DAENERYS


O salão ressoava com gargalhadas yunkaitas, canções yunkaitas, preces yunkaitas. Dançarinos dançavam; músicos tocavam estranhas melodias com campainhas, chiadores e câmaras de ar; cantores cantavam antigas canções de amor na incompreensível língua da Velha Ghis. Fluía vinho; não o líquido fino e pálido da Baía dos Escravos, mas ricas colheitas saborosas da Árvore e vinho de sonhos de Qarth, temperado com estranhas especia­rias. Os yunkaitas tinham vindo a convite do Rei Hizdahr, a fim de assinar a paz e assistir ao renascimento das afamadas arenas de combate de Meereen. O seu nobre marido abrira a Grande Pirâmide para os banquetear.

Detesto isto, pensou Daenerys Targaryen. Como foi que isto aconteceu, como foi que acabei a beber e a sorrir com homens que preferiria esfolar?

Foi servida uma dúzia de diferentes tipos de carne e peixe: came­lo, crocodilo, lula cantante, pato lacado e lagartas espinhosas, com cabra, presunto e cavalo para aqueles cujos gostos eram menos exóticos. E cão. Nenhum banquete ghiscariota estava completo sem um prato de cão. Os cozinheiros de Hizdahr preparavam cão de quatro maneiras diferentes.

— Os ghiscariotas comem qualquer coisa que nade, voe ou ande, à exceção de homem e dragão — avisara-a Daario — e aposto que também comeriam dragão se lhes fosse dada meia oportunidade. — Porém, a carne sozinha não dava uma refeição, portanto também havia frutas, cereais e legumes. O ar estava temperado com os odores a açafrão, canela, cravinho, pimenta e outras especiarias dispendiosas.

Dany quase nem tocou na comida. Isto é a paz, disse a si própria. Era isto que eu queria, aquilo para que trabalhei, foi para isto que casei com Hi­zdahr. Então porque sabe tanto a derrota?

— É só durante mais algum tempo, meu amor — garantira-lhe Hi­zdahr. — Os yunkaitas depressa se irão embora, e os seus aliados e merce­nários irão com eles. Teremos tudo o que desejávamos. Paz, comida, co­mércio. O nosso porto está de novo aberto, e navios são autorizados a ir e vir.

— Eles estão a autorizar isso, sim — respondera — mas os seus na­vios de guerra permanecem cá. Podem voltar a fechar os dedos em volta da nossa garganta quando quiserem. Abriram um mercado de escravos à vista das minhas muralhas!

Fora das nossas muralhas, querida rainha. Essa foi uma condição para a paz, que Yunkai fosse livre de negociar em escravos como dantes, sem ser incomodada.

— Na sua própria cidade. Não onde eu tenha de ver. — Os Sábios Mestres tinham instalado os seus cercados de escravos e estrado de leilões mesmo a sul do Skahazadhan, onde o largo rio castanho desaguava na Baía dos Escravos. — Estão a troçar da minha cara, a fazer espetáculo da minha impotência para lhes pôr travão.

— Estão a posar e a marcar uma posição — dissera o seu nobre es­poso. — Um espetáculo, como dissestes. Eles que façam a sua pantomina. Quando se forem embora, transformaremos o que deixarem ficar em mer­cado de fruta.

— Quando se forem embora — repetira Dany. — E quando é que eles se vão embora? Foram vistos cavaleiros para lá do Skahazadhan. Ba­tedores dothraki, segundo Rakharo, com um khalasar atrás. Deverão ter cativos. Homens, mulheres e crianças, presentes para os esclavagistas. — Os dothraki não compravam nem vendiam, mas davam presentes e recebiam-nos. — Foi para isso que os yunkaitas construíram o mercado. Sairão daqui com milhares de novos escravos.

Hozdahr zo Loraq encolhera os ombros.

— Mas sairão. É essa a parte importante, meu amor. Yunkai nego­ciará com escravos, Meereen não, foi nisto que concordámos. Suportai isto durante mais um pouco, e passará.

E assim Daenerys ficara em silêncio durante a refeição, envolta num tokar vermelhão e em pensamentos negros, falando apenas quando lhe dirigiam a palavra, matutando nos homens e mulheres que estavam a ser comprados e vendidos fora das suas muralhas mesmo enquanto se banque­teavam no interior da cidade. O seu nobre esposo que fizesse os discursos e se risse dos débeis gracejos yunkaitas. Esse era o direito de um rei, e o dever de um rei.

