CERSEI


Cada noite parecia mais fria do que a anterior.

A cela não tinha nem lareira nem braseiro. A única janela era alta de­mais para lhe fornecer uma vista e era pequena demais para que por ela se esgueirasse, mas tinha mais do que o tamanho suficiente para deixar entrar o frio. Cersei rasgara a primeira combinação que lhe tinham dado, exigindo a devolução da sua roupa, mas isso só a deixara nua e a tremer. Quando lhe trouxeram outra combinação, enfiara-a pela cabeça e agradecera-lhes, engasgando-se nas palavras.

A janela também deixava entrar sons. Essa era a única maneira que a rainha tinha de saber o que podia estar a acontecer na cidade. As septãs que lhe traziam comida não lhe queriam dizer nada.

Odiava isso. Jaime deveria estar a caminho para a ir buscar, mas como saberia quando ele chegasse? Cersei só esperava que o irmão não fosse suficientemente insensato para se precipitar à frente do seu exérci­to. Precisaria de todas as espadas para lidar com a horda esfarrapada de Pobres Companheiros que rodeava o Grande Septo. Fazia frequentemente perguntas sobre o gémeo, mas as carcereiras não lhe respondiam. Também perguntava por Sor Loras. Segundo as últimas notícias, o Cavaleiro das Flo­res estava a morrer em Pedra do Dragão, de ferimentos sofridos enquanto tomava o castelo. Ele que morra, pensou Cersei, e que se despache. A morte do rapaz quereria dizer um lugar vago na Guarda Real, e isso poderia ser a sua salvação. Mas as septãs tinham a boca tão fechada sobre Loras Tyrell como sobre Jaime.

O Lorde Qyburn fora o seu último e único visitante. O seu mundo tinha uma população de quatro pessoas: ela e as três carcereiras, piedo­sas e inflexíveis. A Septã Unella tinha ossos grandes e era máscula, com mãos calosas e feias feições carrancudas. A Septã Moelle tinha um rígido cabelo branco e pequenos olhos maus perpetuamente semicerrados em suspeita, espreitando de uma cara enrugada, tão afilada como a lâmina de um machado. A Septã Scolera era grossa de cintura e baixa, e possuía seios pesados, uma pele cor de azeitona e um cheiro azedo, como o do leite prestes a estragar-se. Traziam-lhe comida e água, esvaziavam-lhe o penico e levavam-lhe a combinação para lavar de tantos em tantos dias, deixando-a enrolada nua sob a manta até que lhe fosse devolvido. Por vezes, Scolera lia-lhe passagens da Estrela de Sete Pontas ou d'O Livro das

Preces Sagradas, mas à parte isso nenhuma falava com ela nem respondia a nenhuma das suas perguntas.

Odiava e desprezava as três, quase tanto como odiava e desprezava os homens que a tinham traído.

Falsos amigos, criados traiçoeiros, homens que lhe haviam declarado um amor imorredouro, mesmo o seu próprio sangue... todos a tinham abandonado na sua hora de necessidade. Osney Kettleblack, esse fracote, quebrara sob o látego, enchendo os ouvidos do Alto Septão com segredos que devia ter levado para a sepultura. Os irmãos, escumalha das ruas que ela elevara bem alto, nada tinham feito além de ficarem de braços cruzados. Aurane Waters, o seu almirante, fugira para o mar com os dromones que construíra para ele. Orton Merryweather fugira de volta para Mesalonga, levando a mulher, Taena, que fora a única amiga verdadeira da rainha na­queles tempos terríveis. Harys Swyft e o Grande Meistre Pycelle tinham-na abandonado ao cativeiro e tinham oferecido o reino aos mesmíssimos ho­mens que haviam conspirado contra ela. Meryn Trant e Boros Blount, os protetores ajuramentados do rei, não se viam em lado nenhum. Até o pri­mo Lancei, que em tempos afirmara amá-la, era um dos acusadores. O tio recusara-se a ajudá-la a governar quando ela quisera fazer dele Mão do Rei.

E Jaime...

Não, nisso não podia acreditar, não queria acreditar. Jaime pôr-se-ia ali assim que soubesse da situação em que a irmã se encontrava." Vem ime­diatamente," escrevera-lhe. "Ajuda-me. Salva-me. Preciso agora de ti como nunca antes precisei. Amo-te. Amo-te. Amo-te. Vem imediatamente" Qyburn jurara que se asseguraria de que a carta chegasse ao gémeo, o qual andava pelas terras fluviais com o seu exército. Mas Qyburn não regressara. Tanto quanto soubesse, podia estar morto, com a cabeça empalada num espigão por cima dos portões da fortaleza da cidade. Ou talvez estivesse a definhar numa das celas negras sob a Fortaleza Vermelha, sem ter ainda enviado a carta. A rainha perguntara por ele uma centena de vezes, mas as suas captoras não queriam falar dele. Tudo o que sabia com certeza era que Jaime não viera.

