CERSEI


Na última noite do seu aprisionamento, a rainha não conseguiu dormir. De todas as vezes que fechava os olhos, a cabeça enchia-se-lhe de presságios e fantasias sobre o dia seguinte. Terei guardas, disse a si própria. Eles mante­rão a multidão afastada. Ninguém será autorizado a tocar-me. O Alto Pardal prometera-lhe isso.

Mesmo assim, tinha medo. No dia em que Myrcella zarpara para Dorne, o dia dos motins do pão, mantos dourados tinham sido colocados ao longo do trajeto do cortejo, mas a turba rompera as linhas para fazer em pedaços o velho e gordo Alto Septão e violar Lollys Stokeworth meia centena de vezes. E se aquela criatura pálida, mole e estúpida fora capaz de incitar os animais completamente vestida, quão maior seria a luxúria que uma rainha inspiraria?

Cersei percorreu a cela, agitada como os leões enjaulados que vi­viam nas entranhas de Rochedo Casterly quando era rapariga, um legado dos tempos do avô. Ela e Jaime costumavam desafiar-se um ao outro a subir para a jaula, e uma vez ela arranjara coragem suficiente para enfiar a mão entre duas barras e tocar numa das grandes feras amareladas. Sem­pre fora mais ousada do que o irmão. O leão virara a cabeça para a fitar com enormes olhos dourados. Depois lambera-lhe os dedos. A sua língua era áspera como uma grosa, mas mesmo assim ela não quisera puxar a mão até que Jaime lhe pegara nos ombros e a afastara violentamente da jaula.

— É a tua vez — dissera-lhe depois. — Puxa-lhe pela juba, não te atreves. — Ele nunca o fez. Devia ter sido eu a receber a espada, não ele.

Andou de um lado para o outro descalça e a tremer, com uma manta fina enrolada em volta dos ombros. Estava ansiosa pelo dia que se aproxi­mava. A noite tudo estaria terminado. Uma pequena caminhada e estarei em casa, estarei de novo com Tommen, nos meus próprios aposentos dentro da Fortaleza de Maegor. O tio dissera que era a única maneira de se salvar. Mas seria? Não podia confiar no tio, tal como não confiava naquele Alto Septão. Ainda podia recusar. Ainda podia insistir na minha inocência e ar­riscar tudo num julgamento.

Mas não se atrevia a deixar que a Fé a julgasse, como Margaery Tyrell pretendia fazer. Isso podia servir bastante bem à rosinha, mas Cersei tinha poucos amigos entre as septãs e pardais que rodeavam aquele novo Alto

Septão. A sua única esperança era julgamento pela batalha, e para isso pre­cisava de ter um campeão.

Se Jaime não tivesse perdido a mão...

Mas essa estrada não levava a sítio nenhum. A mão da espada de Jaime fora-se, e ele também, desaparecido com a tal Brienne algures nas terras fluviais. A rainha tinha de encontrar outro defensor, caso contrário a provação do dia seguinte seria a menor das suas penas. Os seus inimigos acusavam-na de traição. Tinha de chegar a Tommen, qualquer que fosse o custo. Ele ama-me. Não dirá que não à sua própria mãe. O Joff era teimoso e imprevisível, mas Tommen é um bom rapazinho, um bom reizinho. Ele fará o que lhe disser. Se ficasse ali estava perdida, e só regressaria à Fortaleza Ver­melha caminhando. O Alto Pardal fora inflexível, e Sor Kevan recusava-se a erguer um dedo contra ele.

— Nenhum mal me acontecerá hoje — disse Cersei quando a pri­meira luz do dia roçou na sua janela. — Só o meu orgulho sofrerá. — As pa­lavras ressoaram a oco nos seus ouvidos. Jaime pode ainda vir. Imaginou-o a cavalgar através das brumas matinais, com a armadura dourada brilhante à luz do Sol nascente. Jaime, se alguma vez me amaste...

Quando as carcereiras vieram buscá-la, a Septã Unella, a Septã Moelle e a Septã Scolera lideravam a comitiva. Com elas estavam quatro noviças e duas das irmãs silenciosas. Ver as irmãs silenciosas com as suas vestes cinzentas encheu a rainha de súbitos terrores. Porque estão elas aqui? Vou morrer? As irmãs silenciosas cuidavam dos mortos.

— O Alto Septão prometeu que nenhum mal me aconteceria.

