— Desse jeito, não... deixe ver seu rosto. É, deixe ver seus ossos, Sam, bem na luz. Está melhor.
Naquela noite, o terceiro, o último, e o maior medo crucificou Changi. O medo do amanhã.
Agora, Changi inteira sabia que a guerra acabara. O futuro tinha que ser enfrentado. O futuro fora de Changi. O futuro em agora. Agora.
E os homens de Changi recolheram-se dentro de si mesmos. Não havia outro lugar para onde ir. Nenhum lugar onde se esconder. Nenhum lugar, exceto lá dentro. E lá dentro havia o terror.
A Esquadra aliada chegou a Cingapura. Mais gente de fora convergiu sobre Changi.
Foi então que as perguntas começaram.
— Nome, posto, número de série, unidade?
— Onde lutou?
— Quem morreu?
— Quem foi morto?
— E quanto às atrocidades? Quantas vezes foi espancado? Quem viu ser morto a baioneta?
— Ninguém? Impossível! Pense, homem. Use a cabeça! Recorde. Quantos morreram? No barco? Três, quatro, cinco? Por quê? Quem estava lá?
— Quem sobrou de sua unidade? Dez? De um regimento inteiro? Pronto, assim está melhor. Bem, e como morreram os outros? Sim, os detalhes!
— Ah, viu-os serem mortos a baioneta!
— Três Pagoda Pass? Ah, a estrada de ferro! Sim, sabemos do caso. O que pode acrescentar? Quanta comida recebiam? Anestésicos? Claro, desculpe, esqueci. Cólera?
— Sim, sei tudo sobre o Campo Três. E quanto ao Quatorze? Aquele na fronteira da Birmânia com o Sião? Milhares morreram ali, não foi?
Junto com as perguntas, os estranhos traziam opiniões. Os homens de Changi ouviam quando eram sussurradas, de boca em boca.
— Viu aquele homem? Meu Deus, é impossível! Está andando pelado! Em público!
— E olhe ali! Há um homem fazendo necessidades em público! E, Santo Deus, não usa papel! Usa água e as mãos! Meu Deus... todos agem assim!
— Olhe só aquela cama imunda! Cristo, está cheia de percevejos!
— A que degradação foram reduzidos os desgraçados... pior do que animais!
— Deveriam estar num hospício! Está certo que foram os japoneses que fizeram isso com eles, mas mesmo assim seria mais seguro trancafiá-los. Não parecem saber o que é certo e o que é errado!
— Olhe só como se empanturram daquela nojeira! Meu Deus, a gente lhes dá pão e batata, e querem arroz!
— Tenho que voltar logo para o navio. Mal posso esperar para chamar os rapazes. É uma oportunidade única na vida, ver uma coisa dessas.
— Meu Deus, aquelas enfermeiras estão-se arriscando, andando por aí.
— Qual nada, estão perfeitamente seguras. Já vi um bocado de garotas vindo espiá-los. Puxa vida, mas aquele lá é uma piada!
— Veja só o modo revoltante como os prisioneiros olham para elas!
Junto com as perguntas e opiniões, os estranhos trouxeram respostas.
— Ah, Capitão-Aviador Marlowe? Sim, recebemos uma resposta do Almirantado. O Comandante Marlowe, da Marinha Real, está, bem, infelizmente seu pai está morto. Morreu em ação na rota de Murmansk. No dia 10 de setembro de 1943. Lamento. O seguinte!
— Capitão Spence? Sim. Temos muitas cartas para o senhor. Pode pegá-las na casa da guarda. Ah, sim. Sua... sua mulher e filha foram mortas em Londres, num bombardeio. Em janeiro deste ano. Lamento. Uma V2. Terrível. O seguinte!
— Tenente-Coronel Jones? Sim, senhor. Fará parte do primeiro grupo, que parte amanhã.— Irão todos os oficiais superiores. Bon voyage! O seguinte!