Ainda não, dizia a si própria. Mas virá em breve. E quando vier, o Alto Pardal e as suas cadelas cantarão outra cantiga.

Odiava sentir-se impotente.

Ameaçara, mas as suas ameaças tinham sido recebidas com caras cie pedra e orelhas moucas. Ordenara, mas as suas ordens tinham sido igno­radas. Invocara a misericórdia da Mãe, apelando à solidariedade natural de uma mulher por outra, mas as três septãs engelhadas deviam ter posto de parte a sua condição de mulheres quando proferiram os votos. Tentara o encanto, falando-lhes com gentileza, aceitando docilmente cada novo ultraje. Não se deixaram influenciar. Oferecera-lhes recompensas, prometera clemência, honrarias, ouro, cargos na corte. Trataram as promessas como trataram as ameaças.

E rezara. Oh, como rezara. Eram preces que elas desejavam, portanto servira-lhas, servira-as de joelhos como se fosse uma comum prostituta de rua e não uma filha do Rochedo. Rezara por alívio, por salvamento, por Jaime. Em voz alta, pedira aos deuses para a defenderem na sua inocência; em silêncio rezara para que os seus acusadores sofressem mortes súbitas e dolorosas. Rezara até ficar com os joelhos em carne viva e ensanguentados, até sentir a língua tão inchada e pesada que corria o risco de sufocar com ela. Todas as preces que lhe tinham sido ensinadas em rapariga ocorreram a Cersei na sua cela, e inventara novas conforme foram sendo necessárias, apelando à Mãe e à Donzela, ao Pai e ao Guerreiro, à Velha e ao Ferrei­ro. Até rezara ao Estranho. Numa tempestade, qualquer deus serve. Os Sete mostraram-se tão surdos como os seus servos terrenos. Cersei entregara a todos as palavras que tinha em si, entregara-lhes tudo menos lágrimas. Isso, nunca terão, dissera a si própria.

Odiava sentir-se fraca.

Se os deuses lhe tivessem dado a força que haviam dado a Jaime e àquele fanfarrão idiota do Robert, teria criado a sua própria fuga. Oh, uma espada, e a força para a brandir. Tinha um coração de guerreiro, mas os deuses na sua cega malícia haviam-lhe dado o débil corpo de uma mulher. A rainha tentara combatê-las no início, mas as septãs tinham-se-lhe sobre­posto. Eram demasiadas, e eram mais fortes do que pareciam. Velhas feias, todas elas, mas todas aquelas preces e esfregas e espancamentos de noviças com paus tinham-nas deixado duras como raízes.

E não a deixavam descansar. De noite ou de dia, sempre que a rainha fechava os olhos para dormir, uma das suas captoras apareceria para a acor­dar e exigir que confessasse os seus pecados. Estava acusada de adultério, fornicação, alta traição, até assassínio, pois Osney Kettleblack confessara ter sufocado o último Alto Septão às suas ordens.

— Vim ouvir-vos falar de todos os vossos assassínios e fornicações — rosnava a Septã Unella, quando abanava a rainha para a acordar. A Septã Moelle dizia-lhe que eram os seus pecados que a mantinham acor­dada.

— Só os inocentes conhecem a paz de um sono imperturbado. Con­fessai os vossos pecados e dormireis como um bebé recém-nascido.

Acordar e adormecer e voltar a acordar, todas as noites eram quebra­das em bocados pelas rudes mãos das suas algozes, e cada noite era mais fria e mais desagradável do que a anterior. A hora da coruja, a hora do lobo, a hora do rouxinol, o nascer da Lua e o pôr da Lua, o ocaso e a alvorada, passavam a cambalear como bêbados. Que horas eram? Que dia era? Onde estava? Seria aquilo um sonho, ou teria acordado? Os pequenos estilhaços de sono que lhe concediam transformavam-se em navalhas, cortando-lhe 0 juízo. Cada dia ia encontrá-la mais embotada do que o anterior, exausta e febril. Perdera todo o sentido de há quanto tempo estava aprisionada na­quela cela, bem alto numa das sete torres do Grande Septo de Baelor. Vou envelhecer e morrer aqui, pensava, desesperando.

Cersei não podia deixar que isso acontecesse. O filho precisava dela. O reino precisava dela. Tinha de se libertar, fosse qual fosse o risco. O seu mundo reduzira-se a uma cela com dois metros de lado, um penico, uma enxerga grumosa e uma manta de lã castanha, fina como a esperança, que lhe enchia a pele de comichões. Mas continuava a ser herdeira do Lorde Tywin, uma filha do Rochedo.