— E não acontecerá. — A Septã Unella chamou as noviças com um gesto. Trouxeram sabão de lixívia, uma bacia de água quente, uma tesoura e uma longa navalha direita. Um arrepio percorreu-a ao ver o aço. Elas que­rem rapar-me. Um pouco mais de humilhação, uma passa para as minhas papas. Não lhes daria o prazer de a ouvirem suplicar. Sou Cersei da Casa Lannister, uma leoa do Rochedo, a legítima rainha dos Sete Reinos, filha legí­tima de Tywin Lannister. E o cabelo volta a crescer.

— Tratai lá disso — disse.

A mais velha das duas irmãs silenciosas pegou na tesoura. Uma bar­beira experiente, sem dúvida; era frequente a sua ordem limpar os cadáve­res dos mortos nobres antes de os devolver à família, e fazer barbas e cortar cabelo fazia parte de tal tarefa. A mulher começou por descobrir a cabeça da rainha. Cersei permaneceu tão imóvel como uma estátua de pedra en­quanto a tesoura soltava estalidos. Mancheias de cabelo dourado caíam ao chão. Não fora autorizada a cuidar dele como devia ser, ali fechada naquela cela, mas mesmo por lavar e emaranhado brilhava onde o sol o tocava. A minha coroa, pensou a rainha. Tiraram-me a outra coroa, e agora estão tam­bém a tirar esta. Quando as suas madeixas e caracóis ficaram empilhados em volta dos pés, uma das noviças ensaboou-lhe a cabeça e a irmã silencio­sa rapou o resto do cabelo com uma navalha.

Cersei esperara que aquilo fosse o fim, mas não.

— Tirai a combinação, Vossa Graça — ordenou a Septã Unella.

— Aqui? — perguntou a rainha. — Porquê?

— Tendes de ser tosquiada.

Tosquiada, pensou, como uma ovelha. Puxou com violência a combi­nação pela cabeça e atirou-a ao chão.

— Fazei o que quiserdes.

Depois foi de novo o sabão, a água quente e a navalha. Os pelos nos sovacos foram-se a seguir, depois as pernas e por fim a fina penugem dou­rada que lhe cobria o púbis. Quando a irmã silenciosa se meteu entre as suas pernas com a navalha, Cersei deu por si a lembrar-se de todas as vezes que Jaime se ajoelhara onde ela estava agora ajoelhada, plantando beijos na parte de dentro das suas coxas, deixando-a húmida. Os beijos dele eram sempre quentes. A navalha era fria como gelo.

Quando a coisa ficou feita, estava tão nua e vulnerável como uma mulher podia estar. Nem um pelo atrás do qual me esconder. Uma gargalha­dinha saltou-lhe de entre os lábios, desamparada e amarga.

— Vossa Graça acha isto divertido? — disse a Septã Scolera.

— Não, septã — disse Cersei. Mas um dia mandarei arrancar-te a língua com turqueses quentes, e isso vai ser hilariante.

Uma das noviças tinha-lhe trazido uma veste, uma suave veste branca de septã para a cobrir enquanto descia a escada da torre e atra­vessava o septo, para que os fiéis que encontrassem pelo caminho fossem poupados a ver pele nua. Que os Sete nos salvem a todos, que grandes hi­pócritas eles são.

— Serei autorizada a calçar um par de sandálias? — perguntou. — As ruas estão imundas.

— Não tão imundas como os vossos pecados — disse a Septã Moelle. — Sua Alta Santidade ordenou que vos apresentásseis como os deuses vos fizeram. Tínheis sandálias nos pés quando saístes do ventre da senhora vossa mãe?

— Não, septã — foi a rainha forçada a dizer.

— Então aí tendes a vossa resposta.

Um sino começou a repicar. O longo cativeiro da rainha estava no fim. Cersei aconchegou-se melhor à veste, grata pelo seu calor, e disse:

— Vamos. — O filho aguardava-a do outro lado da cidade. Quanto mais depressa se pusesse a caminho, mais depressa o veria.

A pedra áspera dos degraus raspou nas solas dos seus pés quando

Cersei Lannister fez a sua descida. Chegara ao Septo de Baelor como uma rainha, transportada numa liteira. Estava a sair calva e descalça. Mas estou a sair. Isso é tudo o que importa.

Os sinos da torre estavam a cantar, convocando a cidade para teste­munhar a sua vergonha. O Grande Septo de Baelor estava repleto de fiéis que tinham vindo para o serviço da alvorada, e o som das suas preces eco­ava na cúpula, lá no alto, mas quando a comitiva da rainha surgiu caiu um súbito silêncio e mil olhos viraram-se para a seguir enquanto abria cami­nho pela nave lateral, passando pelo lugar onde o senhor seu pai jazera em velório depois do seu assassínio. Cersei passou por eles a passos largos, sem olhar nem para a direita nem para a esquerda. Os pés nus esbofeteavam o frio chão de mármore. Sentia os olhares. Atrás dos seus altares, os Sete pareciam também observar.

