarmado não tem salvação ante uma alcateia ou um simples exem plar da espécie. a segunda chamada de salomão foi mais potente ainda que a primeira, come-

çou por uma espécie de gorgolejo surdo nos abismos da garganta, como um rufar de tambores, a que imediatamente se sucedeu o clangor sincopado que forma o grito deste animal. o homem já vai atravessando a bruma como um cavaleiro disparado à carga, de lan-

ça em riste, enquanto mentalmente implora, outra vez, salomão, por favor, outra vez. e salomão fez-lhe a vontade, soltou novo barrito, menos forte, como de simples confirmação, porque o náufrago que era já deixara de o ser, já vem chegando, aqui está o carro da intendência da cavalaria, não se lhe podem distinguir os pormenores porque as coisas e as pessoas são como borrões indistintos, outra ideia nos ocorreu agora, bastante mais incómoda, suponhamos que este nevoeiro é dos que corroem as peles, a da gente, a dos cavalos, a do próprio elefante, apesar de gros sa, que não há tigre que lhe meta o dente, os nevoei ros não são todos iguais, um dia se gritará gás, e ai de quem não levar na cabeça uma celada bem ajustada. a um soldado que passa, levando o cavalo pela reata, o náufrago pergunta-lhe se os voluntários já regres saram da missão de salvamento e resgate, e ele res pondeu à interpelação com um olhar desconfiado, como se estivesse diante de um provocador, que ha vê-los já os ha-81


via em abundância no século dezas seis, basta consul-tar os arquivos da inquisição, e diz, secamente, onde é que você foi buscar essas fanta sias, aqui não houve nenhum pedido de voluntários, com um nevoeiro destes a única atitude sensata foi a que tomámos, manter-nos juntos até que ele decidis se por si mesmo levantar-se, aliás, pedir voluntários não é muito do estilo do comandante, em geral limi ta-se a apontar tu, tu e tu, vocês, em frente, marche, o comandante diz que, heróis, heróis, ou vamos sê-lo todos, ou ninguém. Para tornar mais clara a vontade de acabar a conversa, o soldado içou-se rapidamente para cima do cavalo, disse até logo e desapareceu no nevoeiro. não ia satisfeito consigo mesmo. tinha dado explicações que ninguém lhe havia pedido, fei to comentários para que não estava autorizado. no entanto, tranquilizava-o o facto de que o homem, embora não parecesse ter o fí-

sico adequado, deveria pertencer, outra possibilidade não cabia, pelo menos, ao grupo daqueles que haviam sido contratados para ajudar a empurrar e puxar os carros de bois nos pas sos difíceis, gente de poucos falares e, em princípio, escassíssima imaginação. em princípio, diga-se, porque ao homem perdido no nevoeiro imaginação foi o que pareceu não lhe ter falta-do, haja vista a li geireza com que tirou do nada, do não acontecido, os voluntários que deveriam ter ido salvá-lo. felizmen te para a sua credibilidade pública, o elefante é outra coisa. grande, enorme, barrigudo, com uma voz de estarrecer aos menos timoratos e uma tromba como não a tem nenhum outro animal da 82


criação, o elefan te nunca poderia ser produto de uma imaginação, por muito fértil e dada ao risco que fosse.

o elefante, simplesmente, ou existiria, ou não existiria. É por tanto hora de ir visitá-lo, hora de lhe agradecer a energia com que usou a salvadora trombeta que deus lhe deu, se este sítio fosse o vale de josafá teriam ressuscitado os mortos, mas sendo apenas o que é, um pedaço bruto de terra portuguesa afogado pela névoa onde alguém, quem, esteve a ponto de morrer de frio e abandono, diremos, para não perder de todo a trabalhosa comparação em que nos metemos, que há ressurreições tão bem administradas que chega a ser possível executá-las antes do passamento do pró prio sujeito. foi como se o elefante tivesse pensado, aquele pobre diabo vai morrer, vou ressuscitá-lo. e aqui temos o pobre diabo desfazendo-se em agra decimentos, em juras de gratidão para toda a vida, até que o cornaca se decidiu a perguntar, Que foi que o elefante lhe fez para que você lhe esteja tão agra decido, Se não fosse ele, eu teria morrido de frio ou teria sido comido pelos lobos, e como conseguiu ele isso, se não saiu daqui desde que acordou, não pre cisou de sair daqui, bastou-lhe soprar na sua trombe ta, eu estava perdido no nevoeiro e foi a sua voz que me salvou, Se alguém pode falar das obras e feitos de salomão, sou eu, que para isso sou o seu cornaca, portanto não venha para cá com essa treta de ter ou vido um barrito, Um barrito, não, os barritos que es tas orelhas que a terra há-de comer ouviram foram três. o cornaca pensou, este fu-lano está doido varri do, variou-se-lhe a cabeça com a 83


febre do nevoeiro, foi o mais certo, tem-se ouvido falar de casos assim. depois, em voz alta, Para não estarmos aqui a discutir, barrito sim, barrito não, barrito talvez, pergunte você a esses homens que aí vêm se ouviram alguma coisa. os homens, três vultos cujos difusos contornos pareciam oscilar e tremer a cada passo, davam imediata vontade de perguntar, onde é que vocês querem ir com semelhante tempo. Sabemos que não era esta a pergunta que o maníaco dos barritos lhes fazia neste momento e sabemos a resposta que lhe estavam a dar. o que não sabemos é se algumas des tas coisas estão relacionadas umas com as outras, e quais, e como. o certo é que o sol, como uma imensa vassoura luminosa, rompeu de repente o nevoeiro e empurrou-o para longe. a paisagem fez-se visível no que sempre havia sido, pedras, árvores, barrancos, montanhas. os três homens já não estão aqui.

o cor naca abre a boca para falar, mas torna a fechá-la.

o maníaco dos barritos começou a perder consistência e volume, a encolher-se, tornou-se meio redondo, transparente como uma bola de sabão, se é que os péssimos sabões que se fabricam neste tempo são capazes de formar aquelas maravilhas cristalinas que alguém teve o génio de inventar, e de repente desapareceu da vista. fez plof e sumiu-se. Há onomato-péias providenciais. imagine-se que tínhamos de descrever o processo de sumição do sujeito com to dos os pormenores. Seriam precisas, pelo menos, dez páginas. Plof.

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