JON


— Eles que morram — disse a Rainha Selyse.

Era a resposta que Jon Snow esperara. Esta rainha nunca falha em desiludir. De algum modo, isso não atenuava o golpe.

— Vossa Graça — persistiu, obstinado. — Em Larduro há milhares a passar fome. Muitos são mulheres...

... e crianças, sim. Muito triste. — A rainha puxou a filha para mais perto de si e deu-lhe um beijo na bochecha. Na bochecha não desfigu­rada pela escamagris, não deixou Jon de reparar. — Temos pena dos peque­nos, claro, mas temos de ser sensatos. Não temos comida para eles, e são novos demais para ajudarem o rei meu esposo nas suas guerras. E melhor que renasçam na luz.

Aquela era apenas uma forma mais suave de dizer eles que mor­ram.

O aposento estava repleto de gente. A Princesa Shireen estava em pé ao lado da cadeira da mãe, com o Cara-Malhada sentado de pernas cruza­das a seus pés. Por trás da rainha erguia-se Sor Axell Florent. Melisandre de Asshai encontrava-se mais perto do fogo, com o rubi que trazia à garganta a pulsar de cada vez que respirava. Também a mulher vermelha tinha os seus servidores; o escudeiro Devan Seaworth, e dois dos guardas que o rei lhe deixara.

Os protetores da Rainha Selyse encontravam-se ao longo das paredes, brilhantes cavaleiros todos enfileirados: Sor Malegorn, Sor Benethon, Sor Narbert, Sor Patrek, Sor Dorden, Sor Brus. Com tantos selvagens sedentos de sangue a infestar Castelo Negro, Selyse mantinha os defensores a si aju­ramentados em seu redor, de noite e de dia. Tormund Tenor dos Gigantes rugira quando lho tinham dito.

— Medo de ser levada, é? Espero que nunca lhe tenhas dito como o meu membro é grande, Jon Snow, isso havia de assustar qualquer mulher. Sempre quis uma com bigode. — Depois rira e rira.

Agora não deve estar a rir.

Já desperdiçara ali tempo suficiente.

— Lamento ter incomodado Vossa Graça. A Patrulha da Noite trata­rá deste assunto.

As narinas da rainha dilataram-se.

— Continuais a tencionar cavalgar até Larduro. Vejo-o na vossa cara.

Eles que morram, disse eu, mas vós quereis persistir nesta loucura insensata. Não o negueis.

— Tenho de fazer o que achar melhor. Com o devido respeito, Vossa Graça, mas a Muralha é minha, e esta decisão também.

— É — concedeu Selyse — e respondereis por ela quando o rei re­gressar. E por outras decisões que tomastes, temo bem. Mas vejo que estais surdo ao bom senso. Fazei o que tiverdes de fazer.

Sor Malegorn interveio.

— Lorde Snow, quem liderará essa patrulha?

— Estais a oferecer-vos, sor?

— Pareço assim tão insensato?

O Cara-Malhada pôs-se em pé de um salto.

— Eu lidero-a! — As campainhas ressoaram alegremente. — Mar­charemos para o mar e outra vez para terra. Debaixo das ondas monta­remos cavalos-marinhos e sereias soprarão em conchas para anunciar a nossa chegada, oh, oh, oh.

Todos se riram. Até a Rainha Selyse se permitiu um fino sorriso. Jon estava menos divertido.

— Não pedirei aos meus homens para fazerem o que eu próprio não faria. Pretendo ser eu a liderar a patrulha.

— Tão valente da vossa parte — disse a rainha. — Aprovamos. De­pois um bardo qualquer fará uma canção entusiasmante sobre vós, sem dúvida, e teremos um senhor comandante mais prudente. — Bebeu um gole de vinho. — Falemos de outros assuntos. Axell, trazei o rei selvagem, se tiverdes a bondade.

— Imediatamente, Vossa Graça. — Sor Axell saiu por uma porta e regressou um momento mais tarde com Gerrick Sangue-de-rei. — Gerrick da Casa Barbavermelha — anunciou — Rei dos Selvagens.

Gerrick Sangue-de-rei era um homem alto, de pernas longas e om­bros largos. A rainha vestira-o com alguma da antiga roupa do rei, apa­rentemente. Penteado e arranjado, vestido com veludos verdes e uma meia capa de arminho, com o longo cabelo ruivo acabado de lavar e a barba fogosa aparada, o selvagem tinha todo o aspeto de um senhor do sul. Podia entrar na sala do trono em Porto Real, e ninguém pestanejaria, pensou Jon.

— Gerrick é o verdadeiro e legítimo rei dos selvagens — disse a rai­nha — e descende em linha masculina direta, sem interrupções, do seu grande rei Raymun Barbavermelha, ao passo que o usurpador Mance Rayder era filho de uma plebeia qualquer e de um dos vossos irmãos negros.

Não, podia Jon ter dito, Gerrick descende de um irmão mais novo de Raymun Barbavermelha. Para o povo livre isso contava mais ou menos tan­to como ser descendente do cavalo de Raymun Barbavermelha. Eles não sabem nada, Ygritte. E pior, não querem aprender.

— Gerrick concordou amavelmente conceder a mão da sua filha mais velha ao meu querido Axell, para serem unidos pelo Senhor da Luz em sagradas núpcias — disse a Rainha Selyse. — As suas outras filhas casa­rão ao mesmo tempo... a segunda filha com Sor Brus Buckler e a mais nova com Sor Malegorn de Pegorrubro.

