LIVRO QUATRO 19

O Rei e Peter Marlowe esperavam com crescente ansiedade. Shagata estava atrasadíssimo.

— Que merda de noite — falou o Rei, irritado. — Estou suando feito um porco.

Encontravam-se no canto do Rei, e Peter Marlowe o observava, enquanto ele jogava paciência. Havia tensão no ar pesado que baixava sobre o campo, na noite sem Lua. Até mesmo os ruídos constantes dos animais unhando a terra, sob a choça, eram abafados.

— Gostaria que ele chegasse logo, se é que vem — disse Peter Marlowe.

— Gostaria de saber que diabo aconteceu com Cheng San. O mínimo que o filho da puta podia ter feito é nos dar alguma notícia.

O Rei olhou pela janela para a cerca pela milésima vez. Buscava um sinal dos guerrilheiros que deviam estar lá... tinham que estar lá. Mas não havia nenhum movimento, nenhum sinal. A selva, como o campo, estava murcha e quieta.

Peter Marlowe fez uma careta ao flexionar os dedos da mão esquerda, e mudou o braço dolorido para uma posição mais confortável.

— Que tal está o braço? — indagou o Rei, olhando para Peter.

— Dói como o diabo, meu velho.

— Devia mandar dar uma olhada nele.

— Já dei parte de doente, para amanhã.

— Mas que puto dum azar.

— Os acidentes acontecem, não há nada que a gente possa fazer a respeito.

Acontecera fazia dois dias. No trabalho com a madeira. Num minuto Peter Marlowe estivera lutando no pântano contra o peso do tronco de árvore cheio de raízes, puxando-o, junto com mais 20 pares de mãos suadas, para dentro da carreta, e no minuto seguinte suas mãos escorregaram e o braço ficara preso ente o tranco e a carreta. Sentira as farpas da madeira, rijas como ferro, rasgarem fundo o músculo do seu braço, o peso do tronco de árvore quase lhe esmagando os ossos, e berrara de dor.

Os outros levaram alguns minutos para levantar a árvore e soltar o braço entorpecido e deitar Peter no chão, o seu sangue se misturando à lama do pântano... as moscas e insetos vindo em nuvens, atraídos feito loucos pelo cheiro de sangue. A ferida tinha 15 centímetros de comprimento, cinco de largura, e era bem funda, em certas partes. Eles haviam tirado a maior parte das farpas da ferida, derramando água sobre ela, limpando-a da melhor maneira possível. Fizeram um torniquete, depois terminaram de colocar o tronco de árvore na carreta, e a foram puxando de volta a Changi. Peter Marlowe caminhara ao lado da carreta, completamente nauseado e tonto.

O Dr. Kennedy examinara a ferida e encharcara-a de iodo, enquanto Steven segurava sua mão sadia, e ele se retesava de dor. A seguir, o médico pusera um pouco de ungüento de zinco em parte da ferida, e gordura no resto, para impedir que o sangue que se coagulava grudasse na atadura. E finalmente, o médico enfaixara seu braço.

— Você tem uma sorte dos diabos, Marlowe — dissera. — Nenhum osso quebrado, nenhum músculo danificado. É quase uma ferida superficial. Volte daqui a dois dias para eu dar uma olhada.

O Rei levantou os olhos vivamente das cartas, quando Max entrou apressadamente na choça.

— Encrenca — disse Max, a voz baixa e tensa. — Grey acaba de sair do hospital, dirigindo-se para cá.

— Mande alguém segui-lo, Max. Melhor mandar o Dino.

— Certo. — Max saiu, às pressas.

— O que acha disso, Peter?

— Se Grey saiu do hospital, deve saber que há algo no ar.

— E sabe, pode crer.

— O quê?

— Claro. Há um alcagüete aqui na choça.

— Meu Deus. Tem certeza?

— Tenho. E sei quem é.

O Rei botou um quatro preto em cima de um cinco vermelho e o cinco vermelho em cima de um seis preto, e virou mais um ás.

— Quem é?

— Não lhe vou dizer, Peter. — O Rei deu um sorriso duro. — É melhor que você não saiba. Mas o Grey tem um homem aqui.

— O que vai fazer a respeito?

— Nada. Por enquanto. Mais tarde, quem sabe eu o dê para os ratos comerem. — A seguir, o Rei sorriu e mudou de idéia. — A criação de ratos foi uma idéia e tanto, não foi?

Peter Marlowe ficou imaginando o que faria se soubesse quem era. Sabia que Yoshima também tinha um dedo-duro no campo, o cara que tinha denunciado o pobre Daven, o cara que ainda não tinha sido pegado, que ainda era desconhecido... o que ainda estava procurando o rádio nos cantis. Achou o Rei sensato por esconder o nome do cara, assim não haveria deslizes, não ficou ressentido pelo Rei nâ”o lhe dizer quem era. Mas, mesmo assim, examinou as possibilidades.

— Acha mesmo — perguntou — que a carne vai ser... perfeita?

— E eu lá sei, porra — replicou o Rei. — A idéia toda é repugnante, quando se pára para pensar. Mas... e é um grande mas... negócio é negócio. E com aquele toque derradeiro, foi uma idéia genial!

Peter Marlowe sorriu e esqueceu a dor no braço.

— Não se esqueça. A primeira perna é minha.

— Alguém que conheço?

— Não.

— Que é isso, não vai contar para o seu amigão do peito? — perguntou o Rei, com um sorriso.

— Conto depois que a carne estiver entregue.

— Afinal, pensando bem, carne é carne e comida é comida. Veja só o cachorro, por exemplo.

— Vi o Hawkins há uns dois dias.

— E o que houve?

— Nada. Eu não tinha vontade de dizer nada, e ele não queria falar no assunto.

— Aquele cara é muito legal. Acabou, está acabado. — A seguir, o Rei disse, inquieto, jogando as cartas sobre a mesa. — Gostaria que o Shagata chegasse logo.

Tex espiou pela janela.

— Ei!

— Sim?

— Timsen mandou avisar que o dono está entrando em pânico. Quanto tempo você ainda vai demorar?

— Vou falar com ele. — O Rei saiu pela janela, murmurando para Peter Marlowe. — Fique aqui de plantão, Peter. Não vou muito longe.

— Está bem — respondeu Peter Marlowe. Apanhou as cartas e começou a embaralhá-las, estremecendo com as ondas de dor.

O Rei se manteve nas sombras, sentindo muitos pares de olhos sobre si. Alguns eram olhos dos guardas, o resto se constituía de olhos estranhos, hostis. Quando encontrou Timsen, o australiano estava uma pilha.

— Como é, meu camarada. Não dá para ficar com ele aqui para sempre.

— Onde está ele?

— Quando seu contato chegar, eu o apresento. O trato é esse. Ele não está longe.

— Melhor ficar de olho nele. Não vai querer que nada lhe aconteça, não é?

— Cuide de sua parte, eu cuido da minha. Ele está bem vigiado. — Timsen deu uma tragada no seu Kooa, depois passou-o ao Rei, que fez o mesmo.

— Obrigado. — O Rei fez sinal para o muro da cadeia, lado leste. — Está sabendo deles?

— Claro. — O australiano riu. — Tem mais: Grey vem vindo para cá, nesse instante. A área toda está fervendo de tiras e mateiros. Sei que há um bando de australianos, e ouvi dizer que mais um outro está sabendo da transação. Mas os meus cupinchas estão com a área toda controlada. Logo que recebermos o dinheiro, você recebe o diamante.

— Vamos dar ao guarda mais dez minutos. Se não chegar até lá, faremos novo plano. Ou melhor, mesmo plano, detalhes diferentes.

— Certo, meu chapa. Vejo-o amanhã, depois da bóia.

— Vamos torcer para que seja ainda hoje.

Mas não foi. Esperaram, e Shagata não apareceu; portanto, o Rei cancelou a operação.

No dia seguinte, Peter Marlowe juntou-se ao enxame de homens que esperava diante do hospital. Era depois do almoço, e o Sol atormentava o ar, a terra e as criaturas da terra. Até mesmo as moscas pareciam sonâmbulas. Achou uma sombrinha, agachou-se pesadamente na poeira e começou a esperar. Seu braço cada vez latejava mais.

Já passava do entardecer, quando chegou a vez dele.

O Dr. Kennedy lançou um breve cumprimento de cabeça para Peter Marlowe, depois fez-lhe sinal para que se sentasse.

— Como está passando hoje? — perguntou, distraído.

— Mais ou menos, obrigado.

O Dr. Kennedy inclinou-se e tocou na atadura. Peter Marlowe deu um berro.

— Mas que diabo, o que é isso? — exclamou o Dr. Kennedy, zangado. — Mal lhe toquei, pelo amor de Deus!

— Não sei. O mais leve toque dói pra burro.

O Dr. Kennedy enfiou um termômetro na boca de Peter Marlowe, depois tomou-lhe o pulso. Anormal, o pulso estava a 90. Isso era mau. A temperatura estava normal, o que também não era bom. Levantou o braço e cheirou a atadura. Tinha um cheiro nitidamente murídeo. Mau.

— Muito bem — falou — vou tirar a atadura. Tome. — Deu a Peter Marlowe um pedacinho de borracha de pneu, que tirou do fluido esterilizador com um par de pinças cirúrgicas. — Morda isto. Infelizmente, vou ter que machucá-lo.

Esperou até Peter Marlowe ter posto a borracha entre os dentes; depois, com o máximo de suavidade possível, começou a tirar a atadura. Mas estava grudada à ferida, agora era parte da ferida, e a única coisa a fazer era puxar, mas ele não era mais tão hábil quanto fora e devia ser.

Peter Marlowe já sentira muita dor. E quando se conhece uma coisa intimamente, conhece-se suas limitações, sua cor e suas nuanças. Com prática... e coragem... a gente pode deixar-se entrar na dor, e então ela não fica forte, é apenas uma alteração, controlável. Às vezes, chega a ser boa. Mas esta dor ia além de qualquer agonia.

— Ó, meu Deus — choramingou Peter Marlowe, com a borracha entre os dentes, as lágrimas correndo, a respiração aos arrancos.

— Já acabou — disse o Dr. Kennedy, sabendo que não tinha acabado. Mas nada mais havia que pudesse fazer, nada. Não aqui. Este paciente devia tomar morfina, qualquer idiota podia ver, mas não tinha como dar-lhe uma injeção. — Pronto, vamos dar uma olhada.

Examinou atentamente a ferida aberta. Estava inchada e túmida, e apresentava uma cor amarelada com pedaços arroxeados. Viscosa.

— Hum — falou, especulativamente, recostando-se e formando um triângulo com os dedos, tirando os olhos da ferida e fixando-os no triângulo. — Bem — disse, finalmente — temos três alternativas. Levantou-se e começou a andar de um lado para o outro, ombros curvados, depois disse monotonamente, como se estivesse fazendo uma conferência: — A ferida agora adquiriu outros atributos. Miosite clostridial. Ou, para falar mais simplesmente, a ferida está gangrenosa. Está com gangrena gasosa. Posso abrir a ferida e remover os tecidos infeccionados, mas não creio que adiante, pois a infecção é profunda. Portanto, teria que remover parte dos músculos do antebraço, o que tornaria a mão inútil. A melhor solução seria amputar.

— O quê!

— Sem dúvida. — O Dr. Kennedy não falava com um doente, estava apenas fazendo uma conferência, na sala de aula estéril de sua mente. — Proponho uma amputação de guilhotina alta. Imediatamente. Então, quem sabe possamos salvar a junta do cotovelo...

Peter Marlowe o interrompeu, cheio de desespero.

— É só uma ferida superficial. Não há nada de errado com ela, é só uma ferida superficial! — O medo na voz dele trouxe o Dr. Kennedy de volta à realidade, e o médico olhou por um momento para o rosto sem cor.

— A ferida é muita funda. E você está com toxemia. Escute, meu rapaz, a coisa é muito simples. Se tivesse soro, poderia dá-lo a você, mas não tenho Se tivesse sulfa, poderia colocá-la na ferida, mas não tenho. A única coisa que posso fazer é amputar...

— Você deve estar maluco! — gritou Peter Marlowe para o médico. -Falando em amputar meu braço, quando só o que tenho é um ferimento superficial.

A mão do médico se lançou para a frente e Peter Marlowe uivou de dor quando os dedos apertaram seu braço, bem acima da ferida.

— Está vendo só! Não é apenas um ferimento superficial. Você tem toxemia, e ela vai espalhar-se por seu braço e penetrar no seu organismo. Se quiser viver, teremos que amputá-lo. Pelo menos salvará sua vida!

— Você não vai cortar fora meu braço!

— Faça como quiser. É isso ou a... — O médico se deteve e se sentou, exausto. — Suponho que seja um direito seu, se prefere morrer. Não posso dizer que o culpo. Mas meu Deus, rapaz, não está entendendo o que lhe estou dizendo? Você vai morrer, se não amputarmos.

— Você não vai tocar em mim! — Os lábios de Peter Marlowe estavam repuxados, deixando os dentes à mostra, e sabia que mataria o médico, se este tocasse nele de novo. — Você está maluco! — berrou. — É apenas um ferimento superficial.

— Está certo. Não precisa acreditar em mim. Vamos consultar outro médico.

Kennedy chamou outro médico e ele confirmou o diagnóstico, e Peter Marlowe entendeu que o pesadelo não era um sonho. Tinha mesmo gangrena. Ó, meu Deus! O medo deixou-o, sem forças. Escutou, aterrorizado, enquanto lhe explicavam que a gangrena era causada por bacilos multiplicando-se por todo o braço, gerando a morte, naquele momento. O seu braço era uma coisa cancerosa, tinha que ser cortado fora. Cortado até o cotovelo. Tinha que ser cortado logo, caso contrário o braço inteiro teria que ser removido. Mas não devia preocupar-se. Não ia doer. Agora tinham éter de sobra... não era como antigamente.

E então Peter Marlowe se viu fora do hospital, com o braço ainda no lugar... com os bacilos se reproduzindo... envolto numa atadura limpa, descendo o morro tropegamente, pois dissera aos médicos que precisava pensar no assunto... Pensar no quê? O que havia para pensar? Quando deu por si, estava diante da choça dos americanos, e viu que o Rei estava sozinho na choça, preparado para a chegada de Shagata, se é que este viria ainda esta noite.

— Jesus, mas que cara é essa, Peter?

O Rei escutou a história, seu pesar aumentando à medida que Peter falava.

— Santo Deus! — Ficou olhando para o braço, apoiado na mesa.

— Juro por Deus que prefiro morrer do que viver aleijado. Juro por Deus! — Peter ergueu os olhos para o Rei, patético, sem defesa, e seus olhos gritavam: Ajude-me, ajude-me, pelo amor de Deus, ajude-me!

E o Rei pensou: Puta que o pariu, ó que eu faria se fosse o Peter e aquele fosse o meu braço, e quanto ao diamante... preciso do Peter lá para me ajudar, preciso...

— Ei — sussurrou Max, do vão da porta. — Shagata vem vindo.

— Certo, Max. E quanto a Grey?

— Está junto do muro, sob vigilância. Timsen está por dentro, os australianos dele estão vigiando.

— Ótimo, dê o fora e se apronte. Avise aos outros.

— Certo. — Max se afastou, apressadamente.

— Vamos, Peter, temos que estar prontos — disse o Rei. Mas Peter Marlowe estava em estado de choque. Inútil. — Peter! — O Rei sacudiu-o, brutalmente. — Levante-se, acorde! — esbravejou. — Vamos. Você tem que ajudar. Levante-se! — Botou Peter Marlowe de pé, com violência.

— Porra, mas o quê...

— Shagata vem vindo. Temos que fechar o negócio.

— O seu negócio que vá à merda! — berrou Peter Marlowe, no limiar da loucura. — O diamante que vá à merda! Vã”o cortar meu braço fora.

— Não vão, não!

— Tem porradas de razão, não vão mesmo. Prefiro morrer primeiro...

O Rei deu-lhe um tapa com o dorso da mão, depois uma violenta bofetada. Peter Marlowe parou abruptamente de esbravejar, e sacudiu a cabeça.

— Porra, mas o quê...

— Shagata vem vindo. Temos que nos aprontar.

— Vem vindo? — perguntou Peter Marlowe, aparvalhado, o rosto ardendo das bofetadas.

— É. — O Rei notou que os olhos de Peter Marlowe se achavam novamente reservados, e teve certeza de que o inglês estava de volta ao mundo real. — Puxa vida — falou, tonto de alívio — tive que fazer alguma coisa, Peter, você estava gritando como doido.

— Estava? Desculpe, que idiotice.

— Está-se sentindo bem, agora? Vai ficar controlado?

— Agora, estou bem.

Peter Marlowe saltou pela janela, atrás do Rei. E ficou feliz pela fisgada de dor que subiu por seu braço, quando os pés tocaram o solo. Entrou em pânico, seu idiota, falou consigo mesmo. Marlowe, seu idiota, entrou em pânico como uma criança. Então vai ter que perder o braço. Tem sorte de não ser a perna, aí sim é que estaria aleijado de verdade. O que é um braço? Nada. Pode arranjar um braço artificial. Com um gancho. É isso aí. Nada de errado com um braço postiço. Nada. Pode até ser uma boa idéia. Claro.

— Tabe — cumprimentou Shagata, enquanto se enfiava sob o toldo de lona.

— Tabe — disseram o Rei e Peter Marlowe.

Shagata estava muito nervoso. Quanto mais pensava na transação, menos gostava dela. Dinheiro demais, risco demais. E farejava o ar, como um cão perdigueiro.

— Sinto cheiro de perigo — falou.

— Ele disse: “Sinto cheiro de perigo.”

— Diga-lhe para não se preocupar, Peter. Estou ciente do perigo e está tudo sob controle. Mas, e quanto a Cheng San?

— Já vos digo — Shagata murmurou, apressadamente — que os deuses sorriem para vós, para mim e para nosso amigo. Aquele é uma raposa, pois a polícia peçonhenta soltou-o da armadilha. — O suor corria por seu rosto, ensopando-o. — Estou com o dinheiro.

O estômago do Rei deu uma cambalhota.

— Diga a ele que é melhor a gente cortar o papo furado e agir. Volto já com a mercadoria.

O Rei achou Timsen, nas sombras.

— Pronto?

— Pronto. — Timsen soltou um assobio na escuridão, que foi prontamente respondido. — Ande depressa, meu chapa. Não posso garantir sua segurança por muito tempo.

— O.K. — O Rei esperou, e um cabo australiano magro saiu da escuridão.

— Oi, meu camarada. Chamo-me Townsend. Bill Townsend.

— Vamos.

O Rei voltou depressa para baixo do toldo, enquanto Timsen ficava de vigia, e seus australianos espalhavam-se em leque pela rota de fuga.

Junto à esquina da cadeia, Grey também esperava, impaciente. Dino acabara de murmurar ao seu ouvido que Shagata tinha chegado, mas Grey sabia que as conversações preliminares levariam tempo. Daí a pouco, poderia agir.

A falange de Smedly-Taylor também estava de prontidão, esperando que a transferência se realizasse. Depois que Grey começasse a agir, eles fariam o mesmo.

O Rei estava sob o toldo, com um Townsend nervoso ao lado.

— Mostre a ele o diamante — ordenou o Rei.

Townsend abriu a camisa andrajosa e tirou de dentro um cordão, e na ponta do cordão estava o anel de diamantes. Townsend tremia ao mostrá-lo a Shagata, que iluminou o anel com a lanterna portátil. Shagata examinou-o cuidadosamente, uma gota de luz-gelada na ponta de um pedaço de barbante. A seguir, segurou-a e riscou com ele a superfície de vidro da lanterna. Guinchando, o diamante deixou sua marca. Shagata balançou a cabeça, suando.

— Muito bem. — Virou-se para Peter Marlowe. — É realmente um diamante — falou, e apanhou um calibrador e mediu cuidadosamente a extensão da pedra. Balançou a cabeça, mais uma vez. — Tem realmente quatro quilates.

