TYRION



— Lote noventa e sete. — O leiloeiro fez estalar o chicote. — Um par de anões, bem treinados para o vosso divertimento.

O recinto para leilões fora construído no local onde o largo e casta­nho Skahazadhan desaguava na Baía dos Escravos. Tyrion Lannister sentia o cheiro a sal no ar, misturado com o fedor que vinha das latrinas escavadas por trás dos cercados para escravos. O calor não o incomodava tanto como a humidade. O próprio ar parecia pesar sobre ele, como uma manta quente e molhada posta sobre a sua cabeça e ombros.

— Cão e porco incluídos no lote — anunciou o leiloeiro. — Os anões montam-nos. Deliciai os convidados do vosso próximo banquete, ou usai-os para um espetáculo.

Os licitadores estavam sentados em bancos de madeira a beber su­mos. Alguns tinham escravos a refrescá-los com leques. Muitos usavam tokars, essa peculiar peça de vestuário adorada pelo sangue antigo da Baía dos Escravos, tão elegante como pouco prática. Outros vestiam-se com mais simplicidade; homens com túnicas e mantos de capuz, mulheres com sedas coloridas. Rameiras ou sacerdotisas, provavelmente; ali tão para leste era difícil distinguir umas das outras.

Atrás dos bancos, trocando gracejos e ridicularizando o que se ia pas­sando, estava um coágulo de ocidentais. Mercenários, compreendeu Tyrion. Viu espadas longas, adagas e punhais, um feixe de machados de arremesso, cota de malha sob os mantos. O cabelo, as barbas e as caras denunciavam a maioria como homens das Cidades Livres, mas aqui e ali havia alguns que podiam ter provindo de Westeros. Estarão a comprar? Ou será que só apa­receram para ver o espetáculo?

— Quem abre para este par?

— Trezentas — licitou uma matrona num antigo palanquim.

— Quatrocentas — gritou um yunkaita monstruosamente gordo da liteira onde se esparramava como um leviatã. Todo coberto de seda amarela debruada de ouro, parecia tão grande como quatro Illyrios. Tyrion apiedou-se dos escravos que tinham de carregar com ele. Pelo menos seremos poupados a esse dever. Que alegria, ser um anão.

— E uma — disse uma velha com um tokar violeta. O leiloeiro deitou-lhe um olhar azedo, mas não rejeitou a licitação.

Os marinheiros escravos do Selaesori Qhoran, vendidos individual- mente, tinham chegado a preços que variavam entre as quinhentas e as no­vecentas peças de prata. Marinheiros experientes eram mercadoria valiosa. Nenhum dera qualquer tipo de luta quando os esclavagistas abordaram a sua coca mutilada. Para eles, tratava-se apenas de uma mudança de dono. Os imediatos do navio tinham sido homens livres, mas a viúva da borda dagua escrevera para eles uma promissória, prometendo pagar os seus res­gates num caso como aquele. Os três dedos fogosos sobreviventes ainda não tinham sido vendidos, mas eram escravos do Senhor da Luz, e podiam esperar serem comprados por um templo vermelho qualquer. As chamas que tinham tatuadas nas caras eram a sua promissória.

Tyrion e Centava não possuíam tais garantias.

— Quatrocentas e cinquenta — soou a licitação.

— Quatrocentas e oitenta.

— Quinhentas.

Algumas licitações eram gritadas em alto valiriano, outras na língua mestiça de Ghis. Alguns compradores faziam sinal com um dedo, com a torção de um pulso ou com o aceno de um leque pintado.

— Estou contente por nos manterem juntos — sussurrou Centava.

O vendedor de escravos atirou-lhes um olhar.

— Nada de conversa.

Tyrion deu um apertão ao ombro de Centava. Madeixas de cabe­lo, louras claras e negras, aderiam-lhe à testa, os farrapos da túnica pega- vam-se-lhe às costas. Parte disso era suor, parte sangue seco. Não fora in­sensato ao ponto de dar combate aos esclavagistas, como Jorah Mormont fizera, mas isso não significava que tivesse escapado à punição. No seu caso fora a boca a fazer-lhe lucrar chibatadas.

— Oitocentas.

— E cinquenta.

— E uma.

Valemos tanto como um marinheiro, refletiu Tyrion. Se bem que o que os compradores queriam talvez fosse a Porca Bonita. Um porco bem treinado é difícil de arranjar. Decerto não estavam a licitar ao quilo.

Às novecentas peças de prata a licitação começou a abrandar. Às no­vecentas e cinquenta e uma (vinda da velha), parou. Mas o leiloeiro farejava dinheiro, e exigiu que os anões dessem à multidão um cheirinho do seu es­petáculo. O Trincão e a Porca Bonita foram levados para a plataforma. Sem selas nem arreios, montá-los revelou-se complicado. No momento em que a porca começou a mexer-se, Tyrion escorregou-lhe da garupa e aterrou so­bre a sua, provocando um vendaval de gargalhadas vindas dos licitadores.

— Mil — licitou o gordo grotesco.

— E uma. — Outra vez a velha.

A boca de Centava estava congelada num ricto. Bem treinada para o vosso divertimento. O pai da rapariga tinha muito por que responder no inferninho que estava reservado para os anões.