— Sores. — Jon inclinou a cabeça na direção dos cavaleiros mencio­nados. — Que encontreis felicidade com as vossas noivas.

— Debaixo do mar, os homens casam com peixes. — O Cara-Malha­da executou um pequeno passo de dança, fazendo ressoar as campainhas. — Pois é, pois é, pois é.

A Rainha Selyse voltou a soltar uma fungadela.

— Quatro casamentos podem ser celebrados tão simplesmente como três. Já passa da altura de assentar a tal mulher, Val, Lorde Snow. Decidi que ela casará com o meu bom e leal cavaleiro, Sor Patrek da Montanha Real.

— Val foi informada, Vossa Graça? — perguntou Jon. — Entre o povo livre, quando um homem deseja uma mulher, rapta-a, e prova assim a sua força, astúcia e coragem. O pretendente arrisca um violento espancamento se for apanhado pela família da mulher e, pior do que isso, se ela própria o achar indigno.

— Um costume selvagem — disse Axell Florent.

Sor Patrek limitou-se a um risinho.

— Nunca nenhum homem teve motivo para pôr em causa a minha coragem. Nunca nenhuma mulher o terá.

A Rainha Selyse fez beicinho.

— Lorde Snow, visto que a Senhora Val não está familiarizada com os nossos costumes, tende a bondade de ma enviar para que eu possa instruí-la quanto aos deveres de uma senhora nobre para com o senhor seu esposo.

E eu sei que isso correrá magnificamente. Jon perguntou a si próprio se a rainha estaria tão ansiosa para ter Val casada com um dos seus cavaleiros se conhecesse os sentimentos que ela nutria para com a Princesa Shireen.

— Como quiserdes — disse — se bem que, se puder falar livremen­te...

— Não, penso que não. Podeis retirar-vos.

Jon Snow dobrou o joelho, inclinou a cabeça, retirou-se.

Desceu os degraus dois a dois, dirigindo acenos aos guardas da rai­nha enquanto descia. Sua Graça colocara homens em todos os patamares, para a manterem a salvo de selvagens homicidas. A meio da descida, uma voz chamou-o vinda de cima.

— Jon Snow.

Jon virou-se.

— Senhora Melisandre.

— Temos de conversar.

— Ah temos? — Acho que não. — Senhora, tenho deveres a cumprir.

— É desses deveres que quero falar. — Ela continuou a descer, com a bainha das saias escarlates a deslizar sobre os degraus. Quase parecia flutu­ar. — Onde está o vosso lobo gigante?

— A dormir nos meus aposentos. Sua Graça não autoriza o Fantasma na sua presença. Afirma que assusta a princesa. E enquanto Borroq e o ja­vali andarem por aí, não me atrevo a libertá-lo. — O troca-peles iria acom­panhar Soren Quebrascudos para Portapedra, assim que as carroças que ti­nham levado o clã do Esfolafocas para Guardaverde regressassem. Até essa altura, Borroq instalara-se numa das antigas sepulturas junto do cemitério do castelo. Parecia gostar mais da companhia de homens há muito mortos do que da dos vivos, e o javali parecia feliz por fossar entre as tumbas, bem longe dos outros animais. — Aquela coisa é do tamanho de um touro, com presas longas como espadas. O Fantasma atacá-lo-ia se estivesse solto e um, ou ambos, podia não sobreviver ao encontro.

— Borroq é a menor das vossas preocupações. Aquela patrulha...

— Uma palavra vossa poderia ter feito a rainha mudar de ideias.

— Selyse tem razão a este respeito, Lorde Snow. Eles que morram. Não podeis salvá-los. Os vossos navios estão perdidos...

— Restam seis. Mais de metade da frota.

— Os vossos navios estão perdidos. Todos. Nem um só homem re­gressará. Vi-o nos meus fogos.

— Os vossos fogos já foram apanhados em mentiras.

— Eu cometi erros, já o admiti, mas...

— Uma rapariga cinzenta num cavalo moribundo. Punhais no es­curo. Um príncipe prometido, nascido entre fumo e sal. Parece-me que nada haveis cometido além de erros, senhora. Onde está Stannis? E o Lorigão-de-Chocalho e as suas esposas de lanças? Onde está a minha irmã?

— Todas as vossas perguntas serão respondidas. Olhai para os céus, Lorde Snow. E quando obtiverdes as vossas respostas, mandai-me chamar. O inverno já quase chegou. Eu sou a vossa única esperança.

— Uma esperança de tolo. — Jon virou-se e deixou-a só.

O Couros percorria o pátio lá fora.

— Toregg regressou — relatou quando Jon saiu. — O pai instalou a sua gente em Escudorroble, e regressará esta tarde com oitenta combaten­tes. Que tinha a rainha barbuda a dizer?

— Sua Graça não pode fornecer ajuda.

— Demasiado ocupada a arrancar pelos do queixo, é? — O Couros escarrou. — Não interessa. Os homens de Tormund e os nossos serão su­ficientes.

Suficientes para nos levar até lá, talvez. Era a viagem de regresso que preocupava Jon Snow. Ao voltar para casa seriam abrandados por milhares de membros do povo livre, muitos dos quais doentes e esfomeados. Um rio de humanidade, avançando mais devagar do que um rio de gelo. Isso deixá-los-ia vulneráveis. Coisas mortas na floresta. Coisas mortas na água.