— Major McCoy? Ah, sim, estava perguntando sobre sua mulher e filho. Deixe .ver, estavam a bordo do Empress of Shropshire, não é mesmo? O navio que zarpou de Cingapura a 9 de fevereiro de 1942? Lamento, não temos notícias, exceto que foi afundado próximo a Bornéu. Há boatos de que houve sobreviventes, mas se houve mesmo, e onde estarão... ninguém sabe. Terá que ser paciente! Parece que há campos de prisioneiros de guerra por toda a parte... nas Celebes... em Bornéu... terá que ser paciente! O seguinte!
— Ah, Coronel Smedly-Taylor? Lamento, senhor, más notícias. Sua mulher foi morta num bombardeio. Há dois anos. O seu filho mais moço, Líder de Esquadrilha P.R. Smedly-Taylor, V.C., foi dado como morto sobrevoando a Alemanha, em 1944. Seu filho John está atualmente em Berlim, com as forças de ocupação. Eis seu endereço. Posto? Tenente-Coronel. O seguinte!
— Coronel Larkin? Ah, os australianos são atendidos noutro local.
— Capitão Grey? Bem, é um tanto difícil dizer-lhe. Bem, o senhor foi dado como morto em ação em 1942. Infelizmente, sua mulher se casou outra vez. Ela... hã... bem, eis o seu endereço atual. Não sei, senhor. Terá que consultar a Procuradoria-Geral. Os aspectos legais não são comigo. O seguinte!
— Capitão Ewart? Ah, sim, o Regimento Malaio? Sim, é com prazer que lhe dou a notícia de que sua mulher e três filhos estão bem e em segurança, no Campo Cha Song, em Cingapura. Sim, temos transporte para o senhor, hoje à tarde. Como disse? Bem, não sei. Aqui diz três, não dois filhos. Talvez seja um erro. O seguinte!
Agora, mais homens estavam indo nadar. Porém, o mundo exterior ainda assustava, e os homens que iam ficavam satisfeitos quando chegava a hora de voltar. Sean foi nadar. Foi para a praia com os homens, segurando um embrulho. Quando o grupo chegou à beira da praia, Sean se afastou, e os homens, na sua maioria, riram e debocharam do pervertido que não queria tirar a roupa, como os demais.
— Bicha!
— Veado!
— Fresco de uma figa!
— Homossexual!
Sean foi andando pela praia, para longe das vaias, até achar um cantinho particular. Tirou a calça curta e a camisa, e vestiu o sarongue de festa, o sutiã com enchimento, o prendedor de meias e as meias, penteou o cabelo e se maquiou. Com muito, muito capricho. E então a moça se levantou, confiante e muito feliz. Calçou os sapatos de salto alto e entrou no mar.
O mar lhe deu as boas-vindas, e fê-la dormir facilmente, e depois, com o passar do tempo, devorou as roupas, o corpo e o tempo dela.
Havia um Major parado diante da porta da choça de Peter Marlowe. Sua farda, estava cheia de barretes, e ele parecia muito jovem. Correu os olhos pela choça, espiando as obscenidades deitadas nos beliches, ou trocando de roupa, ou fumando, ou se preparando para tomar uma chuveirada. Seus olhos acabatam por pousar em Peter Marlowe.
— Que é, porra, nunca me viu? — gritou Peter Marlowe.
— Não fale comigo assim! Sou um Major e...
— Para mim pode até ser Cristo! Saia daqui! Saia!
— Fique em posição de sentido! Levo-o à corte marcial! — explodiu o Major, olhos saltados, suor escorrendo. — Devia sentir vergonha, parado aí, de saia...
— É um sarongue...
— É uma saia, está de saia, seminu! Vocês prisioneiros de guerra acham que podem fazer o que bem entenderem. Pois graças a Deus não podem. E agora, vão-lhes ensinar a respeitar...
Peter Marlowe agarrou sua baioneta de cabo, correu até a porta e encostou a faca na cara do Major.