O Rei fez um aceno de cabeça.

— Muito bem. Peter, espere com Townsend.

Peter Marlowe levantou-se e chamou Townsend, e os dois juntos saíram de sob o toldo e foram esperar na escuridão. E à sua volta podiam sentir os olhares de centenas de pessoas.

— Puta merda — disse Townsend, com uma careta — antes nunca tivesse pegado este diamante. A tensão está-me matando, puta que o pariu. — Seus dedos trêmulos tocaram o barbante e a jóia, certificando-se pela milionésima vez de que estavam ao redor do seu pescoço. — Graças a Deus, esta é a última noite.

O Rei observava com crescente excitação enquanto Shagata abria a bolsa de munição e tirava de lá oito centímetros de notas; abria a camisa e apanhava um maço de cinco centímetros, e pegava nos bolsos laterais mais bolos de notas, até formar duas pilhas, cada uma com 15 centímetros de altura. Rapidamente, o Rei começou a contar as notas, e Shagata fez uma rápida e nervosa reverência, e saiu. Quando já estava na trilha novamente é que se sentiu mais seguro. Ajeitou o fuzil no ombro e começou a percorrer o campo e quase derrubou Grey, que vinha andando rapidamente.

Grey praguejou e continuou a caminhar ligeiro, ignorando a torrente de ofensas de Shagata. Desta feita, Shagata não saiu atrás do sacana nojento do prisioneiro, como devia, para dar-lhe umas porradas e ensinar-lhe a ser cortês, pois estava satisfeito por estar longe do Rei, e ansioso para voltar a seu posto.

— Tiras — sussurrou Max urgentemente, do lado de fora da lona.

O Rei agarrou as notas e se mandou de sob o toldo, sussurrando para Townsend, enquanto corria:

— Desapareça. Diga ao Timsen que estou com o dinheiro na mão, e que vamos efetuar o pagamento logo mais, quando a pressão diminuir.

Townsend sumiu na escuridão.

— Vamos indo, Peter.

O Rei ia na frente, por baixo da choça, quando Grey dobrou a esquina.

— Parem onde estão, vocês dois! — berrou Grey.

— Sim, senhor! — respondeu Max, ostensivamente, de dentro das sombras, e meteu-se no caminho, com Tex ao lado, dando cobertura ao Rei e a Peter Marlowe.

— Vocês dois, não. — Grey tentou passar por eles.

— Mas o senhor queria que a gente parasse... — começou a dizer Max, naturalmente, bloqueando de novo o caminho de Grey.

Este empurrou Max furiosamente e se meteu sob a choça, em perseguição. O Rei e Peter Marlowe já tinham pulado para dentro da vala e subido para o outro lado. Outro grupo apareceu para dar cobertura, enquanto Grey corria atrás deles.

Grey viu os dois correndo junto ao muro da cadeia, e soprou o apito, alertando os PMs já em posição. Os PMs apareceram e ficaram de guarda na área que ia do muro da cadeia ao muro da cadeia, e do muro da cadeia à cerca de arame farpado.

— Por aqui — disse o Rei, saltando pela janela da choça de Timsen. Ninguém lá dentro prestou atenção neles, mas muitos viram a saliência na camisa do Rei.

Atravessaram a choça correndo, e saíram porta afora. Um outro grupo de australianos apareceu para cobrir sua retirada, bem na hora em que Grey chegava à janela, ofegante, enxergando-os de relance. Deu a volta na cabana, correndo. Os australianos haviam coberto a fuga deles. Grey gritou, abruptamente:

— Para que lado foram? Digam! Para que lado? Um coro de “Quem?”, “Quem, senhor?”

Grey abriu caminho entre eles e foi para o campo aberto.

— Todos em posição, senhor — disse um PM, correndo para ele.

— Ótimo. Não podem ir longe. E não terão coragem de largar o dinheiro. Vamos começar a cercá-los. Avise os outros.

O Rei e Peter Marlowe correram para a extremidade norte da cadeia e pararam.

— Puta que o pariu! — exclamou o Rei.

No local onde deveria estar uma falange de australianos para lhes dar cobertura, agora havia somente um grupo de PMs. Cinco deles.

— E agora? — perguntou Peter Marlowe.

— Vamos ter que voltar. Depressa!

Movendo-se rapidamente, o Rei se perguntava: Porra, o que dera errado? E então descobriu. Quatro homens bloquearam o caminho deles, com o rosto coberto por lenços, e pedaços de pau nas mãos.

— É melhor passar o dinheiro, meu chapa, se não quiser machucar-se.

O Rei se desviou, depois atacou, com Peter Marlowe ao lado. O Rei entrou firme num dos homens, e chutou o outro na virilha. Peter Marlowe desviou-se de um golpe, mordendo um grito na garganta, quando o golpe passou de raspão no seu braço, e arrancou o pau das mãos do sujeito. O outro atacante deu no pé, e foi engolido pela escuridão.

— Puta que o pariu! — exclamou o Rei, sem fôlego — vamos dar o fora daqui.

Saíram correndo, mais uma vez. Podiam sentir os olhares que os seguiam, e esperavam novo ataque a qualquer momento. O Rei parou de chofre.

— Cuidado! Grey!

Deram meia-volta e, mantendo-se grudados ao lado de uma das choças, enfiaram-se sob ela. Ficaram deitados por um momento, ofegantes. Viram pe’s passarem correndo, e ouviram trechos de murmúrios irados:

— Foram para lá. Temos que pegá-los antes dos malditos tiras.

— Todo o campo está atrás da gente — disse o Rei.

— Vamos deixar o dinheiro aqui — falou Peter Marlowe, impotente. — Podemos enterrá-lo.

— Arriscado demais. Num minuto o encontrariam. Merda, tudo ia indo bem. Exceto que aquele filho da mãe do Timsen deixou a gente na mão. — 0 Rei enxugou o suor e a sujeira do rosto. — Pronto?

— Para que lado?

O Rei não respondeu. Arrastou-se silenciosamente de sob a choça e correu junto com as sombras, com Peter Marlowe logo atrás. Atravessou a trilha em segurança, e saltou para a funda vala de escoamento junto à cerca. Foi-se arrastando por ela até estarem quase em frente da choça americana, depois parou e se recostou na parede da vala, com a respiração aos arrancos. À volta e acima deles ouvia-se um tumulto sussurrado.

— O que houve?

— O Rei está fugindo junto com Marlowe... carregando milhares de dólares.

— Puta que o pariu! Rápido, quem sabe podemos pegá-los!

— Vamos logo!

— Vamos pegar o dinheiro.

E Grey recebia informações, Smedly-Taylor também, e Timsen também, e as informações eram confusas e Timsen praguejava e sibilava, ordenando a seus homens que os encontrassem antes dos homens de Grey ou Smedly-Taylor.

— Peguem aquele dinheiro!

Os homens de Smedly-Taylor estavam esperando, de olho nos australianos de Timsen, e também estavam confusos. Para que lado tinham ido? Onde deviam procurar?

E Grey estava esperando. Sabia que os dois caminhos de fuga achavam-se bloqueados, norte e sul. Era apenas questão de tempo. E agora o cerco se fechava. Grey sabia que os tinha encurralado, e quando os pegasse, estariam com o dinheiro. Não teriam coragem de largá-lo, não agora. Era dinheiro demais. Mas Grey não estava sabendo dos homens de Smedly-Taylor ou dos australianos de Timsen.

— Olhe — disse Peter Marlowe, ao levantar a cabeça com cuidado e espiar para dentro da escuridão.

Os olhos do Rei se estreitaram, vasculhando a noite. Foi então que viu o PM a uns 50 metros de distância. Virou-se bruscamente. Havia muitos outros fantasmas, andando apressados, procurando, buscando.

— Estamos ferrados — disse, desesperadamente.

Foi então que o Rei olhou por cima da cerca. A selva estava às escuras. E havia um guarda, arrastando os pés, do outro lado da cerca. Muito bem, falou consigo mesmo. O último plano. O plano do vai-ou-racha.

— Tome — disse, urgentemente, pegando todo o dinheiro e enfiando-o nos bolsos de Peter Marlowe. — Dou-lhe cobertura. Atravesse a cerca. É a nossa única chance.

— Santo Deus, não vou conseguir. O guarda vai-me ver...

— Vá, é a nossa única chance.

— Não vou conseguir, de jeito nenhum.

— Quando chegar ao outro lado, enterre o dinheiro e volte pelo mesmo caminho. Eu dou cobertura. Mas que merda, você tem que ir.

— Pelo amor de Deus, ele vai-me matar. Está a menos de quinze metros de distância! — exclamou Peter Marlowe. — Vamos ter que desistir!

Olhou ao derredor, procurando, alucinado, um outro meio de fuga, e o súbito movimento descuidado fez com que batesse o braço ferido na parede do esgoto, gemendo de dor.

— Se você salvar o dinheiro, Peter — falou o Rei, desesperado — eu salvo seu braço.

— Você o quê?

— Você me ouviu! Ande logo!

— Mas como pode...

— Ande logo — interrompeu o Rei, com aspereza. — Se salvar a grana. Peter Marlowe fitou por um instante os olhos do Rei, depois esgueirou-se para fora da vala e correu na direção da cerca e passou por baixo dela, esperando a todo momento uma bala na cabeça. No exato segundo da corrida do amigo, o Rei saltou de dentro da vala, em direção à trilha. Tropeçou deliberadamente e se jogou na poeira com um grito de raiva. O guarda do outro lado da cerca lançou-lhe um olhar abrupto e riu alto, e quando se virou de novo para seu posto, viu apenas uma sombra que podia ser qualquer coisa, exceto um homem.

Peter Marlowe estava colado ao chão, e se arrastava como um animal da floresta na vegetação úmida, prendendo a respiração. Depois, ficou imóvel. O guarda se acercava cada vez mais, e então seu pé ficou a três centímetros da mão de Peter Marlowe, e então o outro pé deu um passo por cima dela, e quando o guarda estava a cinco passos dele, Peter Marlowe rastejou mais para dentro da vegetação rasteira, para a escuridão, cinco, dez, 20, 30, e quando estava a 40 passos de distância e em segurança, seu coração pareceu recomeçar a bater, e teve que parar, parar para respirar, parar por causa do coração, parar por causa da dor no braço, o braço que ia ser dele de novo. Se o Rei tinha dito... ia ser. E então ficou largado no chão, rezando para ter fôlego, rezando por sua vida, rezando para ter forças e rezando pelo Rei.

O Rei pôde respirar, agora que Peter Marlowe chegara à selva. Levantou-se e começou a tirar o pó do corpo, e logo Grey e um PM achavam-se a seu lado.

— Fique onde está.

— Quem, eu? — O Rei fingiu espiar para dentro da escuridão e reconhecer Grey. — Oh, é o senhor. Boa-noite, Capitão Grey. — Empurrou o braço do PM que o segurava. — Tire as mãos de mim!

— Está preso — falou Grey, suado e empoeirado pela perseguição.

— Por que motivo? Capitão.

— Reviste-o, Sargento.

O Rei se deixou revistar, calmamente. Agora que o dinheiro não estava com ele, não havia nada que Grey pudesse fazer. Nada.

— Está limpo, senhor — falou o PM.

— Revistem a vala. — E para o Rei: — Onde está Marlowe?

— Quem? — indagou o Rei, serenamente.

— Marlowe! — berrou Grey. Nada de dinheiro neste porco, e nada de Marlowe!

— Provavelmente está dando um passeio. Senhor. — O Rei falava educadamente, concentrado apenas em Grey e no perigo atual, pois pressentia que o perigo nâo havia passado totalmente, e que ao lado do muro da cadeia havia um grupo de fantasmas malévolos, observando-o por um instante, antes de desaparecerem.

— Onde botou o dinheiro? — dizia Grey.

— Que dinheiro?

— O dinheiro da venda do diamante.

— Que diamante? Senhor!

Grey sabia que estava derrotado, momentaneamente. Estava derrotado até poder achar Marlowe, de posse do dinheiro. Muito bem, seu filho da mãe, pensou Grey, alucinado de raiva, muito bem, vou deixá-lo ir, mas vou ficar de olho em você, e você me conduzirá a Marlowe.

— No momento é só — disse Grey. — Derrotou-nos, desta vez. Mas haverá outra.

O Rei voltou para sua choça, rindo consigo mesmo. Acha que vou levá-lo direto a Peter, não é, Grey? Mas você é tão esperto que chega a ser ingênuo. Dentro da choça, encontrou Max e Tex. Também eles estavam suando.

— O que aconteceu? — perguntou Max.

— Nada. Max, vá procurar o Timsen. Diga-lhe que espere debaixo da janela, falo com ele ali. Diga-lhe para não entrar na choça, pois Grey ainda nos está vigiando.

— Certo.

O Rei botou água para ferver para o café. Sua mente funcionava a todo o vapor. Como fazer a troca? Onde? O que fazer quanto a Timsen? Como afastar Grey de Peter?

— Queria falar comigo, meu chapa?

O Rei não se virou para a janela. Simplesmente correu o olhar pela choça. Os americanos entenderam e deixaram-no a sós. Ficou vendo Dino sair, e retribuiu o sorriso retorcido dele.

— Timsen? — falou, preparando o café.

— Sim, meu chapa?

— Devia cortar a porra de sua garganta.

— Não foi culpa minha, camarada. Alguma coisa saiu errada...

— É. Você queria o dinheiro e o diamante.

— Não faz mal tentar, camarada. — Timsen deu uma risadinha. — Não vai acontecer de novo.

— Pode apostar que nato. — O Rei gostava de Timsen. Um cara legal. E não fazia mal tentar, quando havia tanto em jogo. E ele precisava do Timsen. — Vamos fazer a transferência durante o dia. Assim, não haverá “deslizes”. Mando avisar a hora.

— Certo, camarada. Cadê o inglês?

— Que inglês?

— Até amanhã! — disse Timsen, dando uma risada.

O Rei tomou o café e chamou Max para ficar de guarda. A seguir, saltou cautelosamente pela janela, correu para dentro das sombras, e dirigiu-se para o muro da cadeia. Tomou cuidado para não ser observado, mas não cuidado demais, e riu sozinho ao sentir que Grey o seguia. Fingiu muito bem, andando para cima e para baixo, ou em ziguezague. Grey seguia-lhe os passos, implacavelmente, e o Rei fez com que o acompanhasse até o portão da cadeia, através do portão, e para dentro dos blocos de celas. Finalmente, o Rei se dirigiu para a cela do quarto andar, e fingiu aumentar sua preocupação ao entrar na cela e deixar a porta entreaberta. A cada quarto de hora, mais ou menos, abria bem a porta, olhava ansioso para todos os lados, agindo assim até a chegada de Tex.

— A barra está limpa — disse Tex.

— Ótimo. — Peter tinha voltado, em segurança, e não havia necessidade de continuar a fingir, e assim ele voltou para sua choça e piscou o olho para Peter Marlowe.

— Por onde andou?

— Vim ver como você estava passando.

— Quer café?

— Obrigado.

Grey chegou à porta. Não disse uma palavra, apenas olhou. Peter Marlowe vestia somente seu sarongue. Não há bolsos num sarongue. A braçadeira estava no lugar.

Peter Marlowe levou a xícara aos lábios, bebeu o café, com os olhos fitos nos de Grey. Então, este deu as costas e sumiu dentro da noite.

Peter Marlowe levantou-se, exausto.

— Acho que agora vou dormir.

— Estou orgulhoso de você, Peter.

— Falou aquilo a sério, não foi?

— Claro.

— Obrigado.

Naquela noite, o Rei tinha novo problema a preocupá-lo. Porra, como é que ia poder fazer o que tinha dito que faria?


20

Larkin estava profundamente perturbado, enquanto subia a trilha, na direção da choça australiana. Estava preocupado com Peter Marlowe... seu braço parecia incomodá-lo demais, doer demais para ser considerado um simples ferimento superficial. Também estava preocupado com o velho Mac. Na noite passada, Mac falara e gritara durante o sono. E estava preocupado com Betty. Ele próprio tivera sonhos ruins nas últimas noites, pesadíssimos, Betty e ele, com outros homens na cama com ela, e ele olhando, e ela rindo dele.

Larkin entrou na choça e foi direto ao Townsend, que estava deitado no beliche.

Os olhos de Townsend estavam inchados e fechados, seu rosto achava-se arranhado, e o peito e os braços, machucados e arranhados. Quando o rapaz abriu a boca para responder, Larkin viu o buraco sangrento onde devia haver dentes.

— Quem fez isso, Townsend?

— Não sei — choramingou Townsend. — Foi uma emboscada.

— Porquê?

As lágrimas brotaram, sujando os ferimentos.

— Eu tinha... tinha... um... nada... nada. Não... sei.

— Estamos sozinhos, Townsend. Quem foi?

— Não sei. — Um gemido soluçante escapou dos lábios do rapaz. — Ó, Cristo, eles me machucaram, me machucaram.

— Por que foi atacado?

— Eu... eu... — A vontade de Townsend era gritar: “O diamante, eu estava com o diamante”, e queria a ajuda do Coronel para apanhar os sacanas que o haviam roubado dele. Mas não podia falar do diamante, porque o Coronel ia querer saber onde o arranjara, e teria que contar que fora com o Gurble. E então haveria perguntas sobre Gurble, onde ele, Gurble, o arranjara? O suicídio? Talvez, então, dissessem que não fora suicídio, fora assassinato, mas não fora, pelo menos ele, Townsend, achava que não, mas quem sabe alguém dera cabo do Gurble por causa do diamante. Mas naquela determinada noite, Gurble não estava no beliche, e eu notara o contorno do anel de diamante no colchão, e o tirara de lá e sumira dentro da noite, e quem poderia provar alguma coisa... e aconteceu de o Gurble se suicidar naquela mesma noite, então não fez mal. Exceto que, quem sabe, fui eu que assassinei Gurble, assassinei-o ao roubar o anel, quem sabe aquela foi a gota d’água para Gurble, ser posto para fora da unidade por roubar rações, e depois ter o seu diamante roubado. Quem sabe foi isso que o deixou maluco, o coitado do filho da mãe, e fez com que saltasse para dentro da fossa! Mas roubar rações não faz sentido, quando um cara tem um diamante para vender. Não faz sentido, mesmo. Exceto que talvez tenha sido eu a causa da morte de Gurble, e me amaldiçôo, vezes sem conta por ter roubado o diamante. Desde que virei ladrão não tenho paz, nenhuma paz. E agora, estou feliz, feliz por não o ter mais, que o houvessem roubado de mim.

— Não sei — soluçava Townsend. Larkin viu que de nada adiantava, e deixou Townsend com sua dor.

— Ah, desculpe, Padre — falou Larkin, quase dando um encontrão no Padre Donovan, enquanto descia os degraus da choça.

— Alô, velho amigo. — O Padre Donovan parecia um fantasma, incrivelmente emagrecido, os olhos fundos e estranhamente tranqüilos. — Como vai? E Mac? E o jovem Peter?

— Bem, obrigado. — Larkin fez um sinal de cabeça na direção de Townsend. — O que sabe sobre aquilo?

Donovan olhou para Townsend, e replicou, suavemente:

— Vejo um homem sofrendo.

— Desculpe, não deveria ter perguntado. — Larkin pensou por um momento, depois sorriu. — Quer jogar uma partidinha de bridge? Logo mais, depois do jantar?

— Quero, sim, obrigado.

O Padre Donovan ficou olhando Larkin afastar-se, depois foi para junto da cama de Townsend. O rapaz não era católico. Mas o Padre Donovan se dava a todos, pois sabia que todos os homens são filhos de Deus. Mas será que são, todos eles?, perguntou-se. Será que filhos de Deus seriam capazes de fazer tais coisas?