— Quantos homens são suficientes? — perguntou ao Couros. — Cem? Duzentos? Quinhentos? Mil? — Deverei levar mais homens, ou me­nos? Uma patrulha mais pequena chegaria mais cedo a Larduro... mas de que serviam espadas sem comida? A Mãe Toupeira e a sua gente já tinham chegado ao ponto de comer os próprios mortos. Para os alimentar teria de levar carros e carroças, e animais de tração para os puxar; cavalos, bois, cães. Em vez de voar pela floresta, seriam condenados a rastejar. — Ainda há muito a decidir. Passa palavra. Quero todos os líderes no Salão dos Es­cudos quando começar o turno da noite. Tormund já deverá ter regressado por essa hora. Onde posso encontrar Toregg?

— Com o monstrinho, provavelmente. Ouvi dizer que engraçou com uma das amas-de-leite.

Engraçou com Val. A irmã era uma rainha, porque não ela? Tormund pensara em tempos tornar-se Rei-para-lá-da-Muralha, antes de Mance o ter derrotado. Toregg, o Alto, podia perfeitamente estar a sonhar o mesmo sonho. Antes ele do que Gerrick Sangue-de-rei.

— Deixa-os estar — disse Jon. — Posso falar mais tarde com Toregg. — Olhou para cima, para trás da Torre do Rei. A Muralha estava de um branco mortiço, o céu acima dela mais branco ainda. Um céu de neve. — Reza para não termos outra tempestade.

À porta do amieiro, Mully e o Pulga tremiam, de guarda.

— Não devíeis estar lá dentro, fora deste vento? — perguntou Jon.

— Isso era bom, senhor — disse Fulk, o Pulga — mas hoje o vosso lobo não está com disposição para companhia.

Mully concordou.

— Tentou dar-me uma dentada, tentou pois.

— O Fantasma? — Jon estava chocado.

— A menos que vossa senhoria tenha outro lobo branco, sim. Nunca o vi assim, senhor. Todo selvagem, quero eu dizer.

Não se enganava, como Jon descobriu pessoalmente quando atraves­sou as portas. O grande lobo gigante branco não parava quieto. Andava de Uma extremidade do amieiro à outra, passando pela velha forja, e regressa­va pelo mesmo caminho.

— Calma, Fantasma — chamou Jon. — Para baixo. Senta-te, Fan­tasma. Para baixo. — Mas quando fez tenção de lhe tocar, o lobo eriçou-se todo e mostrou os dentes. É aquele maldito javali. Até aqui o Fantasma con­segue cheirar o fedor que deita.

O corvo de Mormont também parecia agitado.

Snow — não parava a ave de gritar. — Snow, snow, snow. — J0n enxotou-a, mandou o Cetim acender a lareira, e depois mandou-o chamar Bowen Marsh c Othell Yarwyck. — Traz também um jarro de vinho com especiarias.

— Três copos, senhor?

— Seis. Mully e o Pulga parecem estar a precisar de qualquer coisa quente. E tu também vais precisar.

Quando o Cetim saiu, Jon sentou-se e deu outra olhadela aos mapas das terras a norte da Muralha. O caminho mais rápido para Larduro seguia ao longo da costa... a partir de Atalaialeste. A floresta era menos densa per­to do mar, o terreno era principalmente composto por planuras, colinas on­duladas e pântanos salgados. E quando as tempestades outonais chegavam aos uivos, a costa era mais fustigada por saraiva e chuva gelada do que por neve. Os gigantes estão em Atalaialeste, e o Couros diz que alguns ajudarão. A partir de Castelo Negro o caminho era mais difícil, mesmo através do coração da floresta assombrada. Se a neve tem esta profundidade junto da Muralha, quão pior estará lá em cima?

Marsh entrou a fungar, Yarwyck severo.

— Outra tempestade — anunciou o Primeiro Construtor. — Como vamos nós trabalhar com este tempo? Preciso de mais construtores.

— Usai o povo livre — disse Jon.

Yarwyck abanou a cabeça.

— Esses não valem os sarilhos que causam. São desleixados, des­cuidados, preguiçosos... há alguns bons carpinteiros aqui e ali, não vou negá-lo, mas quase não há um pedreiro entre eles, e nem sinal de ferreiros. Costas fortes, talvez, mas não fazem o que lhes dizem para fazer. E nós com todas aquelas ruínas para voltar a transformar em fortes. Não pode ser feito, senhor, estou a dizer-vos a verdade. Não pode ser feito.

— Será feito — disse Jon — caso contrário, eles viverão em ruínas. — Um lorde precisava de homens à sua volta com quem pudesse contar para lhe fornecerem conselhos honestos. Marsh e Yarwyck não eram nenhuns lambe-botas, e ainda bem... mas raramente davam alguma ajuda. Era cada vez mais frequente dar por si a saber o que diriam antes de lhes perguntar.

Especialmente no que tocava ao povo livre, tema em que a sua desa­provação chegava aos ossos. Quando Jon povoara Portapedra com Soren Quebrascudos, Yarwyck protestara que o castelo era demasiado isolado. Como podiam saber que travessuras andava Soren a fazer naquelas co­linas? Quando atribuíra Escudorroble a Tormund Terror dos Gigantes e portão da Rainha a Morna Máscara Branca, Marsh fizera notar que Castelo Negro teria agora inimigos de ambos os lados, os quais podiam facilmente isolá-los do resto da Muralha. E quanto a Borroq, Òthell Yarwyck afirmava nue os bosques a norte de Portapedra estavam cheios de javalis selvagens. Quem poderia afirmar que o troca-peles não arranjaria o seu próprio exér­cito de porcos?