— Mil e duzentas. — O leviatã de amarelo. Um escravo a seu lado entregou-lhe uma bebida. Limão, sem dúvida. O modo como aqueles olhos amarelos estavam fixos no estrado deixou Tyrion desconfortável.

— Mil e trezentas.

— E uma. — A velha.

O meu pai sempre disse que um Lannister valia dez vezes o preço de qualquer homem comum.

Às mil e seiscentas, o ritmo começou a esmorecer, e o mercador de escravos convidou alguns dos compradores a aproximarem-se para exami­narem os anões mais de perto.

— A fêmea é nova — prometeu. — Podereis acasalá-los, obter bom dinheiro pelas crias.

— Metade do nariz dele desapareceu — protestou a velha, depois de uma boa olhadela de perto. A sua cara enrugada contraiu-se de desagrado. A pele era branca como a de uma larva; envolta num tokar violeta, parecia uma ameixa abolorecida. — E os olhos dele também não combinam. Coisa feia.

— A senhora ainda não viu o meu melhor órgão. — Tyrion agarrou a virilha, para o caso de ela não entender o que queria dizer.

A bruxa silvou de indignação, e Tyrion apanhou com uma lambedela de chicote nas costas, um golpe agudo que o obrigou a ajoelhar. O sabor do sangue encheu-lhe a boca. Sorriu e cuspiu.

— Duas mil — gritou uma nova voz, lá atrás entre os bancos.

E que quererá um mercenário de um anão? Tyrion voltou a pôr-se em pé para ver melhor. O novo licitador era um homem de uma certa idade, de cabelo branco mas alto e em boa forma, com uma coriácea pele castanha e uma barba grisalha cortada curta. Semiocultos sob um desbotado manto púrpura estavam uma espada longa e um molho de punhais.

— Duas mil e quinhentas. — Uma voz de mulher desta vez; uma rapariga, baixa, com uma cintura larga e seios pesados, vestida com uma ornamentada armadura. A sua esculpida placa de peito de aço negro ti­nha embutidos de ouro e mostrava uma harpia a erguer-se com correntes penduradas das garras. Um par de soldados escravos erguia-a à altura dos ombros, em cima de um escudo.

— Três mil. — O homem de pele castanha avançou por entre a mul­tidão, com os colegas mercenários a empurrar compradores para abrir ca­minho. Sim. Aproxima-te. Tyrion sabia como lidar com mercenários. Não julgava nem por um momento que aquele homem o quisesse para fazer travessuras em banquetes. Ele reconhece-me. Tenciona levar-me de volta para Westeros e vender-me à minha irmã. O anão esfregou a boca para escon­der o sorriso. Cersei e os Sete Reinos ficavam a meio mundo de distância. Era mais que muito o que podia acontecer antes de lá chegar. Dei a volta a Bronn. Dai-me meia hipótese, e pode ser que consiga dar também a volta a este.

A velha e a rapariga no escudo desistiram da caça às três mil, mas o gordo de amarelo não. Avaliou os mercenários com os seus olhos amarelos, passou a língua pelos dentes amarelos e disse:

— Cinco mil pratas pelo lote.

O mercenário franziu o sobrolho, encolheu os ombros, virou costas.

Sete bifemos. Tyrion estava bem certo de não querer tornar-se pro­priedade do imenso Senhor Pançamarela. Vê-lo esparramado na liteira, uma montanha de carne amarelada com olhinhos amarelos de porco e seios tão grandes como a Porca Bonita a empurrar a seda do tokar, bastava para arrepiar a pele do anão. E o cheiro que dele se evolava era palpável mesmo no estrado.

— Se não houver mais licitações...

— Sete mil — gritou Tyrion.

Risos ondularam ao longo dos bancos.

— O anão quer comprar-se a si próprio — observou a rapariga sobre o escudo.

Tyrion deitou-lhe um sorriso lascivo.

— Um escravo esperto merece um dono esperto, e vós tendes todos ar de idiotas.

Aquilo provocou mais risos entre os licitadores, e uma carranca ao leiloeiro, o qual afagava o chicote, indeciso, enquanto tentava determinar se aquilo resultaria em seu benefício.

— Cinco mil é um insulto! — gritou Tyrion. — Eu justo, eu canto, eu digo coisas divertidas. Fodo-vos as mulheres e faço-as gritar. Ou a mulher do vosso inimigo, se preferirdes, que melhor maneira haverá para o enver­gonhar? Sou um assassino com uma besta na mão, e homens com três vezes o meu tamanho intimidam-se e tremem quando nos encontramos à mesa de cyvasse. Há quem me tenha visto cozinhar de vez em quando. Licito por mim dez mil pratas! E posso pagar, posso, posso. O meu pai disse-me que tenho sempre de pagar as minhas dívidas.

O mercenário do manto púrpura virou-se outra vez. Os seus olhos encontraram os de Tyrion por sobre as fileiras de outros licitadores, e sor­riu. Aquele é um sorriso caloroso, refletiu o anão. Amigável. Mas, caramba, aqueles olhos são frios. Afinal sou capaz de não querer que ele nos compre.