No Salão das Lâmpadas, uma dúzia de Filhos do Guerreiro esperava a sua chegada. Mantos arco-íris pendiam-lhes das costas, e os cristais que coroavam os seus elmos reluziam à luz das lâmpadas. As armaduras eram aço prateado, polido até um lustro de espelho, mas ela sabia que por baixo cada um daqueles homens usava um cilício. Todos os seus escudos leves mostravam o mesmo símbolo: uma espada de cristal a brilhar nas trevas, o antigo símbolo daqueles a que o povo chamava Espadas.

O capitão ajoelhou na frente dela.

— Vossa Graça talvez se lembre de mim. Sou Sor Theodan, o Fiel, e Sua Alta Santidade deu-me o comando da vossa escolta. Eu e os meus irmãos levar-vos-emos em segurança através da cidade.

O olhar de Cersei percorreu as caras dos homens atrás dele. E ali esta­va: Lancei, seu primo, filho de Sor Kevan, que em tempos declarara amá-la, antes de decidir que amava mais os deuses. O meu sangue e o meu traidor. Não o esqueceria.

— Podeis levantar-vos, Sor Theodan. Estou pronta.

O cavaleiro pôs-se em pé, virou-se, ergueu uma mão. Dois dos seus homens avançaram até às enormes portas e abriram-nas com um empur­rão, e Cersei atravessou-as para o ar livre, pestanejando à luz do sol como uma toupeira tirada da toca.

Soprava um vento, com rajadas, que lhe pôs a parte de baixo da veste a bater contra as pernas. O ar da manhã estava repleto dos velhos fedores familiares de Porto Real. Inspirou os odores a vinho azedo, pão em coze­dura, peixe podre e dejetos noturnos, fumo, suor e mijo de cavalo. Nunca nenhuma flor cheirara tão bem. Aninhada na veste, Cersei fez uma pausa no topo dos degraus de mármore enquanto os Filhos do Guerreiro forma­vam à sua volta.

Ocorreu-lhe de súbito que já antes estivera naquele preciso lugar, no dia em que o Lorde Eddard Stark perdera a cabeça. Não estava planeado que aquilo acontecesse. Joff devia poupar-lhe a vida e enviá-lo para a Muralha. O filho mais velho do Stark ter-lhe-ia sucedido como Senhor de Winterfell, mas Sansa teria permanecido na corte, como refém. Varys e o Mindinho tinham preparado os termos, e Ned Stark engolira a sua preciosa honra e confessara a traição para poupar a cabecinha vazia da filha. Eu teria ar­ranjado para Sansa um bom casamento. Um casamento Lannister. Joff não, claro, mas Lancei podia ter servido, ou um dos seus irmãos mais novos. Re­cordou que o próprio Petyr Baelish se oferecera para casar com a rapariga, mas claro que isso era impossível, o nascimento dele era demasiado baixo. Se Joff tivesse feito o que lhe disseram, Winterfell nunca teria partido para a guerra, e o pai teria tratado dos irmãos de Robert.

Mas em vez disso, Joff ordenara que a cabeça do Stark fosse cortada, e o Lorde Slynt e Sor Ilyn Payne tinham-se apressado a obedecer. Foi mesmo ali, recordou a rainha, fitando o local. Janos Slynt levantara a cabeça de Ned Stark pelo cabelo enquanto o sangue da sua vida escorria pelos degraus abaixo, e depois não houvera forma de voltar atrás.

As recordações pareciam agora tão distantes. Joffrey estava morto, e todos os filhos do Stark também. Até o pai perecera. E ali estava ela, de novo nos degraus do Grande Septo, só que desta vez era a si que a turba fitava, não Eddard Stark.

A larga praça de mármore lá em baixo estava tão repleta como estive­ra no dia em que o Stark morrera. Olhasse para onde olhasse, a rainha via olhos. A multidão parecia ser composta em partes iguais por homens e mu­lheres. Alguns tinham crianças aos ombros. Pedintes e ladrões, taberneiros e mercadores, curtidores, moços de estrebaria e saltimbancos, a espécie mais pobre de rameira, toda a escumalha aparecera para ver uma rainha a ser rebaixada. E misturados com eles estavam os Pobres Companheiros; criaturas imundas e hirsutas armadas de lanças e machados e vestidas com bocados de aço amolgado, cotas de malha ferrugenta e couro estalado, sob sobretudos de tecido grosseiro branqueado e decorados com a estrela de sete pontas da Fé. O exército esfarrapado do Alto Pardal.