Colina de Geadalva e Portão da Geada ainda não tinham guarnições, e Jon perguntara-lhes o que achavam sobre quais dos restantes chefes e se­nhores da guerra selvagens eram mais adequados para os defender.

— Temos Brogg, Gavin, o Mercador, o Grande Morsa... O Howd Vadio é solitário, segundo Tormund, mas ainda há Harle, o Caçador, Harle, o Belo, o Doss Cego... Ygon Paivelho comanda um grupo de seguidores, mas a maioria são os seus próprios filhos e netos. Tem dezoito mulheres, metade delas raptadas em incursões. Quais destes...

— Nenhum — dissera Bowen Marsh. — Conheço todos esses ho­mens pelos seus feitos. Devíamos estar a tirar-lhes as medidas para a forca, não a entregar-lhes os nossos castelos.

— Pois — concordara Othell Yarwyck. — Mau, pior e horrendo são as opções de um pedinte. Mais valia que o senhor nos apresentasse uma alcateia de lobos e nos perguntasse qual deles gostaríamos que nos rasgasse a garganta.

Voltou a ser a mesma coisa com Larduro. O Cetim serviu enquanto Jon lhes contava a audiência com a rainha. Marsh ouviu atentamente, igno­rando o vinho com especiarias, enquanto Yawyck bebia um copo e depois outro. Mas assim que Jon terminou, o Senhor Intendente disse:

— Sua Graça é sensata. Eles que morram.

Jon recostou-se na cadeira.

— E esse o único conselho que tendes para dar, senhor? Tormund vai trazer oitenta homens. Quantos devemos nós enviar? Devemos chamar os gigantes? As esposas de lanças em Monte Longo? Se tivermos mulheres conosco, isso poderá pôr as pessoas da Mãe Toupeira à vontade.

— Então enviai mulheres. Enviai gigantes. Enviai bebês de peito. E isso o que o senhor deseja ouvir? — Bowen Marsh esfregou a cicatriz que conquistara na Ponte dos Crânios. — Mandai-os a todos. Quanto mais per­dermos, menos bocas teremos para alimentar.

Yarwyck não foi mais prestável.

— Se os selvagens em Larduro precisam de ser salvos, que os selvagens daqui os vão salvar. Tormund conhece o caminho para Larduro. Se Creditarmos no que diz, pode salvá-los a todos pessoalmente com o seu enorme membro.

Isto foi inútil, pensou Jon. Inútil, infrutífero, imprestável.

— Obrigado pelos vossos conselhos, senhores.

O Cetim ajudou-os a vestir os mantos. Quando passaram pelo armeiro, o Fantasma farejou-os, de cauda erguida e pelo eriçado. Os meus ir­mãos. A Patrulha da Noite precisava de líderes com a sabedoria do Meistre Aemon, a instrução de Samwell Tarly, a coragem de Qhorin Meia-Mão, a obstinada força do Velho Urso, a compaixão de Donal Noye. O que tinha em vez disso era aqueles homens.

A neve caía pesadamente lá fora.

— O vento sopra do sul — observou Yarwyck. — Está a soprar a neve contra a Muralha. Vedes?

Tinha razão. Jon viu que a escada em ziguezague estava enterrada quase até ao primeiro patamar, e as portas de madeira das celas de gelo e dos armazéns tinham desaparecido sob uma muralha branca.

— Quantos homens temos nas celas de gelo? — perguntou a Bowen Marsh.

— Quatro vivos. Dois mortos.

Os cadáveres. Jon quase os esquecera. Esperara aprender alguma coisa com os corpos que tinham trazido do bosque de represeiros, mas os mortos tinham permanecido teimosamente mortos.

— lemos de desenterrar essas celas.

— Dez intendentes e dez pás devem dar conta do recado — disse Marsh.

— Usai também o Wun Wun.

— Às vossas ordens.

Dez intendentes e um gigante tornaram irrelevantes os montes de neve, mas mesmo depois de as portas estarem de novo a descoberto, Jon continuou insatisfeito.

— Aquelas celas estarão outra vez enterradas quando a manhã che­gar. É melhor mudarmos os prisioneiros antes que asfixiem.

— O Karstark tamem, senhor? — perguntou Fulk, o Pulga. — Não podemos simplesmente deixar esse a tremer até à primavera?

— Bem gostaria de poder. — Cregan Karstark arranjara o hábito de uivar noite dentro, e de atirar fezes congeladas a qualquer um que fosse levar-lhe comida. Isso não o levara a formar amizades entre os guardas. — Leva-o para a Torre do Senhor Comandante. A subcave deve aguentá-lo. — Apesar de ter ruído parcialmente, a antiga habitação do Velho Urso seria mais quente do que as celas de gelo. As subcaves estavam basicamente in­tactas.

Cregan atirou pontapés aos guardas quando eles atravessaram a por­ta, contorceu-se e empurrou-os quando o agarraram, até tentou mordê-los.

Mas o frio enfraquecera-o, e os homens de Jon eram maiores, mais jovens e mais fortes. Carregaram com ele para fora, ainda a debater-se, e arrasta­ram-no pela neve que lhes chegava às coxas até ao seu novo lar.