Exausta pela falta de sono, tremendo do frio que penetrava todas as noites na sua cela de torre, ora febril, ora faminta, Cersei compreendeu por fim que tinha de confessar.

Nessa noite, quando Unella veio arrancá-la ao sono, descobriu a rai­nha à espera, ajoelhada.

— Pequei — disse Cersei. Sentia a língua inchada na boca, os lábios em carne viva e gretados. — Pequei com grande gravidade. Agora vejo que sim. Como posso ter sido tão cega durante tanto tempo? A Velha apareceu-me com a sua lâmpada bem erguida e à sua luz sagrada vi o caminho que tenho de percorrer. Quero voltar a estar limpa. Só quero a absolvição. Por favor, boa septã, suplico-vos, levai-me ao Alto Septão para que possa confessar os meus crimes e fornicações.

— Eu digo-lhe, Vossa Graça — disse a Septã Unella. — Sua Alta San­tidade ficará muito contente. Só através da confissão e do verdadeiro arre­pendimento podem ser salvas as nossas almas imortais.

E durante o resto dessa longa noite deixaram-na dormir. Horas e ho­ras de abençoado sono. A coruja, o lobo e o rouxinol passaram, por uma vez sem que a sua passagem fosse vista ou notada, enquanto Cersei sonhava um longo e doce sonho em que Jaime era seu marido e o filho de ambos ainda estava vivo.

Ao chegar a manhã, a rainha voltara quase a sentir-se ela própria. Quando as captoras vieram buscá-la, voltou a dirigir-lhes ruídos piedosos e disse-lhes como estava determinada a confessar os seus pecados e a ser perdoada por tudo o que fizera.

— Rejubilamos por ouvir isso — disse a Septã Moelle.

— Será um grande peso a ser tirado de cima da vossa alma — disse a Septã Scolera. — Sentir-vos-eis muito melhor depois, Vossa Graça.

Vossa Graça. Aquelas duas simples palavras entusiasmaram-na. Du­rante o longo cativeiro, fora frequente que as carcereiras nem se incomo­dassem com essa simples cortesia.

— Sua Alta Santidade aguarda — disse a Septã Unella.

Ccrsei baixou a cabeça, humilde e obediente.

— Posso ser autorizada a tomar banho primeiro? Não estou cm esta­do de o servir.

— Podeis lavar-vos depois, se Sua Alta Santidade o permitir — disse a Septã Unella. — É a limpeza da vossa alma imortal que vos deve preocupar agora, não tais futilidades da carne.

As três septãs levaram-na pela escada da torre abaixo, a Septã Unella à sua frente, a Septã Moelle e a Septã Scolera logo atrás, como se tivessem medo que ela tentasse fugir.

— Passou-se tanto tempo desde que tive um visitante — murmurou Cersei numa voz calma enquanto desciam. — O rei está bem? Só pergunto como mãe, temerosa pelo meu filho.

— Sua Graça está de boa saúde — disse a Septã Scolera — e está bem protegido, de dia e de noite. A rainha está com ele, sempre.

A rainha sou eu! Cersei engoliu em seco, sorriu e disse:

— É bom saber isso. Tommen ama-a tanto. Nunca acreditei naquelas coisas terríveis que eram ditas sobre ela. — Teria Margaery Tyrell arranjado maneira de se escapulir às acusações de fornicação, adultério e alta traição? — Houve um julgamento?

— Haverá em breve — disse a Septã Scolera — mas o irmão...

Chiu. — A Septã Unella virou-se para atirar um olhar furioso a Scolera por cima do ombro. — Tagarelais demasiado, velha tonta. Não nos cabe a nós falar dessas coisas.

Scolera baixou a cabeça.

— Por favor, perdoai-me.

Fizeram o resto da descida em silêncio.

O Alto Pardal recebeu-as no seu gabinete, um austero aposento de sete lados onde caras toscamente esculpidas dos Deuses olhavam de pare­des de pedra com expressões quase tão amargas e desaprovadoras como a da própria Sua Alta Santidade. Quando entrou, ele estava sentado por trás de uma mesa tosca, a escrever. O Alto Septão não mudara desde a últi­ma vez que estivera na sua presença, no dia em que a mandara capturar e aprisionar. Continuava a ser um homem magricela e grisalho, com um ar ligeiro, duro e meio faminto, uma cara com traços bem definidos, enruga­da, olhos desconfiados. Em vez das ricas vestes dos seus antecessores, usava uma túnica sem forma, de lã por tingir, que lhe caía até aos tornozelos.