Muitas das conversas em volta da mesa debruçavam-se sobre os combates que seriam travados no dia seguinte. Barsena Cabeloprcto ia en­frentar um javali, contrapondo as presas do animal ao seu punhal. Khrazz ia combater, e o Gato Malhado também. E no combate final do dia, Goghor, o Gigante, enfrentaria Belaquo Quebra-Ossos. Um deles estaria morto an­tes de o Sol se pôr. Nenhuma rainha tem as mãos limpas, disse Dany a si própria. Pensou em Doreah, em Quaro, em Eroeh... numa rapariguinha que nunca conhecera, cujo nome fora Hazzea. É melhor que morram alguns na arena do que milhares aos portões. Este é o preço da paz, pago-o de boa vontade. Se olhar para trás estou perdida.

O Supremo Comandante Yunkaita, Yurkhaz zo Yunzak, podia ter estado vivo durante a Conquista de Aegon, julgando pela sua aparência.

De costas tortas, cheio de rugas e desdentado, fora trazido para a mesa por dois robustos soldados. Os outros senhores yunkaitas pouco mais impres­sionantes eram. Um era pequeno e raquítico, embora os soldados escravos que o serviam fossem grotescamente altos e magros. O terceiro era jovem, mostrava-se em forma e elegante, mas estava tão bêbado que Dany dificil­mente entendia uma palavra do que dizia. Como posso ter sido trazida a esta situação por criaturas como estas?

Os mercenários eram outra coisa. Todas as quatro companhias livres ao serviço de Yunkai tinham enviado o seu comandante. Os Aventados eram representados pelo nobre pentoshi conhecido como Príncipe Esfar­rapado, as Longas Lanças por Gylo Rhegan, que se parecia mais com um sapateiro do que com um soldado e falava em murmúrios. O Barba San­grenta, da Companhia do Gato, fazia barulho suficiente por ele e por mais uma dúzia. Homem enorme, com um grande matagal na barba e um pro­digioso apetite por vinho e mulheres, berrava, arrotava, peidava-se como um trovão, e beliscava todas as criadas que surgiam ao seu alcance. De vez em quando puxava uma para o seu colo para lhe apertar os seios e a acari­ciar entre as pernas.

Os Segundos Filhos também estavam representados. Se Daarío esti­vesse aqui, esta refeição terminaria em sangue. Nenhuma paz prometida po­deria ter persuadido o seu capitão a permitir que o Ben Castanho Pulmm regressasse calmamente a Meereen e partisse vivo. Dany jurara que ne­nhum mal aconteceria aos sete emissários e comandantes, embora isso não tivesse sido suficiente para os yunkaitas. Estes tinham-lhe exigido também reféns. Para equilibrar os três nobres yunkaitas e quatro capitães mercená­rios, Meereen enviara sete dos seus para o acampamento sitiante: a irmã de Hizdahr, dois dos seus primos, o companheiro de sangue de Dany, Jhogo, o seu almirante Groleo, o capitão Imaculado Herói e Daario Naharis.

— Deixo as minhas meninas contigo — dissera o seu capitão, entregando-lhe o cinturão da espada e as libertinas douradas. — Mantém-nas a salvo por mim, amada. Não queremos que elas façam travessuras sangren­tas entre os yunkaitas.

O Tolarrapada também se encontrava ausente. A primeira coisa que Hizdahr fizera após ser coroado fora afastá-lo do comando dos Feras de Bronze, substituindo-o pelo seu primo, o rechonchudo e macilento Marghaz zo Loraq. É melhor assim. A Graça Verde diz que há sangue entre Loraq e Kandaq, e o Tolarrapada nunca fez segredo do seu desdém pelo senhor meu marido. E Daario...

Daario só se tornara mais incontrolável desde o casamento. A paz não lhe agradava, o casamento agradava-lhe menos ainda, e ficara furioso por ter sido enganado pelos dorneses. Quando o Príncipe Quentyn lhes dissera que os outros westerosianos se tinham passado para os Corvos Tor­mentosos às ordens do Príncipe Esfarrapado só a intervenção do Verme Cinzento impedira Daario de os matar a todos. Os falsos desertores tinham sido aprisionados em segurança nas profundezas da pirâmide... mas a ira de Daario continuara a ulcerar.