Parte de si ainda ansiava pelo aparecimento de Jaime, por que ele a salvasse daquela humilhação, mas o seu gémeo não se via em lado nenhum. E o tio tampouco se encontrava presente. Isso não a surpreendia. Sor Kevan deixara o seu ponto de vista claro durante a última visita que lhe fizera; não se podia deixar que a sua vergonha manchasse a honra de Rochedo Casterly. Nenhum leão caminharia hoje com ela. Aquela provação era sua, e apenas sua.

A Septã Unella pôs-se à sua direita, a Septã Moelle à esquerda, a Septã Scolera atrás dela. Se a rainha fugisse ou recuasse, as três bruxas arrastá-la-iam de novo para dentro, e daquela vez assegurar-se-iam de que nun­ca mais sairia da cela.

Cersei levantou a cabeça. Para lá da praça, para lá do mar de olhos famintos e bocas abertas em caras sujas, do outro lado da cidade, a Colina de Aegon ainda se erguia à distância, com as torres e ameias da Fortaleza Vermelha rosados à luz do Sol nascente. Não é assim tão longe. Depois de chegar aos portões da fortaleza terminaria o pior das suas penas. Voltaria a ter o filho. Teria o seu campeão. O tio prometera-lho. Tommen está à minha espera. O meu reizinho. Posso fazer isto. Tenho de o fazer.

A Septã Unella deu um passo em frente.

— Uma pecadora apresenta-se perante vós — declarou. — Ela é Cer­sei da Casa Lannister, rainha viúva, mãe de Sua Graça, o Rei Tommen, vi­úva de Sua Graça, o Rei Robert, e cometeu graves falsidades e fornicações.

A Septã Moelle avançou à direita da rainha.

— Esta pecadora confessou os seus pecados e suplicou absolvição e perdão. Sua Alta Santidade ordenou-lhe que demonstrasse o seu arre­pendimento pondo de lado todo o orgulho e artifício e apresentando-se ao bom povo da cidade como os deuses a fizeram.

A Septã Scolera concluiu.

— Portanto, esta pecadora apresenta-se a vós de coração humilde, de segredos e ocultações tosquiados, nua perante os olhos dos deuses e dos homens, para fazer a sua caminhada de expiação.

Cersei tinha um ano quando o avô morrera. A primeira coisa que o pai fizera ao ascender à senhoria fora expulsar de Rochedo Casterly a ga­nanciosa e mal nascida amante do seu próprio pai. As sedas e veludos que o Lorde Tytos lhe prodigalizara e as jóias de que se apropriara tinham-lhe sido tirados, e ela fora obrigada a atravessar nua as ruas de Lannisporto, para que o oeste pudesse vê-la tal como era.

Embora fosse nova demais para testemunhar pessoalmente o espetá­culo, Cersei ouvira as histórias ao crescer, das bocas de lavadeiras e guardas que tinham lá estado. Falavam de como a mulher chorara e suplicara, do modo desesperado como se agarrara à roupa quando lhe fora ordenado que a despisse, dos seus esforços fúteis para tapar os seios e o sexo com as mãos enquanto coxeava pelas ruas, descalça e nua, rumo ao exílio. Lembra­va-se de um guarda dizer:

— Antes era vaidosa e orgulhosa, tão altiva que se diria que se tinha esquecido que veio da terra. Mas depois de lhe tirarmos a roupa, passou a

ser só mais uma rameira.

Se Sor Kevan e o Alto Pardal julgavam que seria o mesmo consigo, estavam muito enganados. O sangue do Lorde Tywin corria-lhe nas veias.

Sou uma leoa. Não irei encolher-me perante eles.

A rainha desfez-se da veste.

Desnudou-se num movimento suave e sem pressa, como se estivesse nos seus aposentos e se despisse para o banho sem ninguém a ver além das aias. Quando o vento frio lhe tocou a pele, tremeu violentamente. Precisou de toda a sua força de vontade para não tentar esconder-se com as mãos, como a rameira do avô fizera. Os dedos apertaram-se-lhe em punhos, es­petando as unhas nas palmas das mãos. Estavam a olhá-la, todos os olhos famintos. Mas que estavam a ver? Sou bela, fez lembrar a si própria. Quan­tas vezes lho dissera Jaime? Até Robert lhe dera isso, quando vinha à sua cama, com os copos, para lhe prestar uma homenagem ébria com a pica.

Mas olharam para Ned Stark da mesma maneira.