Ao meio-dia, o vento e a chuva vieram juntos. Não demorou para que tudo e todos estivessem ensopados. Depois, a chuva parou, e o vento continuou. Pedaços de telhado eram arrancados e arremessados pelo campo, misturando-se a folhas de palmeira soltas, trapos e chapéus de cule. Em seguida, o vento parou, e o campo voltou ao normal, com o Sol, o calor e as moscas. A água correu nos canais de escoamento por meia hora, depois começou a entranhar no solo e ficar estagnada. Mais moscas apareceram.

Peter Marlowe subia o morro, apaticamente. Seus pés e pernas estavam manchados de lama, pois deixara a tempestade rodeá-lo, esperando que o vento e a chuva pudessem afastar aquela mágoa taciturna. Mas eles não o haviam tocado. Ficou parado diante da janela do Rei, espiando para dentro.

— Como se sente, Peter, amigão? — perguntou o Rei, levantando-se da cama e pegando um maço de Kooas.

— Péssimo. — Peter Marlowe sentou-se no banco, protegido pelo toldo, nauseado de dor. — Meu braço está-me matando. — Soltou uma risada amarga. — É uma piada!

O Rei saltou pela janela e forçou um sorriso.

— Deixe pra lá...

— Porra, como vou deixar pra lá? — Imediatamente, Peter Marlowe arrependeu-se de sua explosão. — Desculpe. Estou nervoso. Quase nem sei o que estou dizendo.

— Tome um cigarro. — O Rei acendeu-o para ele. È, o Rei falou consigo mesmo, você está numa enrascada. O inglês aprende depressa, muito depressa. Pelo menos, é o que acho. Vejamos. — Vamos completar a transação amanhã. Você pode ir apanhar o dinheiro esta noite, eu dou cobertura.

Mas Peter Marlowe não o ouvia. O braço queimava a fogo uma palavra no seu cérebro. Amputar! E podia ouvir o barulho do serrote, e senti-lo cortar, formando pó-de-ossos, o seu pó-de-ossos. Estremeceu violentamente.

— E quanto a... isso? — resmungou, levantando os olhos fitos no braço. — Pode mesmo fazer alguma coisa?

O Rei meneou a cabeça, e falou consigo mesmo: Está vendo, eu não disse. Somente Pete sabe onde está o dinheiro, mas Pete não vai buscar o dinheiro sem que você arranje sua cura. Sem cura, nada de grana. Sem grana, nada de venda. Sem venda, nada de tutu grosso. Portanto, soltou um suspiro e disse para si mesmo: É, você é um cara vivo, conhece bem os homens. Mas quando acerta em cheio, como fez ontem à noite, não faz mau negócio. Se o Peter não se tivesse arriscado, estaríamos os dois na cadeia, sem dinheiro, sem nada. E Pete trouxera-lhes sorte. A transação estava melhor do que nunca. E, tirando tudo isso, o Pete é um cara legal. Um bom sujeito. E afinal que diabo, quem está a fim de perder um braço. Pete tem direito de pressionar. Ainda bem que aprendeu.

— Deixe com o Tio Sam!

— Quem?

— O Tio Sam? — O Rei olhou para ele, estupefato. — O símbolo americano. Sabe — disse, exasperado — como o John Buli.

— Ah, desculpe, é que hoje... estou...

Peter Marlowe foi tomado por uma onda de náusea.

— Volte para seu beliche e relaxe. Cuido de tudo.

Peter Marlowe levantou-se, tropegamente. Queria sorrir, agradecer Ao Rei, apertar sua mão e abençoá-lo, mas lembrava-se da palavra, e sentia apenas o serrote; portanto, fez um leve aceno de cabeça e saiu da choça.

Pela madrugada, pensou o Rei, amargamente. Ele acha que eu o deixaria na mão, que não faria nada a não ser que ele me apertasse. Pela madrugada, Peter, eu ajudaria. Claro. Mesmo que você não estivesse com a faca e o queijo na mão. Porra, você é meu amigo.

— Ei, Max.

— Sim?

— Traga o Timsen até aqui, e rapidinho.

— Certo — disse Max, retirando-se.

O Rei destrancou a caixa preta e tirou de lá três ovos.

— Tex? Quer preparar um ovo para você? Junto com estes dois?

— Claro que não — falou Tex, abrindo um sorriso, e pegando os ovos. -Ei, dei uma olhada na Eva, hoje. Juro por Deus que já está mais gorda.

— Impossível. Ela cruzou ontem.

— Daqui a 20 dias vamos todos ser papais de novo. — Disse Tex, dando uns passinhos de dança. Depois, pegou o óleo e foi lá para fora, cozinhar.

O Rei ficou recostado no seu catre, coçando pensativo uma picada de mosquito, e olhando os lagartos nas vigas caçando e fornicando. Fechou os olhos e começou a cochilar, satisfeito. Ainda era meio-dia, e já tinha feito o trabalho duro de um dia. Que diabo, tudo fora acertado antes das seis horas da manhã!

Riu baixinho, consigo mesmo, ao recordar. Sim, senhor, vale a pena ter uma boa reputação, e vale a pena fazer propaganda...

Acontecera pouco antes do alvorecer. Dormia suavemente, quando uma voz baixa e cautelosa interrompera-lhe os sonhos.

Acordou imediatamente, olhou pela janela e viu um homenzinho com cara de fuinha fitando-o nas sombras vaporosas da madrugada. Um homem que nunca vira antes.

— Sim?

— Tenho uma coisa que você quer comprar. — A voz do homem era inexpressiva e rouca.

— Quem é você?

Como resposta, o homenzinho abrira o punho sujo, com as unhas quebradas e “de luto”. O anel de diamante estava na palma de sua mão.

— O preço é dez mil. Para uma venda rápida — acrescentara, sarcástico. Depois, os dedos fecharam-se bruscamente, quando o Rei se moveu para pegar o anel, e o punho se afastou. — Esta noite. — O homem dera um sorriso sem dentes. — É o legítimo, não tenha medo.

— Você é o dono?

— Está na minha mão, não está?

— Negócio fechado. A que horas?

— Fique esperando aí. Venho vê-lo, quando a barra estiver limpa. E o homem sumira, tão repentinamente quanto aparecera.

O Rei se ajeitara mais confortavelmente, gozando intimamente com a cara do Timsen. O pobre do filho da puta entrou pelo cano! Vou ficar com o anel pela metade do preço.

— Bom-dia, meu camarada — disse Timsen. — Mandou chamar-me?

O Rei abriu os olhos e cobriu um bocejo com a mão, enquanto Tiny Timsen atravessava a choça.

— Oi. — O Rei jogou as pernas para fora da cama e se espreguiçou gostosamente. — Estou cansado, hoje. Movimentação demais. Quer um ovo? Tenho dois cozinhando.

— Pode apostar que quero um ovo.

— Fique à voltade. — O Rei podia dar-se ao luxo de ser hospitaleiro. — Bem, agora vamos ao que interessa. Fechamos o negócio hoje à tarde.

— Não. — Timsen sacudiu a cabeça. — Hoje não. Amanhã.

O Rei teve que fazer um esforço para não abrir um sorriso de orelha a orelha.

— Até lá a pressão terá acabado — dizia Timsen. — Ouvi dizer que Grey saiu do hospital. Vai ficar de olho nesse lugar. — Timsen parecia preocupadíssimo. — Temos que tomar cuidado. Você e eu. Não queremos que nada saia errado. Tenho que cuidar de você, também. Não se esqueça de que somos cu-pinchas.

— O amanhã que vá para o diabo — disse o Rei, fingindo estar desapontado. — Vamos fazer a coisa hoje à tarde.

E escutou, dando gargalhadas homéricas por dentro, enquanto Timsen explicava como era importante ser cauteloso; o dono está com medo, imagine que chegou a ser espancado ontem à noite, e se não fosse eu com meus homens, o pobre infeliz entraria bem. E assim, o Rei teve a certeza de que Timsen estava sangrando por dentro, que o diamante havia escorregado de suas mãos pegajosas, que estava tentando ganhar tempo. Ora, pensou o Rei, eufórico, aposto que os australianos estão procurando o assaltante como loucos. Não gostaria de estar na pele dele... se o encontrarem. Assim, permitiu que Timsen o persuadisse. Para o caso de o Timsen achar o cara, e o negócio inicial ainda prevalecer.

— Bom, vá lá — concordou o Rei. — Suponho que você não deixe de ter certa razão. Fica para amanhã. — Acendeu outro cigarro, deu uma tragada e passou-o para o outro, dizendo docemente, ainda dentro do jogo: — Nessas noites quentes poucos dos meus rapazes dormem. Pelo menos quatro ficam acordados. A noite toda.

Timsen entendeu a ameaça. Mas tinha outras preocupações na cabeça. Pelo amor de Deus, quem emboscara o Townsend? Rezava para que seus homens encontrassem logo os veados. Sabia que precisava encontrar os assaltantes antes que levassem o diamante ao Rei, caso contrário estaria ferrado.

— Sei como é. A mesma coisa acontece com os meus rapazes... é uma sorte serem tão chegados ao meu pobre amigo Townsend. — Filho da mãe burro. Porra, mas como é que um sujeito podia ser tão fraco a ponto de se deixar assaltar e não berrar antes que fosse tarde demais? — Todo cuidado é pouco, hoje em dia.

Tex trouxe os ovos e os três homens os comeram com o arroz do almoço, junto com um bocado de café forte. Quando Tex levou os pratos para lavar, o Rei tinha conduzido a conversa para o ponto que o interessava.

— Conheço um sujeito que está querendo comprar medicamentos. Timsen sacudiu a cabeça.

— Pode esperar sentado, o infeliz. Não é possível. Nem pensar! — Ah, refletiu. Medicamentos! Para quem seriam? Não para o Rei, sem dúvida, está com cara de quem vende saúde, e também não é para revender. O Rei jamais lida com drogas e medicamentos, o que para mim é ótimo, o mercado fica nas minhas mãos. Mas deve ser para alguém ligado ao Rei, caso contrário, nunca se envolveria. Comércio de drogas e medicamentos não faz o seu gênero. O velho McCoy! Claro. Ouvi dizer que não andava muito bem, ultimamente. Quem sabe o Coronel. Também não andava com boa cara. — Ouvi falar de um inglês que tem um pouco de quinino. Mas, puta que o pariu, quer uma fortuna por ele.

— Quero um pouco de antitoxina. Um vidro. E sulfa em pó. Timsen soltou um assobio.

— Nem pensar! — falou. Antitoxina e sulfa! Gangrena! O inglês. Santo Cristo, gangrena! E tudo se encaixou direitinho. Tem que ser o inglês. Não fora apenas por astúcia que Timsen tomara conta do mercado de medicamentos. Conhecia um bocado sobre drogas, aprendera na vida civil, onde fora auxiliar de farmácia, coisa que só ele sabia, porque senão aqueles filhos da mãe o meteriam no Corpo Médico, o que significaria nada de lutar ou matar, e nenhum australiano que se desse ao respeito desapontaria seu país e a velha Inglaterra, servindo apenas como um nojento auxiliar médico, não combatente. — Nem pensar — falou de novo, sacudindo a cabeça.

— Ouça — disse o Rei. — Vou abrir o jogo com você. — Timsen era o único homem que poderia conseguir os remédios, no mundo inteiro, portanto, tinha que obter sua ajuda. — É para o Peter.

— Dureza — falou Timsen, mas morto de pena, intimamente. Pobre infeliz. Gangrena. Um bom homem, cheio de garra. Ainda sentia o soco que o inglês lhe acertara, na véspera, quando os quatro haviam caído em cima dele e do Rei.

Timsen descobrira tudo sobre Peter Marlowe, quando o Rei se tornara seu amigo. Nunca é demais ser cuidadoso, a informação é sempre importante. E Timsen sabia sobre os quatro aviões alemães, sobre os três japoneses, sobre a aldeia, e como o inglês tentara fugir de Java, não como muitos que apenas ficaram sentados humildemente, aceitando a coisa. No entanto, quando se parava para pensar, era uma cretinice tentar. Era preciso fugir para muito longe. Longe demais. É, este inglês era mesmo uma figura.

Timsen ficou pensando se deveria arriscar-se a mandar um homem ao alojamento dos médicos japoneses, para pegar as drogas. Era arriscado, mas o caminho e o alojamento já eram “manjados”. Pobre coitado do Marlowe, deveria estar doente de preocupação. Claro que vou pegar os remédios... e vai ser de graça, ou só vou cobrar as despesas.

Timsen detestava vender drogas, mas alguém tinha que fazê-lo, e antes ele do que outro qualquer, pois o preço era sempre razoável, o mais razoável possível, e sabia que podia ganhar uma fortuna vendendo para os japoneses, mas nunca o fazia, apenas para o campo, e somente por um lucro mínimo, se se levasse em conta os riscos da operação.

— Faz a gente ficar doente — falou Timsen — pensar em todos aqueles suprimentos médicos da Cruz Vermelha na Rua Kedah.

— Qual, é só boato.

— Não é, não. Eu mesmo vi, meu chapa. Eu estava num grupo de trabalho. Cheinho de material da Cruz Vermelha... plasma, quinino, sulfa... tudo, do chão até o teto, ainda nas caixas. Ora, aquele depósito deve ter quase cem metros de comprimento por trinta de largura. E tudo vai para aqueles sacanas amarelos. Eles deixam o material entrar. Ao que me consta, vem através de Chungking. A Cruz Vermelha dá para os siameses, eles entregam para os japoneses... tudo destinado aos PRISIONEIROS DE GUERRA, Changi. Cristo, eu mesmo vi as etiquetas, mas os amarelos usam tudo com seu próprio pessoal.

— Mais alguém sabe disso?

— Contei ao Coronel e ele contou ao Comandante do Campo, que contou àquele filho da mãe amarelo... como é mesmo o nome dele, ah, Yoshima... e o Comandante do Campo exigiu os medicamentos. Mas os amarelos riram na cara dele e disseram que era boato, e fim de papo. Nenhum outro grupo de trabalho foi mandado para lá. Nunca mais. Filhos da puta, nojentos. Não é justo, quando a gente precisa tanto dos remédios. Podiam dar um pouco para nós. Um amigo meu morreu faz seis meses por falta de insulina... e eu vi caixas dela. Caixas. — Timsen preparou um cigarro, tossiu e cuspiu, e estava tão furioso que chutou a parede.

Sabia que não havia vantagem em ficar aborrecido por causa disso. E não havia meio de entrar naquele depósito. Mas podia arranjar a antitoxina e a sulfa para o inglês. Puta que o pariu, claro que podia... e daria tudo, de graça para ele.

Mas Timsen era esperto demais para deixar que o Rei percebesse o que estava pensando. Seria uma criancice, deixar o Rei saber que tinha um ponto fraco, pois tão certo como a terra de Deus ser a Austrália, o Rei tiraria vantagem disso, mais cedo ou mais tarde. É, e ainda tinha que negociar o diamante com o Rei. Merda! Tinha esquecido daquele sujo da emboscada.

Assim, Timsen deu um preço inicial extorsivo, e depois foi baixando. Mas manteve um preço alto, pois sabia que o Rei podia pagar, e se dissesse que arranjaria a mercadoria por um preço baixo, o Rei ficaria muito desconfiado.

— Está bem — concordou o Rei, mal-humorado. — Negócio fechado. -Por dentro, não estava tão mal-humorado assim. Esperara que Timsen lhe fosse tirar o couro; porém, embora o preço fosse maior do que gostaria de pagar, era um preço justo.

— Vai levar três dias — falou Timsen, sabendo que daí a três dias seria tarde demais.

— Preciso deles para hoje à noite.

— Então, vai custar mais quinhentos.

— Sou seu amigo! — falou o Rei, sofrendo de verdade. — Somos “do peito”, e você me cobra mais quinhentos!

— Está certo, camarada. — Timsen parecia um cachorrinho triste. — Mas sabe como é. Três dias é o melhor que posso fazer.

— Puta que o pariu. Está bem!

— E o enfermeiro vai custar mais quinhentos.

— Puta merda! Mas para que enfermeiro, porra? Timsen estava gostando de ver o Rei sofrer.

— Bem — falou, afavelmente — o que vai fazer com os remédios, quando estiverem em sua mão? Como vai tratar o paciente?

— E eu lá sei, porra?

— Pra isso é que são os quinhentos. Suponho que não vai entregar o material ao inglês, para ele levá-lo ao hospital e dizer ao médico mais próximo: “Tenho antitoxina e sulfa, consertem a droga do meu braço”; para o médico responder: “Não temos antitoxina, onde, diabo, foi que arranjou isso?”; e quando o inglês não quisesse dizer, os filhos da mãe tirariam os remédios dele e dariam a algum nojento Coronel inglês, com um leve caso de hemorróidas. — Tirou habilmente o maço de cigarros do bolso do Rei, e serviu-se calmamente. — E — continuou, agora falando bem sério — precisa achar um lugar onde possa tratá-lo em particular. Onde possa ficar deitado. Essas antitoxinas afetam muito alguns homens. E parte da transação é que não assumo nenhuma responsabilidade, se der galho no tratamento.

— Se tivermos a antitoxina e a sulfa, que galho pode dar?

— Há pessoas que não as suportam. Náusea. Das brabas. E talvez não funcione. Vai depender de quanta toxina já estiver no organismo dele. — Timsen se levantou. — Hoje à noite, a qualquer hora. Ah, e o equipamento vai custar-lhe mais quinhentos.

— Que equipamento, pela madrugada! — explodiu o Rei.

— Agulhas, ataduras e sabonete. Puxa vida! — Timsen estava quase revoltado. — Está pensando que a antitoxina é um supositório para enfiar no rabo dele?

O Rei fitou azedamente a figura de Timsen que se afastava, chutando-se

mentalmente. Pensou que era tão sabido, não é, descobrindo pelo preço de um cigarro o que curava a gangrena, e depois, cretino, esquece de perguntar que diabo se faz com os remédios, quando estão na sua mão.

Bem, que fosse tudo para o diabo. A grana está apalavrada, e Pete vai ter o braço de volta, e o preço não foi tão alto assim.

E então o Rei se lembrou do assaltante matreiro e sorriu de orelha a orelha. É, estava muito satisfeito com o dia de trabalho.


21

Naquela noite, Peter Marlowe ofereceu a outro o seu jantar. Não deu a Mac ou Larkin, como devia, mas a Ewart. Sabia que, se desse para sua unidade, eles o forçariam a revelar o que havia. E não havia por que contar-lhes.

À tarde, doido de dor e preocupação, fora ver o Dr. Kennedy. Novamente, quase enlouquecera de sofrimento, quando a atadura foi arrancada. E então, o médico dissera, simplesmente:

— O veneno está acima do cotovelo. Posso amputar abaixo mas é perda de tempo. É melhor logo fazer a operação toda de uma vez. Ficará com um coto de bom tamanho, a uns doze centímetros do ombro. O bastante para permitir a colocação de um braço artificial. Sem dúvida, o bastante. — Kennedy juntara os dedos, em forma de triângulo, calmamente. — Não perca mais tempo, Marlowe. — Dera uma risada seca e pilheriara: — Domara ê troppo tardi.

Quando Peter Marlowe olhara para ele, estupefato, sem entender, o médico dissera, com voz inexpressiva:

— Amanhã será tarde demais.

Peter Marlowe voltara aos tropeções para seu beliche, onde ficara deitado numa poça de medo. O jantar chegara, e dera-o ao Ewart.

— Está com febre? — perguntou Ewart, todo feliz, cheio da comida suplementar.

— Não.

— Quer que lhe arranje alguma coisa?

— Pelo amor de Deus, deixe-me em paz! — Peter Marlowe deu as costas a Ewart. Depois de algum tempo, levantou-se e saiu da choça, lamentando ter concordado em jogar bridge com Mac, Larkin e Padre Donovan, durante cerca de uma hora. Você é um idiota, disse a si mesmo, amargamente, deveria ter ficado na cama até a hora de cruzar a cerca e ir buscar o dinheiro.

Mas sabia que não poderia ficar deitado na cama, hora após hora, até ser seguro partir. Era melhor ter algo com que se ocupar.