— Vossa Graça — disse, em jeito de saudação. — Informaram-me que quereis fazer uma confissão.

Cersei caiu de joelhos.

— Quero, Alta Santidade. A Velha apareceu-me enquanto dormia com a sua lâmpada bem erguida...

— Com certeza. Unella, vós ficareis e fareis um registo das palavras de Sua Graça. Scolera, Moelle, tendes licença para vos irdes embora. — Jun­tou os dedos das mãos, o mesmo gesto que Cersei vira o pai usar mil vezes.

A Septã Unella sentou-se atrás dela, estendeu um pergaminho, mer­gulhou uma pena em tinta de meistre. Cersei sentiu uma pontada de medo.

— Depois de confessar ser-me-á permitido...

— Lidaremos com Vossa Graça em função dos vossos pecados.

Este homem é implacável, compreendeu uma vez mais. Concen­trou-se por um momento.

— Que a Mãe se apiede de mim, nesse caso. Deitei-me com homens fora dos limites do matrimónio. Confesso.

— Quem? — Os olhos do Alto Septão estavam fixos nos dela.

Cersei ouvia Unella a escrever atrás dela. A pena fazia um ténue e

débil som de raspar.

— Lancei Lannister, meu primo. E Osney Kettleblack. — Ambos ti­nham confessado ter dormido com ela, não lhe serviria de nada negá-lo. — Os irmãos dele também. Ambos. — Não tinha maneira de saber o que Osfryd e Osmund poderiam dizer. Era mais seguro confessar demasiado do que pouco demais. — Isto não justifica o meu pecado, Alta Santidade, mas sentia-me só e com medo. Os deuses tinham-me levado o Rei Robert, o meu amor e protetor. Estava sozinha, rodeada por intriguistas, falsos ami­gos e traidores que conspiravam a morte dos meus filhos. Não sabia em quem confiar, portanto... usei os únicos meios de que dispunha para ligar a mim os Kettleblack.

— Estais assim a referir-vos aos vossos órgãos femininos?

— A minha carne. — Levou uma mão à cara, tremendo. Quando vol­tou a baixá-la, tinha os olhos úmidos de lágrimas. — Sim. Que a Donzela me perdoe. Mas foi pelos meus filhos, pelo reino. Não tive nenhum prazer nisso. Os Kettleblack... são homens duros e cruéis, e usaram-me rudemen­te, mas que podia eu fazer? Tommen precisava de ter à sua volta homens em quem eu podia confiar.

— Sua Graça estava protegido pela Guarda Real.

— A Guarda Real ficou parada, inútil, enquanto o seu irmão Joffrey morria, assassinado no próprio banquete de casamento. Eu vi um filho morrer, não consegui suportar perder outro. Pequei, cometi fornicação promíscua, mas fi-lo por Tommen. Perdoai-me, Alta Santidade, mas abri­ria as pernas a todos os homens em Porto Real se fosse o que tivesse de fazer para manter os meus filhos a salvo.

— O perdão só provém dos deuses. E Sor Lancei, que era vosso pri­mo e escudeiro do senhor vosso esposo? Também o levastes para a cama para conquistar a sua lealdade?

— Lancei. — Cersei hesitou. Cuidado, disse a si própria, Lancei de­ve-lhe ter dito tudo. — Lancei amava-me. Era meio rapaz, mas nunca duvi­dei da sua devoção a mim ou ao meu filho.

— E mesmo assim corrompeste-lo.

— Estava sozinha. — Sufocou um soluço. — Tinha perdido o meu marido, o meu filho, o senhor meu pai. Era regente, mas uma rainha con­tinua a ser uma mulher, e as mulheres são fracos receptáculos, fáceis de ten­tar. .. Vossa Alta Santidade sabe que é verdade. Sabe-se até de santas septãs que pecaram. Obtive conforto com Lancei. Ele era bondoso e gentil, e eu precisava de alguém. Foi errado, eu sei, mas não tinha mais ninguém... uma mulher precisa de ser amada, precisa de um homem a seu lado, ela... ela... — E desatou a soluçar descontroladamente.

O Alto Septão não fez qualquer movimento para a reconfortar. Ficou ali sentado com os seus olhos duros fixos nela, vendo-a chorar, tão pétreo como as estátuas dos Sete no septo, lá em cima. Longos momentos se pas­saram, mas por fim todas as suas lágrimas secaram. Por essa altura tinha os olhos vermelhos e ardentes de chorar, e sentia-se prestes a desmaiar.

O Alto Pardal não estava satisfeito, porém.