Tinha de se mexer. Nua, rapada, descalça, Cersei desceu lentamente os largos degraus de mármore. Pele de galinha brotou dos seus braços e pernas. Manteve o queixo erguido, como uma rainha devia fazer, e a escolta abriu-se em leque à sua frente. Os Pobres Companheiros empurraram pes­soas para o lado, a fim de abrirem caminho através da multidão, enquanto as Espadas se puseram de ambos os lados dela. A Septã Unella, a Septã Scolera e a Septã Moelle seguiram-nos. Atrás das septãs vinham as noviças vestidas de branco.

Rameira! — gritou alguém. Uma voz de mulher. As mulheres eram sempre mais cruéis no que tocava a outras mulheres.

Cersei ignorou-a. Haverá mais, e pior. Estas criaturas não têm na vida alegria mais saborosa do que escarnecer dos seus superiores. Não podia si­lenciá-los, portanto tinha de fingir que não os ouvia. Tampouco os veria. Manteria os olhos postos na Colina de Aegon, do outro lado da cidade, nas torres da Fortaleza Vermelha que reluziam à luz. Seria aí que encontraria a salvação, se o tio tivesse cumprido a sua parte do acordo que haviam alcan­çado.

Ele quis isto. Ele e o Alto Pardal. E a rosinha também, sem dúvida. Pe­quei e tenho de expiar os pecados, tenho de exibir a minha vergonha perante os olhos de todos os pedintes da cidade. Eles acham que isto quebrará o meu orgulho, que me porá fim, mas enganam-se.

A Septã Unella e a Septã Moelle mantiveram-se a seu lado, com a Septã Scolera a apressar-se atrás, fazendo soar um sino.

Vergonha — gritava a velha bruxa — vergonha para a pecadora, vergonha, vergonha. — Algures, à direita, outra voz cantava em contrapon­to da dela, um qualquer ajudante de padeiro que gritava:

— Pastéis de carne, três dinheiros, há pastéis de carne quentes. — O mármore sob os seus pés estava trio e escorregadio, e Cersei tinha de pisar com cuidado com medo de escorregar. O seu percurso fê-los passar pela estátua de Baelor, o Abençoado, que se erguia alto e sereno do seu pedestal, e cuja cara era um estudo em benevolência. Olhando-o nunca se imagina­ria o palerma que fora. A dinastia Targaryen produzira bons reis e maus reis, mas nenhum era tão amado como Baelor, esse piedoso e simpático rei-septão que amava o povo e os deuses em partes iguais mas aprisionara as próprias irmãs. Era espantoso que a estátua não se desfizesse ao ver os seus seios nus. Tyrion costumava dizer que o Rei Baelor tinha pavor da própria pica. Recordou que uma vez expulsara todas as rameiras de Porto Real. Rezara por elas enquanto eram obrigadas a atravessar os portões da cidade, segundo as histórias, mas recusara-se a olhá-las.

— Pega — gritou uma voz. Outra mulher. Algo voou do seio da mul­tidão. Um legume podre qualquer. Castanho e a liquefazer-se, passou sobre a sua cabeça e foi esmagar-se aos pés de um dos Pobres Companheiros. Não tenho medo. Sou uma leoa. Continuou a caminhar.

— Pastéis quentes — estava a gritar o ajudante de padeiro. — Tenho aqui tartes quentes.

A Septã Scolera fazia soar o sino, cantando:

— Vergonha, vergonha, vergonha para a pecadora, vergonha, vergo­nha.

Os Pobres Companheiros seguiam à frente deles, forçando as pessoas a afastarem-se com os escudos, servindo de muros para um estreito cami­nho. Cersei seguia para onde eles a levavam, de cabeça rigidamente erguida, os olhos postos na distância longínqua. Cada passo trazia a Fortaleza Ver­melha para mais perto. Cada passo a aproximava mais do filho e da salvação.

A travessia da praça pareceu demorar cem anos, mas o mármore deu por fim lugar a empedrado sob os seus pés, lojas, estábulos e casas aproxi­maram-se em redor e o grupo deu início à descida da Colina de Visenya.

Ali o avanço era mais lento. A rua era íngreme e estreita, a multidão muito apertada. Os Pobres Companheiros empurravam aqueles que blo­queavam o caminho, tentando afastá-los, mas não havia para onde ir, e os que estavam na parte de trás da multidão empurravam-nos devolta. Cersei tentou manter a cabeça erguida, mas só conseguiu pisar algo escorregadio e húmido que a fez perder o equilíbrio. Podia ter caído, mas a Septã Unella pegou-lhe no braço e manteve-a de pé.

— Vossa Graça devia ver onde põe os pés.

Cersei libertou-se com um sacão.