— Que quer o senhor comandante que façamos com os cadáveres? — perguntou Marsh depois dos vivos terem sido mudados.

— Deixai-os lá. — Se as tempestades os sepultassem não haveria qualquer problema. A seu tempo teriam de os queimar, sem dúvida, mas por enquanto estavam presos com correntes de ferro dentro das suas celas. Isso e estarem mortos devia bastar para mantê-los inofensivos.

Tormund Terror dos Gigantes escolheu na perfeição o momento cer­to para a sua chegada, aparecendo a trovejar com os seus guerreiros depois de ter terminado o trabalho. Só pareciam ter aparecido cinquenta, não os oitenta que Toregg prometera ao Couros, mas não era por acaso que se chamava Alto-Falante a Tormund. O selvagem chegou corado, a gritar por um corno de cerveja e por qualquer coisa quente para comer. Trazia gelo na barba e mais gelo cobria-lhe o bigode.

Alguém já falara de Gerrick Sangue-de-rei e do seu novo título ao Pu­nho de Trovão.

— Rei dos Selvagens? — rugiu Tormund. — Ha! Rei do Meu Rego Peludo cai-lhe melhor.

— Ele tem um aspeto régio — disse Jon.

— Tem um caralhinho vermelho para combinar com todo aquele cabelo vermelho, é isso que ele tem. Raymund Barbavermelha e os filhos morreram no Lago Longo, graças aos teus malditos Stark e ao Gigante Bê­bado. Mas o mano mais novo não. Alguma vez tiveste curiosidade de saber porque lhe chamaram Corvo que Arde? — A boca de Tormund abriu-se num sorriso desdentado. — Foi o primeiro a fugir da batalha. Depois fize­ram uma canção sobre isso. O cantor teve de arranjar uma rima para cobar­de, portanto... — Limpou o nariz. — Se os cavaleiros da tua rainha querem aquelas moças dele, que lhes façam bom proveito.

Moças — guinchou o corvo de Mormont. — Moças, moças.

Aquilo voltou a pôr Tormund à gargalhada.

— Ora ali 'tá um pássaro com juízo. Quanto queres por ele, Snow? Dei-te um filho, o mínimo que podias fazer era dar-me o sacana do pás­saro.

— Eu dava — disse Jon — mas o mais certo era que acabasses por comê-lo.

Tormund também respondeu àquilo com um rugido.

Comer — disse o corvo sombriamente, batendo as asas negras. — Grão? Grão? Grão?

— Temos de conversar sobre a patrulha — disse Jon. — Quero que

estejamos de acordo no Salão dos Escudos, temos de... — Interrompeu, quando Mully enfiou o nariz pela porta, com uma expressão sombria, p; anunciar que Clydas tinha trazido uma carta.

— Diz-lhe para a deixar contigo. Leio-a mais tarde.

— Como quiserdes, senhor, só que... Clydas não parece ele... é mais branco que cor-de-rosa, se me faço entender... e 'tá a tremer.

— Asas escuras, palavras escuras — resmungou Tormund. — Não é isso que vós, os ajoelhadores, dizeis?

— Também dizemos sangra um resfriado mas banqueteia uma febre — disse-lhe Jon. — Dizemos nunca bebas com dorneses quando a lua está cheia. Dizemos montes de coisas.

Mully acrescentou a sua achega.

— A minha velha avó andava sempre a dizer amigos de verão derre­tem como neves de verão, mas amigos de inverno são amigos para sempre.

— Acho que chega de sabedoria por agora — disse Jon Snow. — Manda entrar Clydas, se fizeres a bondade.

Mully não se enganara; o velho intendente estava a tremer, com a cara tão pálida como a neve, lá fora.

— Estou a ser tolo, senhor comandante, mas... esta carta assusta-me. Vedes isto?

Bastardo era a única palavra escrita no exterior do rolo. Nada de Lor­de Snow ou Jon Snow ou Senhor Comandante. Simplesmente Bastardo. E a carta estava selada com uma mancha de dura cera cor-de-rosa.

— Fizeste bem em vir logo — disse Jon. Tiveste razão em ficar assus­tado. Quebrou o selo, alisou o pergaminho, leu.

O teu falso rei está morto, bastardo. Ele e toda a sua hoste foram esmagados em sete dias de batalha. Tenho a espada mágica dele. Diz isso à rameira vermelha.

Os amigos do teu falso rei estão mortos. As suas cabeças estão nas muralhas de Winterfell. Vem vê-las, bastardo. O teu falso rei mentiu, e tu também. Disseste ao mundo que queimaste o Rei-para-lá-da-Muralha. Em vez disso, mandaste-o a Winterfell para me roubar a noiva.

Quero a minha noiva de volta. Se queres Mance Rayder de volta, vem buscá-lo. Tenho-o preso numa gaiola para todo o norte ver, pro­va das tuas mentiras. A gaiola é fria, mas fiz-lhe um manto quente com as peles das seis rameiras que vieram com ele para Winterfell.

Quero a minha noiva de volta. Quero a rainha do falso rei. Quero a filha e a bruxa vermelha. Quero essa tal princesa selvagem. Que­ro o seu principezinho, o bebê selvagem. E quero o meu Cheirete. Manda-mos, bastardo, e não te causarei problemas, nem a ti nem aos teus corvos pretos. Se os mantiveres longe de mim, hei de te ar­rancar o coração de bastardo e de o comer.