— Esses são pecados comuns — disse. — A malvadez das viúvas é bem conhecida, e todas as mulheres são no fundo libertinas, dadas a usar as suas astúcias e beleza para impor aos homens a sua vontade. Não existe aí traição, desde que não vos tenhais afastado da vossa cama de casada en­quanto Sua Graça, o Rei Robert, ainda estava vivo.

— Nunca — sussurrou, tremendo. — Nunca, juro.

Ele não lhe prestou qualquer atenção.

— Há outras acusações contra Vossa Graça, crimes muito mais graves do que simples fornicações. Admitis que Sor Osney Kettleblack era vosso amante, e Sor Osney insiste que sufocou o meu antecessor às vossas ordens. Também insiste que prestou falso testemunho contra a Rainha Margaery e as primas, contando histórias de fornicações, adultério e alta traição, de novo às vossas ordens.

— Não — disse Cersei. — Não é verdade. Amo Margaery como ama­ria uma filha. E o resto... eu queixei-me do Alto Septão, admito. Era criatura de Tyrion, fraco e corrupto, uma mancha na nossa Fé Sagrada, Vossa Alta Santidade sabe disso tão bem como eu. Pode ser que Osney tenha pensado que a sua morte me agradaria. Se assim é, cabe-me parte da culpa... mas as­sassínio? Não. Disso estou inocente. Levai-me ao septo e apresentar-me-ei ao julgamento do Pai, jurando ser verdade o que digo.

— A seu tempo — disse o Alto Septão. — Também estais acusada de conspirar para o assassínio do senhor vosso esposo, o nosso falecido e amado Rei Robert, o Primeiro do Seu Nome.

Lancei, pensou Cersei.

— Robert foi morto por um javali. Será que agora dizem que eu sou uma troca-peles? Uma warg? Será que também sou acusada de matar Joffrey, o meu querido filho, o meu primogénito?

— Não. Só o vosso esposo. Negai-lo?

— Nego-o. Nego. Perante os deuses e os homens, nego.

Ele anuiu.

— Por último, e o pior de tudo, há quem diga que os vossos filhos não foram gerados pelo Rei Robert, que são bastardos nascidos de incesto e adultério.

— Quem diz isso é Stannis — disse imediatamente Cersei. — Uma mentira, uma mentira, uma manifesta mentira. Stannis deseja o Trono de Ferro para si, mas os filhos do irmão estão no caminho, portanto precisa de alegar que não são do irmão. Aquela carta nojenta... não há nem um grão de verdade nela. Nego-o.

O Alto Septão pousou ambas as mãos abertas na mesa e pôs-se em pé.

— Ótimo. O Lorde Stannis virou costas à verdade dos Sete para ado­rar um demónio vermelho, e não há lugar para a sua falsa fé nestes Sete Reinos.

Aquilo era quase animador. Cersei acenou com a cabeça.

— Ainda assim — prosseguiu Sua Alta Santidade — estas acusações são terríveis, e o reino tem de conhecer a verdade que contêm. Se Vossa Graça disse a verdade, um julgamento provará a vossa inocência.

Ainda um julgamento.

— Eu confessei...

— ... certos pecados, sim. Outros negais. O vosso julgamento sepa­rará as verdades das falsidades. Pedirei aos Sete para perdoarem os peca­dos que confessastes, e rezarei para que sejais declarada inocente das outras acusações.

Cersei pôs-se lentamente em pé.

— Vergo-me perante a sabedoria de Sua Alta Santidade — disse — mas se puder suplicar apenas uma gota da misericórdia da Mãe, eu... pas­sou-se tanto tempo desde a última vez que vi o meu filho, por favor...

Os olhos do velho eram lascas de pederneira.

— Não seria apropriado permitir a vossa presença perto do rei até ficardes limpa de toda a vossa malvadeza. Contudo, destes o primeiro passo no caminho de regresso à honradez, e à luz disso autorizar-vos-ei a receber outras visitas. Uma por dia.

A rainha recomeçou a chorar. Desta vez as lágrimas eram verdadei­ras.

— A vossa bondade é imensa. Obrigada.

— A Mãe é misericordiosa. É a ela que deveis agradecer.

Moelle e Scolera estavam à espera para a levar de volta à sua cela de torre. Unella seguiu logo atrás delas.

— Estivemos todas a rezar por Vossa Graça — disse a Septã Moelle enquanto subiam.

— Sim — ecoou a Septã Scolera — e deveis sentir-vos agora tão mais leve, limpa e inocente como uma donzela na manhã do casamento.

Fodi Jaime na manhã do meu casamento, recordou a rainha.

— Sinto — disse — sinto-me renascida, como se um furúnculo infectado tivesse sido lancetado e agora pudesse finalmente começar a sarar. Quase seria capaz de voar. — Imaginou como seria bom dar uma cotove­lada na cara da Septã Scolera e atirá-la à cambalhota pela escada em espiral abaixo. Se os deuses fossem bons, a velha puta enrugada talvez chocasse com a Septã Unella, levando-a para baixo consigo.