— Oi, meu camarada! — cumprimentou Larkin, o rosto enrugado num sorriso.

Peter Marlowe não retribuiu o sorriso. Ficou sentado no vão da porta, com ar sombrio. Mac lançou um olhar a Larkin, que deu de ombros, imperceptivelmente.

— Peter — disse Mac, forçando o bom humor — as notícias estão cada dia melhores, não é? Não vai demorar muito para sairmos daqui.

— Isso mesmo! — concordou Larkin.

— Vocês estão vivendo uma fantasia. Jamais sairemos de Changi. — Peter Marlowe não queria ser bruto, mas não pôde conter-se. Sabia que Mac e Larkin tinham ficado magoados, mas não fez nada para suavizar a mágoa. Estava obcecado com o coto de 12 centímetros. Um arrepio gelado dissolveu sua espinha e penetrou nos seus testículos. Que diabo, como o Rei ia poder ajudá-lo? Como? Seja realista. Se fosse o braço do Rei... o que eu ia poder fazer, por mais que seja seu amigo? Nada. Não creio que haja nada que ele possa fazer... a tempo. É melhor enfrentar a verdade, Peter. É amputar ou morrer. Simples. E parando para pensar, a verdade é que não posso morrer. Ainda não. Uma vez que a gente nasce, tem obrigação de sobreviver, custe o que custar.

É, Peter Marlowe disse para si mesmo, o melhor é ser realista. Não há nada que o Rei possa fazer, nada. E não deveria tê-lo imprensado. O problema é seu, não dele. Vá buscar o dinheiro, e o entregue a ele; vá para o hospital, deite-se na mesa e deixe que cortem fora seu braço.

E assim, os três — Peter Marlowe, Mac e Larkin — ficaram sentados dentro da noite fétida. Calados. Quando Padre Donovan veio juntar-se a eles, forçaram-no a comer um pouco de arroz com blachang. Tiveram que forçá-lo a comer na hora, pois, se não o tivessem feito, ele daria a comida a outrem, como fazia com a maior parte de suas rações.

— São muito bons para mim — disse o Padre Donovan. Seus olhos brilharam maliciosamente, quando acrescentou: — Agora, se quiserem admitir seus pecados e passar para o lado certo da cerca, minha noite estará completa.

Mac e Larkin riram com ele. Peter Marlowe não riu.

— O que há, Peter? — perguntou Larkin, com uma ponta de irritação na voz. — Está a noite toda num humor negro!

— Não há mal nenhum em estar um pouco emburrado — disse Donovan rapidamente, preenchendo o silêncio pesado. — Puxa vida, mas as notícias são muito boas, não é?

Somente Peter Marlowe estava de fora do companheirismo que havia no pequeno aposento. Sabia que sua presença era sufocante, mas não havia nada que pudesse fazer. Nada.

O jogo começou, e o Padre Donovan abriu com duas espadas.

— Passo — disse Mac, com ar rabugento.

— Três ouros — disse Peter Marlowe, e mal acabara de pronunciar as palavras, desejou poder engoli-las, pois havia apostado mal, dissera ouros quando devia ter dito copas.

— Passo — disse Larkin, irritado. Lamentava agora ter sugerido o jogo. Não tinha graça nenhuma. Nenhuma.

— Três espadas — disse o Padre Donovan.

— Passo.

— Passo — falou Peter Marlowe, e todos olharam para ele, surpresos.

— Devia ter mais fé... — disse o Padre Donovan, com um sorriso.

— Estou cansado de fé. — As palavras grosseiras e zangadas foram repentinas.

— Desculpe, Peter, só estava...

— Escute aqui, Peter — interrompeu Larkin, vivamente. — Só porque está de mau humor...

— Tenho direito à minha opinião, e acho que foi uma piada de mau gosto — explodiu Peter Marlowe. A seguir, voltou-se violentamente para Donovan. — Só porque você banca o mártir, dando sua comida e dormindo no alojamento dos homens, será que isso lhe dá o direito de ser a autoridade? A fé é uma baboseira! Vale o que? Nada! A fé é para as crianças... e Deus também. Que diabo pode Ele fazer? Fazer de verdade? Hem? Hem?

Mac e Larkin fitavam Peter Marlowe sem o reconhecer.

— Ele pode curar — falou o Padre Donovan, que sabia da gangrena. Sabia de muitas coisas que preferia não saber.

— Merda! — berrou, alucinado, Peter Marlowe, jogando as cartas sobre a mesa. — Tudo isso é pura merda, e você sabe. E mais outra coisa, já que tocamos no assunto. Deus! Sabe, eu acho que Deus é um maníaco, um maníaco sádico e cruel, um sanguessuga...

— Você está doido varrido, Peter? — explodiu Larkin.

— Não, não estou. Olhe só para Deus — esbravejava Peter Marlowe, o rosto contorcido. — Deus é só maldade... se é que realmente é Deus. Vejam quanto derramamento de sangue foi cometido em Seu nome. — Chegou o rosto bem junto do de Donovan. — A Inquisição? Lembra? Todos os milhares que foram queimados e torturados em nome de Deus? Pelos sádicos católicos? E nem vamos pensar nos astecas e incas e nos pobres milhões de índios desgraçados. E os protestantes queimando e matando os católicos; e os católicos, os judeus e os muçulmanos; e os judeus, mais judeus... e os mórmons e os quakers e todo o resto da podridão. Matar, torturar, queimar! Basta ser feito em nome de Deus, que está certo. Mas quanta hipocrisia! Não me fale em fé! Não é nada!

— E no entanto, você tem fé no Rei — disse o Padre Donovan, suavemente.

— Suponho que vá dizer que ele é um instrumento de Deus?

— Pode ser que seja. Não sei.

— Preciso contar isso a ele. — Peter Marlowe ria, histericamente. — Vai arrebentar de rir.

— Escute aqui, Marlowe! — Larkin se pôs de pé, trêmulo de raiva. — Peça desculpas ou se retire!

— Não se preocupe, Coronel — retrucou Peter Marlowe com violência. -Vou-me embora. — Levantou-se e olhou ferozmente para eles, odiando-os, odiando-se. — Escute, Padre. Você é uma piada. Suas saias são uma piada. Vocês todos são uma piada infame, vocês e Deus. Não servem a Deus, porque Deus é o diabo. São servos do diabo. — E então apanhou algumas cartas da mesa, jogou-as na cara do Padre Donovan, e saiu intempestivamente para dentro da escuridão.

— Em nome de Deus, o que deu no Peter? — disse Mac, quebrando o silêncio horrorizado.

— Em nome de Deus — disse o Padre Donovan, cheio de compaixão. — Peter está com gangrena. Precisa amputar o braço, caso contrário morrerá. Dava para se ver as listras escarlates claramente, acima do cotovelo.

— O quê? — Larkin e Mac se entreolharam, estarrecidos. E então, simultaneamente, os dois se levantaram e se apressaram a sair. Mas o Padre Donovan os chamou de volta:

— Esperem, não há nada que possam fazer.

— Porra, mas tem que haver alguma coisa. — Larkin ficou de pé, à porta. — O pobre rapaz... e pensei... pobre rapaz...

— Não há nada a fazer, exceto esperar. Exceto ter fé, e orar. Talvez o Rei queira ajudar, possa ajudar. — A seguir, o Padre Donovan acrescentou, com voz cansada. — O Rei é o único homem que pode.

Peter Marlowe entrou aos tropeções na choça americana.

— Vou apanhar o dinheiro agora — murmurou para o Rei.

— Está maluco? Tem gente demais andando por aí.

— Para o diabo essa gente — disse Peter Marlowe, iradamente. — Quer o dinheiro, ou não?

— Sente-se. Sente-se! — O Rei forçou Peter Marlowe a sentar-se, deu-lhe um cigarro, insistiu para que tomasse café e pensou, Jesus, quanto tenho que fazer em troca de um tutuzinho. Pacientemente, disse a Peter Marlowe que se controlasse, que tudo ia ficar bem, pois a cura já fora providenciada, e uma hora depois Peter Marlowe já estava mais calmo, e pelo menos coerente. Mas o Rei percebeu que não o estava alcançando, que embora ele sacudisse a cabeça de vez em quando, Peter Marlowe estava fora do seu alcance, e se estava fora do alcance dele, o Rei, estava fora do alcance de qualquer um.

— Já está na hora? — perguntou Peter Marlowe, quase cego de dor, sabendo que, se não fosse agora, nunca mais iria.

O Rei sabia que era cedo demais para ser seguro, mas também sabia que não podia mais prendê-lo na choça. Assim, mandou guardas em todas as direções. Toda a área ficou coberta. Max vigiava Grey, que estava no seu beliche. Byron Jones III vigiava Timsen. E este achava-se no norte, junto ao portão, esperando pelos medicamentos, e os rapazes do Timsen, outra fonte de perigo, ainda vasculhavam a área, desesperadamente, em busca do atacante de Townsend.

O Rei e Tex ficaram vendo Peter Marlowe, andando feito um zumbi, sair da choça, cruzar a trilha e chegar à vala de escoamento. Oscilou na beirada, depois passou para o outro lado e começou a cambalear em direção à cerca.

— Jesus! — exclamou Tex — não posso olhar!

— Nem eu — falou o Rei.

Peter Marlowe tentava focalizar os olhos na cerca, em meio à dor e ao delírio que o subjugavam. Rezava por uma bala. Não agüentava mais a agonia. Mas não veio bala alguma, e então ele continuou a andar, sombriamente ereto, depois baqueou diante da cerca. Agarrou-se a um dos arames para firmar-se por um momento. Abaixou-se para passar pela cerca, e deu um pequeno gemido ao cair nas profundas do inferno.

O Rei e Tex correram para a cerca, seguraram-no e arrastaram-no para longe da cerca.

— O que deu nele? — perguntou alguém, de dentro da escuridão.

— Acho que pirou, depois de tanto tempo preso — explicou o Rei. — Vamos, Tex, vamos levá-lo para a cabana.

Levaram-no para a cabana, deitaram-no na cama do Rei. Depois, Tex saiu às pressas para chamar os vigias de volta, e a choça retornou ao normal. Só um vigia lá fora.

Peter Marlowe jazia na cama, gemendo e resmungando, em delírio. Depois de algum tempo, voltou a si.

— Ó, meu Deus — soluçou, tentando sair da cama, mas seu corpo o derrotou.

— Tome — disse o Rei, ansioso, dando-lhe quatro aspirinas. — Calma, vai ficar bom. — A mão do Rei tremia enquanto o ajudava a tomar um pouco d’água. Puta que o pariu, pensou com amargura, se Timsen não trouxer os remédios esta noite, o Peter não escapa, e se não escapar, como é que vou botar a mão no meu dinheiro? Puta que o pariu!

Quando Timsen finalmente chegou, o Rei estava um caco.

— Oi, meu camarada. — Timsen também estava nervoso. Tivera que dar cobertura ao seu melhor camarada junto ao portão principal, enquanto o homem passava pela cerca e entrava no alojamento do médico japonês, que ficava a uns 50 metros de distância, e não muito longe da casa de Yoshima, e perto demais da casa da guarda para esculhambar com os nervos de um homem. Mas o australiano se esgueirara para dentro e se esgueirara para fora, e conquanto Timsen soubesse que não há ladrão no mundo igual a um soldado australiano quando está a fim de uma mercadoria, mesmo assim suara frio, esperando até que o homem tivesse voltado em segurança.

— Onde vamos cuidar dele?

— Aqui.

— Está bem. Bote uns homens de vigia.

— Cadê o enfermeiro?

— Eu sou o primeiro — disse Timsen, contrafeito. — Steven não pode vir agora para cá. Vai substituir-me, depois.

— Sabe direito o que está fazendo?

— Acendam uma bosta de uma luz — falou Timsen. — Claro que sei. Tem água fervendo?

— Não.

— Então bote já um pouco para ferver! Será que vocês ianques não entendem de nada?

— Agüenta as pontas! — O Rei fez sinal para Tex, e este foi ferver água. Timsen abriu a sacola cirúrgica e estendeu uma toalhinha.

— Pela madrugada! — exclamou Tex — nunca vi nada tão limpo antes. Ora, chega a estar azul, de tão branco.

Timsen deu uma cusparada e lavou as mãos com cuidado com uma barra virgem de sabonete, e começou a ferver a seringa e o fórceps. Depois, debruçou-se sobre Peter Marlowe e deu-lhe umas palmadinhas na cara.

— Ei, camarada!

— O que é? — respondeu Peter Marlowe, debilmente.

— Vou limpar o ferimento, está legal? Peter Marlowe teve que se concentrar.

— Como?

— Vou dar-lhe a antitoxina...

— Tenho que ir para o hospital — falou, como se estivesse bêbado. — Está na hora, agora... de cortar... estou-lhe dizendo... — Apagou, mais uma vez.

— Ainda bem — comentou Timsen.

Quando a seringa estava esterilizada, Timsen aplicou uma injeção de morfina.

— Você ajuda — disse, bruscamente, para o Rei. — Não deixe o raio do suor entrar nos meus olhos.

Obediente, o Rei pegou uma toalha. Timsen esperou até a injeção fazer efeito, depois arrancou a atadura velha e deixou a ferida à mostra.

— Santo Deus! — Toda a área do ferimento estava túmida, roxa e verde. — Acho que já é tarde demais.

— Meu Deus! — exclamou o Rei. — Não admira que o coitado do filho da puta estivesse maluco.

Cerrando os dentes, Timsen cortou fora, com cuidado, a parte mais estragada e apodrecida da pele; cutucou fundo e lavou a ferida da melhor maneira que pôde. Depois polvilhou-a com sulfa, e botou uma atadura nova. Quando acabou, endireitou o corpo e suspirou.

— Ai, a porra das minhas costas! — Fitou a alvura da atadura, depois virou-se para o Rei. — Tem um pedaço de camisa?

O Rei arrancou uma camisa da parede e a entregou nas mãos do australiano. Timsen rasgou fora o braço da camisa, fez uma atadura grosseira e colocou-a por cima da outra atadura.

— Para que diabo é isso? — perguntou o Rei, com a visão turva.

— Camuflagem — explicou Timsen. — Ou acha que ele vai poder andar pelo campo com uma atadura alvinha no braço sem ser detido pelos médicos e PMs curiosos, querendo saber onde a arranjou?

— Ah, entendo!

— Não diga!

O Rei ignorou a gracinha. Estava nauseado demais com a lembrança do braço de Peter Marlowe, do cheiro, do sangue e da atadura viscosa e sanguinolenta que jazia no chão.

— Ei, Tex, livre-se desta coisa nojenta.

— Quem, eu? Por que...

— Livre-se dela.

Tex apanhou a atadura, com relutância, e foi lá para fora. Afastou com o pé a terra fofa, enterrou o pano, e depois vomitou. Quando voltou, disse:

— Graças a Deus não tenho que fazer isso todo dia.

Timsen encheu a seringa com mãos trêmulas e debruçou-se sobre o braço de Peter Marlowe.

— Tem que olhar. Olhe, pela madrugada — rosnou, ao ver o Rei desviar o rosto. — Se Steven não vier, pode ser que você tenha que fazer isso. A injeção precisa ser intravenosa, certo? Ache a veia. Depois enfie a agulha e puxe o embolo para fora até entrar um tiquinho de sangue na seringa. Está vendo? Assim, tem certeza de que a agulha pegou a veia. Depois que tiver certeza, basta ir aplicando a antitoxina. Mas não depressa demais. Leva uns três minutos para o centímetro cúbico.

O Rei ficou olhando, com o estômago revoltado, até Timsen arrancar a agulha e apertar um pedacinho de algodão em cima do furo.

— Puta que o pariu! — exclamou o Rei. — Nunca vou conseguir fazer isso.

— Se quer deixar que ele morra, tudo bem. — Timsen suava e também estava nauseado. — E meu velho queria que eu fosse médico! — Afastou o Rei do caminho com um empurrão, botou a cabeça para fora da janela e vomitou até as tripas. — Arranje-me um pouco de café, pelo-amor de Deus.

Peter Marlowe se mexeu, ficando semidesperto.

— Vai ficar bom, meu camarada. Está entendendo? — Timsen inclinou-se sobre ele, meigamente.

Peter Marlowe balançou a cabeça, com cara de tonto, em seguida levantou o braço. Fitou-o por um momento, incrédulo, depois murmurou:

— O que aconteceu? Ele ainda está no lugar... está no lugar!

— Claro que está no lugar — disse o Rei, com orgulho. — Cuidamos de você. Antitoxina, a tralha toda. Eu e Timsen!

Mas Peter Marlowe só olhou para ele, movendo os lábios, sem dizer palavra. Finalmente, conseguiu sussurrar:

— Ainda está... no lugar. — Usou a mão direita para sentir o braço que não deveria estar lá, mas estava. E quando teve certeza de que não estava sonhando, recostou-se numa poça de suor, fechou os olhos e começou a chorar. Alguns minutos mais tarde, estava dormindo.

— Pobre infeliz — falou Timsen. — Deve ter pensado que estava na mesa de operação.

— Quanto tempo vai ficar desacordado?

— Mais umas duas horas. Escute — falou Timsen — ele tem que tomar uma injeção a cada seis horas, até a toxina sair do seu organismo. Digamos, umas 48 horas. E ataduras novas todos os dias. E mais sulfa. Porém, é preciso não esquecer. Ele tem que continuar com as injeções. E não se surpreenda se vomitar por tudo que é canto. Deve haver uma reação. Braba. Dei uma primeira dose bem forte.

— Acha que ele vai ficar bom?

— Dou a resposta daqui a dez dias. — Timsen fez um embrulhinho caprichado com a toalha, o sabonete, a seringa, a antitoxina, e a sulfa em pó. — Agora, vamos acertar as contas, está bem?

O Rei pegou o maço de cigarros que Shagata lhe dera.

— Aceita?

— Sim.

Quando os cigarros estavam acesos, o Rei falou, com naturalidade:

— Podemos acertar as contas, quando fecharmos o negócio do diamante.

— Oh, não, meu chapa, entrego a mercadoria, quero o pagamento. O outro negócio não tem nada a ver com este — disse Timsen, vivamente.

— Não faz mal esperar um dia ou dois.

— Você tem dinheiro de sobra com o lucro... — Deteve-se subitamente, atinando com a resposta. — A-rá! — exclamou, com um sorriso amplo, indicando Peter Marlowe com o polegar. — Não há dinheiro até que seu cupincha vá buscá-lo, acertei?

O Rei tirou o relógio do pulso.

— Quer ficar com isto como garantia?

— Não precisa, meu chapa, confio em você. — Lançou um olhar para Peter Marlowe. — Bem, meu velho, parece que muita coisa depende de você. —

Quando voltou a olhar para o Rei, tinha os olhos quase fechados, num sorriso alegre. — Isso também me dá mais tempo, não é?

— Como? — perguntou o Rei, com ar de inocente.

— Corta essa, meu chapa. Está sabendo que o anel foi surripiado. Você é o único no campo que pode negociar com ele. Se eu pudesse, acha que ia envolvê-lo na história? — O sorriso amplo de Timsen era angelical. — Então, isso me dá tempo para encontrar o assaltante, certo? Se ele vier procurá-lo primeiro, você não terá dinheiro para pagar-lhe, certo? Sem o dinheiro, ele não soltará a mercadoria. Sem grana, nada de negócio. — Timsen esperou, depois falou, simpaticamente: — Claro que você podia contar-me quando o filho da mãe vier oferecê-lo, não é? Afinal de contas, é minha propriedade, certo?

— Certo — respondeu o Rei, afavelmente.

— Mas não vai contar — suspirou Timsen. — Que bando de ladrões safados! — Debruçou-se sobre Peter Marlowe, verificando seu pulso. — Hum — falou, pensativo. — O pulso está melhor.

— Obrigado pela ajuda, Tim.