A enormidade amarela estava a torcer-se na liteira, com um ar de aborrecimento na sua enorme cara de tarte. Resmungou qualquer coisa amarga em ghiscari, que Tyrion não entendeu, mas o tom era suficiente­mente claro.

— Aquilo foi outra licitação? — O anão inclinou a cabeça. — Ofereço todo o ouro de Rochedo Casterly.

Ouviu o chicote antes de o sentir, um assobio no ar, agudo e pene­trante. Tyrion grunhiu sob o golpe, mas daquela vez conseguiu permane­cer em pé. Os seus pensamentos recuaram aos princípios daquela viagem, quando o seu problema mais premente fora decidir que vinho beber com os caracóis a meio da manhã. É para veres as consequências que tem caçar dragões. Uma gargalhada saltou dos seus lábios, salpicando a primeira fila de compradores com sangue e cuspo.

— Estás vendido — anunciou o leiloeiro. Depois voltou a bater-lhe, só porque podia fazê-lo. Daquela vez Tyrion caiu.

Um dos guardas voltou a pô-lo em pé com brusquidão. Outro em­purrou Centava para fora da plataforma com o cabo da lança. O escravo estava já a ser levado para ocupar o lugar deles. Uma rapariga, com quinze ou dezasseis anos, que não provinha do Selaesori Qhoran. Tyrion não a co­nhecia. Da mesma idade de Daenerys Targaryen, ou perto disso. O vende­dor de escravos depressa a deixou nua. Pelo menos fomos poupados a essa humilhação.

Tyrion olhou para lá do acampamento yunkaita, para as muralhas de Meereen. Aqueles portões pareciam tão próximos... e se era possível acreditar no que se dizia nos cercados dos escravos, Meereen permanecia por enquanto uma cidade livre. Dentro daquelas muralhas arruinadas, a escravatura e o comércio de escravos continuavam proibidos. Tudo o que tinha de fazer era alcançar aqueles portões e ultrapassá-los, e voltaria a ser um homem livre.

Mas isso era praticamente impossível, a menos que abandonasse Centava. Ela ia querer levar consigo o cão e a porca.

— Não vai ser assim tão terrível, pois não? — sussurrou Centava. — Ele pagou tanto por nós. Vai ser gentil, não vai?

Enquanto o divertirmos.

— Somos demasiado valiosos para sermos maltratados — garan­tiu-lhe, ainda com sangue a correr-lhe pelas costas devido às últimas duas chicotadas. Mas quando o nosso espetáculo perder interesse... eperde, perde interesse...

O capataz do amo estava à espera para tomar posse deles, com uma carroça puxada por mulas e dois soldados. Tinha uma longa cara estreita e uma pera atada com fio de ouro, e o seu rígido cabelo negro arruivado partia-lhe das têmporas para ir formar um par de mãos providas de garras.

— Que criaturinhas queridas vós sois — disse. — Fazeis-me lembrar os meus filhos... ou faríeis, se os pequerruchos não estivessem mortos. Eu tomarei bem conta de vós. Dizei-me os vossos nomes.

— Centava. — A voz dela era um sussurro, pequeno e assustado.

Tyrion da Casa Lannister, legítimo senhor de Rochedo Casterly, meu verme ranhoso.

— Yollo.

— Ousado Yollo. Brilhante Centava. Sois propriedade do nobre e va­loroso Yezzan zo Qaggaz, erudito e guerreiro, reverenciado entre os Sábios Mestres de Yunkai. Considerai-vos afortunados, pois Yezzan é um amo amável e benevolente. Pensai nele como pensaríeis no vosso pai.

De bom grado, pensou Tyrion, mas daquela vez dominou a língua. Teriam de atuar para o novo amo bem depressa, não duvidava, e não con­seguiria aguentar outra chicotada.

— O vosso pai adora acima de tudo os seus tesouros especiais, e vai estimar-vos — estava o capataz a dizer. — Quanto a mim, pensai em mim como pensaríeis na ama-seca que cuidou de vós quando éreis pequenos. É Amas seca que todos os meus filhos me chamam.

— Lote noventa e nove — gritou o leiloeiro. — Um guerreiro.

A rapariga fora vendida depressa e estava a ser embrulhada para o seu novo dono, apertando a roupa a pequenos seios de pontas cor-de-rosa. Dois vendedores de escravos arrastaram Jorah Mormont para o estrado a fim de ocupar o lugar dela. O cavaleiro estava nu à exceção de uma tanga, com as costas em carne viva por causa do chicote e a cara tão inchada que estava quase irreconhecível. Grilhetas prendiam-lhe os pulsos e os tornoze­los. Um saborzinho da refeição que cozinhou para mim, pensou Tyrion, mas descobriu que não conseguia retirar nenhum prazer da desgraça do grande cavaleiro.

Mesmo agrilhoado, Mormont parecia perigoso, um volumoso bru­tamontes com braços grossos e ombros inclinados. Todos aqueles pelos ás­peros e escuros que tinha no peito faziam com que parecesse mais animal do que homem. Tinha ambos os olhos enegrecidos, dois poços escuros na­quela cara grotescamente inchada. Numa bochecha ostentava uma marca: uma máscara de demónio.