— Sim, septã — disse, numa voz dócil, embora estivesse suficiente­mente zangada para cuspir. A rainha continuou a caminhar, vestida apenas de pele de galinha e orgulho. Procurou a Fortaleza Vermelha, mas esta es­tava agora oculta, escondida do seu olhar pelos altos edifícios de madeira que a rodeavam.

Vergonha, vergonha — cantou a Septã Scolera, com o sino a repicar.

Cersei tentou andar mais depressa, mas rapidamente se viu obstruída pelas costas das Estrelas que seguiam na sua frente e teve de voltar a abrandar o passo. Um homem, logo à frente, vendia espetadas de carne assada com um carrinho de mão, e o cortejo parou enquanto os Pobres Companheiros o afastavam do caminho. Aos olhos de Cersei, a carne parecia-se de forma suspeita com ratazana, mas o seu cheiro enchia o ar e, quando a rua ficou finalmente suficientemente desimpedida para reatar a caminhada, metade dos homens que os rodeavam estava a mastigar, de pauzinhos na mão.

— Quereis um bocadinho, Vossa Graça? — gritou um homem. Era um grande brutamontes corpulento com olhos de porco, uma maciça bar­riga e uma barba negra mal cuidada que lhe fez lembrar Robert. Quan­do afastou o olhar, repugnada, ele atirou-lhe a espetada. Esta atingiu-a na perna e caiu na rua, e a carne semicozinhada deixou-lhe uma mancha de gordura e sangue na coxa.

Os gritos pareciam-lhe mais altos ali do que na praça, talvez por­que a turba estivesse tão mais próxima. "Rameira" e "pecadora" eram os mais comuns, mas "fodilhona de irmãos", "puta" e "traidora" também lhe eram atirados, e de vez em quando ouvia alguém gritar por Stannis ou Margaery. As pedras sob os seus pés estavam imundas e havia tão pouco espaço que a rainha nem sequer podia contornar as poças. Nunca ninguém morreu de pés molhados, disse a si própria. Quis acreditar que as poças eram só de água da chuva, embora mijo de cavalo fosse igual­mente provável.

Mais detritos choviam de janelas e varandas: fruta meio apodrecida, baldes de cerveja, ovos que explodiam num cheirete sulfuroso quando se rachavam no chão. Então, alguém atirou um gato morto por cima quer dos Pobres Companheiros, quer dos Filhos do Guerreiro. A carcaça atingiu o empedrado com tal força que rebentou, salpicando-lhe a parte inferior das pernas com entranhas e larvas.

Cersei continuou a andar. Sou cega e surda, e eles são vermes, disse a si própria.

Vergonha, vergonha — cantavam as septãs.

— Castanhas, quentes, castanhas assadas — gritou um vendedor am­bulante.

— Rainha Puta — declarou solenemente um bêbado de uma varan­da, levantando a taça na sua direção num brinde trocista. — Saudai todos as régias tetas!

Palavras são vento, pensou Cersei. As palavras não me podem fazer mal.

A meio da descida da Colina de Visenya, a rainha caiu pela primeira vez, quando o pé escorregou em algo que podia ter sido dejetos. Quando a Septã Unella a pôs cm pé, tinha o joelho esfolado e ensanguentado. Uma gargalhada irregular percorreu a multidão, e um homem gritou, oferecendo-se para beijar o dói-dói e pô-lo melhor. Cersei olhou para trás. Ainda conseguia ver a grande cúpula e as sete torres de cristal do Grande Septo de Baelor no topo da colina. Terei realmente percorrido um trajeto tão curto? Pior, cem vezes pior, perdera de vista a Fortaleza Vermelha.

— Onde... onde...?

— Vossa Graça. — O capitão da escolta apareceu a seu lado. Cersei esquecera o seu nome. — Tendes de prosseguir. A multidão está a tornar-se difícil de controlar.

Sim, pensou. Difícil de controlar.

— Não tenho medo...

— Devíeis ter. — O capitão puxou-lhe pelo braço, obrigando-a a avançar a seu lado. Cersei cambaleou colina abaixo, para baixo, sempre para baixo, estremecendo a cada passo, deixando que ele a sustentasse. De­via ser Jaime a estar ao meu lado. Ele puxaria pela espada dourada e abriria caminho à espadeirada através da turba, arrancando os olhos da cabeça de qualquer homem que se atrevesse a olhá-la.

As pedras do pavimento estavam fendidas e irregulares, escorrega­dias, e ela sentia-as ásperas nos pés suaves. O calcanhar caiu sobre qualquer coisa afiada, uma pedra ou um bocado partido de cerâmica. Cersei soltou um grito de dor.