— Saia daqui, ou juro por Deus, que corto sua garganta, seu merda... O Major se evaporou.
— Vá com calma, Peter — resmungou Phil. — Vai-nos meter a todos em encrenca.
— Por que ficam olhando para a gente? Por quê? Mas que merda, por quê? — berrou Peter. Não houve resposta.
Um médico entrou na choça, um médico com uma Cruz Vermelha no braço, e estava apressado... mas fingia não estar... e sorria para Peter Marlowe.
— Não ligue para ele — falou, apontando para o Major que percorria o campo.
— Porra, mas por que vocês ficam todos olhando para a gente?
— Fume um cigarro e acalme-se.
O médico parecia bem simpático e tranqüilo, mas era gente de fora... não merecia confiança.
— Fume um cigarro e acalme-se! Ê só isso que sabem dizer, seus filhos da mãe — esbravejava Peter Marlowe. — Perguntei, por que ficam todos olhando para a gente?
O médico acendeu um cigarro e sentou-se numa das camas, depois desejou não ter sentado, pois sabia que todas elas estavam contaminadas. Mas queria ajudar.
— Vou tentar explicar — falou, suavemente. — Vocês, todos vocês, passaram por sofrimentos indescritíveis e insuportáveis. São esqueletos ambulantes. A cara de vocês está que é só olhos, e neles há um olhar... — Deteve-se, por um momento, tentando encontrar as palavras certas, pois sabia que aqueles homens precisavam de ajuda, cuidados e meiguice. — Não sei bem como descrevê-lo. É furtivo... não, esta não é a palavra certa, e também não é medo. Mas todos têm o mesmo olhar. E estão vivos, quando, por todos os critérios, deveriam estar mortos. Não sabemos por que nâ”o estão mortos, nem por que sobreviveram... quero dizer, cada um de vocês, por que justo vocês? Nós, do mundo exterior, ficamos olhando para vocês porque são fascinantes...
— Como monstros num parque de diversões, talvez?
— Sim — disse o médico, calmamente. — Podia-se dizer assim, mas...
— Juro por Deus que mato o próximo sacana que olhar para mim como se eu fosse um macaco!
— Tome — disse o médico, tentando apaziguá-lo. — Tome uns comprimidos. Deixarão você mais calmo...
Peter Marlowe deu um tapa na mio do médico, derrubando os comprimidos, e berrou:
— Não quero porra de comprimido nenhum. Só quero ficar em paz! — E saiu correndo da choça.
A choça americana estava deserta.
Peter Marlowe deitou-se na cama do Rei, e chorou.
— Tchau, Peter — falou Larkin.
— Tchau, Coronel.
— Tchau, Mac.
— Boa sorte, meu rapaz.
— Não deixem de dar notícias.
Larkin apertou-lhes as mãos, depois dirigiu-se para o Portão de Changi, onde os caminhões esperavam para levar os últimos australianos para os navios. Para casa.
— Quando parte, Peter? — perguntou Mac, depois que Larkin desaparecera.
— Amanhã. E você?
— Parto agora, mas vou ficar em Cingapura. Não há por que tomar um navio, até que saiba qual destino devo tomar.
— Ainda sem novidades?
— Ainda. Podem estar em qualquer lugar das índias. Mas se ela e Angus estivessem mortos, acho que saberia, dentro de mim. — Mac ergueu a mochila, e inconscientemente verificou se a lata de sardinhas secreta ainda estava em segurança. — Ouvi contar que há algumas mulheres num dos campos de Cingapura que estavam no Shropshire. Talvez alguma delas saiba algo, ou possa dar-me uma pista. Se puder achá-las. — Parecia velho e vincado, mas muito forte. Estendeu a mão. — Salamat.
— Salamat.
— Puki ‘mahlu!
— Senderis — disse Peter Marlowe, cônscio de suas lágrimas, mas sem se envergonhar delas. Tampouco Mac se envergonhava das dele.