Quando os esclavagistas abordaram o Selaesori Qhoran, Sor Jorah enfrentara-os de espada na mão, matando três antes de o dominarem. Os camaradas desses três homens tê-lo-iam matado de bom grado, mas o ca­pitão proibira-o; um guerreiro valia sempre boa prata. E assim Mormont fora acorrentado a um remo, espancado quase até à morte, deixado à fome e marcado.

— Este é grande e forte — declarou o leiloeiro. — Tem genica com fartura. Dará um bom espetáculo nas arenas de combate. Quem quer co­meçar às trezentas?

Ninguém quis.

Mormont não prestou atenção à multidão variegada; os seus olhos estavam fixos para lá das linhas de cerco, na cidade distante com as antigas muralhas de tijolos multicoloridos. Tyrion conseguia ler aquele olhar tão facilmente como um livro: tão perto, e no entanto tão distante. O pobre des­graçado regressara tarde demais. Os guardas do cercado tinham-lhes dito, rindo, que Daenerys Targaryen estava casada. Tomara como seu rei um esclavagista meereenês, tão rico como nobre, e quando a paz fosse assinada e selada, as arenas de combate de Meereen voltariam a abrir. Outros escra­vos insistiam que os guardas estavam a mentir, que Daenerys Targaryen nunca faria a paz com esclavagistas. Chamavam-lhe Mhysa. Alguém lhe disse que isso queria dizer Mãe. Em breve a rainha prateada sairia da sua cidade, esmagaria os yunkaitas e quebrar-lhes-ia as correntes, sussurravam uns com os outros.

E depois vai fazer para todos nós uma torta de limão e beija-nos os dói-dóis e cura-os, pensou o anão. Não tinha qualquer confiança em salva­mentos régios. Se fosse necessário, trataria pessoalmente de os salvar. Os cogumelos enfiados na ponta da bota deviam chegar para ele e para Centa- va. Trincão e a Porca Bonita teriam de cuidar de si próprios.

O Amasseca continuava ainda a desbobinar a lição às novas presas do seu amo.

— Fazei tudo o que vos disserem e nada mais, e vivereis como senhor- zinhos, apaparicados e adorados — prometeu. — Se desobedecerdes... mas vós nunca faríeis isso, pois não? Os meus queridinhos não fariam tal coisa. — Estendeu a mão e beliscou Centava na bochecha.

— Então duzentos — disse o leiloeiro. — Um grande bruto como este, vale três vezes mais. Que guarda-costas dará! Nenhum inimigo se atre­verá a molestar-vos!

— Vinde, meus amiguinhos — disse o Amasseca — eu levo-vos para a vossa nova casa. Em Yunkai vivereis na pirâmide dourada de Qaggaz e jantareis em pratos de prata, mas aqui vivemos simplesmente, nas humildes tendas de soldados.

— Quem me quer dar cem? — gritou o leiloeiro.

Aquilo finalmente ocasionou uma licitação, embora fosse apenas cinquenta pratas. O licitador era um homem magro com um avental de couro.

— E uma — disse a velha do tokar violeta.

Um dos soldados içou Centava para cima do carro de mulas.

— Quem é a velha? — perguntou-lhe o anão.

— Zahrina — disse o homem. — Dedos sovinas. Carne para heróis. O vosso amigo morto depressa.

Ele não era amigo meu. Mas Tyrion Lannister deu por si a virar-se para Amasseca e a dizer:

— Não podes deixar que ela fique com ele.

Amasseca olhou-o de viés.

— Que ruído é esse que estás a fazer?

Tyrion apontou.

— Aquele faz parte do nosso espetáculo. O urso e a bela donzela. Jorah é o urso, Centava é a donzela, eu sou o bravo cavaleiro que a salva. Danço por aí e bato-lhe nos tomates. Muito engraçado.

O capataz olhou o estrado de viés.

— Ele? — A licitação por Jorah Mormont chegara às duzentas pratas.

— E uma — disse a velha no tokar violeta.

— O vosso urso. Estou a ver. — O Amasseca atravessou apressada­mente a multidão, dobrou-se sobre o enorme yunkaita deitado na liteira, murmurou-lhe ao ouvido. O amo anuiu, fazendo oscilar os queixos, depois ergueu o leque.

— Trezentas — gritou numa voz asmática.

A velha pôs-se hirta e virou costas.

— Porque foi que fizeste aquilo? — perguntou Centava, no idioma comum.

Boa pergunta, pensou Tyrion. Porque foi que o fiz?

— O teu espetáculo estava a tornar-se aborrecido. Todos os saltim­bancos precisam de um urso dançarino.

A rapariga deitou-lhe um olhar reprovador, depois retirou-se para o interior da carroça e sentou-se com os braços em volta de Trincão, como se o cão fosse o único verdadeiro amigo que tinha no mundo. E talvez seja.

O Amasseca regressou com Jorah Mormont. Dois dos soldados escravos do seu amo atiraram-no para cima do carro de mulas, entre os anões. O cavaleiro não resistiu. Perdeu toda a vontade de lutar quando ou­viu dizer que a sua rainha tinha casado, compreendeu Tyrion. Uma palavra murmurada fizera aquilo de que punhos, chicotes e mocas não tinham sido capazes; quebrara-o. Devia ter deixado que a velha ficasse com ele. Vai ser tão útil como mamilos numa placa de peito.