Ele estará mais seguro como refém. O meu capitão não foi feito para a paz. Dany não podia arriscar que ele abatesse o Ben Castanho Plumm, troçasse de Hizdahr perante a corte, provocasse os yunkaitas ou perturbas­se de outra forma o acordo que conquistara abrindo mão de tantas coisas. Daario era guerra e sofrimento. Dali em diante tinha de o manter fora da sua cama, fora do seu coração e fora de si. Se ele não a traísse, dominá-la-ia. Não sabia qual dessas alternativas mais temia.

Quando a glutonaria terminou e toda a comida semi-ingerida foi le­vada — para ser dada aos pobres que se tinham reunido lá em baixo, por insistência da rainha — copos altos de vidro foram enchidos com um licor condimentado vindo de Qarth, escuro como âmbar. De seguida tiveram início os divertimentos.

Uma trupe de castrati yunkaitas pertencentes a Yurkhaz zo Yunzak cantou-lhe canções na antiga língua do Velho Império, com vozes agudas, doces e impossivelmente puras.

— Alguma vez ouvistes um canto assim, meu amor? — pergun­tou-lhe Hizdahr. — Têm as vozes de deuses, não têm?

— Sim — disse ela — embora eu pergunte a mim própria se não pre­feririam ter os frutos de homens.

Todos os artistas eram escravos. Isso fora parte da paz, que aos donos de escravos fosse dado o direito de trazerem os servos para Meereen sem receio de os verem libertados. Em troca, os yunkaitas tinham concordado respeitar os direitos e liberdades dos antigos escravos que Dany libertara. Um acordo justo, dissera Hizdahr, mas o sabor que deixara na boca da rai­nha era mau. Bebeu outro copo de vinho para o afastar.

— Se vos aprouver, não duvido de que Yurkhaz se sentirá feliz por nos oferecer os cantores — disse o seu nobre esposo. — Um presente para selar a nossa paz, um ornamento para a nossa corte.

Ele dar-nos-á aqueles castrati, pensou Dany, e depois marchará para casa e fará mais uns quantos. O mundo está cheio de rapazes.

Os acrobatas que se seguiram também não conseguiram tocá-la, nem mesmo quando formaram uma pirâmide humana com nove andares de altura, com uma rapariguinha nua no topo. Quererá aquilo representar a minha pirâmide?, perguntou a rainha a si própria. Pretender-se-á que a ra­pariga no topo seja eu?

Depois, o senhor seu esposo levou os convidados para o terraço infe- rior, para que os visitantes da Cidade Amarela pudessem contemplar Me- ereen à noite. De copos de vinho nas mãos, os yunkaitas vaguearam pelo jardim em pequenos grupos, sob limoeiros e flores noturnas, e Dany deu por si cara a cara com o Ben Castanho Plumm.

Ele fez uma profunda vénia.

— Reverência. Estais adorável. Bem, sempre estivestes. Nenhum da­queles yunkaitas tem metade da vossa beleza. Pensei trazer-vos um pre­sente de casamento, mas os lances subiram demasiado para o velho Ben Castanho.

— Não quero presentes teus.

— Este talvez quisésseis. A cabeça de um velho inimigo.

— A tua? — disse ela com doçura. — Traíste-me.

— Ora aí está uma maneira desagradável de pôr as coisas, se permitis que o diga. — O Ben Castanho coçou as suíças malhadas de cinzento e branco. — Nós passámo-nos para o lado vencedor, nada mais. Tal como fizemos antes. E não fui só eu. Perguntei aos meus homens o que fazer.

— Então foram eles que me traíram, é isso o que estás a dizer? Por­quê? Terei maltratado os Segundos Filhos? Enganei-vos nos pagamentos?