A carta estava assinada:

Ramsay Bolton, Legítimo Senhor de Winterfell.

— Snow? — disse Tormund Terror dos Gigantes. — 'Tás com um ar que parece que a cabeça ensanguentada do teu pai acabou a sair a rolar desse papel.

Jon Snow não respondeu de imediato.

— Mully, ajuda Clydas a voltar para os seus aposentos. A noite é es­cura, e os caminhos devem estar escorregadios com neve. Cetim, vai com eles. — Entregou a carta a Tormund Terror dos Gigantes. — Toma, vê por ti mesmo.

O selvagem deitou à carta um olhar duvidoso e devolveu-a logo.

— Tem mau ar... mas Tormund Punho de Trovão tinha melhores coisas para fazer do que aprender a pôr papéis a falar com ele. Nunca têm nada de bom para dizer, pois não?

— Raramente têm — admitiu Jon Snow. Asas escuras, palavras es­curas. Talvez houvesse mais verdade nesses sábios velhos ditados do que julgara. — Foi enviada por Ramsay Snow. Eu leio-te o que ele escreveu.

Quando terminou, Tormund assobiou.

— Ha. 'Tá fodido, e não há nada que enganar. Que foi aquilo acerca de Mance? Tem-no numa gaiola, é? Como, se cem homens viram a tua bruxa vermelha queimar o homem?

Esse foi o Lorigão de Chocalho, quase disse Jon. Foi feitiçaria. Ela cha­mou-lhe um encanto.

— Melisandre... ela disse olhai para os céus. — Pousou a carta. — Um corvo numa tempestade. Ela viu a vinda disto. — Quando obtiverdes as vos­sas respostas, mandai-me chamar.

— Pode ser tudo um odre de mentiras. — Tormund coçou-se sob a barba. — Se eu tivesse uma bela pena de ganso e um pote de tinta de meistre, podia escrever que o meu membro era tão comprido e grosso como o meu braço, mas isso não o fazia crescer.

— Ele tem a Luminífera. Fala de cabeças nas muralhas de Winterfell.

Sabe das esposas de lanças e sabe quantas são. — Sabe de Mance Rayder. Não. Há verdade aqui.

— Não vou dizer que te enganas. Que queres fazer, corvo?

Jon fletiu os dedos da mão da espada. A Patrulha da Noite não par­ticipa. Fechou o punho e voltou a abri-lo. ü que propões não é menos que traição. Pensou cm Robb, com flocos de neve a derreter no cabelo. Mata o rapaz e deixa que o homem nasça. Pensou em Bran a trepar a parede de uma torre, ágil como um macaco. No riso sem fôlego de Rickon. Em Sansa, a escovar a pelagem de Lady e a cantar sozinha. Não sabes nada, Jon Snow. Pensou em Arya, com o cabelo tão emaranhado como o ninho de uma ave. Fiz-lhe um manto quente com as peles das seis rameiras que vieram com ele para Winterfell... Quero a minha noiva de volta... Quero a minha noiva de volta... Quero a minha noiva de volta...

— Acho que é melhor mudarmos de planos — disse Jon Snow.

Conversaram durante quase duas horas.

O Cavalo e Rory tinham substituído Fulk e Mully à porta do armeiro com a mudança de turno.

— Comigo — disse-lhes Jon, quando o momento chegou. O Fantas­ma também os teria seguido, mas quando o lobo arrancou atrás deles Jon agarrou-o pelo cachaço e voltou a metê-lo à força no armeiro. Borroq podia contar-se entre os que estavam reunidos no Salão dos Escudos. A última coisa de que precisava naquele momento era que o seu lobo dilacerasse o javali do troca-peles.

O Salão dos Escudos era uma das partes mais antigas de Castelo Negro, um longo salão de banquetes cheio de correntes de ar e feito de pedra escura, com as vigas de carvalho enegrecidas pelo fumo de séculos. Quando a Patrulha da Noite fora muito maior, as suas paredes estavam decoradas com escudos de madeira vivamente coloridos. Então, como agora, quando um cavaleiro vestia o negro a tradição decretava que pu­sesse de lado as suas antigas armas e adotasse o escudo negro liso da ir­mandade. Os escudos assim postos de lado eram pendurados no Salão dos Escudos.

Centenas de cavaleiros queriam dizer centenas de escudos. Falcões e águias, dragões e grifos, sóis e veados, lobos e serpes, mantícoras, touros, árvores e flores, harpas, lanças, caranguejos e lulas gigantes, leões verme­lhos, leões dourados e leões axadrezados, corujas, carneiros, sereias e tri­tões, garanhões, estrelas, baldes e fivelas, homens esfolados e enforcados e a arder, machados, espadas, tartarugas, unicórnios, ursos, penas, aranhas, serpentes e escorpiões, e uma centena de outros símbolos heráldicos ti­nham adornado as paredes do Salão dos Escudos, pintados em mais cores do que qualquer arco-íris alguma vez terá sonhado.

Mas quando um cavaleiro morria, o seu escudo era despendurado, para poder ir com ele para a pira ou a sepultura e, ao longo dos anos e dos séculos, cada vez menos cavaleiros foram vestindo o negro. O dia chegara em que já não fazia sentido que os cavaleiros de Castelo Negro jantassem à parte. O Salão dos Escudos fora abandonado. Nos últimos cem anos fora usado só ocasionalmente. Como salão de jantar deixava muito a desejar; era escuro, sujo, cheio de correntes de ar e difícil de aquecer no inverno, ti­nha as caves infestadas de ratazanas e as enormes vigas de madeira estavam corroídas pelo caruncho e engrinaldadas de teias de aranha.