— Eu pedi sandálias — cuspiu sobre a Septã Unella. — Vós podíeis ter-me dado sandálias, podíeis ter feito pelo menos isso. — O cavaleiro vol­tou a puxar-lhe pelo braço, como se fosse uma qualquer rapariga de servir. Ter-se-á ele esquecido de quem eu sou? Era a rainha de Westeros, ele não tinha qualquer direito de lhe pôr as mãos em cima.

Perto do sopé da colina, o declive diminuiu e a rua começou a alargar. Cersei voltou a ver a Fortaleza Vermelha, a brilhar, carmim, ao sol da ma­nhã, no topo da Colina de Aegon. Tenho de continuar a andar. Libertou-se com um esticão da mão de Sor Theodan.

— Não precisais de me arrastar, sor. — Avançou a coxear, deixando atrás de si um rasto de pegadas ensanguentadas nas pedras.

Caminhou por lama e por bosta, sangrando, com pele de galinha, a mancar. A toda a sua volta havia um rebuliço de som.

— A minha mulher tem melhores mamas do que aquelas — gritou um homem. Um carroceiro praguejou quando os Pobres Companheiros ordenaram que a sua carroça saísse do caminho.

— Vergonha, vergonha, vergonha para a pecadora — entoavam as septãs.

— Olha para esta — gritou uma rameira da janela de um bordel — na tive para minha acima metade dos caralhos que ela teve. — Sinos repicavam, repicavam, repicavam.

— Aquilo na pode ser a rainha — disse um rapaz — tem tudo tão caído como a minha mãe.

Esta é a minha penitência, disse Cersei a si própria. Pequei com grande gravidade, esta é a minha expiação. Acabará em breve, ficará para trás de mim, depois posso esquecer.

A rainha começou a ver caras conhecidas. Um careca com suíças hir­sutas franziu o sobrolho a uma janela com o cenho franzido do pai, e por um instante pareceu-se tanto com o Lorde Tywin que ela tropeçou. Uma jovem estava sentada sob um fontanário, ensopada de salpicos, e fitava-a com os olhos acusadores de Melara Hetherstone. Viu Ned Stark, e a seu lado a pequena Sansa com o cabelo ruivo e um peludo cão cinzento que po­dia ter sido o seu lobo. Todas as crianças que corriam através da multidão se transformaram no seu irmão Tyrion, zombando dela como zombara quan­do Joffrey morrera. E ali estava também Joff, o seu filho, o seu primogénito, o seu belo e brilhante rapaz com os caracóis dourados e sorriso doce, ele tinha uns lábios tão encantadores, ele...

Foi então que caiu pela segunda vez.

Estava a tremer como uma folha quando a puseram em pé.

— Por favor — disse. — Mãe, misericórdia. Eu confessei.

— Confessastes — disse a Septã Moelle. — Esta é a vossa expiação.

— Já não falta muito — disse a Septã Unella. — Vedes? — Apontou. — Subir a colina, nada mais.

Subira colina. Nada mais. Era verdade. Estavam na base da Colina de Aegon, com o castelo por cima.

— Rameira — gritou alguém.

— Fode-irmãos — acrescentou outra voz. — Abominação.

— Quereis mamar nisto, Vossa Graça? — Um homem com um aven­tal de carniceiro tirou a pica de dentro das bragas, sorrindo. Não importa­va. Ela estava quase em casa.

Cersei começou a subir.

Se havia alguma diferença, era as zombarias e os gritos serem ali mais grosseiros. A caminhada não a levara a atravessar o Fundo das Pul­gas, portanto os seus habitantes tinham-se aglomerado nas ladeiras infe­riores da Colina de Aegon para ver o espetáculo. As caras que a olhavam de trás dos escudos e lanças dos Pobres Companheiros pareciam retor­cidas, monstruosas, hediondas. Tropeçava-se em porcos e crianças nuas por todo o lado, pedintes aleijados e carteiristas enxameavam como bara­tas pelo meio da multidão. Viu homens cujos dentes tinham sido afiados até formarem pontas, bruxas com inchaços de bócio tão grandes como as cabeças, uma rameira com uma enorme serpente listada enrolada em volta de seios e ombros, um homem cujas bochechas e testa estavam cobertas de chagas que exsudavam pus cinzento. Sorriam e lambiam os lábios e gritavam-lhe quando passava por eles a coxear, com os seios a oscilar devido ao esforço da subida. Alguns gritavam propostas obscenas, outros insultos. Palavras são vento, pensou, palavras não me podem fazer mal. Sou bela, a mais bela mulher de todo o Westeros, é o Jaime que o diz, o Jaime nunca me mentiria. Até Robert, Robert nunca me amou, mas via que eu era bela, ele desejava-me.