— Isso nunca — disse o Ben Castanho — mas nem tudo é dinheiro, Vossa Poderosa Alteza. Aprendi isso há muito tempo, na minha primeira batalha. Na manhã depois do combate, estava eu a esgravatar entre os mor­tos, à procura duma ou doutra coisinha para saquear. Encontrei um cadáver, um machado qualquer tinha-lhe cortado o braço inteirinho pelo ombro. estava coberto de moscas, todo cheio de sangue seco, se calhar foi por isso que ninguém mais lhe tinha tocado, mas por baixo das moscas usava um justilho tachonado, parecia ser de bom couro. Achei que era capaz de me servir bem, de modo que enxotei as moscas e arranquei-lhe aquilo do cor­po. Mas a maldita coisa era mais pesada do que tinha o direito de ser. De­baixo do forro tinha cosida uma fortuna em dinheiro. Ouro, Reverência, belo ouro amarelo. Suficiente para qualquer homem viver como um senhor pró resto dos seus dias. Mas de que lhe serviu? Ali estava ele com todo o seu dinheiro, a jazer no sangue e na lama com a merda do braço cortado. E a lição é essa, vedes? A prata é uma doçura e o ouro é a nossa mãe, mas depois de estarmos mortos valemos menos do que aquela última cagada que fazemos ao morrer. Eu disse-vos uma vez que há mercenários velhos e mercenários ousados, mas não há mercenários velhos e ousados. Os meus rapazes não quiseram morrer, nada mais, e quando lhes disse que não po­díeis soltar aqueles dragões contra os yunkaitas, bom...

Viste-me como derrotada, pensou Dany, e quem sou eu para dizer que te enganavas?

— Compreendo. — Podia ter acabado por ali, mas estava curiosa. —

Ouro suficiente para viver como um senhor, disseste tu. Que fizeste com toda essa riqueza?

O Ben Castanho riu-se.

— Como rapaz tolo que era, contei a um homem que julgava meu amigo, e ele contou ao nosso sargento, e os meus irmãos-de-armas che­garam e aliviaram-me desse fardo. O sargento disse que eu era novo de­mais, que só o ia desperdiçar todo em rameiras e coisas do género. Mas deixou-me ficar com o justilho. — Escarrou. — Não quereis nunca confiar num mercenário, senhora.

— Já aprendi isso. Um dia tenho de não me esquecer de te agradecer pela lição.

Os olhos do Ben Castanho enrugaram-se.

— Não há necessidade. Eu sei que tipo de agradecimento tendes em mente. — Fez outra vénia e afastou-se.

Dany virou-se para fitar a sua cidade. Para lá das muralhas, as ten­das amarelas dos yunkaitas erguiam-se em fileiras ordenadas junto ao mar, protegidas pelas valas que os seus escravos tinham escavado. Duas legiões de ferro de Nova Chis, treinadas e armadas de forma semelhante aos Ima­culados, estavam acampadas do outro lado do rio, a norte. Outras duas le­giões ghiscariotas tinham erguido acampamento a leste, estrangulando a estrada para o passo de Khyzai. As linhas de cavalos e as fogueiras para co­zinhar das companhias livres estavam a sul. De dia, finas colunas de fumo erguiam-se para o céu como irregulares fitas cinzentas. De noite viam-se fogueiras distantes. Mesmo junto à baía encontrava-se a abominação, o mercado de escravos à sua porta. Não o conseguia ver agora, com o Sol posto, mas sabia que estava lá. Isso só a deixava mais zangada.

— Sor Barristan? — disse em voz baixa.

O cavaleiro branco apareceu de imediato.

— Vossa Graça.

— O que ouvistes?

— O suficiente. Ele não estava errado. Nunca confieis num merce­nário.

Ou numa rainha, pensou Dany.

— Haverá algum homem nos Segundos Filhos que possa ser persua­dido a... afastar... o Ben Castanho?

— Como Daario Naharis afastou os outros capitães dos Corvos Tor­mentosos? — O velho cavaleiro fez uma expressão de desconforto. — Tal­vez. Eu não o saberia, Vossa Graça.

Pois não, pensou, és demasiado honesto e honrado.

— Se não houver, os yunkaitas empregam outras três companhias.

— Patifes e assassinos, escumalha de uma centena de campos de batalha — avisou Sor Barristan — com capitães precisamente tão traiçoeiros como o Plumm.

— Eu sou só uma rapariguinha e pouco sei dessas coisas, mas pa­rece-me que queremos que eles sejam traiçoeiros. Um dia, se bem vos lembrais, convenci os Segundos Filhos e os Corvos Tormentosos a junta- rem-se-nos.