O Amasseca subiu para a carroça e pegou nas rédeas, e partiram pelo acampamento sitiante até ao recinto do novo amo, o nobre Yezzan zo Qag- gaz. Quatro soldados escravos marchavam ao lado deles, dois de cada lado da carroça.

Centava não chorou, mas tinha os olhos vermelhos e infelizes, e não os tirou de Trincão. Será que ela pensa que tudo isto desaparece se não olhar?

Sor Jorah Mormont não olhava para nada nem para ninguém. Mantinha-se enrolado, a cismar, preso pelas grilhetas.

Tyrion olhava para tudo e todos.

O acampamento yunkaita não era um acampamento, mas uma cen­tena de acampamentos erguidos lado a lado num crescente em volta das muralhas de Meereen; uma cidade de seda e lona com as suas próprias avenidas e vielas, tabernas e prostitutas, bons e maus bairros. Entre as li­nhas de cerco e a baía tinham brotado tendas como cogumelos amarelos. Algumas eram pequenas e mal feitas, não passavam de um bocado de velha lona manchada para manter o sol e a chuva afastados, mas ao lado delas erguiam-se tendas de aquartelamento suficientemente grandes para nelas dormir uma centena de homens, e pavilhões de seda grandes como palácios, com harpias a cintilar no topo dos mastros. Alguns acampa­mentos eram ordeiros, com as tendas dispostas em círculos concêntricos em volta de uma fogueira, com armas e armaduras empilhadas em volta do anel interior e linhas para cavalos no exterior. Noutros, parecia reinar o puro caos.

As planícies secas e ressequidas em volta de Meereen eram planas e nuas e sem árvores por longas léguas, mas os navios yunkaitas tinham trazido madeira e peles do sul, em quantidade suficiente para construir seis enormes trabucos. Estavam dispostos de três lados da cidade, todos menos o lado do rio, rodeados por pilhas de pedras partidas e barris de piche e re­sina apenas à espera de um archote. Um dos soldados que caminhava junto da carroça viu para onde Tyrion estava a olhar e disse-lhe com orgulho que a cada um dos trabucos fora dado um nome: Quebra-dragões, Prostituta, Filha da Harpia, Irmã Malvada, Fantasma de Astapor, Punho de Mazdhan. Erguendo-se acima das tendas a uma altura de doze metros, os trabucos eram os principais pontos de referência do acampamento dos sitiantes.

— Bastou vê-los para pôr a rainha dos dragões de joelhos — vanglo­riou-se. — E aí vai ficar, a mamar na nobre picha de Hizdahr, senão faze­mos as muralhas dela em cascalho.

Tyrion viu um escravo a ser chicoteado, golpe atrás de golpe, até fi­car com as costas feitas sangue e carne viva. Uma fila de homens passou a marchar, a ferros, tinindo a cada passo. Levavam lanças e usavam espadas curtas, mas correntes ligavam-nos pulso com pulso e tornozelo com torno­zelo. O ar cheirava a carne assada, e viu um homem a esfolar um cão para a panela.

Também viu os mortos e ouviu os moribundos. Sob o fumo que pai­rava no ar, o cheiro a cavalos e o penetrante cheiro salgado da baía, havia um fedor a sangue e a merda. Uma Puxão qualquer, compreendeu, enquan­to via dois mercenários tirar o cadáver de um terceiro de uma das tendas.

Isso fê-lo torcer os dedos. Ouvira o pai dizer uma vez que a doença podia dizimar um exército mais depressa do que qualquer batalha.

Mais um motivo para fugir, e depressa.

Um quarto de milha mais à frente, descobriu um bom motivo para pensar melhor. Formara-se uma multidão em volta de três escravos captu­rados enquanto tentavam escapar.

— Eu sei que os meus tesourinhos serão doces e obedientes — disse. — Vede o que acontece àqueles que tentam fugir.

Os cativos tinham sido atados a uma fila de traves e um par de fundibulários estava a usá-los para testar a sua perícia.

— Tolosinos — disse-lhes um dos guardas. — Os melhores fundibulários do mundo. Atiram bolas de chumbo mole em vez de pedras.

Tyrion nunca entendera o objetivo das fundas, quando os arcos ti­nham um alcance tão superior... mas nunca tinha visto tolosinos em ação. As suas bolas de chumbo causavam muito mais danos do que as pedras lisas que os outros fundibulários usavam, e também mais do que qualquer seta. Uma atingiu o joelho de um dos cativos, e este rebentou numa chuva de sangue e osso que deixou a perna do homem pendurada por um tendão vermelho escuro. Bem, ele não voltará a fligir, concedeu Tyrion, enquanto o homem desatava a gritar. Os guinchos dele misturaram-se no ar da manhã com os risos das seguidoras de acampamentos e com as pragas daqueles que tinham apostado bom dinheiro no falhanço do fundibulário. Centava afastou o olhar, mas o Amasseca pegou-lhe no queixo e voltou a virar-lhe a cabeça para a cena.