— Nem pense nisso, meu chapa. Também tenho interesse investido no filho da mãe, certo? E vou vigiá-lo feito uma águia. Certo? — Riu novamente, e partiu.

O Rei estava exausto. Depois de ter tomado um pouco de café, sentiu-se melhor, então recostou-se na cadeira e adormeceu.

Acordou sobressaltado e olhou para a cama. Peter Marlowe estava de olhos fitos nele.

— Alô — disse Peter Marlowe, debilmente.

— Como se sente? — O Rei se espreguiçou e levantou-se da cadeira.

— Uma merda. Vou vomitar a qualquer momento. Sabe, não há nada... nada que eu possa dizer...

O Rei acendeu o último dos Kooas e enfiou-o entre os lábios de Peter Marlowe.

— Você mereceu, amigão.

Enquanto Peter Marlowe ficava deitado, reunindo suas forças, o Rei lhe contou sobre o tratamento, e sobre o que tinha que ser feito.

— O único lugar que me vem à cabeça é o bangalô do Coronel — falou Peter Marlowe. — Mac pode acordar-me e me ajudar a sair da choça. Posso passar a maior parte do tempo deitado no meu beliche.

O Rei segurou com cuidado uma das suas vasilhas de rancho, enquanto Peter Marlowe vomitava.

— É melhor deixá-la à mão. Desculpe. Meu Deus! — exclamou Peter Marlowe, estarrecido, ao se lembrar. — O dinheiro? Fui buscá-lo?

— Não. Desmaiou do lado de cá da cerca.

— Ó, meu Deus, não creio que tenha forças para ir hoje.

— Não esquente a cabeça, Peter. Logo que se estiver sentindo melhor. Não há necessidade de se arriscar.

— Não vai prejudicar o negócio?

— Não, nem se preocupe com isso.

Peter Marlowe vomitou de novo, e quando acabou, estava com uma aparência terrível.

— Gozado — falou, tentando controlar nova ânsia de vômito. — Tive um sonho esquisitíssimo. Sonhei que tinha tido uma baita briga com Mac, o Coronel e o velho Padre Donovan. Meu Deus, ainda bem que foi sonho. — Forçou-se a se apoiar no braço sadio, ficou tonto e caiu deitado. — Quer ajudar-me a levantar?

— Não se apresse. Acaba de soar o toque de apagar-as-luzes.

— Meu chapa!

O Rei correu para a janela e fitou a escuridão. Viu o débil contorno do homenzinho com jeito de fuinha, agachado contra o muro.

— Depressa — sussurrou o homem — o anel está aqui comigo.

— Vai ter que esperar — falou o Rei. — Só lhe posso dar o dinheiro daqui a dois dias.

— Ora, seu sacana nojento...

— Escute aqui, seu filho da puta — rosnou o Rei. — Se quiser esperar os dois dias, ótimo! Se não quiser, vá à merda!

— Está certo, dois dias. — O homem praguejou obscenamente e desapareceu.

O Rei ouviu o barulho dos pés que se afastavam, e daí a um momento o barulho de outros pés que o perseguiam. A seguir, o silêncio, quebrado apenas pelo canto dos grilos.

— Que história foi essa? — quis saber Peter Marlowe.

— Nada — respondeu o Rei, imaginando se o homem havia escapado. Mas sabia que, houvesse o que houvesse, o diamante seria dele. Contanto quetives-se o dinheiro.


22

Durante dois dias, Peter Marlowe lutou contra a morte. Mas tinha vontade de viver. E viveu.

— Peter! — Mac acordou-o, sacudindo-o suavemente.

— Sim, Mac?

— Está na hora.

Mac ajudou Peter Marlowe a descer do beliche, e os dois juntos enfrentaram as escadas, a juventude se apoiando na velhice, e foram pela escuridão até o bangalô.

Steven já estava lá, esperando. Peter Marlowe deitou-se na cama de Larkin e sujeitou-se novamente à picada da agulha. Teve que morder os lábios com força, para não gritar. Steven era gentil, mas a agulha era rombuda.

— Pronto — disse Steven. — Agora, vamos ver sua temperatura. — Enfiou o termômetro na boca de Peter Marlowe, depois tirou as ataduras e examinou a ferida. A inchação diminuíra e a tonalidade verde e roxa desaparecera, e cascas limpas e duras cobriam a ferida. Steven polvilhou mais sulfa na ferida.

— Muito bom. — O enfermeiro estava satisfeito com o sucesso do tratamento, mas nada satisfeito com o dia de hoje. Aquele nojento daquele Sargento Flaherty, pensou, homem malvado. Sabe que odeio fazer isso, mas sempre me escolhe. — Que lixo — falou em voz alta.

— Como?

Mac, Larkin e Peter Marlowe estavam preocupados.

— Não está bom? — perguntou Peter Marlowe.

— Está sim, meu caro. Estava falando de outra coisa. Pronto, vamos ver a temperatura. — Steven pegou o termômetro e sorriu para Peter Marlowe, lendo a medida. — Normal. Quer dizer, um décimo acima do normal, mas isso não faz mal. Tem sorte, muita sorte. — Ergueu o vidro vazio de antitoxina. — Acabei de dar o restinho.

Steven tomou-lhe o pulso, e disse:

— Muito bom. — Ergueu os olhos para Mac. — Tem uma toalha?

Mac lhe entregou, e Steven molhou-a com água fria e pôs uma compressa na cabeça de Peter Marlowe.

— Achei isso aqui — falou o enfermeiro, dando-lhe duas aspirinas. — Vão ajudar, meu caro. Agora, descanse um pouquinho. — Virou-se para Mac, levantou-se, deu um suspiro e alisou o sarongue â volta dos quadris. — Não há mais nada que eu possa fazer. Ele está muito fraco. Terão que lhe dar um pouco de sopa. E todos os ovos em que puderem botar as mãos. E terão que cuidar dele. — Voltou a olhar para a esqualidez de Peter Marlowe. — Deve ter perdido uns sete quilos nos últimos dois dias, e isso é perigoso, no peso em que está, pobrezinho. Deve pesar uns 50 quilos, o que não é muito, para o tamanho dele.

— Nós... hã... gostaríamos de lhe agradecer, Steven — disse Larkin, gravemente. — Somos muito gratos por tudo o que fez. Sabe disso.

— Tenho sempre prazer em ajudar — falou Steven, alegremente, ajeitando um cachinho sobre a testa.

Mac lançou um olhar para Larkin.

— Se houver alguma coisa... hã... Steven, que a gente possa fazer, é só falar.

— Que gentil. Os dois são tão... gentis — falou, delicadamente, admirando o Coronel, aumentando o embaraço deles, brincando com a medalha de São Cristóvão qüe trazia ao pescoço. — Se pudessem tomar o meu lugar no serviço das fossas, amanhã, bem, eu faria qualquer coisa. Qualquer coisa, mesmo. Não suporto aquelas baratas fedorentas. Nojentas — falou, afetadamente. — Será que fariam isso?

— Está bem, Steven — falou Larkin, acidamente.

— Nós o veremos ao alvorecer, então — resmungou Mac, e recuou um pouco, fugindo da tentativa de carícia de Steven. Larkin não foi rápido o bastante, e Steven botou a mão na cintura do Coronel, dando-lhe uma palmadinha carinhosa.

— Boa-noite, meus caros. Ah, os dois são tão bonzinhos para o Steven. Quando ele se foi, Larkin olhou ferozmente para Mac.

— Se disser alguma coisa, arranco fora suas orelhas.

— Qual é, homem, não se exalte. — Mac deu uma risadinha. — Mas você estava dando a impressão de que estava gostando. — Inclinou-se para Peter Marlowe, que estivera observando tudo. — Não foi, Peter?

— Acho que vocês dois estão prontos para tirar uma casquinha — disse Peter Marlowe, sorrindo debilmente. — Ele foi bem pago, mas vocês ficam oferecendo os seus serviços, tentando-o. Mas o que viu em vocês, dois bodes velhos, eu não entendo.

Mac abriu um sorriso para Larkin.

— Ah, o rapazinho está bem melhor. Agora pode virar-se sozinho, para variar. E não ficar, como diz o Rei, “de papo pro ar”, fugindo do batente.

— Faz dois ou três dias, desde a primeira injeção? — perguntou Peter Marlowe.

— Dois dias.

Dois dias? Parece mais dois anos, pensou Peter Marlowe. Mas amanhã estarei forte o bastante para ir buscar o dinheiro.

Naquela noite, depois da última chamada, o Padre Donovan veio jogar bridge com eles. Quando Peter Marlowe contou-lhes sobre o pesadelo que tivera, em que brigara com eles, todos acharam graça.

— Pois é, meu rapaz — falou Mac — a cabeça da gente apronta as ilusões mais esquisitas, quando se está com febre.

— É — concordou o Padre Donovan. Depois, sorriu para Peter. — Que bom que seu braço tenha-se curado, Peter.

Peter Marlowe devolveu o sorriso.

— Não há muita coisa que se passe por aqui que o senhor desconheça, não é?

— Não há muita coisa que se passe por aqui que Ele desconheça. — Donovan tinha absoluta certeza, e uma paz completa. — Estamos em boas mãos. — Depois acrescentou, com uma risadinha abafada. — Até mesmo vocês três.

— Bem, já é alguma coisa — disse Mac — embora eu ache que o Coronel é um caso perdido.

Após o jogo, e depois que Donovan se fora, Mac fizera sinal para Larkin.

— Fique de vigia. Vamos ouvir as notícias, antes de dormir.

Larkin ficou vigiando a estrada, e Peter Marlowe ficou sentado na varanda, tentando manter os olhos alerta. Dois dias. Agulhas enfiadas no braço, e agora estava curado, tinha o braço de volta. Dias estranhos, dias de sonho, e agora estava tudo bem.

As notícias foram excelentes, e todos voltaram para suas camas. Dormiram um sono satisfeito, sem sonhos.

De madrugada, Mac foi até o galinheiro e achou três ovos. Trouxe-os consigo, fez uma omelete, encheu-a com um pouco do arroz que poupara na véspera e perfumou-a com uma lasca de alho.

Depois, levou-a à choça de Peter Marlowe, acordou-o, e ficou olhando enquanto ele raspava o prato.

De repente, Spence entrou correndo na choça.

— Ei, pessoal! — gritava. — Chegou correspondência no campo!

O estômago de Mac deu uma cambalhota. Ó, Deus, que haja uma carta para mim.

Mas não havia carta para Mac.

Entre os 10.000 do campo, só foi distribuído um total de 43 cartas. Os japoneses só haviam entregue correspondência em duas oportunidades, em três anos. Umas poucas cartas. E em três ocasiões, os homens tiveram permissão para escrever um cartão-postal de 25 palavras. Mas se esses postais haviam sido despachados, isso nunca souberam.

Larkin estava entre os que receberam uma carta. A primeira que lhe chegava às mãos.

A carta dele estava datada de 21 de abril de 1945. Quatro meses atrás. As datas das outras cartas variavam entre três semanas e mais de dois anos.

Larkin leu e releu a carta. A seguir, leu-a para Mac, Peter Marlowe e o Rei, sentados na varanda do bangalô.

Querido, Esta é a carta 205, começava ela. Estou bem, e Jeannie está bem, e Mamãe está morando conosco, e moramos no mesmo lugar de sempre. Não tivemos notícias suas desde sua carta de 1? de fevereiro de 1942, posta no correio em Gngapura. Mas, mesmo assim, sabemos que está bem e feliz, e rezamos para que volte em segurança.

Comecei todas as cartas do mesmo jeito, portanto, se já leu antes o que está escrito acima, perdoe-me. Mas é difícil, sem saber se esta irá chegar às suas mãos, se alguma das outras chegou. Eu o amo. Preciso de você. E sinto sua falta, às vezes de modo insuportável.

Hoje, estou triste. Não sei por que, mas estou. Não quero ficar deprimida, e gostaria de contar-lhe um monte de coisas maravilhosas.

Quem sabe estou triste por causa da Sra. Gurble. Ela recebeu um cartão-postal, ontem, e eu não. Creio que sou muito egoísta. Mas sou assim. De qualquer modo, não se esqueça de contar a Vic Gurble que a mulher dele, Sarah, recebeu um postal datado de 6 de janeiro de 1943. Ela está bem, e o filho deles está uma graça. Sarah está tão feliz por estar novamente em contato com ele. Ah, sim, e as moças do Regimento estão bem. A mãe de Timsen está ótima. E não se esqueça de dar lembranças minhas a Tom Masters. Encontrei a mulher dele ontem à noite. Vai bem, ganhando muito dinheiro para ele, num ramo novo de negócios. Ah, sim, encontrei também Elizabeth Ford, Mary Vickers...

Larkin levantou os olhos da carta.

— Ela menciona umas doze mulheres. Mas os homens estão mortos. Todos eles. O único que está vivo é Timsen.

— Continue a ler, meu rapaz — disse Mac depressa, notando dolorosamente a agonia estampada nos olhos de Larkin.

Hoje está quente — continuou Larkin — e estou sentada na varanda e Jeannie está brincando no jardim, e acho que este fim de semana irei para o chalé em Blue Mountatns.

Gostaria de escrever sobre o noticiário, mas não é permitido.

Ó, Deus, como se escreve para dentro de um vácuo? Como posso saber? Onde está você, meu amor, pelo amor de Jesus, onde está você? Não vou escrever mais. Vou terminar a carta por aqui, e não vou mandá-la... ô, meu amor, rezo por você... reze por mim. Por favor, reze por mim, reze por mim...

Após uma pausa, Larkin falou:

— Não há assinatura e... o endereço foi escrito com a letra da minha mãe. Bem, o que acham disso?

— Sabe como são as mulheres — falou Mac. — Ela provavelmente enfiou a carta numa gaveta, e sua mãe a encontrou e botou no Correio, sem ler, sem falar com ela. Sabe como são as mães. O mais provável é que Betty tenha-se esquecido da carta, e no dia seguinte escreveu outra, quando se estava sentindo melhor.

— O que ela quer dizer com “Reze por mim”? — perguntou Larkin. — Sabe que rezo, todo dia. O que está acontecendo? Pelo amor de Deus, será que está doente, ou coisa assim?

— Não há motivo para se preocupar, Coronel — disse Peter Marlowe.

— O que você entende das coisas? — explodiu Larkin, abruptamente. — Que diabo, como não me vou preocupar?

— Bem, pelo menos você sabe que ela está bem, e sua filha está bem — explodiu Mac, também alucinado de saudade. — Abençoe sua sorte por isso! Nós não recebemos uma só carta! Nenhum de nós! Você tem sorte! — E foi saindo, furioso.

— Desculpe, Mac. — Larkin correu atrás dele, e trouxe-o de volta. — Desculpe, é que depois de tanto tempo...

— Não, rapaz, não foi nada que você tenha dito. Fui eu, eu é que tenho que pedir desculpas. Fiquei doente de inveja. Acho que odeio essas cartas.

— É isso aí — comentou o Rei. — Deixam um cara maluco. Quem recebe fica maluco, quem não recebe também. Só criam problemas.

Passava do anoitecer, pouco depois da hora do rancho. Toda a choça americana estava reunida.

Kurt cuspiu no chão e largou a bandeja.

— Aqui tem nove. Fiquei com uma. Os meus dez por cento. — Cuspiu de novo e foi embora.

Todos olharam para a bandeja.

— Acho que vou vomitar de novo — disse Peter Marlowe.

— Nato o culpo — concordou o Rei.

— Não sei por que. — Max pigarreou. — Parecem pernas de coelho. Pequeninas, mas pernas de coelho.

— Quer provar uma? — perguntou o Rei.

— Porra, não. Só falei que pareciam com elas. Posso ter a minha opinião, não posso?

— Puta que o pariu! — exclamou Timsen. — Nunca pensei que chegaríamos a vendê-los.

— Se eu não soubesse... Tex se interrompeu. — Estou com tanta fome. E nunca vi tanta carne junta, desde que pegamos aquele cachorro...

— Que cachorro? — perguntou Max, desconfiado.

— Ah, porra, foi há muitos anos — disse Tex. — Lá por... hã... 1943.

— Ah.

— Porra! — exclamou o Rei, ainda fascinado pela bandeja. — Parece legal. — Inclinou-se e farejou a carne, mas não encostou demais o nariz. — Tem um cheiro legal...

— Mas não é legal — interrompeu Byron Jones III, acidamente. — É carne de rato.

O Rei afastou bruscamente a cabeça.

— Por que teve que dizer isso, seu filho da puta! — exclamou, em meio às risadas.

— Puta que o pariu, mas é rato. Do jeito que você falava, estava-me dando fome.

Peter Marlowe pegou uma perna com cuidado e colocou-a numa folha de bananeira.

— Esta é minha — falou, voltando para sua choça. Foi para seu beliche, e sussurrou para Ewart.

— Quem sabe vamos comer muito bem, hoje à noite.

— O quê?

— Deixe pra lá. Uma coisa especial. — Peter Marlowe sabia que Drink-water podia ouvir o que diziam; furtivamente, botou a folha de bananeira na sua prateleira, e disse para Ewart: — Volto num momento.

Meia hora depois, estava de volta, e a folha de bananeira tinha sumido, e Drinkwater também.

— Você saiu? — perguntou Peter Marlowe à Ewart.

— Só um momentinho. Drinkwater me pediu para ir buscar um pouco d’água para ele. Não se sentia bem.

E então Peter Marlowe começou a rir histericamente e todo o pessoal da choça pensou que ele tinha ficado maluco. Só quando Mike deu-lhe umas sacudidelas foi que conseguiu parar de rir.

— Desculpem, foi uma piadinha particular.

Quando Drinkwater voltou, Peter Marlowe fingiu estar mortalmente preocupado com a perda de um pouco de comida, e Drinkwater também se mostrou preocupado, e disse, lambendo os beiços:

— Mas que sujeira!

Peter Marlowe teve novo ataque histérico de riso.

Finalmente, Peter Marlowe foi para seu beliche, deixando-se ficar ali largado, exausto de tanto rir. E rapidamente esta exaustão somou-se à exaustão dos dois últimos dias. Adormeceu, e sonhou com Drinkwater comendo montanhas de coxinhas, enquanto ele, Peter Marlowe, ficava olhando e Drinkwater não parava de dizer: “O que há? São deliciosas, deliciosas...”

Ewart sacudiu-o para acordá-lo.

— Há um americano aí fora, Peter. Quer falar com você.

Peter Marlowe ainda se sentia fraco e nauseado, mas saltou da cama.

— Onde está Drinkwater?

— Sei lá. Mandou-se depois que você teve aquele ataque.

— Ah. — Peter Marlowe riu de novo. — Estava com medo de que tivesse sido um sonho.

— Como? — Ewart fitava-o, atentamente.

— Nada.

— Não sei o que está dando em você, Peter. Tem andado muito estranho ultimamente.

Tex esperava por Peter Marlowe, junto à choça.

— Pete — murmurou. — O Rei me mandou. Você está atrasado.

— Droga! Peguei no sono, desculpe.

— É, foi o que ele imaginou. Mandou que eu lhe dissesse: “É melhor ir logo.” — Tex franziu a testa. — Você está bem?

— Estou. Só um pouquinho fraco. Tudo bem.

Tex acenou com a cabeça, depois se afastou rapidamente. Peter Marlowe esfregou o rosto, em seguida desceu a escada até a estrada asfaltada, e se meteu debaixo do chuveiro, com o corpo tirando forças da água fria. Depois, encheu seu cantil e caminhou pesadamente até as latrinas. Escolheu um buraco na base da elevação, o mais perto possível da cerca.

Havia apenas uma nesga de Lua. Esperou até a área das latrinas estar momentaneamente vazia, depois esgueirou-se pelo chão descoberto, meteu-se sob a cerca e entrou na selva. Rastejava enquanto acompanhava a cerca, evitando a sentinela que percorria a trilha entre a selva e a cerca. Levou uma hora para achar o lugar onde escondera o dinheiro. Sentou-se e pegou os maços de notas e amarrou-os nas coxas, dobrando o sarongue em volta da cintura. Agora, ao invés de tocar o chão, o sarongue ia só até os joelhos e, dobrado em dois, disfarçava um pouco a grossura desajeitada das pernas.