— Se Vossa Graça desejar uma conversa privada com Gylo Rhegan ou com o Príncipe Esfarrapado, posso trazê-los aos vossos aposentos.

— Este não é o momento. Demasiados olhos, demasiados ouvidos. A sua ausência não passaria despercebida, mesmo se conseguísseis afastá-los discretamente dos yunkaitas. Temos de arranjar alguma forma mais discre­ta de os contactar... esta noite não, mas em breve.

— Às vossas ordens. Se bem que tema que esta não seja tarefa para a qual eu seja adequado. Em Porto Real trabalho deste género era deixado para o Lorde Mindinho ou para a Aranha. Nós, os velhos cavaleiros, somos homens simples, que só prestam para o combate. — Deu uma palmada no cabo da espada.

— Os nossos prisioneiros — sugeriu Dany. — Os westerosianos que se passaram dos Aventados com os três dorneses. Ainda os temos em celas, não temos? Usai-os.

— Falais em libertá-los? Será isso sensato? Foram enviados para cá a fim de ganhar a vossa confiança para poderem trair Vossa Graça à primeira oportunidade.

— Então falharam. Não confio neles. Nunca confiarei neles. — Em boa verdade, Dany estava a esquecer-se de como se confiava. — Mesmo as­sim podemos usá-los. Um era uma mulher. Meris. Enviai-a de volta, como um... um sinal da minha consideração. Se o seu capitão for esperto, com­preenderá.

— A mulher é a pior de todos.

— Tanto melhor. — Dany refletiu por um momento. — Também de­víamos sondar as Longas Lanças. E a Companhia do Gato.

— Barba Sangrenta. — A testa de Sor Barristan franziu-se mais. — Se aprouver a Vossa Graça, não queremos contactos com ele. Vossa Graça é demasiado jovem para se lembrar dos Reis dos Nove Dinheiros, mas este Barba Sangrenta foi cortado do mesmo pano selvagem. Não há honra nele, só sede... de ouro, de glória, de sangue.

— Sabeis mais sobre tais homens do que eu, sor. — Se o Barba San­grenta fosse realmente o mais desonrado e ganancioso dos mercenários, podia ser o mais fácil de desencaminhar, mas relutava em ir contra os con­selhos de Sor Barristan em tais assuntos. — Fazei o que achardes melhor. Mas fazei-o depressa. Se a paz de Hizdahr for quebrada, quero estar pronta.

Não confio nos esclavagistas. — Não confio no meu marido. — Virar-se-ão contra nós ao primeiro sinal de fraqueza.

— Os yunkaitas também se vão tornando mais fracos. A fluxão san­grenta instalou-se entre os tolosinos, segundo se diz, e espalhou-se para a outra margem do rio, até à terceira legião ghiscariota.

A égua branca. Daenerys suspirou. Quaithe avisou-me da chegada da égua branca. Também me falou do príncipe dornês, o filho do sol. Disse-me mais que muitas coisas, mas tudo em adivinhas.

— Não posso depender da praga para me salvar dos meus inimigos. Libertai a Linda Meris. Imediatamente.

— Às vossas ordens. Se bem que... Vossa Graça, se me permitis a ousadia, existe outro caminho...

— O caminho dornês? — Dany suspirou. Os três dorneses tinham estado no banquete, como era próprio do estatuto do Príncipe Quentyn, se bem que Reznak tivesse tido o cuidado de os sentar o mais longe possível do marido. Hizdahr não parecia ter uma natureza ciumenta, mas nenhum homem ficaria satisfeito com a presença de um pretendente rival perto da sua nova esposa. — O rapaz parece agradável e bem-falante, mas...

— A Casa Martell é antiga e nobre, e é uma leal amiga da Casa Targaryen há mais de um século, Vossa Graça. Tive a honra de servir com o tio-avô do Príncipe Quentyn nos sete do vosso pai. Nenhum homem podia desejar um irmão de armas mais valente do que o Príncipe Lewyn. Quen­tyn Martell é do mesmo sangue, se aprouver a Vossa Graça.