— Observa — ordenou. — Tu também, urso.

Jorah Mormont ergueu a cabeça e fitou o Amasseca. Tyrion via a tensão nos seus braços. Vai esganá-lo, e isso será o fim de todos nós. Mas o cavaleiro limitou-se a fazer uma careta, após o que se virou para observar o sangrento espetáculo.

Para leste, as maciças muralhas de tijolo de Meereen tremeluziam ao calor da manhã. Esse era o refugio que aqueles pobres patetas tinham espe­rado alcançar. Mas durante quanto tempo continuará a ser um refúgio?

Todos os três aspirantes a fugitivos estavam mortos antes do Amasse­ca voltar a pegar nas rédeas. O carro de mulas continuou a avançar.

O acampamento do amo deles ficava a sul e a leste da Prostituta, qua­se à sua sombra e estendia-se ao longo de vários acres. A humilde tenda de Yezzan zo Qaggaz revelou-se um palácio de seda cor de limão. Harpias douradas erguiam-se no topo dos mastros centrais de cada um dos seus nove telhados bicudos, brilhando ao sol. Tendas menores rodeavam-na por todos os lados.

— Aqueles são os alojamentos dos cozinheiros, das concubinas e dos guerreiros do nosso nobre amo, e de alguns dos seus familiares menos pró­ximos — disse-lhes o Amasseca — mas vós, queridinhos, tereis o raro pri­vilégio de dormir dentro do pavilhão do próprio Yezzan. Agrada-lhe man­ter as suas criaturas por perto. — Franziu o sobrolho a Mormont. — Tu não, urso. És grande e feio, ficarás acorrentado cá fora. — O cavaleiro não respondeu. — Mas primeiro arranjaremos coleiras para todos.

As coleiras eram feitas de ferro, ligeiramente douradas para as fazer brilhar à luz. O nome de Yezzan estava gravado no metal em glifos valiria- nos, e um par de minúsculas campainhas estava preso por baixo das orelhas de forma que cada passo de quem as usava produzia um alegre tilintar. Jo- rah Mormont aceitou a sua coleira num silêncio carrancudo, mas Centava desatou a chorar enquanto o armeiro colocava a dela no lugar.

— É tão pesada — queixou-se.

Tyrion apertou-lhe a mão.

— É de ouro maciço — mentiu. — Em Westeros, as senhoras de nas­cimento elevado sonham com um colar como esse. — Antes uma coleira do que uma marca. Uma coleira pode ser tirada. Lembrou-se de Shae, e do modo como a corrente de ouro reluzira quando a apertara mais e mais em volta da sua garganta.

Depois, o Amasseca mandou prender as correntes de Sor Jorah a uma estaca perto da fogueira, enquanto levava os dois anões para dentro do pavilhão do amo e lhes mostrava o sítio onde iriam dormir, numa alcova atapetada separada da tenda principal por paredes de seda amarela. Iam partilhar aquele espaço com os outros tesouros de Yezza; um rapaz com umas "pernas de cabra" torcidas e peludas, uma rapariga de duas cabeças oriunda de Mantarys, uma mulher barbuda e uma criatura graciosa cha­mada Doces que se vestia de selenite e renda de Myr.

— Estais a tentar decidir se sou homem ou mulher — disse Doces quando foi posta perante os anões. Depois ergueu as saias e mostrou-lhes o que estava por baixo. — Sou as duas coisas, e é de mim que o amo mais gosta.

Uma coleção de aberrações, compreendeu Tyrion. Algures, há um deus qualquer que se está a rir.

— Adorável — disse a Doces, com o seu cabelo purpúreo e olhos violeta — mas tínhamos a esperança de ser os bonitos, para variar.

Doces soltou um risinho, mas o Amasseca não se mostrou divertido.

— Guarda os gracejos para esta noite, quando atuares para o nosso nobre amo. Se lhe agradares, serás bem recompensado. Se não... — Esbo­feteou a cara de Tyrion.

— Vais querer ter cuidado com o Amasseca — disse Doces depois do capataz se ir embora. — Ele é o único verdadeiro monstro que aqui há. — A mulher barbuda falava uma variedade incompreensível de ghiscari, o rapaz cabra uma mistura gutural de marinheiros chamada fala mercantil. A rapa­riga de duas cabeças era fraca da cabeça; uma cabeça não era maior do que uma laranja e não falava de todo, a outra tinha dentes aguçados e era habi­tual que rosnasse a quem quer que se aproximasse demasiado da sua jaula. Mas Doces era fluente em quatro línguas, uma das quais alto valiriano.

— Como é o amo? — perguntou Centava com ansiedade.

— Tem os olhos amarelos e fede — disse Doces. — Há dez anos foi a Sothoros, e tem vindo a apodrecer por dentro desde então. Se o fizeres esquecer que está a morrer, mesmo se um bocadinho, pode ser muito ge­neroso. Não lhe recuses nada.