Teve que esperar mais uma hora em frente à área das latrinas, antes de poder passar sob a cerca. Agachou-se na fossa, na escuridão, para recuperar o fôlego e esperar até que seu coração estivesse mais calmo. Finalmente, apanhou o cantil e se afastou da área das latrinas.

— Alô, cupincha — disse Timsen com um sorriso, saindo de dentro das sombras. — Bela noite, não?

— É — respondeu Peter Marlowe.

— Noite gostosa para se dar um passeio, certo?

— É?

— Importa-se que eu o acompanhe?

— Não, venha comigo, Tim, até gosto que me acompanhe. Assim não encontraremos nenhum assaltante safado. Certo?

— Certo, meu chapa. Você é um grã-fino legal.

— Você também não é tão mau, seu velho sacana. — Peter Marlowe deu-lhe uma palmadinha nas costas. — Ainda não lhe agradeci.

— Esqueça, meu chapa. Puta que o pariu — disse Timsen, rindo baixinho. — Você quase me enganou. Pensei que só ia dar uma cagadinha.

O Rei ficou aborrecido quando viu Timsen, mas, ao mesmo tempo, não ficou aborrecido demais, pois o dinheiro estava de novo em suas mãos. Contou-o e botou-o na caixa preta.

— Agora, só precisamos da pedra.

— É; meu chapa. — Timsen pigarreou. — Se pegarmos o assaltante, antes de ele vir para cá, ou depois de ele sair daqui, então eu recebo o preço que combinamos, certo? Se você comprar o anel dele, e não o pegarmos... então você é o vencedor, certo? Acha justo?

— Acho — disse o Rei. — Negócio fechado.

— Ótimo! Deus o ajude, se o pegarmos! — Timsen fez um cumprimento de cabeça a Peter Marlowe, e foi embora.

— Peter, deite-se — falou o Rei, sentado na caixa preta. — Você está muito abatido.

— Pensei em voltar para minha choça.

— Fique aqui. Posso precisar de alguém em quem confie. — O Rei estava suando, e o calor do dinheiro na caixa preta parecia estar atravessando a madeira.

E, assim, Peter Marlowe ficou deitado na cama, o coração ainda doendo do esforço. Dormia, mas a mente estava alerta.

— Meu chapa!

— Agora? — disse o Rei, dando um salto para junto da janela.

— Depressa. — O homenzinho estava apavorado, e o branco dos olhos refletiam a luz, enquanto olhava de um lado para o outro. — Ande, depressa.

O Rei enfiou a chave na fechadura, abriu a tampa e tirou a pilha de 10.000 dólares que já havia separado, e voltou correndo para a janela.

— Pronto. Dez mil. Já contei. Cadê o diamante?

— Quando eu tiver o dinheiro.

— Quando eu tiver o diamante — falou o Rei, ainda segurando firme as notas.

O homenzinho fitou-o belicosamente, depois abriu o punho. O Rei olhou para o anel de diamante, examinando-o, sem fazer um gesto para pegá-lo. Preciso ter certeza, disse para si mesmo, com urgência. Preciso ter certeza. É ele, sim. Acho que é.

— Vamos, meu chapa — disse o homenzinho, irritado. — Pegue.

O Rei só soltou as notas quando segurou firme o anel, e o homenzinho escafedeu-se. O Rei prendeu a respiração e debruçou-se junto à luz e examinou atentamente o anel.

— Conseguimos, Peter, amigão — sussurrou, eufórico. — Conseguimos. Temos o diamante e o dinheiro.

Com a tensão dos últimos dias começando a fazer sentir seus efeitos, o Rei abriu um saquinho de grãos de café e fez menção de enterrar o anel lá dentro. Em vez disso, colocou-o habilmente na palma da mão. Até mesmo Peter Marlowe, o homem mais perto dele, foi enganado. Logo que fechou a caixa à chave, teve um acesso de tosse. Ninguém o viu passar o anel da mão para a boca. Tateou em busca da xícara de café frio e bebeu-a, engolindo o anel. Agora, o diamante estava seguro. Muito seguro.

Ficou sentado na cadeira, esperando a tensão passar. É, disse para si mesmo, exultante. Consegui.

Um assobio de alerta rasgou a quietude.

Max entrou porta adentro.

— Tiras — falou, e entrou rapidamente no jogo de pôquer.

— Merda!

O Rei forçou as pernas a se moverem e agarrou as pilhas de dinheiro. Jogou uns três centímetros de notas para Peter Marlowe, enfiou quase outros três nos bolsos, atravessou correndo o aposento, até a mesa de pôquer, e deu a cada homem uma pilha para enfiar no bolso. A seguir, dividiu o resto pela mesa, puxou outra cadeira e entrou no jogo.

— Vamos, pela madrugada, dê as cartas — falou o Rei.

— Está bem, está bem — falou Max. — Cinco cartas. — Empurrou para diante 100 dólares. — Cem para entrar.

— Que tal duzentos — disse Tex, abrindo um sorriso.

— Vou nessa!

Todos iam naquela, e estavam felizes e risonhos, e Max deu as duas primeiras cartas, e deu para si mesmo um ás, virado para cima.

— Aposto quatrocentos!

— Os seus quatrocentos, mais quatrocentos — disse Tex, que tinha um dois virado para cima, e nada no buraco.

— Vou nessa — falou o Rei, e então ergueu os olhos e viu Grey parado à porta. Entre Brough e Yoshima. E atrás de Yoshima estavam Shagata e outro guarda.


23

— Fiquem em pé ao lado de suas camas — ordenou Brough, fisionomia lívida e contraída.

O Rei lançou um olhar assassino a Max, que era o vigia da noite. Max falhara em sua tarefa. Dissera “Tiras”, sem notar os japoneses. Se tivesse dito “Japoneses”, um plano diferente teria sido usado.

Peter Marlowe tentou levantar-se. Ficar de pé só aumentava sua náusea, portanto tropeçou até junto da mesa do Rei, e se apoiou nela.

Yoshima estava olhando para o dinheiro sobre a mesa. Brough já o vira e se crispara. Grey também o notara, e seu pulso batia mais depressa.

— De onde veio este dinheiro? — perguntou Yoshima. Fez-se um enorme silêncio.

Então, Yoshima gritou:

— De onde veio este dinheiro?

O Rei morria por dentro. Tinha visto Shagata, e sabia que Shagata estava nervoso, e o Rei sentia que estava por um fio de ser mandado para Utram Road.

— É dinheiro de jogo, senhor.

Yoshima atravessou toda a extensão da cabana, até parar diante do Rei.

— Não do mercado negro? — perguntou.

— Não, senhor — respondeu o Rei, forçando um sorriso.

Peter Marlowe sentiu o vômito subir-lhe à garganta. Oscilou violentamente e quase caiu, e não conseguia focalizar as coisas.

— Posso... sentar-me... por favor? — perguntou. Yoshima olhou em sua direção, e notou a braçadeira.

— O que faz aqui um oficial inglês? — Estava surpreso, pois seus informantes lhe tinham dito que havia muito pouca confraternização com os americanos.

— Estou... só... de visita... — Mas Peter Marlowe não pôde continuar. — Com licença... — correu até a janela e vomitou.

— O que há com ele? — perguntou Yoshima.

— Acho... que está com febre, senhor.

— Você — ordenou Yoshima a Tex — sente-o naquela cadeira.

— Sim, senhor — disse Tex. Yoshima voltou a olhar para o Rei.

— Como pode haver tanto dinheiro sem mercado negro? — perguntou, com voz sedosa.

O Rei sentia os olhos sobre si, sentia o silêncio apavorante, sentia o diamante dentro de si, sentia a presença de Shagata junto à porta. Pigarreou.

— É só que... guardamos nossa grana para jogar!

A mão de Yoshima estalou no rosto do Rei, lançando-o para trás.

— Mentiroso!

A bofetada não chegou a doer, de verdade, mas, ao mesmo tempo, parecia um golpe mortal. Meu Deus, pensou o Rei, estou morto. Minha sorte acabou.

— Capitão Yoshima. — Brough começou a atravessar a choça. Sabia que não ia adiantar nada interferir... talvez até piorasse as coisas... mas tinha que tentar.

— Cale-se! — disse Yoshima. — O homem está mentindo. Todo mundo sabe disso. Ianque nojento!

Yoshima deu as costas a Brough e ergueu os olhos para o Rei.

— Entregue-me seu cantil!

Como num sonho, o Rei tirou o cantil da prateleira e entregou-o a Yoshima. O japonês esvaziou toda a água, sacudiu o cantil e espiou lá para dentro. Depois, jogou-o no chão e dirigiu-se a Tex.

— Entregue-me seu cantil.

O estômago de Peter Marlowe ficou revoltado de novo. Por que os cantis?, gritava seu cérebro. Será que Mac e Larkin estão sendo revistados? E o que vai acontecer se Yoshima pedir meu cantil? Teve nova ânsia e cambaleou até a janela.

Yoshima percorreu toda a choça, examinando cada cantil. Finalmente, parou diante de Peter Marlowe.

— O seu cantil.

— Eu... — começou Peter Marlowe, e foi novamente acometido de náusea, e seus joelhos cederam, e foi incapaz de falar.

Yoshima virou-se para Shagata e disse-lhe algo em japonês, furiosamente.

— Hai — disse Shagata.

— Você! — Yoshima apontou para Grey. — Vá com este homem e o guarda e traga o cantil.

— Pois não.

— Com licença, senhor — disse o Rei, rapidamente. — O cantil dele está aqui.

O Rei enfiou a mão debaixo da cama e tirou de lá o seu cantil sobressalente, guardado em segredo para alguma emergência.

Yoshima segurou-o. Era muito pesado. Pesado o bastante para conter um rádio, ou parte de um rádio. Tirou a rolha e virou o cantil de ponta-cabeça. Um rio de grãos de arroz secos jorrou lá de dentro. E continuou jorrando até o cantil ficar vazio e leve. Nenhum rádio lá dentro.

Yoshima jogou o cantil longe. . — Onde está o rádio? — berrou.

— Não há rádio... — começou Brough, torcendo para que Yoshima não lhe perguntasse por que um inglês, de visita, enfiaria seu cantil debaixo de uma cama.

— Cale-se.

Yoshima e os guardas revistaram a choça, certificando-se de que não havia mais nenhum cantil, depois Yoshima revistou novamente todos os cantis.

— Onde está o cantil com o rádio? — berrou. — Sei que está aqui. Que está com um de vocês! Onde está?

— Não há rádio algum aqui — repetiu Brough. — Se quiser, podemos virar a choça de ponta-cabeça para vocês.

Yoshima soube que havia algum erro em sua informação. Desta feita não lhe haviam revelado o esconderijo, somente que o rádio estava num cantil, ou em cantis, e que esta noite um dos donos dele estava, naquele momento, na choça americana. Olhou atentamente para cada homem. Quem? Claro que poderia levá-los a todos para a casa da guarda, mas isso de nada adiantaria... nâ”o sem o rádio. O General não gostava de fracassos. E sem o rádio... Assim, desta vez, falhara. Virou-se para Grey.

— Informará ao Comandante do Campo que todos os cantis estão confiscados. Deverão ser entregues ainda esta noite à casa da guarda!

— Sim, senhor — falou Grey. Seu rosto estava que era só olhos. Yoshima se dava conta de que, quando os cantis fossem levados à casa da guarda, aquele ou aqueles que continham o rádio já estariam enterrados ou escondidos. Mas não fazia mal... tornaria a revista mais fácil, pois o esconderijo teria que ser mudado, e quando fosse mudado, haveria olhos atentos. Quem iria imaginar que um rádio pudesse ser posto num cantil?

— Porcos ianques — rosnou. — Acham-se tão espertos. Tão fortes, tão grandes. Bem, lembrem-se: nem que esta guerra dure cem anos, nós os derrotaremos. Mesmo que tenham vencido os alemães. Continuaremos a luta sozinhos. Jamais nos vencerão, jamais. Podem matar muitos de nós, porém mataremos ainda mais de vocês. Nunca nos conquistarão. Porque somos pacientes, e não temos medo de morrer. Mesmo que leve duzentos anos... acabaremos por destruí-los. — Em seguida, retirou-se, intempestivamente. Brough virou-se, furioso, para o Rei.

— Você tem fama de esperto, e deixa aquele filho da mãe amarelo e seus guardas entrarem na choça, com todo esse dinheiro espalhado por aí. Precisa mandar examinar sua cabeça.

— Sim, senhor. Preciso mesmo.

— E mais uma coisa. Cadê o diamante?

— Que diamante, senhor? Brough sentou-se.

— O Coronel Smedly-Taylor me chamou e avisou que o Capitão Grey tinha informações de que você está de posse de um anel de diamantes, que não deveria estar com você. Os dois... você e o Capitão-Aviador Marlowe. Claro, se tiver que ser feita uma revista, tenho que estar presente. E não faço nenhuma objeção a que o Capitão Grey procure... desde que eu esteja presente. Estávamos prestes a nos mandar para cá, quando Yoshima entrou com seus guardas, e começou a deblaterar que iria revistar esta choça... um de vocês teria um rádio escondido num cantil... já viram que loucura? E mandou que Grey e eu viéssemos com ele. — Agora que a revista tinha acabado, agradecia a Deus não havei nenhum cantil com rádio ali, e tinha certeza de que Peter Marlowe e o Rei estavam metidos na transa do rádio. Por que outro motivo o Rei fingiria que um cantil americano pertencia ao inglês?

— Muito bem — disse Brough ao Rei — dispa-se. Vai ser revistado. E o seu beliche e a sua caixa preta. — Deu meia-volta. — O resto de vocês fique quieto, e continue jogando. — Voltou a olhar para o Rei. — A não ser que queira entregar-me o diamante.

— Que diamante, senhor?

Quando o Rei começou a se despir, Brough foi até junto de Peter Marlowe.

— Posso arranjar-lhe alguma coisa, Pete? — perguntou.

— Só um pouco d’água.

— Tex — ordenou Brough — traga um pouco d’água. — E para Peter Marlowe: — Está com cara terrível, o que foi?

— Só... febre... sinto-me péssimo. — Peter Marlowe recostou-se na cama de Tex, e forçou um débil sorriso. — Aquele maldito amarelo quase me mata de susto.

— A mim também.

Grey revistou as roupas do Rei, e a caixa preta, as prateleiras e o saco de feijões, e os homens ficaram espantadíssimos quando não foi achado o diamante.

— Marlowe! — Grey estava parado diante dele.

Os olhos de Peter Marlowe estavam injetados, mal podia enxergar.

— Sim?

— Quero revistá-lo.

— Ouça, Grey — disse Brough. — Está no seu direito de fazer a revista aqui, estando eu presente. Mas não tem autoridade...

— Tudo bem — falou Peter Marlowe. — Não me importo. Se eu... não deixar... ele vai... pensar... Ajude-me aqui, sim?

Peter Marlowe tirou o sarongue, e jogou-o sobre a cama, junto com o bolo de notas.

Grey examinou cuidadosamente as bainhas. Irado, jogou de volta o sarongue.

— Onde conseguiu este dinheiro?

— Jogando — respondeu Peter Marlowe, pegando o sarongue.

— Você! — Grey dirigiu-se ao Rei, com brusquidão. — E quanto a isto? — Mostrava mais um grosso bolo de notas.

— Jogando, senhor — disse o Rei, inocentemente, enquanto se vestia, e Brough disfarçou um sorriso.

— Onde está o diamante?

— Que diamante? Senhor.

Brough levantou-se e dirigiu-se para a mesa de pôquer.

— Parece que não há diamante.

— E então, de onde veio tanto dinheiro?

— O homem disse que é dinheiro de jogo. Não há lei que proíba o jogo. Claro que também não aprovo o jogo — acrescentou, com um sorriso seco, olhos fitos no Rei.

— Sabe que isso não é possível! — disse Grey.

— Não é provável, é o que quer dizer — interrompeu Brough. Tinha pena de Grey... com os olhos brilhantes demais, a boca crispada, as mãos trêmulas... tinha pena dele. — Quis fazer uma revista aqui, já a fez, e não há diamante algum. — Interrompeu-se ao ver Peter Marlowe dirigir-se cambaleante para a porta. O Rei agarrou-o antes que caísse ao chão.

— Deixe, eu ajudo — falou o Rei. — É melhor eu levá-lo para a cabana dele.

— Fique aqui — ordenou Brough. — Grey, quem sabe você o ajudaria.

— Para mim, ele pode até cair morto. — Os olhos de Grey fitaram o Rei. — Você também! Mas não antes que eu o pegue. E vou pegar.

— Quando o fizer, vou puni-lo exemplarmente — disse Brough, olhando para o Rei. — Certo?

— Sim, senhor.

Brough voltou a olhar para Grey.

— Mas até que o faça... ou até que ele desobeça as minhas ordens... nada pode ser feito.

— Então, ordene-lhe que pare de vender no mercado negro — falou Grey. Brough se manteve calmo.

— Tudo por uma vida pacífica — falou, e sentiu o desprezo dos seus homens, e sorriu intimamente. Filhos da puta. — Você! — falou para o Rei. — Estou-lhe ordenando que pare de vender no mercado negro. No meu entender, no mercado negro vendem-se comida, mercadorias, qualquer coisa, para o seu próprio pessoal... com fins lucrativos. Você não pode vender nada para nós com fins lucrativos.

— Lidar com contrabando, isso é mercado negro.

— Capitão Grey, vender com fins lucrativos ou até mesmo roubar do inimigo não é mercado negro. Não há mal nenhum num comerciozinho.

— Mas contraria as ordens!

— Ordens japonesas! E não aceito ordens inimigas. E eles são o inimigo.

— Brough queria acabar logo com aquela besteirada. — Nada de mercado negro. É uma ordem.

— Vocês, americanos, são unidos... isso não se pode negar.

— Faça o favor de não começar. Já chega o que agüentei de Yoshima. Não há ninguém aqui vendendo no mercado negro ou infringindo leis que sejam leis... ao que me conste. Agora, o assunto está encerrado. Se eu pegar alguém roubando ou vendendo comida com fins lucrativos, ou drogas com fins lucrativos, quebro eu mesmo o braço dele e enfio garganta abaixo. E sou o oficial americano mais antigo e esses são os meus homens e essa é a minha palavra. Entendeu?

Grey fitou Brough e prometeu a si mesmo que também ficaria de olho nele. Gente nojenta, oficiais nojentos. Virou-se e saiu em largas passadas da choça.

— Ajude Peter a voltar para o beliche dele, Tex — falou Brough.

— Claro, Don. — Tex ergueu-o nos braços e abriu um sorriso para Brough.

— Como um bebê, senhor — falou, retirando-se.

Brough fitou o dinheiro na mesa de pôquer.

— É — disse, balançando a cabeça, como se falasse consigo mesmo — o jogo não presta. Não presta rriesmo. — Ergueu os olhos para o Rei, e disse, docemente: — Sou contra o jogo, e você?

Tome cuidado, disse o Rei para si mesmo, Brough está com aquela cara de oficial safado. Por que será que só os oficiais filhos da puta ficam com aquela cara, e como é que a gente sempre sabe... e sente o cheiro do perigo a seis metros de distância?

— Bem — falou o Rei, oferecendo um cigarro a Brough, e segurando o fogo para acendê-lo — acho que depende do modo de se encarar.

— Obrigado. Nada como um cigarro comprado pronto. — Mais uma vez, os olhos de Brough ficaram fitos nos do Rei. — E como você o encara, Cabo?

— Se estou ganhando, é uma boa; se estou perdendo, já é diferente. — E acrescentou, mentalmente: Seu filho da puta, que diabo está pretendendo?