— É bom ver-vos de novo a sorrir — disse Scolera.

— Sua Alta Santidade disse que eu podia ter visitas?

— Disse — disse a Septã Unella. — Se Vossa Graça nos disser quem deseja ver, mandar-lhes-emos dizer.

Jaime, preciso de Jaime. Mas se o seu gémeo estava na cidade porque não teria vindo ter com ela? Podia ser mais sensato manter Jaime em sus­penso até ter uma ideia mais concreta sobre o que estava a acontecer para lá das paredes do Grande Septo de Baelor.

— O meu tio — disse. — Sor Kevan Lannister, irmão do meu pai. Está na cidade?

— Está — disse a Septã Unella. — O Senhor Regente estabeleceu re­sidência na Fortaleza Vermelha. Mandá-lo-emos chamar imediatamente.

— Obrigada — disse Cersei, pensando: com que então Senhor Regen­te? Não podia fingir estar surpreendida.

Um coração humilde e contrito mostrou trazer benefícios que ultra­passavam a limpeza dos pecados da alma. Nessa noite a rainha foi transfe­rida para uma cela maior, dois andares mais abaixo, com uma janela por onde podia olhar e mantas quentes e suaves para a cama. E quando chegou a altura de jantar, em vez de pão duro e papas de aveia, foi-lhe servido capão assado, uma tigela de verduras frescas salpicadas com nozes esmagadas, e um monte de puré de nabo a nadar em manteiga. Nessa noite meteu-se na cama de barriga cheia pela primeira vez desde que fora aprisionada, e dor­miu sem ser incomodada durante toda a noite negra.

Na manhã seguinte, com a alvorada, chegou o tio.

Cersei ainda estava a comer o pequeno-almoço quando a porta se abriu e Sor Kevan Lannister entrou.

— Deixai-nos — disse ele às carcereiras. A Septã Moelle enxotou Sco- lera e Moelle para fora e fechou a porta atrás delas. A rainha pôs-se em pé.

Sor Kevan parecia mais velho do que da última vez que o vira. Era um homem grande, largo de ombros e de cintura, com uma barba loura corta­da curta que seguia a linha do pesado maxilar, e um cabelo louro cortado curto que estava em plena retirada da sua testa. Um pesado manto de lã, tingido de carmesim, estava preso ao seu ombro com um broche dourado com a forma de uma cabeça de leão.

— Obrigada por terdes vindo — disse a rainha.

O tio franziu o sobrolho.

— Devíeis sentar-vos. Há coisas que tenho de vos dizer...

Cersei não queria sentar-se.

— Continuais zangado comigo. Ouço-o na vossa voz. Perdoai-me, tio. Foi errado da minha parte atirar-vos o vinho, mas...

— Achais que me importo com uma taça de vinho? Lancei é meu filho, Cersei. Vosso sobrinho. Se estou zangado convosco, a razão é essa. Devíeis ter cuidado dele, devíeis tê-lo guiado, devíeis ter-lhe arranjado uma rapariga promissora de boas famílias. Em vez disso...

— Eu sei. Eu sei. — Lancei desejava-me mais do que alguma vez o desejei a ele. E ainda deseja, aposto. — Estava sozinha, fraca. Por favor. Tio. Oh, tio. E tão bom ver a vossa cara, a vossa querida, querida cara. Fiz coisas malignas, bem sei, mas não conseguia suportar que me odiás­seis. — Atirou os braços em volta dele, beijou-o na cara. — Perdoai-me. Perdoai-me.

Sor Kevan aguentou o abraço durante alguns segundos antes de fi­nalmente erguer os braços para lhe responder. O seu abraço foi curto e de­sajeitado.

— Basta — disse, ainda com a voz monocórdica e fria. — Estais per­doada. Agora sentai-vos. Trago notícias duras, Cersei.

As palavras dele assustaram-na.

— Aconteceu alguma coisa a Tommen? Por favor, não. Tenho tido tanto medo pelo meu filho. Ninguém me quer dizer nada. Por favor, di- zei-me que Tommen está bem.

— Sua Graça está bem. Pergunta por vós com frequência. — Sor Ke­van pôs-lhe as mãos nos ombros, segurou-a à distância de um braço.

— Então é Jaime? É Jaime?

— Não. Jaime ainda está nas terras fluviais, algures.

— Algures? — Cersei não gostou de como aquilo soava.

— Tomou Corvarbor e aceitou a rendição do Lorde Blackwood — disse o tio — mas no caminho de regresso a Correrrio abandonou o séquito e desapareceu com uma mulher.