Mas era suficientemente grande e comprido para lá se sentarem du­zentos homens, e vez e meia esse número se se apertassem. Quando Jon e Tormund entraram, um som percorreu o salão, como vespas a agitarem-se num ninho. Os selvagens eram cinco vezes mais que os corvos, ajuizan­do pelo pouco negro que via. Restava menos de uma dúzia de escudos, tristes coisas cinzentas com tinta desbotada e longas rachas na madeira. Mas archotes novos ardiam em arandelas de ferro ao longo das paredes, e Jon ordenara que fossem trazidos bancos e mesas. Homens com assentos confortáveis sentiam-se inclinados a escutar, dissera-lhe um dia o Meistre Aemon; homens em pé ficavam mais inclinados a gritar.

Ao fundo do salão erguia-se uma plataforma pouco firme. Jon su­biu-a, com Tormund Terror dos Gigantes a seu lado, e ergueu as mãos pe­dindo silêncio. As vespas só zumbiram mais alto. Depois Tormund levou o corno de guerra as lábios e deu um sopro. O som encheu o salão, ecoando nas vigas por cima das suas cabeças. O silêncio caiu.

— Chamei-vos para fazermos planos para o auxílio a Larduro — co­meçou Jon Snow. — Milhares de membros do povo livre estão lá reunidos, encurralados e a passar fome, e recebemos relatos sobre coisas mortas na floresta. — À sua esquerda viu Marsh e Yarwyck. Othell estava rodeado pelos seus construtores, enquanto Bowen tinha Wick Palito, o Lew Mão Esquerda e o Alf de Lamágua a seu lado. À sua direita, Soren Quebrascudos sentava-se com os braços cruzados sobre o peito. Mais para trás, Jon viu Gavin, o Mercador, e Harle, o Belo, a conversar em murmúrios. Ygon Paivelho estava sentado entre as esposas, o Howd Vadio sozinho. Borroq estava encostado a uma parede num canto escuro. Misericordiosamente, não se via o seu javali em lado nenhum. — Os navios que enviei para trazer a Mãe Toupeira e a sua gente foram devastados por tempestades. Temos de enviar a ajuda que pudermos por terra, ou de os deixar morrer. — Jon viu que dois dos cavaleiros da Rainha Selyse também tinham vindo. Sor Narbert e Sor Benethon estavam em pé, perto da porta, ao fundo do salão. Mas o resto dos homens da rainha era conspícuo na sua ausência. — Tive a esperança de liderar pessoalmente a patrulha e de trazer tantos membros do povo li­vre quantos conseguissem sobreviver à viagem. — Um clarão vermelho ao fundo do salão chamou a atenção de Jon. A Senhora Melisandre chegara. — Mas descubro agora que não posso ir a Larduro. A patrulha será liderada por Tormund Terror dos Gigantes, que todos conheceis. Prometi-lhe tantos homens quantos aqueles de que precise.

E onde estarás tu, corvo? — trovejou Borroq. — Aqui escondido em Castelo Negro com o teu cão branco?

— Não. Eu parto para sul. — De seguida Jon leu-lhes a carta que Ramsay Snow escrevera.

O Salão dos Escudos enlouqueceu.

Todos os homens desataram aos gritos ao mesmo tempo. Puseram-se em pé aos saltos, sacudindo punhos. Lá se foi o poder calmante de bancos confortáveis. Foram brandidas espadas, machados esmagaram-se contra es­cudos. Jon Snow olhou para Tormund. O Terror dos Gigantes voltou a fazer soar o corno, duas vezes mais alto e durante o dobro do tempo da primeira vez.

— A Patrulha da Noite não participa nas guerras dos Sete Reinos — fez-lhes lembrar Jon, quando algo de semelhante à calma regressou. — Não nos cabe a nós opormo-nos ao Bastardo de Bolton, vingar Stannis Baratheon ou defender a sua viúva ou a filha. Esta criatura que faz mantos com as peles de mulheres jurou arrancar-me o coração e eu pretendo fazê-lo res­ponder por essas palavras... mas não pedirei aos meus irmãos para abjura­rem dos seus votos. A Patrulha da Noite dirigir-se-á a Larduro. Eu cavalgo para Winterfell sozinho, a menos que... — Jon fez uma pausa. — ... há aqui algum homem que queira vir comigo?

O rugido foi tudo o que Jon podia esperar, o tumulto tão ruidoso que dois velhos escudos caíram das paredes. Soren Quebrascudos estava em pé, o Vadio também. Toregg, o Alto, Brogg, tanto Harle, o Caçador, como Harle, o Belo, Ygon Paivelho, o Doss Cego, até o Grande Morsa. Tenho as minhas espadas, pensou Jon Snow, e vamos buscar-te, Bastardo.

Viu que Yarwyck e Marsh estavam a esgueirar-se para fora, com to­dos os seus homens atrás deles. Não importava. Agora não precisava deles. Não os queria. Nenhum homem poderá dizer que obriguei os meus irmãos a quebrar os votos. Se isto é perjúrio, o crime é meu e apenas meu. Depois sen­tiu Tormund a bater-lhe nas costas, todo ele sorriso desdentado de orelha a orelha.