— Pode escrever para mim aos cuidados do Banco de Cingapura, meu rapaz.
— Vou escrever. Boa sorte, Mac.
— Salamat!
Peter Marlowe ficou parado na rua que dividia em dois o campo, vendo Mac subir o morro. No topo do morro, Mac virou-se e acenou uma vez. Peter Marlowe retribuiu o aceno, e depois Mac se perdeu na multidão.
E agora, Peter Marlowe estava completamente sozinho.
Última alvorada em Changi. Um último homem morreu. Alguns dos oficiais da Choça 16 já tinham ido embora. Os mais enfermos.
Peter Marlowe jazia sob o mosquiteiro no seu beliche, semi-adormecido. À sua volta, homens acordavam, se levantavam e iam fazer suas necessidades. Barstairs estava de ponta-cabeça, fazendo ioga, Fhil Mint já estava limpando o nariz com uma das mãos e aleijando moscas com a outra, o jogo de bridge já começara, Myner tocava escalas no seu teclado de madeira, e Thomas já xingava porque o café estava atrasado.
— O que acha, Peter? — perguntou Mike.
Peter Marlowe abriu os olhos e fitou-o atentamente.
— Bem, tenho que admitir que está diferente.
Mike esfregou o lábio superior escanhoado com o dorso da mão.
— Sinto-me nu. — Voltou a se olhar no espelho. — Bem, tirei e está tirado.
— Ei, hora da bóia — chamou Spence.
— O que vai ser?
— Mingau, torrada, marmelada, ovos mexidos, bacon, chá.
Alguns homens reclamaram que suas porções eram muito pequenas, outros que eram muito grandes.
Peter Marlowe aceitou apenas os ovos mexidos e o chá. Misturou os ovos com um pouco de arroz que guardara da véspera, e comeu com grande satisfação.
Ergueu os olhos, à entrada de Drinkwater.
— Ah, Drinkwater — falou, detendo-o. — Tem um minutinho?
— Mas, claro. — Drinkwater ficou surpreso com a repentina afabilidade de Peter Marlowe. Mas manteve os olhos azul-claros baixados, pois temia que o ódio abrasador que sentia por Peter Marlowe se extravasasse neles. Calma, Theo, falou consigo mesmo. Há meses que se vem controlando. Não ponha tudo a perder agora. Só mais umas horas, depois pode esquecer-se dele e de todos os outros homens horríveis. Lyles e Blodger não tinham o direito de tentá-lo. Nenhum direito. Bem, tiveram o que mereciam.
— Lembra-se da perna de coelho que roubou? Os olhos de Drinkwater faiscaram.
— Do quê... do que está falando?
Do outro lado do corredor, Phil parou de se cocar e levantou os olhos.
— Ora, qual é, Drinkwater — disse Peter Marlowe. — Já não estou mais ligando. Por que, diabo, ligaria? A guerra acabou, e.estamos fora dela. Mas lembra da perna de coelho, não lembra?
— Não sei do que está falando. — Os olhos de Drinkwater faiscaram. — Não — respondeu, asperamente — não me lembro. — Mas teve que se controlar para não dizer “deliciosa, deliciosa!”
— Não era coelho, sabia?
— Ah, é? Desculpe, Marlowe mas não fui eu. E não tenho a menor idéia, até o dia de hoje, de quem o roubou, fosse lá o que fosse!
— Vou contar-lhe o que era — disse Peter Marlowe, saboreando aquele momento. — Era carne de rato. Carne de rato.
Drinkwater riu.
— Como você é engraçado! — comentou o pastor, com sarcasmo.
— Ah, mas era rato, sim! Era mesmo. Peguei um rato, grande e peludo e sarnento. Acho que estava com peste.
O queixo de Drinkwater tremia, as bochechas se sacudiam.
Phil piscou o olho para Peter Marlowe, e confirmou alegremente:
— Isso mesmo, Reverendo. Estava todo sarnento. Vi o Peter tirar a pele da perna...