Brough resmungou e olhou para a pilha de notas diante da cadeira em que o Rei estivera sentado. Balançando a cabeça, pensativo, manuseou-as com o polegar e tomou-as na mão. Todas elas. Seus olhos viram as altas pilhas diante de todos.

— Parece que aqui todo o mundo está ganhando — disse, pensativo, sem se dirigir a ninguém em especial.

O Rei não respondeu.

— Parece que uma contribuição não lhes fará falta.

— Hã?

— É, hã, merda! — Brough levantou o maço de notas. — Um tanto assim. Para a “caixinha”. Dos oficiais e soldados.

O Rei gemeu. Quase 400 dólares.

— Porra, Don...

— Jogar é um mau hábito. Como praguejar, porra. Se você joga cartas, pode apenas perder o dinheiro, e como ficaria? Já uma contribuição salvaria sua alma para coisas melhores.

Pechinche, seu idiota, disse o Rei para si mesmo. Concorde com a metade.

— Puxa, teria prazer em...

— Ótimo. — Brough virou-se para Max. — Você também, Max.

— Mas, senhor — começou o Rei, acaloradamente.

— Já falou o que tinha que falar.

Max tentou não olhar para o Rei, e Brough disse:

— Isso mesmo, Max. Olhe para ele. Um bom homem. Deu sua contribuição, por que, diabo, você não pode fazer o mesmo?

Brough tirou três quartos das notas de cada pilha e contou rapidamente o dinheiro. Diante deles. O Rei teve que se sentar e ficar olhando.

— Isso dá dez dólares por cabeça por semana, durante seis semanas — falou Brough. — Quinta-feira é o dia do pagamento. Ah, sim, Max! Reúna todos os cantis e leve-os à casa da guarda. Imediatamente! — Enfiou o dinheiro no bolso, depois foi andando para a porta. Ao chegar lá, teve uma súbita inspiração. Pegou de novo as notas e tirou do maço uma única nota de cinco dólares. Olhando para o Rei, jogou-a no meio da mesa.

— Dinheiro para o enterro. — O sorriso dele era angélico. — Boa-noite, rapazes.

Por todo o campo, procedia-se a coleta dos cantis. Mac, Larkin e Peter Marlowe achavam-se no bangalô. Na cama, ao lado de Peter Marlowe, estavam os seus cantis.

— Poderíamos tirar o rádio de dentro deles, e jogá-los vazios numa fossa — falou Mac. — Vai ser um bocado difícil esconder agora estes malditos cantis.

— Poderíamos jogá-los como estão dentro de uma fossa — falou Larkin.

— Está falando sério, Coronel? — quis saber Peter Marlowe.

— Não, meu camarada. Mas falei, e todos devemos decidir o que fazer. Mac pegou um dos cantis.

— Talvez devolvam os outros dentro de um dia ou dois. Não podemos arranjar um esconderijo melhor para as entranhas dos cantis. — Ergueu os olhos, e falou, malignamente: — Mas quem será o filho da mãe que sabe?

Ficaram olhando os cantis.

— Não está na hora de escutar o noticiário? — perguntou Peter Marlowe.

— Está, meu rapaz — falou Mac, olhando para Larkin.

— Concordo — disse este.

O Rei ainda estava acordado, quando Timsen espiou pela janela.

— Meu cupincha?

— Hem?

Timsen ergueu um maço de notas.

— Pegamos os dez que você pagou.

O Rei deu um suspiro, abriu a caixa preta e pagou a Timsen o que lhe devia.

— Obrigado, cupincha. — Timsen riu, baixinho. — Ouvi contar que teve uma discussão com Grey e Yoshima.

— Edaí?

— Nada... só foi uma pena que Grey não tivesse achado o diamante. Não gostaria de estar na sua pele... nem na do Pete, diga-se de passagem. Ah, não mesmo. Muito perigoso, certo?

— Vá à merda, Timsen.

— Só uma advertência amistosa, certo? — Timsen riu. — Ah, sim. 0 primeiro carregamento de tela de galinheiro já está debaixo da choça, o suficiente para umas cem gaiolas. — Tirou do maço de notas 120 dólares. — Vendi o primeiro carregamento a trinta dólares a perna. Aqui está sua parte: meio a meio.

— Quem comprou? Timsen piscou o olho.

— Uns amigos meus. Boa-noite, meu camarada.

O Rei relaxou na cama, verificando novamente que o mosquiteiro estivesse bem preso sob o colchão. Estava alerta para o perigo. Sabia que não poderia ir à aldeia durante dois dias, e que de agora até então muitos olhos estariam vigiando e esperando. Naquela noite, seu sono foi inquieto, e no outro dia ficou na choça, cercada por guardas.

Depois do almoço, houve uma revista inesperada na área dos bangalôs. Os guardas percorreram os diminutos aposentos três vezes, antes de a revista ser dada por terminada.

À noitinha, Mac foi cautelosamente até a área das latrinas e puxou para cima os três cantis que estavam pendurados num barbante, dentro de uma das fossas. Limpou-os, trouxe-os para o bangalô e ligou-os. Ele, Larkin e Peter Marlowe escutaram o noticiário, decorando-o. Depois, Mac não levou os cantis de volta ao esconderijo, pois, embora tivesse sido cuidadoso, tinha certeza de que fora observado.

Os três resolveram não esconder mais os cantis. Sabiam, sem se desesperar, que muito em breve seriam apanhados.


24

O Rei andava pela selva, rapidamente. Ao se acercar do campo, tornou-se mais cuidadoso, até ficar numa posição fronteira à choça americana. Ficou deitado no chão, bocejando satisfeito, esperando o momento certo para cruzar a trilha, esgueirar-se sob a cerca e voltar à segurança da choça. O restante do dinheiro enchia-lhe os bolsos.

Fora sozinho à aldeia. Peter Marlowe não estava em condições de acompanhá-lo. Encontrara-se com Cheng San e entregara-lhe o diamante. Depois, participaram de um banquete, e ele fora procurar Kasseh, que lhe dera as boas-vindas.

A aurora pintava o novo dia quando o Rei se esgueirou sob a cerca e entrou na choça. Foi só quando se deitou que notou a falta da caixa preta.

— Ora, seus filhos da puta cretinos! — berrou. — Não se pode confiar em vocês para nada!

— Puta que o pariu — disse Max. — Ela estava aí há poucas horas. Eu me levantei para ir à latrina.

— E onde está agora, porra?

Mas nenhum dos homens vira ou ouvira coisa alguma.

— Vá chamar Samson e Brant — ordenou o Rei a Max.

— Puxa, mas ainda é cedo...

— Mandei ir chamá-los!

O Coronel Samson chegou em meia hora, cheio de medo.

— O que aconteceu? Sabe que não devo ser visto aqui.

— Um filho da puta roubou minha caixa. Pode ajudar a descobrir quem foi.

— Como vou...

— Não me interessa como — interrompeu o Rei. — Fique de ouvido atento, quando estiver perto dos oficiais. Não haverá mais grana para você até que eu saiba quem foi.

— Mas, Cabo, não tive nada a ver com isso.

— Tão logo eu saiba, os pagamentos semanais recomeçarão. Agora, dê o fora.

Alguns minutos mais tarde, o Coronel Brant chegou, e recebeu o mesmo tratamento. Logo que ele foi embora, o Rei preparou seu desjejum, enquanto os demais habitantes da choça vasculhavam o campo. Acabara de comer, quando Peter Marlowe entrou. O Rei lhe contou sobre o roubo da caixa preta.

— Mas que azar — comentou Peter Marlowe.

O Rei concordou com a cabeça, depois piscou o olho.

— Não faz mal. Tenho o resto da grana do Cheng San... portanto, temos tutu de sobra. Só achei que era hora de dar um esporro. Os rapazes foram descuidados... e é uma questão de princípios. — Entregou-lhe uma pequena pilha de notas. — Eis a sua parte da venda do diamante.

Peter Marlowe queria demais aquele dinheiro. Mas sacudiu a cabeça.

— Fique com ele. Devo-lhe muito mais do que me será possível pagar. Além disso, ainda há o dinheiro que gastou com os remédios.

— Está certo, Peter. Mas ainda somos sócios.

— Ótimo — disse Peter Marlowe, sorrindo.

O alçapão se abriu e Kurt subiu para a cabana.

— Setenta, até agora — falou.

— Hem? — disse o Rei.

— É o Dia N.

— Merda — falou o Rei. — Tinha-me esquecido completamente.

— Ainda bem que não esqueci, não é? Vou matar mais dez dentro de alguns dias. Não há necessidade de alimentar os machos. Há uns cinco ou seis grandes o bastante.

O Rei se sentiu enjoado, mas falou:

— Está bem. Vou falar com Timsen. Quando Kurt se fora, Peter Marlowe disse:

— Acho que não vou aparecer por aqui durante um ou dois dias.

— Como?

— Acho melhor. Não dá mais para escondermos o rádio. Decidimos, os três, ficar por perto do bangalô.

— Estão querendo cometer suicídio? livrem-se do maldito rádio, se desconfiam que foram descobertos. Depois, se forem interrogados, neguem tudo.

— Já pensamos nisso, mas o nosso é o único rádio no campo... por isso queremos conservá-lo o máximo que for possível. Com um pouquinho de sorte, não seremos apanhados.

— Não se esqueça de cuidar primeiro do número um, meu chapa.

— É, eu sei. — Peter Marlowe sorriu. — É por isso que vou deixar de vir aqui, por uns tempos. Não quero envolvê-lo em nada.

— O que vão fazer se Yoshima for procurá-los?

— Tentar fugir.

— Para onde, pelo amor de Deus?!

— É melhor tentar fugir do que ficar parado, esperando. Dino, que estava de vigia, enfiou a cabeça pelo vão da porta.

— Com licença, mas é que Timsen vem vindo para cá.

— O.K. — disse o Rei. — Vou atendê-lo. — Voltou-se para Peter Marlowe. — O pescoço é seu, Peter. Aconselho-o a jogar o troço fora.

— Antes pudéssemos, mas não há jeito.

O Rei sabia que não havia nada que pudesse fazer.

— Oi, meu camarada — cumprimentou Timsen, ao entrar, o rosto tenso de raiva. — Ouvi contar que teve um pouco de azar, certo?

— Estou precisando de novos cães de guarda, sem dúvida.

— Você e eu estamos — disse Timsen, furioso. — Os assaltantes jogaram sua caixa preta debaixo da minha choça. Porra, da minha chocai

— O quê?

— Isso mesmo. Está lá, debaixo da minha choça, limpinha da silva. Mas que filhos da puta, é a pura verdade. Nenhum australiano a roubaria para deixá-la debaixo da minha choça. Não, senhor. Só pode ser um inglês ou um ianque.

— Quem, por exemplo?

— Não sei. Só o que sei é que não era gente minha. Tem a minha palavra.

— Vou acreditar em você. Mas pode espalhar por aí... tem uma recompensa de mil dólares pela prova de quem surripiou minha caixa. — O Rei tirou deliberadamente de sob o travesseiro a pilha de notas que Cheng San lhe dera pela conclusão da venda. Tirou do maço 300 dólares e deu-os a Timsen, que fitava de olhos arregalados a imensidão da pilha. — Preciso de um pouco de açúcar, café e óleo... quem sabe um ou dois cocos. Quer arranjar-me?

Timsen pegou o dinheiro, sem conseguir tirar os olhos da pilha de dinheiro restante.

— Concluiu a venda, certo? Puta merda, nunca pensei que o faria. Mas fez, certo?

— Claro — falou o Rei, com displicência. — Tenho o bastante para durar um ou dois meses.

— Para durar um ano, meu chapa — disse Timsen, embasbacado. Virou-se e caminhou devagar até a porta, depois olhou para trás com uma risada repentina. — Mil, não é? Acho que isso trará resultados, certo?

— Sim — disse o Rei. — É só uma questão de tempo.

Dentro de uma hora a notícia da recompensa se havia espalhado pelo campo. Olhos começaram a vigiar com interesse redobrado. Ouvidos estavam atentos aos sussurros ao vento. Memórias eram vasculhadas, e vasculhadas de novo. Era apenas uma questão de tempo, até que os 1.000 dólares fossem reclamados.

Naquela noite, quando o Rei andou pelo campo, sentiu, como nunca sentira antes, o ódio, a inveja e a força daqueles olhos. Aquilo fez com que se sentisse bem, mais do que bem, pois sabia que todos eles sabiam que possuía uma pilha imensa de notas, enquanto eles nada possuíam... que só ele, entre todos, estava realmente numa boa.

Samson veio procurá-lo, e Brant... e muitos outros... e embora se sentisse enojado com a bajulação deles, ficou satisfeitíssimo por estarem agindo assim em público, pela primeira vez. Passou pela choça da PM, e até mesmo Grey, parado diante dela, simplesmente devolveu sua continência correta, e não o chamou para ser revistado. O Rei sorriu consigo mesmo, sabendo que até Grey estava pensando na pilha de notas e na recompensa.

Agora, nada podia tocar o Rei. As pilhas de notas significavam segurança, vida e poder. E eram só dele.


25

Quando Yoshima veio, desta vez, foi sorrateiramente, mas com grande rapidez. Não veio como de costume, atravessando o campo pela estrada, mas veio com muitos guardas, através da cerca, e quando Peter Marlowe viu o primeiro dos guardas, o bangalô já estava cercado e não havia para onde fugir. Mac ainda estava sob o mosquiteiro, ouvindo o noticiário no fone de ouvido, quando Yoshima invadiu o bangalô.

Peter Marlowe, Larkin e Mac foram levados para um canto. Então, Yoshima apanhou o fone e escutou. O rádio ainda estava ligado, e ele pôde ouvir o restinho do noticiário.

— Muito engenhoso — disse, largando o fone de ouvido. — Seus nomes, por favor?

— Sou o Coronel Larkin, este é o Major McCoy e este é o Capitão-Avia-dor Marlowe.

— Aceitam um cigarro? — perguntou Yoshima, com um sorriso.

Os três aceitaram, e Yoshima acendeu os seus cigarros, acendendo também um para si mesmo. Os quatro fumaram em silêncio. A seguir, Yoshima falou:

— Desliguem o rádio e venham comigo.

Os dedos de Mac tremiam, quando ele se debruçou sobre o aparelho. Olhou à sua volta nervosamente, quando outro oficial japonês apareceu, saído abruptamente de dentro da noite. O oficial murmurou algo com insistência ao ouvido de Yoshima. Durante um momento, Yoshima fitou-o sem dizer palavra, depois deu uma ordem brusca a um dos guardas, que se postou à porta, e se afastou apressadamente, com o oficial e todos os outros guardas.

— O que aconteceu? — perguntou Larkin, de olho no guarda, que apontava para eles um fuzil com baioneta.

Mac estava perto de sua cama, acima do rádio, joelhos trêmulos, quase sem poder respirar. Quando finalmente conseguiu falar, disse, com voz rouca:

— Acho que sei. Foram as notícias. Nato tive tempo de lhes contar. Temos... temos um tipo novo de bomba. Uma bomba atômica. Ontem, às nove e quinze da manhã uma delas foi largada sobre Hiroxima. A cidade inteira desapareceu. Dizem que as baixas vão ser às centenas de milhares... homens, mulheres e crianças!

— Ó, meu Deus! — Larkin sentou-se, subitamente, e o guarda nervoso já estava quase puxando o gatilho, quando Mac gritou em malaio:

— Espere, ele só se está sentando!

— Todos vocês, sentem-se! — gritou o guarda, também em malaio, xingando-os. Depois que obedeceram, falou: — Sois idiotas! Sede mais cautelosos ao vos moverdes... pois é responsabilidade minha que não escapeis. Ficai sentado onde estais. E não vos movais! Atirarei sem pestanejar!

E então eles ficaram sentados e calados. Acabaram por adormecer, cochilando irrequietamente sob a luz impiedosa da lâmpada elétrica, afastando com golpes os mosquitos, até a alvorada acabar com os insetos.

Ao alvorecer, o guarda foi trocado. Os três amigos continuaram sentados. Do lado de fora do bangalô, homens nervosos andavam pela trilha, mas olhavam para o outro lado até estarem bem longe do quarto condenado.

O dia era desolador, sob o Sol escaldante. O dia se arrastava, mais lentamente do que qualquer outro dia já se arrastara.

No meio da tarde, os três ergueram os olhos ao ver Grey se aproximar do guarda e bater continência. Trazia nas mãos duas vasilhas de comida.

— Posso dar-lhes isto? Makan?

Destampou as vasilhas e deixou que o guarda visse a comida. O guarda deu de ombros e concordou.

Grey atravessou a varanda e largou a comida no vão da entrada, os olhos vermelhos e penetrantes.

— Desculpe estar frio — falou.

— Veio rir de nossa desgraça, Grey, meu velho? — falou Peter Marlowe, com um sorriso sem alegria.

— Não me traz nenhuma satisfação saber que eles vão botá-lo na cadeia. Queria apanhá-lo infringindo as leis... na”o vê-lo apanhado por arriscar a vida pelo bem de todos nós. Típica sorte sua ainda sair cercado do esplendor da glória!

— Peter — sussurrou Mac — distraia o guarda!

Peter Marlowe levantou-se e foi rapidamente para perto da porta. Bateu continência para o guarda e pediu permissão para ir à latrina. O guarda indicou o chão, diante do bangalô. Peter Marlowe agachou-se no pó e evacuou, odiando ter que fazê-lo ali, abertamente, mas agradecido por na*o os obrigarem a evacuar dentro do quarto. Enquanto o guarda vigiava Peter Marlowe, Mac sussurrou as novidades para Grey, que ficou sem cor. Grey se levantou e fez um sinal de cabeça para Peter Marlowe, que retribuiu o cumprimento, depois bateu continência de novo para o guarda. Este apontou para o monte de fezes coberto de moscas e mandou que Grey voltasse com um balde para limpar a sujeira.

Grey contou as notícias para Smedly-Taylor, que as sussurrou para os outros, e logo Changi inteira sabia da novidade... muito antes de Grey ter pegado um balde, limpado a sujeira e ter deixado outro balde no chão para eles usarem.

O primeiro dos grandes temores permeou o campo. O temor da represália.

Ao pôr do sol, houve nova troca de guarda, e o novo guarda era Shagata. Peter Marlowe tentou falar com ele, mas Shagata simplesmente fez sinal com a baioneta para que ele ficasse dentro do guarto.

— Não posso falar convosco. Fostes apanhado com um rádio, o que é proibido. Atirarei até mesmo em vós, se qualquer um tentar escapar. Não desejo atirar em vós. — E voltou para junto da porta.

— Puta que o pariu! — exclamou Larkin. — Gostaria que acabassem logo com a gente.

Mac olhou para Shagata.

— Senhor — disse, indicando a cama — suplico-vos um favor. Posso descansar ali, por obséquio? Dormi mal a noite.

— Certamente. Descansai enquanto tendes tempo, ancião.

— Agradeço-vos. A paz esteja convosco.

— E convosco.

Mac foi até sua cama e se deitou, pousando a cabeça no travesseiro.

— Ainda está ligado — falou Mac, mantendo, com dificuldade, a voz controlada. — É um recital de música. Posso ouvir nitidamente.

Larkin viu o fone perto do ouvido de Mac e deu uma risada repentina. E então todos os três começaram a rir. Shagata apontou o fuzil para eles.

— Parem — ordenou, assustado com as risadas.

— Pedimos que nos desculpeis — falou Peter Marlowe. — É só que nós, que estamos tão perto da eternidade, achamos as pequenas coisas divertidas.

— Verdadeiramente estais perto da morte... e também sois tolos por vos

terdes deixado apanhar infringindo a lei. Mas espero ter a coragem de rir, quando chegar a minha hora. — Jogou um maço de cigarros dentro do quarto. — Tomai — falou. — Lamento que tenhais sido apanhados.

— Não mais do que eu — disse Peter Marlowe. Dividiu os cigarros e lançou um olhar para Mac. — O recital é de quê?