— Bem dito, corvo. Agora traz o hidromel! Torna-os teus e embebeda-os, é assim que se faz. Ainda vamos fazer de ti um selvagem, rapaz. Ha!

— Vou mandar buscar cerveja disse Jon, distraído. Apercebeu-se de que Melisandre se fora embora, e os cavaleiros da rainha também. Devia ter ido ter primeiro com Selyse. Ela tem o direito de saber que o seu senhor está morto. — Tens de me desculpar. Vou deixar contigo a tarefa de os em­bebedares.

— Ha! Uma tarefa para a qual sou bastante adequado. Desaparece!

O Cavalo e Rory puseram-se ao lado de Jon quando abandonou o

Salão dos Escudos. Devia falar com Melisandre depois de ir ter com a rainha, pensou. Se ela conseguiu ver um corvo numa tempestade, pode encontrar Ramsay Snow por mim. Então ouviu os gritos, e um rugido tão sonoro que pareceu sacudir a Muralha.

— Aquilo veio da Torre de Hardin, senhor — relatou o Cavalo. Podia ter dito mais, mas o grito interrompeu-o.

Val, foi o primeiro pensamento de Jon. Mas aquilo não era grito de mulher. Aquilo é um homem numa agonia mortal. Desatou a correr. O Ca­valo e Rory correram atrás dele.

— São criaturas? — perguntou Rory. Jon foi assaltado por dúvidas. Poderiam os cadáveres ter escapado às correntes que os prendiam?

Quando chegaram à Torre de Hardin os gritos tinham parado, mas Wun Weg Wun Dar Wun continuava a rugir. O gigante sacudia um cadáver ensanguentado por uma perna, tal como Arya costumava sacudir a boneca quando era pequena, brandindo-a como uma maça de armas quando era ameaçada por legumes. Mas Arya nunca fez as bonecas em bocados. O bra­ço da espada do morto estava a metros de distância, com a neve, por baixo, a tornar-se vermelha.

— Larga-o — gritou Jon. — Wun Wun, larga-o.

Wun Wun não ouviu ou não compreendeu. O próprio gigante san­grava, com golpes de espada na barriga e no braço. Brandiu o cavaleiro morto contra a pedra cinzenta da torre, uma e outra e outra vez, até deixar a cabeça do homem vermelha e polposa como um melão estival. O manto do cavaleiro adejava no ar frio. Fora de lã branca, debruado com pano de prata e com um padrão de estrelas azuis. Sangue e ossos voavam por todo o lado.

Homens jorraram das torres e fortificações circundantes. Nortenhos, membros do povo livre, homens da rainha...

— Formai uma linha — ordenou-lhes Jon Snow. — Mantende-os afastados. Todos, mas em especial os homens da rainha. — O morto era Sor Patrek da Montanha Real; a sua cabeça estava praticamente desaparecida, mas a sua heráldica era tão identificativa como a cara. Jon não queria correr o risco de que Sor Malegorn ou Sor Brus ou qualquer outro dos cavaleiros da rainha tentasse vingá-lo.

Wun Weg Wun Dar Wun voltou a uivar e deu ao outro braço de Sor Patrek outra torção e um puxão. O braço soltou-se do ombro com um jor­ro de sangue vermelho vivo. Como uma criança a arrancar pétalas a uma margarida, pensou Jon.

— Couros, fala com ele, acalma-o. O idioma antigo, ele compreende o idioma antigo. Para trás, o resto de vós. Guardai o aço, estais a assustá-lo. — Não viam que o gigante fora golpeado? Jon tinha de pôr fim àquilo, se­não mais homens morreriam. Eles não faziam ideia da força que Wun Wun possuía. Um corno, preciso cie um corno. Viu um reluzir de aço, virou-se para ele. — Nada de lâminas — gritou. — Wick, guarda essa...

... faca, fora o que pretendera dizer. Quando Wick Palito lhe cortou a garganta, a palavra transformou-se num grunhido. }on afastou-se da faca com uma torção de corpo, só o suficiente para a arma lhe roçar pela pele. Ele golpeou-me. Quando levou a mão à parte lateral do pescoço, sangue jorrou entre os seus dedos.

— Porquê?

— Pela Patrulha. — Wick voltou a tentar apunhalá-lo. Desta vez Jon agarrou-lhe no pulso e dobrou-lhe o braço para trás até que ele deixou cair o punhal. O desengonçado intendente recuou, de mãos erguidas como quem diz "eu não, não fui eu." Havia homens a gritar. Jon levou as mãos a Garralonga, mas os dedos tinham-se-lhe tornado hirtos e desajeitados. Sem que soubesse porquê, não parecia conseguia libertar a espada da bainha.

Então Bowen Marsh apareceu ali na sua frente, com lágrimas a escor­rer-lhe pela cara.

— Pela Patrulha. — Socou Jon na barriga. Quando afastou a mão, o punhal ficou onde o enterrara.

Jon caiu de joelhos. Encontrou o cabo do punhal e libertou-o. No frio ar noturno, o ferimento fumegava

— Fantasma — sussurrou. A dor submergiu-o. Espeta-lhes a ponta afiada. Quando o terceiro punhal o atingiu entre as omoplatas, soltou um grunhido e caiu de cara na neve. Não chegou a sentir a quarta faca. Só o frio...


Загрузка...