— Aprazer-me-ia se ele tivesse aparecido com aquelas cinquenta mil espadas de que fala. Em vez disso traz-me dois cavaleiros e um pergami­nho. Irá um pergaminho proteger o meu povo dos yunkaitas? Se ele tivesse chegado com uma frota...

— Lançassolar nunca foi uma potência marítima, Vossa Graça.

— Pois não. — Dany sabia o suficiente da história de Westeros para saber isso. Nymeria encalhara dez mil navios nas costas arenosas de Dorne, mas quando casara com o seu príncipe dornês queimara-os a todos e virara para sempre as costas ao mar. — Dorne fica longe demais. Para agradar a este príncipe, eu teria de abandonar todo o meu povo. Devíeis mandá-lo para casa.

— Os dorneses são notoriamente teimosos, Vossa Graça. Os antepas­sados do Príncipe Quentyn passaram praticamente duzentos anos a com­bater os vossos. Ele não irá sem vós.

Então morrerá aqui, pensou Daenerys, a menos que haja nele mais do que eu consigo ver.

— Ele ainda está lá dentro?

— A beber com os seus cavaleiros.

— Trazei-o até mim. Está na altura de conhecer os meus filhos.

Um clarão de dúvida passou pela longa, séria cara de Barristan Selmy.

— Às vossas ordens.

O seu rei estava a rir-se com Yurkhaz zo Yunzak e os outros senhores yunkaitas. Não parecia a Dany que lhe sentisse a falta, mas, pelo sim pelo não, instruiu as aias para lhe dizerem que estava a responder a um chama­mento da natureza, no caso de perguntar por ela.

Sor Barristan estava à espera junto das escadas com o príncipe dor- nês. A cara quadrada de Martell estava corada. Demasiado vinho, concluiu a rainha, embora ele estivesse a fazer o seu melhor para o esconder. À exce­ção da fila de sóis de cobre que lhe ornamentavam o cinto, o dornês estava vestido com simplicidade. Chamam-lhe Sapo, recordou Dany. Conseguia ver porquê. Não era um homem bonito.

Sorriu.

— Meu príncipe. A descida é longa. Tendes a certeza de que quereis fazer isto?

— Se aprouver a Vossa Graça.

— Então vinde.

Um par de Imaculados desceu as escadas à frente deles, portando archotes; atrás vinham duas Feras de Bronze, uma mascarada de peixe, a outra de falcão. Mesmo ali, na sua pirâmide, naquela noite feliz de paz e ce­lebração, Sor Barristan insistia em manter guardas à sua volta fosse ela para onde fosse. O pequeno grupo tez a longa descida em silêncio, parando três vezes ao longo do caminho a fim de recuperarem as forças.

— O dragão tem três cabeças — disse Dany, quando chegaram ao último lanço. — O meu casamento não tem de ser o fim de todas as vossas esperanças. Eu sei porque estais aqui.

— Por vós — disse Quentyn, todo ele desajeitada galanteria.

— Não — disse Dany. — Por fogo e sangue.

Um dos elefantes bramiu-lhes da sua baia. A resposta, um rugido vindo de baixo, fê-la corar com um súbito calor. O Príncipe Quentyn er­gueu o olhar, alarmado.

— Os dragões sabem quando ela está perto — disse-lhe Sor Barristan.

Todos os filhos conhecem as mães, pensou Dany. Quando os mares se­carem e as montanhas forem sopradas pelo vento como folhas...

— Eles chamam-me. Vinde. — Pegou na mão do Príncipe Quentyn e levou-o para o fosso onde dois dos seus dragões estavam confinados. — Fi­cai aí fora — disse Dany a Sor Barristan enquanto os Imaculados abriam as enormes portas de ferro. — O Príncipe Quentyn proteger-me-á. — Puxou o Príncipe Quentyn para dentro consigo e pararam por cima do fosso.

Os dragões viraram os pescoços, fitando-os com olhos ardentes. Vi- seriou estilhaçara uma corrente e derretera as outras. Agarrava-se ao teto do fosso como um enorme morcego branco, enterrando profundamente as garras nos tijolos queimados e a desfazerem-se. Rhaegal, ainda acorrenta­do, roía a carcaça de um touro. A camada de ossos no chão do fosso estava mais profunda do que da última vez que ali estivera, e as paredes e os so­alhos estavam negros e cinzentos, mais cinza que tijolo. Não aguentariam durante muito mais tempo... mas por baixo havia apenas terra e pedra. Conseguirão os dragões abrir túneis na rocha, como as serpentes de fogo da antiga Valíria? Esperava que não.