Mas não se sentia bela. Sentia-se velha, usada, imunda, feia. Havia estrias na sua barriga, das crianças que dera ã luz, e os seios não eram tão firmes como tinham sido quando era mais nova. Sem um vestido que os sustentasse, pendiam-lhe sobre o peito. Não devia ter feito isto. Era a rainha deles, mas agora viram, viram, viram. Nunca devia ter deixado que vissem. Vestida e coroada, era uma rainha. Nua, ensanguentada, a coxear, era ape­nas uma mulher, não muito diferente das suas esposas, mais parecida com as suas mães do que com as lindas filhinhas donzelas. Que fiz eu?

Havia algo nos seus olhos, algo que picava, que lhe enevoava a visão. Não podia chorar, não queria chorar, os vermes não podiam nunca vê-la chorar. Cersei esfregou os olhos com os pulsos. Uma rajada de vento frio fê-la tremer com violência.

E de súbito ali estava a bruxa, no meio da multidão com as suas tetas pendulares e a verrugosa pele esverdeada, olhando como os outros, com malícia a brilhar nos ramelosos olhos amarelos.

— Rainha serás — silvou — até chegar outra, mais nova e mais bela, para te derrubar e te tirar tudo o que te for mais querido.

E depois disso não houve forma de parar as lágrimas. Escorreram a arder pela cara da rainha, como ácido. Cersei soltou um grito penetrante, tapou os mamilos com um braço, fez descer a outra mão para esconder a racha e desatou a correr, abrindo caminho ao encontrão pela fileira de Pobres Companheiros, inclinando-se para correr colina acima. A meio do caminho tropeçou e caiu, levantou-se, depois voltou a cair dez metros mais à frente. Quando deu por si estava a gatinhar, avançando de gatas colina acima, como um cão, enquanto a boa gente de Porto Real lhe abria cami­nho, rindo, troçando e aplaudindo-a.

Então, de súbito, a multidão afastou-se e pareceu dissolver-se, e sur­giram portões de castelo à sua frente, e uma fileira de lanceiros com meios elmos dourados e mantos carmesim. Cersei ouviu o som duro e familiar do tio a rosnar ordens, e vislumbrou um clarão de branco de ambos os lados quando Sor Boros Blount e Sor Meryn Trant avançaram na sua direção com o aço branco e mantos de neve.

— O meu filho — gritou. — Onde está o meu filho? Onde está Tommen?

— Não está aqui. Nenhum filho deve ser testemunha da vergonha da mãe. — A voz de Sor Kevan estava severa. — Tapai-a.

Depois viu Jocelyn dobrada sobre si, envolvendo-a numa suave e limpa manta de lã verde para tapar a sua nudez. Uma sombra caiu sobre ambas, obscurecendo o sol. A rainha sentiu aço frio a deslizar sob o seu cor­po, um par de grandes braços couraçados a levantá-la do chão, a erguê-la no ar tão facilmente como ela erguera Joffrey quando ele ainda era bebê. Um gigante, pensou Cersei, entontecida, enquanto ele a levava com grandes passos na direção da casa do portão. Ouvira dizer que ainda se podia en­contrar gigantes nas regiões selvagens e ímpias para lá da Muralha. Isso é só uma lenda. Estarei a sonhar?

Não. O seu salvador era real. Dois metros e quarenta de altura, ou talvez mais, com pernas tão grossas como árvores, tinha um peito digno de um cavalo de tração e ombros que não envergonhariam um touro. A sua armadura era de placa de aço, esmaltada de branco e brilhante como esperanças de donzela, e era usada por cima de cota de malha dourada. Um grande elmo ocultava-lhe o rosto. Da crista partiam sete plumas de seda nas cores do arco-íris da Fé. Um par de estrelas douradas de sete pontas prendia-lhe aos ombros o manto encapelado.

Um manto branco.

Sor Kevan cumprira a sua parte do acordo. Tommen, o seu precioso rapazinho, nomeara o seu campeão para a Guarda Real.

Cersei não chegou a ver de onde Qyburn saíra, mas ele apareceu ali de súbito a seu lado, dando corridinhas para acompanhar os longos passos do seu campeão.

— Vossa Graça — disse — é tão bom ter-vos de volta. Posso ter a honra de vos apresentar o mais recente membro da Guarda Real? Este é Sor Robert Strong.

— Sor Robert — sussurrou Cersei enquanto atravessavam os portões.

— Se aprouver a Vossa Graça, Sor Robert prestou um voto sagrado de silêncio — disse Qyburn. — Jurou que não falaria até todos os inimigos de Vossa Graça estarem mortos e o mal ter sido expulso do reino.

Sim, pensou Cersei Lannister. Oh, sim.


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