Foi então que Drinkwater vomitou por todo o seu belo uniforme limpinho, e saiu correndo, e vomitou mais um pouco, lá fora. Peter Marlowe começou a rir, e logo a choça inteira estava às gargalhadas.
— Ó, Deus — disse Phil, debilmente — tenho que admitir, Peter, que foi uma idéia brilhante. Fingir que era um rato. Ó, meu Deus, bem que o sacana merecia essa!
— Mas era mesmo rato — explicou Peter Marlowe. — Deixei-o de propósito para que ele o roubasse.
— Ah, sim, claro — disse Phil com sarcasmo, usando automaticamente o seu mata-moscas. — Não tente enfeitar mais uma história tão maravilhosa! Maravilhosa!
Peter Marlowe sabia que não acreditariam nele. Portanto, ficou calado. Ninguém acreditaria, se não lhes mostrasse as gaiolas... Meu Deus! As gaiolas, a criação! Seu estômago revirou.
Vestiu a farda nova. As dragonas mostravam seu posto — Capitão-aviador. Sobre o peito esquerdo, trazia as asas. Olhou à sua volta, para os seus pertences... cama, mosquiteiro, colchão, coberta, sarongue, camisa rasgada, um short esfarrapado, dois pares de tamancos, faca, colher e três pratos de alumínio. Juntou tudo que estava sobre a cama, levou lá para fora e ateou fogo.
— Ei, você... ah, desculpe, senhor — disse o Sargento. — As fogueiras são perigosas.
O Sargento era um estranho, mas Peter Marlowe não tinha mais medo de estranhos.
— Dê o fora — falou Peter Marlowe, bruscamente.
— Mas, senhor...
— Falei para dar o fora, merda!
— Sim, senhor.
O Sargento bateu continência e Peter Marlowe ficou muito satisfeito por não sentir mais medo da gente de fora. Retribuiu a continência, e desejou não tê-lo feito, pois estava sem o quepe. Tentou disfarçar o erro, dizendo:
— Onde, diabo, enfiei meu quepe?
Depois, voltou para a choça, sentindo retornar o medo dos estranhos. Mas forçou o medo a se afastar, e jurou para si mesmo: “Juro, pelo Senhor meu Deus, que nunca mais vou ter medo de novo. Nunca.”
Achou o quepe e a lata de sardinhas escondida. Enfiou a lata no bolso, desceu as escadas da choça e subiu a estrada, ao longo da cerca. O campo agora se achava quase deserto. O resto das tropas inglesas estava indo embora hoje, no mesmo comboio que ele. Indo embora. Muito depois que todos os australianos já haviam partido, e séculos depois dos ianques. Mas isso era de se esperar. Somos vagarosos, mas muito seguros.
Parou perto da choça americana. O pedaço de lona do toldo se agitava tristemente ao vento do passado. Então, Peter Marlowe entrou na choça, pela última vez.
Não estava vazia. Grey estava lá, todo uniformizado.
— Veio dar uma última olhada no local dos seus triunfos? — perguntou, venenosamente.
— Pode-se dizer isso. — Peter Marlowe preparou um cigarro e guardou as sobras na sua caixa de fumo. — E agora a guerra acabou. Agora somos iguais, eu e você.
— Isso mesmo. — A pele do rosto de Grey estava esticada, seus olhos pareciam de cobra. — Tenho ódio de você.
— Lembra do Dino?
— O que é que tem?
— Era o seu “informante”, não era?
— Agora, suponho que não faça mal admiti-lo.
— O Rei sabia tudo sobre o Dino.
— Não acredito.
— Dino passava informações para você, seguindo ordens. As ordens do Rei! — disse Peter Marlowe, rindo.
— Você é um mentiroso de uma figa!