O príncipe dornês tinha-se tornado branco como leite.

— Eu... eu tinha ouvido dizer que havia três.

— Drogon anda à caça. — Não precisava de saber o resto. — O bran­co é Viserion, o verde Rhaegal. Batizei-os em honra dos meus irmãos. — A sua voz ecoou nas paredes de pedra chamuscadas. Soou pequena; uma voz de rapariga, não a voz de uma rainha e conquistadora, nem a voz alegre de uma mulher acabada de casar.

Rhaegal rugiu em resposta, e fogo encheu o fosso, uma lança de ver­melho e amarelo. Viserion respondeu, com as suas chamas douradas e ala­ranjadas. Quando bateu as asas, uma nuvem de cinza cinzenta encheu o ar. Correntes quebradas tiniram e chocalharam em volta das suas patas. Quentyn Martell deu um salto de meio metro para trás.

Uma mulher mais cruel poderia ter-se rido dele, mas Dany apertou-lhe a mão e disse:

— Também a mim assustam. Não há vergonha nisso. Os meus filhos tornaram-se violentos e furiosos na escuridão.

— Vós... tencionais montá-los?

— Um deles. Tudo o que sei sobre dragões é o que o meu irmão me contou quando era rapariga, e algo do que li em livros, mas diz-se que nem Aegon, o Conquistador, se atreveu a montar Vhagar ou Meraxes, tal como as irmãs não montaram Balerion, o Terror Negro. Os dragões vivem mais do que os homens, alguns vivem centenas de anos, portanto Balerion teve outros cavaleiros depois da morte de Aegon... mas nunca nenhum cavalei­ro montou dois dragões.

Viserion voltou a silvar. Fumo ergueu-se entre os seus dentes e, nas profundezas da garganta, viram fogo dourado a agitar-se.

— Eles são... eles são temíveis criaturas.

— São dragões, Quentyn. — Dany pôs-se em bicos de pés e deu-lhe dois pequenos beijos, um em cada bochecha. — E eu também sou.

O jovem príncipe engoliu em seco.

— Eu... eu também tenho em mim o sangue do dragão, Vossa Graça. Posso traçar a minha linhagem até à primeira Daenerys, a princesa Targaryen que foi irmã do Rei Daeron, o Bom, e esposa do Príncipe de Dorne. Foi para ela que ele construiu os Jardins de Água.

— Os Jardins de Água — Dany sabia menos que pouco sobre Dorne e a sua história, em boa verdade.

— O lugar preferido do meu pai. Um dia gostaria de vo-lo mostrar. São todos feitos de mármore rosado, com piscinas e fontanários, e com vis­ta para o mar.

— Parecem adoráveis. — Afastou-o do fosso. O lugar dele não é aqui. Nunca devia ter vindo. — Devíeis regressar para lá. Temo que a minha corte não seja sítio seguro para vós. Tendes mais inimigos do que julgais. Fizestes com que Daario parecesse um tolo, e ele não é homem para esquecer tal desfeita.

— Eu tenho os meus cavaleiros. Os meus protetores ajuramentados.

— Dois cavaleiros. Daario tem quinhentos Corvos Tormentosos. E também faríeis bem cm terdes cuidado com o senhor meu esposo. Parece um homem brando e agradável, bem sei, mas não vos deixeis enganar. A coroa de Hizdahr deriva da minha, e ele detém a lealdade de alguns dos mais temíveis combatentes do mundo. Se algum deles pensar em conquis­tar a sua benevolência livrando-o de um rival...

— Eu sou um príncipe de Dorne, Vossa Graça. Não fujo de escravos e de mercenários.

Então és realmente um idiota, Príncipe Sapo. Dany deitou aos seus filhos selvagens um último olhar demorado. Enquanto levava o rapaz para a porta foi ouvindo os gritos dos dragões e vendo o jogo de luz nos tijolos, reflexos dos seus fogos. Se olhar para trás estou perdida.