— Uma mulher? — Cersei ficou a fitá-lo, sem compreender. — Que mulher? Porquê? Para onde foram?

— Ninguém sabe. Não tivemos mais notícias dele. A mulher pode ter sido a filha da Estrela da Tarde, a Senhora Brienne.

Ela. A rainha lembrava-se da Donzela de Tarth, uma coisa enorme, feia e desajeitada que se vestia com cota de malha masculina. Jaime nunca me abandonaria por uma tal criatura. O meu corvo não lhe chegou, caso contrário teria vindo.

— Recebemos relatórios sobre mercenários a desembarcar por todo o sul — estava Sor Kevan a dizer. — Em Tarth, nos Degraus, no Cabo da Fúria... muito gostaria eu de saber onde Stannis foi encontrar dinheiro para contratar uma companhia livre. Não tenho força para lidar com eles, aqui não. Mace Tyrell tem, mas recusa-se a mexer-se até que este assunto com a filha fique resolvido.

Um carrasco resolveria Margaery bem depressa. Cersei não se impor­tava nem um pouco com Stannis e os seus mercenários. Os Outros que os carreguem a eles e aos Tyrell. Eles que se massacrem uns aos outros, o reino só beneficiará.

— Por favor, tio, tirai-me daqui.

— Como? Pela força das armas? — Sor Kevan dirigiu-se à janela e olhou para fora, franzindo o sobrolho. — Teria de transformar este lugar sa­grado num matadouro. E não tenho homens suficientes. A maior parte das nossas forças estava em Correrrio com o vosso irmão. Não tive tempo para recrutar uma nova hoste. — Voltou-se para encará-la. — Falei com Sua Alta Santidade. Ele não vos libertará até terdes expiado os vossos pecados.

— Eu confessei.

— O que eu disse foi expiado. Perante a cidade. Uma caminhada...

— Não. — Sabia o que o tio se preparava para dizer, e não queria ouvi-lo. — Nunca. Dizei-lhe isso, se voltardes a conversar. Eu sou uma rai­nha, não uma rameira das docas.

— Nenhum mal vos acontecerá. Ninguém irá tocar...

Não — disse ela, num tom mais penetrante. — Preteria morrer.

Sor Kevan manteve-se impassível.

— Se é esse o vosso desejo, talvez o vejais satisfeito em breve. Sua Alta Santidade está decidido a que sejais julgada por regicídio, deicídio, incesto e alta traição.

— Deicídio? — Cersei quase se riu. — Quando foi que matei um

deus?

— O Alto Septão fala pelos Sete aqui na terra. Se o atacardes estais a atacar os próprios deuses. — O tio ergueu uma mão antes de ela ter tempo de protestar. — De nada serve falar dessas coisas. Aqui não. O momento para tudo isso é no julgamento. — Olhou a cela em volta. A expressão no seu rosto era pura eloquência.

Alguém está á escuta. Mesmo ali, mesmo naquele momento, não se atrevia a falar livremente. Respirou fundo.

— Quem irá julgar-me?

— A Fé — disse o tio — a menos que insistais num julgamento por batalha. Nesse caso tendes de ser defendida por um cavaleiro da Guarda Real. Seja qual for o desenlace, o vosso governo terminou. Eu servirei como regente de Tommen até ele ser um homem feito. Mace Tyrell foi nomea­do Mão do Rei. O Grande Meistre Pycelle e Sor Harys Swyft continuarão como dantes, mas Paxter Redwyne é agora senhor almirante e Randyll Tarly assumiu os deveres de magistrado.

Vassalos dos Tyrell, os dois. 'Iodo o governo do reino estava a ser en­tregue aos seus inimigos, amigos e parentes da Rainha Margaery.

— Margaery também está acusada. Ela e aquelas suas primas. Como foi que os pardais a libertaram mas a mim não?

— Randyll Tarly insistiu. Ele foi o primeiro a chegar a Porto Real quando a tempestade rebentou, e trouxe consigo o seu exército. As rapari­gas Tyrell serão julgadas na mesma, mas o caso contra elas é fraco, Sua Alta Santidade admite-o. Todos os homens identificados como amantes da rai­nha negaram a acusação ou desdisseram-se, exceto o vosso cantor mutila­do, que parece estar meio louco. Portanto o Alto Septão deixou as raparigas à responsabilidade de Tarly, e o Lorde Randyll prestou o juramento sagrado de as apresentar a julgamento quando o momento chegar.

— E os acusadores dela? — perguntou a rainha. — Quem os tem em seu poder?