— Por que deveria mentir? — A risada de Peter Marlowe cessou abruptamente. — A época de mentir acabou. De vez. Mas Dino seguia ordens. Lembra-se de como você sempre chegava um pouco tarde demais? Sempre.
Ó, meu Deus, pensou Grey. Sim, agora entendo. Peter Marlowe deu uma tragada no cigarro.
— O Rei imaginou que, se você não obtivesse umas informações verdadeiras, tentaria arranjar um informante. Então, providenciou um.
Repentinamente, Grey sentiu-se cansado. Muito cansado. Muitas coisas eram difíceis de entender. Muitas coisas, coisas estranhas. Então reparou em
Peter Marlowe, no seu sorriso irônico, e todo o seu sofrimento contido explodiu. Voou pela choça, derrubou com um chute a cama do Rei, espalhou seus pertences, depois virou-se, furioso, para Peter Marlowe.
— Muito espertinho! Mas vi o Rei ser espezinhado, e verei o mesmo acontecer com você. E com toda a sua nojenta classe!
— É?
— Pode apostar! Vou vingar-me de você, de alguma maneira, nem que tenha que passar a vida inteira tentando. Vou acabar vencendo. Sua sorte vai esgotar-se.
— Sorte não tem nada a ver com isso.
Grey levantou o dedo em riste, na cara de Peter Marlowe.
— Você nasceu com sorte. Terminou Changi com sorte. Ora, até mesmo escapou com o pouquinho de alma que sempre teve!
— Do que está falando? — Peter Marlowe empurrou o dedo para longe.
— Corrupção. Corrupção moral. Foi salvo bem a tempo. Mais alguns meses junto da maldade do Rei, e se teria modificado para sempre. Estava começando a virar um grande mentiroso e trapaceiro... como ele.
— Ele não era mau, nem trapaceou com ninguém. Apenas se adaptou às circunstâncias.
— O mundo seria uma lástima, se todos se escondessem atrás dessa desculpa. Há uma coisa chamada moralidade.
Peter Marlowe jogou o cigarro no chão, esmagando-o com o pé.
— Não me diga que preferiria estar morto, com todas as suas malditas virtudes, do que vivo, sabendo que teve que transigir um pouco.
— Um pouco? — Grey soltou uma risada áspera. — Você abriu mão de tudo... honra, integridade, orgulho... tudo por uma esmola do pior sacana neste buraco de merda!
— Quando se pára para pensar, o sentimento de honra do Rei era bem grande. Mas tem razão numa coisa. Ele me modificou. Fez-me ver que um homem é um homem, pouco importando suas origens. Contra tudo que me fora ensinado. Portanto, estava errado quando o menosprezava por uma coisa que não era sua culpa, e lamento isso. Mas não me desculpo por desprezá-lo por ser o homem que é.
— Pelo menos, não vendi minha alma! — A farda de Grey estava manchada de suor, e fitava Peter Marlowe com olhos malévolos. Mas, por dentro, sufocava de ódio por si mesmo. E quanto a Smedly-Taylor?, perguntou-se. É verdade, também me vendi. Mas, pelo menos, sei que o que fiz foi errado. E sei por que o fiz. Sentia vergonha de minhas origens, queria pertencer à classe bem-nascida. À sua maldita classe, Marlowe. Nas Forças Armadas. Mas, agora,
pouco se me dá. — Seus sacanas, vocês são os donos do mundo — disse, em voz alta — mas não por muito tempo, por Deus, agora não. Vamos à forra, pessoas como eu. Não fizemos a guerra para sermos pisoteados. Vamos à forra!
— Muito boa sorte!
Grey tentou controlar a respiração. Abriu os punhos cerrados com esforço, e tirou o suor dos olhos.
— Mas você, não vale a pena lutar com você. Está morto!
— A realidade é que ambos estamos bem vivos.
Grey se virou e caminhou para a porta. No degrau superior, parou e se voltou.