— Sor Barristan terá chamado um par de liteiras para nos levar para o banquete, mas mesmo assim a ascensão pode ser cansativa. — Atrás de si as grandes portas de ferro fecharam-se com um estrondo ressonante. — Falai-me dessa outra Daenerys. Sei menos do que devia sobre a história do reino do meu pai. Nunca tive um meistre enquanto crescia. — Só um irmão.

— O prazer será meu, Vossa Graça — disse Quentyn.

Já passava muito da meia-noite quando os últimos convidados se retiraram, e Dany recolheu-se aos aposentos para se ir juntar ao seu rei e senhor. Hizdahr, pelo menos, estava feliz, embora algo ébrio.

— Cumpri as minhas promessas — disse-lhe, enquanto Irri e Qhiqui os vestiam para a cama. — Desejastes a paz, e ela é vossa.

E tu desejaste sangue, e bem depressa terei de to dar, pensou Dany, mas o que disse foi:

— Estou grata.

A excitação do dia inflamara as paixões do marido. Assim que as aias se retiraram para a noite, arrancou-lhe o roupão e atirou-a de costas para a cama. Dany envolveu-o nos braços e deixou-o levar a sua avante. Sabia que, bêbado como estava, não estaria muito tempo dentro dela.

E não esteve. Depois, enfiou-lhe o nariz na orelha e sussurrou:

— Os deuses permitam que tenhamos feito um filho esta noite.

As palavras de Mirri Mas Duur ressoaram-lhe na cabeça. Quando o Sol nascer a ocidente e se puser a oriente. Quando os mares secarem e as mon­tanhas/orem sopradas pelo vento como folhas. Quando o vosso ventre voltar a ganhar vida e derdes à luz um filho vivo. Então, e não antes, ele regressará. O significado fora bastante claro; era tão provável que Khal Drogo regres­sasse dos mortos como que ela desse à luz um filho vivo. Mas havia alguns segredos que não se conseguia levar a partilhar, mesmo com um marido, pelo que deixou Hizdahr zo Loraq manter as esperanças.

O seu nobre esposo depressa adormeceu profundamente. Daenerys só conseguiu virar-se e mudar de posição ao lado dele. Apeteceu-lhe aba- ná-lo, acordá-lo, obrigá-lo a abraçá-la, a beijá-la, a fodê-la de novo, mas mesmo se o fizesse voltaria a adormecer depois, deixando-a sozinha na es­curidão. Perguntou a si própria o que estaria Daario a fazer. Também esta­ria desassossegado? Estaria a pensar nela. Amá-la-ia, realmente? Odiá-la-ia por se ter casado com Hizdahr? Nunca o devia ter levado para a minha cama. Ele era apenas um mercenário, não era consorte adequado para uma rainha, e no entanto...

Eu sempre o soube, mas fi-lo na mesma.

— Minha rainha? — disse uma voz suave na escuridão.

Dany estremeceu.

— Quem está aí?

— Só Missandei. — A escriba naatina aproximou-se da cama. — Esta ouviu-vos chorar.

— Chorar? Eu não estava a chorar. Porque haveria de chorar? Tenho a minha paz, tenho o meu rei, tenho tudo o que uma rainha podia desejar. Tiveste um pesadelo, nada mais.

— É como dizeis, Vossa Graça. — A rapariga tez uma vénia e fez tenção de se ir embora.

— Fica — disse Dany. — Não quero ficar sozinha.

— Sua Graça está convosco — fez notar Missandei.

— Sua Graça está a sonhar, mas eu não consigo dormir. Amanhã te­nho de tomar banho em sangue. O preço da paz. — Fez um sorriso abatido e deu palmadinhas na cama. — Anda. Senta-te. Conversa comigo.

— Se vos aprouver. — Missandei sentou-se a seu lado. — Conversa­mos sobre o quê?

— Casa — disse Dany. — Naath. Borboletas e irmãos. Fala-me das coisas que te tornam feliz, das coisas que te fazem rir, de todas as tuas memórias mais queridas. Faz-me lembrar que ainda há coisas boas no mundo.

Missandei fez o seu melhor. Ainda estava a falar quando Dany fi­nalmente caiu no sono, para ter sonhos estranhos e meio formados sobre fumo e fogo.

A manhã chegou cedo demais.



Загрузка...