Só tiveram a tarde para aprender os costumes dos escravos. Os es­cravos corporais de Yezzan encheram uma banheira de água quente, e os anões foram autorizados a tomar banho; Centava primeiro, depois Tyrion. Depois, outro escravo espalhou um unguento picante pelos cortes nas suas costas para impedir que gangrenassem, após o que os cobriu com um cata­plasma fresco. O cabelo de Centava foi cortado e a barba de Tyrion sofreu uma aparadela. Foram-lhes dados chinelos suaves e roupa fresca, simples mas limpa.

Quando a noite caiu, o Amasseca regressou para lhes dizer que estava na altura de envergarem as armaduras de saltimbancos. Yezzan ia receber o supremo comandante yunkaita, o nobre Yurkhaz zo Yunzak, e esperava-se que eles atuassem.

— Deverei desacorrentar o vosso urso?

— Esta noite não — disse Tyrion. — Justemos primeiro para o nosso amo e guardemos o urso para outra ocasião.

— Muito bem. Depois de acabardes as cabriolas, ireis ajudar a servir. Tratai de não derramar bebida sobre os convidados, caso contrário pagareis por isso.

Um malabarista deu início aos divertimentos da noite. Depois veio um trio de enérgicos acrobatas. Depois deles, o rapaz das pernas de cabra apareceu e dançou uma grotesca jiga enquanto um dos escravos de Yurkhaz tocava numa flauta de osso. Tyrion sentiu-se inclinado a perguntar-lhe se ele conhecia "As Chuvas de Castamere." Enquanto esperavam a sua vez de atuar, observou Yezzan e os convidados. A ameixa humana no lugar de honra era claramente o supremo comandante yunkaita, o qual parecia tão impressionante como um banco desconjuntado. Viera acompanhado de uma dúzia de outros senhores yunkaitas. Dois capitães mercenários tam­bém estavam presentes, cada um acompanhado por uma dúzia de homens da sua companhia. Um era um pentoshi elegante, de cabelo grisalho e ves­tido de seda, à exceção do manto, uma coisa esfarrapada feita de dúzias de faixas de tecido rasgado e manchado de sangue. O outro capitão era o homem que tentara comprá-lo naquela manhã, o licitante de pele castanha com a barba grisalha.

— Ben Castanho Plumm — chamou-lhe Doces. — Capitão dos Se­gundos Filhos.

Um westerosiano e um Plumm. Cada vez melhor:

— Vós sois a seguir — informou o Amasseca. — Sede divertidos, queridinhos, senão ireis desejar tê-lo sido.

Tyrion não dominara metade dos velhos truques de Tostão, mas con­seguia montar a porca, cair quando devia, rolar e voltar a pôr-se de pé. Tudo isso acabou por ser bem recebido. Ver gente pequena a correr ebriamente de um lado para o outro e a bater uma na outra com armas de madeira pa­recia ser tão hilariante num acampamento de sitiantes nas margens da Baía dos Escravos como no banquete de casamento de Joffrey em Porto Real. Desprezo, pensou Tyrion, a língua universal.

O amo Yezzan ria-se mais ruidosamente e durante mais tempo sem­pre que um dos seus anões sofria uma queda ou apanhava com um golpe, com todo o vasto corpo a sacudir-se como sebo num tremor de terra; os seus convidados esperavam para ver como Yurkhaz zo Yunzak reagia antes de se lhe juntarem. O supremo comandante parecia tão débil que Tyrion teve receio de que rir pudesse matá-lo. Quando o elmo de Centava foi atin­gido e voou até ao colo de um yunkaita de expressão azeda vestido com um tokar às riscas verdes e douradas, Yurkhaz cacarejou como uma galinha. Quando esse senhor meteu a mão no elmo e de lá tirou um grande melão purpúreo a pingar polpa, arquejou até ficar com a cara da mesma cor do fruto. Virou-se para o seu anfitrião e murmurou qualquer coisa que fez o amo dos anões rir-se à gargalhada e lamber os lábios... se bem que pareces­se a Tyrion que havia um sinal de ira naqueles olhos rachados e amarelos.

Depois, os anões tiraram as armaduras de madeira e a roupa enso­pada em suor que tinham por baixo e vestiram as frescas túnicas amarelas que lhes tinham sido fornecidas para servirem. A Tyrion foi dado um jarro de vinho purpúreo, a Centava um jarro de água. Deslocaram-se pela tenda enchendo taças, fazendo murmurar os chinelos em tapetes espessos. Era um trabalho mais duro do que parecia. Tyrion não demorou muito a ficar com fortes cãibras nas pernas, e um dos golpes nas suas costas recomeçara a sangrar, espalhando vermelho pelo linho amarelo da túnica. Tyrion mor­deu a língua e continuou a servir.

A maioria dos convidados não lhes prestou mais atenção do que aos outros escravos... mas um yunkaita declarou ebriamente que Yezzan devia obrigar os dois anões a foder, e outro exigiu saber como fora que Tyrion perdera o nariz. Quase respondeu: Enfiei-o na cona da tua mulher, e ela arrancou-mo à dentada... mas a tempestade persuadira-o de que ainda não queria morrer, portanto disse:

— Foi cortado para me punir por insolência, senhor.

Então, um nobre de tokar azul fimbriado de olhos-de-tigre lem­brou-se de que Tyrion se gabara da sua perícia no cyvasse durante o leilão.