— Na verdade, devo agradecer-lhe, e ao Rei, por uma coisa — falou, rancorosamente. — Foi o ódio que sentia pelos dois que me manteve vivo. — A seguir, afastou-se sem olhar para trás.
Peter Marlowe ficou olhando para o campo, depois voltou a olhar para a choça, e para os pertences espalhados do Rei. Apanhou o prato em que se serviam os ovos, e notou que já estava coberto de pó. Distraidamente, levantou a mesa do chão e botou o prato em cima, imerso em seus pensamentos. Pensamentos que incluíam Grey, o Rei, Samson, Sean, Max, e Tex, e onde estava a mulher de Mac, e N’ai seria apenas um sonho, e o General, os estranhos, sua casa e Changi.
Meu Deus, meu Deus, perguntou-se. Será errado adaptar-se? Errado sobreviver? O que eu teria feito se fosse Grey? O que Grey teria feito se fosse eu? O que é o bem e o que é o mal?
E Peter Marlowe sabia,, atormentado, que o único homem que talvez pudesse esclarecê-lo morrera nas águas geladas da rota de Murmansk.
Fitou as coisas do passado... a mesa onde apoiara o braço, a cama onde se recuperara, o banco que ele e o Rei partilharam, as cadeiras em que, sentados, deram risadas... já velhas e com mofo.
No canto, havia um maço de dólares japoneses. Pegou-os e fitou-os, depois deixou-os cair, de um em um. Quando as notas iam pousando, as moscas caíam sobre elas, depois alçavam vôo, depois voltavam a se grudar nelas, aos montes.
Peter Marlowe ficou parado, no vã”o da porta.
— Adeus — disse, decididamente, para tudo aquilo que pertencera ao amigo. — Adeus e obrigado.
Saiu da choça, caminhou ao longo do muro da cadeia até que chegou à fila de caminhões que esperavam pacientemente junto ao portão de Changi.
Forsyth achava-se ao lado do último caminhão, indescritivelmente feliz por ter acabado sua missão. Estava exausto e trazia nos olhos a marca de Changi. Mandou que o comboio se movimentasse. O primeiro caminhão se pôs em marcha, o segundo e o terceiro, e todos os caminhões deixaram Changi, e só uma vez Peter Marlowe olhou para trás.
Quando estava bem longe.
Quando Changi parecia uma pérola numa ostra cor de esmeralda, branco-azulada sob a cúpula dos céus tropicais... quando Changi ficava numa pequena elevação, cercada por um cinturão verde, e mais adiante o verde dava lugar ao mar azul-esverdeado, e o mar à infinidade do horizonte.
E então, por sua vez, não olhou mais para trás.
Naquela noite, Changi ficou deserta. De homens. Mas os insetos permaneceram.
E os ratos.
Ainda estavam lá. Debaixo da choça. E muitos haviam morrido, pois foram esquecidos por seus captores. Os mais fortes, porém, ainda viviam.
Adão tentava estraçalhar a tela para chegar à comida do lado de fora da gaiola, lutando contra a tela como lutara desde que o puseram na gaiola. E sua paciência foi recompensada. O lado da gaiola se rasgou, e ele caiu sobre a comida, devorando-a. Depois, descansou, e com forças renovadas, lançou-se sobre outra gaiola, e com o correr do tempo devorou a carne que havia lá dentro.
Eva reuniu-se a ele, e se satisfizeram mutuamente, e depois foram pilhar juntos. Mais tarde, todo um lado de uma das trincheiras desabou, e muitas gaiolas foram abertas e os vivos se alimentaram dos mortos, e os vivos-fracos viraram alimento para os vivos-fortes, até que os sobreviventes estivessem igualmente fortes. E então, lutaram entre si, e pilharam.
E Adão dominava, pois era o Rei. Até o dia em que a vontade de ser Rei abandonou-o. Então morreu, pasto para um mais forte. E o mais forte era sempre o Rei, não apenas pela força, mas Rei pela astúcia, sorte e força juntas. Entre os ratos.
FIM