— Osney Kettleblack e o Bardo Azul estão aqui, por baixo do sep­to. Os irmãos Redwyne foram declarados inocentes, e Hamish, o Harpista, morreu. Os outros estão nas masmorras sob a Fortaleza Vermelha, a cargo do vosso homem, Qyburn.

Qyburn, pensou Cersei. Isso era bom, era um cordelinho, pelo me­nos, a que se podia agarrar. O Lorde Qyburn tinha-os em seu poder, e o Lorde Qyburn podia fazer maravilhas. E horrores. Ele também pode fazer horrores.

— Há mais, pior. Não vos ides sentar?

— Sentar? — Cersei abanou a cabeça. O que podia ser pior? Ela ia ser julgada por alta traição, enquanto a rainhazinha e as primas se escapavam livres como passarinhos. — Dizei-me. O que é?

— Myrcella. Recebemos graves notícias de Dome.

Tyrion — disse de imediato. Fora Tyrion a mandar a sua filhinha para Dorne, e Cersei enviara Sor Balon Swann para a trazer para casa. To­dos os dorneses eram serpentes, e os Martell eram os piores de todos. A Ví­bora Vermelha até tentara defender o Duende, chegara mesmo a um milí­metro de uma vitória que teria permitido que o anão escapasse à culpa pelo assassínio de Joffrey. — É ele, ele tem estado este tempo todo em Dorne, e agora capturou a minha filha.

Sor Kevan dirigiu-lhe outra carranca.

— Myrcella foi atacada por um cavaleiro dornês chamado Gerold Dayne. Está viva, mas ferida. Ele golpeou-lhe a cara, ela... lamento... ela perdeu uma orelha.

— Uma orelha. — Cersei fitou-o, horrorizada. Era só uma criança, a minha preciosa princesa. E era tão linda. — Ele cortou-lhe uma orelha. E o Príncipe Doran e os seus cavaleiros dorneses, onde estão? Não consegui­ram defender uma rapariguinha? Onde está Arys Oakheart?

— Foi morto, defendendo-a. Dayne abateu-o, segundo se diz.

A rainha lembrou-se de que a Espada da Manhã fora um Dayne, mas estava há muito morto. Quem era aquele Sor Gerold, e por que motivo de­sejaria ele fazer mal à sua filha? Não conseguia tirar daquilo um sentido, a menos que...

— Tyrion perdeu metade do nariz na Batalha da Água Negra. Gol­pear-lhe a cara, cortar uma orelha... os porcos dedinhos do Duende estão aqui por toda a parte.

— O Príncipe Doran nada diz sobre o vosso irmão. E Balon Swann escreve que Myrcella atribui tudo àquele Gerold Dayne. Chamam-lhe Es­trela Negra.

Cersei soltou uma gargalhada amarga.

— Chamem-lhe o que lhe chamarem, é pau-mandado do meu ir­mão. Tyrion tem amigos entre os dorneses. O Duende planeou isto desde o início. Foi Tyrion quem prometeu Myrcella ao Príncipe Trystane. Agora vejo porquê.

— Vedes Tyrion em cada sombra.

— Ele é uma criatura das sombras. Matou Joffrey. Matou o pai. Julgá­veis que pararia por aí? Eu temi que o Duende continuasse em Porto Real, a planear maldades contra Tommen, mas em vez disso deve ter ido para Dorne para matar primeiro Myrcella. — Cersei calcorreou toda a cela. — Tenho de estar com Tommen. Aqueles cavaleiros da Guarda Real são tão inúteis como mamilos numa placa de peito. — Virou-se para o tio. — Sor Arys foi morto, dizeis.

— Pelas mãos do tal Estrela Negra, sim.

— Morto, ele está morto, tendes a certeza disso?

— Foi o que me foi dito.

— Então há um lugar vago na Guarda Real. Tem de ser preenchido de imediato. Tommen tem de ser protegido.

— O Lorde Tarly está a elaborar uma lista de cavaleiros valorosos para pôr à consideração do vosso irmão, mas até que Jaime reapareça...

— O rei pode dar um manto branco a um homem. Tommen é um bom rapaz. Se lhe disserdes quem nomear, ele nomeá-lo-á.

— E quem quereis que ele nomeie?

A rainha não tinha uma resposta pronta. O meu campeão precisará tanto cie um novo nome como de uma nova cara.

— Qyburn há de saber. Confiai nele a respeito disto. Vós e eu tivemos as nossas divergências, tio, mas, pelo sangue que partilhamos e pelo amor que tínheis pelo meu pai, para bem de Tommen e da sua pobre irmã mu­tilada, fazei o que vos peço. Ide falar com o Lorde Qyburn em meu nome, levai-lhe um manto branco e dizei-lhe que o momento chegou.

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