— Testemo-lo — disse. Um tabuleiro e um conjunto de peças foram devidamente apresentados. Escassos momentos mais tarde, o nobre rubo­rizado virou o tabuleiro numa fúria, espalhando as peças pelos tapetes ao som de gargalhadas yunkaitas.

— Devias tê-lo deixado ganhar — murmurou Centava.

O Ben Castanho Plumm ergueu o tabuleiro caído, sorrindo.

— Testa-me a seguir, anão. Quando eu era mais novo, os Segundos Filhos aceitaram um contrato com Volantis. Aprendi lá a jogar.

— Eu sou só um escravo. O meu nobre amo decide quando e com quem jogo. — Tyrion virou-se para Yezzan. — Meu amo?

O senhor amarelo pareceu divertido pela ideia.

— Que aposta propondes, capitão?

— Se eu ganhar, dai-me este escravo — disse Plumm.

— Não — disse Yezzan zo Qaggaz. — Mas se conseguirdes derrotar o meu anão, dou-vos o preço que paguei por ele, em ouro.

— Feito — disse o mercenário. As peças espalhadas foram recolhidas do tapete e sentaram-se para jogar.

Tyrion ganhou o primeiro jogo. Plumm conquistou o segundo, du­plicando a aposta. Quando se prepararam para o terceiro embate, o anão estudou o seu oponente. De pele castanha, com as bochechas e o queixo cobertos por uma densa barba cortada curta, cinzenta e branca, a cara fen­dida por um milhar de rugas e algumas cicatrizes antigas, Plumm tinha um ar amigável, especialmente quando sorria. O fiel servidor, decidiu Tyrion. O tio favorito de qualquer um, cheio de gargalhadinhas, velhos ditados e rude sabedoria. Era tudo um embuste. Aqueles sorrisos nunca tocavam os olhos de Plumm, onde a cobiça se escondia por trás de um véu de cautela. Este é faminto, mas prudente.

O mercenário era um jogador quase tão mau como o nobre yunkaita, mas a sua forma de jogar era impassível e tenaz em vez de ousada. As suas formações de abertura eram sempre diferentes, mas sempre iguais; con­servadoras, defensivas, passivas. Ele não joga para ganhar, compreendeu Tyrion. Joga para não perder. Funcionara com o segundo jogo, quando o homenzinho se ultrapassara com um assalto pouco sensato. Não funcionou com o terceiro jogo, nem com o quarto, nem com o quinto, que acabou por ser o último.

Perto do fim desse último embate, com a sua fortaleza em ruínas, o dragão morto, elefantes à sua frente e cavalaria pesada a circundar a reta­guarda, Plumm ergueu os olhos, sorrindo, e disse:

— Yollo volta a ganhar. Morte em quatro jogadas.

— Três. — Tyrion deu pancadinhas no dragão. — Tive sorte. Talvez devêsseis dar uma boa esfregadela à minha cabeça antes do nosso próximo jogo, capitão. Alguma dessa sorte talvez se transmitisse aos vossos dedos. Perderás na mesma, mas talvez me dês mais luta. Sorrindo, afastou-se da mesa de cyvasse, pegou no jarro de vinho e voltou a servi-lo com Yezzan zo Qaggaz consideravelmente mais rico e o Ben Castanho Plumm considera­velmente empobrecido. O seu gargantuesco amo caíra num sono ébrio du­rante o terceiro jogo, deixando escorregar o cálice dos dedos amarelecidos para ir derramar o conteúdo no tapete, mas talvez ficasse satisfeito quando acordasse.

Quando o supremo comandante Yurkhaz zo Yunzak se foi embora, sustentado por um par de corpulentos escravos, isso pareceu ser um sinal para os outros convidados se retirarem também. Depois de a tenda se esva­ziar, o Amasseca reapareceu para dizer aos servidores que podiam obter o seu próprio banquete dos restos.

— Comei depressa. Tudo isto tem de estar outra vez limpo antes de irdes dormir.

Tyrion estava de joelhos, com as pernas a doer e as costas ensanguen­tadas a gritar de dor, tentando lavar a nódoa que o vinho derramado do no­bre Yezzan deixara no tapete do nobre Yezzan, quando o capataz lhe bateu gentilmente na cara com a ponta do chicote.

— Yollo. Estiveste bem. Tu e a tua mulher.

— Ela não é minha mulher.

— A tua rameira, nesse caso. Em pé, os dois.

Tyrion levantou-se instavelmente, com uma perna a tremer debaixo do corpo. Sentia as coxas feitas em nós, com tantas cãibras que Centava teve de lhe estender uma mão para o ajudar a pôr-se em pé.

— Que foi que nós fizemos?

— Mais que muito — disse o capataz. — O Amasseca disse que seríeis recompensados se agradásseis ao vosso pai, não disse? Embora o nobre Ye­zzan deteste perder os seus tesourinhos, como vistes, Yurkhaz zo Yunzak convenceu-o de que seria um egoísmo guardar para si umas palhaçadas tão engraçadas. Rejubilai! Para celebrar a assinatura da paz, tereis a honra de justar na Grande Arena de Daznak. Milhares de pessoas virão ver-vos! Dezenas de milhares! E, oh, como nos riremos!


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