— De Bach, meu rapaz — respondeu Mac, controlando-se para não desatar a rir histericamente, de novo. Moveu a cabeça mais para junto do fone de ouvido. — Calem-se, agora, está bem? Quero apreciar a música.

— Quem sabe nós nos podemos alternar — disse Larkin. — Embora qualquer um que aprecie Bach seja meio sem gosto.

Peter Marlowe fumou seu cigarro e disse amavelmente para Shagata.

— Agradeço-vos pelos cigarros.

As moscas rondavam o balde e sua tampa tosca. As chuvas da tarde vieram cedo e diminuíram o fedor, e depois o Sol saiu e começou a secar a umidade de Changi.

O Rei caminhou ao longo dos bangalôs, cônscio dos olhares fitos nele. Parou cautelosamente diante do bangalô condenado.

— Tabe, Shagata-san — falou. — Ichi-bon dia, não é? Posso falar com meu ichi-bon amigo?

Shagata fitava-o, sem nada entender.

— Ele suplica vossa permissão para falar comigo — disse Peter Marlowe. Shagata pensou por um momento, depois concordou.

— Por causa do dinheiro que ganhei com a venda, permito que faleis. — Virou-se para Peter Marlowe. — Se me derdes vossas palavras de que não ten-tareis escapar.

— Tendes as nossas palavras.

— Sede rápidos. Ficarei vigiando. — Shagata moveu-se, para poder ficar de olho na estrada.

— Corre um boato de que os guardas estão enxameando na casa da guarda — começou o Rei, nervosamente. — Puta que o pariu, pois sim que vou dormir hoje à noite! Eles são bem do tipo de filhos da mãe que agiriam durante a noite. — Sentia os lábios secos, e estivera de olho na cerca o dia todo, esperando um sinal dos guerrilheiros que o fizesse decidir-se pela tentativa de fuga. Mas não vira nenhum. — Ouçam. — Baixou a voz e contou-lhes sobre o plano. — Quando a matança começar, ataquem o guarda e tentem escapar junto da nossa choça. Procurarei dar cobertura a vocês três, mas não esperem demais.

A seguir, levantou-se, fez um sinal para Shagata e se afastou. Depois que voltou à choça americana, reuniu um conselho de guerra. Contou-lhes seu plano, mas não contou que apenas dez deles poderiam escapar. Todos discutiram o plano e depois resolveram esperar.

— Nada mais podemos fazer — falou Brough, dando eco aos temores de todos. — Se tentássemos agora, nos fariam em pedaços.

Apenas os muito doentes dormiram, naquela noite. Ou aqueles... pouquíssimos... que se podiam entregar tranqüilamente nas mãos de Deus... ou do Destino. Dave Daven estava dormindo.

— Trouxeram Dave de volta de Utram Road hoje a tarde — sussurrara Grey, ao lhes trazer a refeição da noite.

— Como está ele? — perguntou Peter Marlowe.

— Está pesando apenas 32 quilos.

Daven dormiu durante aquela noite e durante o espantoso dia seguinte, e morreu em coma enquanto Mac ouvia o locutor dizer:

“A segunda bomba atômica destruiu Nagasáqui. O Presidente Truman deu um ultimato final ao Japão... renda-se incondicionalmente, ou enfrente a destruição total.”

No dia seguinte, os grupos de trabalho saíram e, o que parecia inacreditável, voltaram. As rações continuaram a chegar ao campo e Samson as pesou em público e levou a quantidade extra aos homens que o haviam feito encarregado dos mantimentos. Ainda havia ração para dois dias no depósito e nas cozinhas, e havia comida pronta, e as moscas abundavam, e nada se modificara.

Os percevejos mordiam e os mosquitos picavam e as ratas amamentavam os filhotes. Alguns homens morreram. A Enfermaria Seis ganhou três novos pacientes.

Mais um dia, e mais outra noite, e mais outro dia. Foi então que Mac ouviu as palavras sagradas:

“Aqui fala Calcutá. A rádio de Tóquio acaba de anunciar que o Governo japonês rendeu-se incondicionalmente. Três anos e duzentos e cinqüenta dias desde que os japoneses atacaram Pearl Harbor... A guerra acabou. Deus salve o Rei!”

Logo, Changi inteira já sabia da notícia. E as palavras tornaram-se parte da Terra e do céu, e das paredes e celas de Changi.

No entanto, durante mais dois dias e duas noites, nada se modificou. No terceiro dia, o Comandante do Campo veio andando ao longo dos bangalôs com Awata, o Sargento japonês.

Peter Marlowe, Mac e Larkin viram os dois homens se acercando, e morreram 1.000 mortes a cada passo que davam. Souberam imediatamente que sua hora havia chegado.


26

— Uma pena — disse Mac.

— É — replicou Larkin.

Peter Marlowe simplesmente fitava Awata, petrificado.

O rosto do Comandante do Campo estava profundamente vincado de fadiga, mas, mesmo assim, mantinha os ombros retos e caminhava com firmeza. Estava vestido com capricho, como sempre, com a manga esquerda da camisa enfiada cuidadosamente no cinto. Calçava sandálias de madeira, e usava o boné esverdeado por anos de suor tropical. Subiu os degraus da varanda e hesitou, diante da porta.

— Bom-dia — cumprimentou, com voz rouca, enquanto eles se levantavam.

Awata deu uma ordem com voz gutural ao guarda. Este fez uma reverência e foi para junto de Awata. Mais uma ordem seca, e os dois homens puseram os fuzis ao ombro e se retiraram.

— Acabou — falou o Comandante do Campo, com voz rouca..— Peguem o rádio e venham comigo.

Abobalhados, fizeram o que ele mandou, e saíram do quarto para o Sol. E o Sol e o ar puro eram deliciosos. Seguiram o Comandante do Campo rua acima, observados pelos olhos atônitos de Changi.

Os seis coronéis mais antigos esperavam no alojamento do Comandante do Campo. Brough também estava lá. Todos bateram continência.

— À vontade, por favor — falou o Comandante do Campo, retribuindo a continência. Depois, virou-se para os três. — Sentem-se. Temos para com vocês uma dívida de gratidão.

— Acabou mesmo? — disse Larkin, com esforço.

— Sim. Estive ainda agora com o General. — O Comandante do Campo olhou para os homens calados, ordenando seus pensamentos. — Pelo menos, acho que acabou — disse. — Yoshima estava com o General. Eu falei... falei “A guerra acabou”. O General ficou olhando para mim, enquanto Yoshima traduzia. Esperei, mas ele nada falou, portanto repeti “A guerra acabou. Eu... eu... eu exijo sua rendição”. — O Comandante do Campo ficou esfregando a calva. — Não sabia o que mais podia dizer. Durante longo tempo, o General só olhou para mim. Yoshima não dizia absolutamente nada.

“Depois o General disse, e Yoshima traduziu: ‘É. A guerra acabou. Queira retornar ao seu posto no campo. Dei ordens aos meus guardas para darem as costas ao campo e os protegerem contra qualquer um que tente forçar a entrada no campo para machucá-los. Eles agora sã”o seus guardas... para sua proteção... até que eu receba novas ordens. O senhor ainda é o responsável pela disciplina do campo.’

“Não sabia o que falar, portanto pedi-lhe que dobrasse as rações e nos desse medicamentos, e ele disse: ‘Amanhã as rações serão dobradas. Receberão alguns medicamentos. Infelizmente, não temos muitos. Mas o senhor será o responsável pela disciplina. Meus guardas o protegerão contra aqueles que querem matá-lo.’

“Perguntei quem eram, o General deu de ombros e disse: ‘Os seus inimigos. A entrevista está encerrada.’

— Puta que o pariu! — exclamou Brough. — Quem sabe querem que a gente saia... para terem uma desculpa para atirar em nós.

— Não podemos deixar que os homens saiam — falou Smedly-Taylor, estarrecido. — Ficariam incontroláveis. Mas precisamos fazer alguma coisa. Quem sabe mandar que eles nos entreguem suas armas...

O Comandante do Campo levantou a mão.

— Acho que só o que podemos fazer é esperar. Estou... creio que chegará alguém. E até que chegue, devemos continuar como antes. Ah, sim. Temos permissão de mandar um grupo tomar banho de mar. Cinco homens de cada choça. Rotativamente. Ó, meu Deus! — exclamou, e era uma prece — espero que ninguém perca a cabeça. Ainda não há garantia de que os japoneses aqui obedecerão a ordem de rendição. Podem até continuar a lutar. Só o que podemos fazer é torcer pelo melhor... e preparar-nos para o pior. — Fez uma pausa e olhou para Larkin. — Acho que o rádio deve ser deixado aqui. — Fez um aceno para Smedly-Taylor. — Providenciará uma guarda permanente.

— Sim, senhor.

— Naturalmente — disse o Comandante do Campo para Larkin, incluindo Peter Marlowe e Mac na ordem — vocês ainda operarão o rádio.

— Se não se importa, senhor — disse Mac — deixe que outros o façam. Eu o consertarei, se houver algum problema, mas, bem, suponho que o queira deixar funcionando as vinte e quatro horas do dia. Não poderíamos fazer isso sozinhos, e... bem, falando por mim, agora que tudo foi descoberto, gostaria que outros partilhassem da escuta.

— Cuide disso, Coronel! — falou o Comandante do Campo.

— Sim, senhor — disse Smedly-Taylor.

— Agora, vamos discutir as operações.

Do lado de fora do alojamento do Comandante do Campo, um grupo de curiosos, incluindo Max, se reunia, impaciente para saber o que se dizia, e o que acontecera, e por que os guardas japoneses haviam saído de junto do rádio.

Quando já não podia mais agüentar a tensão, Max voltou correndo para a choça americana.

— Ei, pessoal! — berrou.

— Os japoneses vêm vindo? — perguntou o Rei, pronto para pular pela janela e correr para a cerca.

— Não! Meu Jesus — disse Max, sem fôlego, incapaz de coiitinuar.

— Mas que diabo aconteceu? — quis saber o Rei.

— Tiraram a guarda japonesa de junto do Pete e do rádio! — falou Max, recobrando o fôlego. — Depois, o Comandante do Campo levou Pete, Larkin e o escocês... e o rádio... para o alojamento dele. Estão todos reunidos lá, agora, todos os coronéis mais antigos... até o Brough está lá!

— Tem certeza? — perguntou o Rei.

— Estou-lhe dizendo que vi com esses olhos que a terra há de comer, mas também não estou acreditando.

No silêncio violento, o Rei puxou de um cigarro, e então Tex verbalizou aquilo de que ele já se havia dado conta.

— Quer dizer que acabou. Acabou de verdade. Tem que ser... se tiraram a guarda de junto do rádio! — Tex olhou à sua volta. — Não é?

Max largou-se pesadamente no beliche e enxugou o suor do rosto.

— É o que também acho. Se tiraram os guardas, quer dizer que vão desistir, aqui... vão parar de lutar. — Olhou para Tex, com ar indefeso. — Não é?

Mas Tex estava perdido na sua confusão particular. Finalmente, falou, com cara impassível:

— Acabou.

O Rei dava baforadas no cigarro, com ar sério.

— Só acredito quando vir com meus olhos. — E então, de repente, no silêncio sinistro, teve medo.

Dino, automaticamente, aleijava as moscas. Byron Jones III distraidamen-te moveu um bispo. Miller pegou-o e deixou sua rainha desprotegida. Max fitava os pés. Tex se cocava.

— Bem, não me sinto nada diferente — falou Dino, e se pôs de pé. — Tenho que ir dar uma mijada. — E saiu.

— Não sei se rio ou choro — falou Max. — Está-me dando é vontade de vomitar.

— Não faz sentido — disse Tex, em voz alta, mas falava consigo mesmo, e nem percebera que tinha falado. — Simplesmente não faz sentido.

— Ei, Max — falou o Rei. — Quer fazer um pouco de café? Automaticamente, Max saiu e foi colocar água na panela. Quando voltou, ligou o fogareiro elétrico e botou a panela em cima dele. Começou a retornar ao seu beliche, mas se deteve de chofre, virou-se e ficou olhando fixo para o Rei.

— O que foi, Max? — perguntou o Rei, pouco à vontade.

Max apenas o fitava, com os lábios se movendo espasmodicamente, sem emitir som algum.

— O que é, nunca me viu?

Subitamente, Max agarrou a panela e arremessou-a pela janela.

— Enlouqueceu, cara? — explodiu o Rei. — Molhou-me todo!

— Não diga! — berrou Max, os olhos saltados.

— Deveria enchê-lo de porrada! Está maluco?

— A guerra acabou. Faça você mesmo a bosta do seu café — gritou Max, espumando de leve no canto da boca.

O Rei se pusera de pé, o rosto vermelho de raiva, quase agredindo Max.

— Saia já daqui antes que eu lhe dê um pontapé na cara!

— Vamos, faça isso, ande, mas não se esqueça que sou Primeiro-Sargento, e o levo à corte marcial!

Max começou a rir histericamente, depois, abruptamente, o riso se transformou em lágrimas, lágrimas desesperadas, e Max fugiu da choça, deixando atrás de si um silêncio horrorizado.

— Que filho da puta maluco — resmungou o Rei. — Quer ferver um pouco d’água, sim, Tex — disse, sentando-se no seu canto.

Tex estava à porta, olhando para a figura de Max que fugia. Voltou o olhar para ele, devagar.

— Estou ocupado — disse, depois de uma agonia de indecisão.

O estômago do Rei deu uma reviravolta. Ele controlou a náusea que sentia e os músculos da face.

— É — falou o Rei, com um sorriso sombrio. — Estou vendo. — Podia sentir a profundidade do silêncio. Apanhou a carteira e escolheu uma nota. — Tome uma nota tie dez dólares. Desocupe-se e vá buscar água, sim? — Disfarçou a dor nas entranhas e ficou olhando para Tex.

Mas este não disse nada, apenas estremeceu nervosamente e olhou para o outro lado.

— Vocês ainda têm que comer... até que acabe de verdade — disse o Rei desdenhosamente, correndo os olhos pela choça. — Quem quer um pouco de café?

— Eu quero café — falou Dino, sem ar de quem pedisse desculpas. Foi buscar a panela, encheu-a e botou a água para ferver.

O Rei largou a nota de 10 dólares na mesa. Dino a fitou.

— Não, obrigado — falou, com voz rouca, sacudindo a cabeça — quero só o café. — Atravessou com passos incertos toda a extensão da choça.

Constrangidos, os homens deram as costas ao desprezo latente do Rei.

— Espero, para o seu bem, seus filhos da puta, que a guerra tenha mesmo acabado — disse o Rei.

Peter Marlowe saiu do alojamento do Comandante do Campo e caminhou, apressado, para a choça americana. Respondeu automaticamente aos cumprimentos dos homens que conhecia, e pôde sentir os olhares constantes e incrédulos que o seguiam. É, pensou, eu também mal acredito. Voltar para casa logo, voar de novo, ver o meu velho de novo logo, beber com ele, rir com ele. E toda a família. Deus, como vai ser esquisito. Estou vivo. Estou vivo. Consegui!

— Alô, gente boa! — Abriu um largo sorriso, ao entrar na choça.

— Oi, Peter — disse Tex, pondo-se de pé num salto e apertando a mão dele calorosamente. — Puxa, amigão, mas como ficamos contentes em saber da guarda!

— Mas que obra-prima de eufemismo — falou Peter Marlowe, e riu. Enquanto o cercavam, ele curtia o calor da recepção.

— O que houve com as Autoridades? — perguntou Dino.

Peter Marlowe contou-lhes, e ficaram ainda mais apreensivos. Todos, menos Tex.

— Porra, não há motivo para se preparar para o pior. Acabou! — disse, confiante.

— Acabou, sem dúvida — disse Max, rispidamente, entrando na choça.

— Alô, Max, eu... — Peter Marlowe não continuou. Estava chocado com o olhar assustador de Max. — Está bem? — perguntou, depois, perturbado.

— Claro que estou bem! — explodiu Max. Abriu caminho aos empurrões e largou-se no beliche. — Porra, o que estão olhando? Será que um cara não pode estourar-se de vez em quando, sem que um bando de filhos da mãe fique olhando para ele?

— Calma — falou Tex.

— Graças aos céus vou-me mandar dessa joça logo. — O rosto de Max estava castanho-acinzentado, e a boca não parava de se mexer. — E vou para longe de vocês, seus sacanas nojentos!

— Cale a boca, Max!

— Vá â merda! — Max enxugou a saliva que lhe escorria pelo queixo; enfiou a mão no bolso, tirou de lá um maço de notas de 10 dólares, depois rasgou-as selvagemente, espalhando-as como se fossem confete.

— Mas que bicho o mordeu, Max? — indagou Tex.

— Nenhum, seu filho da puta! Esta merda de dinheiro não presta.

— Hem?

— Acabo de vir da loja. É. Tive vontade de comprar um coco. Mas aquele maldito china não aceitou minha grana. Não aceitou. Disse que vendera todo o seu estoque para o maldito Comandante do Campo. Por uma promissória: “O Governo inglês promete pagar X dólares malaios britânicos.” Podem limpar a bunda com os dólares japoneses... só servem para isso!

— Uau! — exclamou Tex. — Agora não há mais dúvida. Se os chineses não aceitam a grana, é porque estamos mesmo por cima, hem, Peter?

— Pôde apostar que sim. — Peter Marlowe sentia-se feliz com a amizade deles. Até mesmo o olhar malévolo de Max não conseguia destruir sua felicidade. — Nem sei dizer o quanto vocês me ajudaram, rapazes, brincando, pilheriando, e tudo o mais.

— Porra! — exclamou Dino. — Você é um de nós. — Deu-lhe um soco de brincadeira. — Até que você não é mau, para um danado de um inglês!

— É melhor se mandar para os Estados Unidos, quando sairmos daqui. Pode ser até que a gente o deixe virar americano! — falou Byron Jones III.

— Tem que conhecer o Texas, Peter, meu velho. Se vai aos Estados Unidos, tem que conhecer o Estado!

— Não é muito provável — falou Peter Marlowe, em meio aos assovios e apupos. — Mas se algum dia eu for, pode apostar que apareço por lá. — Olhou para o canto do Rei. — Onde está o nosso intrépido líder?

— Está morto! — Max se sacudia, rindo obscenamente.

— O quê! — exclamou Peter Marlowe, sem poder deixar de sentir medo.

— Ainda está vivo — falou Tex. — Mas, mesmo assim, está morto.

Peter Marlowe olhou indagadoramente para Tex. Depois, viu a expressão no rosto de todos. De repente, sentiu-se muito triste.

— Não acham que foi um tanto abrupto?

— Abrupto, uma ova. — Max cuspiu. — Está morto. Trabalhamos feito uns burros para aquele filho da puta, e agora ele está morto.

Peter Marlowe virou-se violentamente para Max, detestando-o.

— Mas quando as coisas estavam pretas, ele lhes deu comida, dinheiro e...

— Não foi de graça, a gente trabalhou! — berrou Max, os tendões do pescoço distendidos. — Comi muita merda por causa daquele filho da mãe! -Seus olhos detiveram-se na insígnia de oficial no braço de Peter Marlowe. — E por sua causa, seu filho da mãe inglês! Quer puxar o meu saco como puxava o dele?

— Cale-se, Max — falou Tex, ameaçadoramente.

— Vá à merda, seu cafetão texano! — Max cuspiu na direção de Tex, e a saliva manchou o chão tosco de madeira.

Tex enrubesceu. Lançou-se sobre Max e jogou-o contra a parede com um bofetão na cara, dado com as costas da mão. Max cambaleou e caiu sobre o beliche, mas pôs-se de pé rapidamente, agarrou uma faca de cima da prateleira e lançou-se sobre Peter Marlowe. Tex conseguiu segurar o braço de Max bem na hora, e a faca apenas arranhou a barriga de Peter Marlowe. Dino agarrou Max pelo pescoço e o empurrou de volta ao beliche.

— Está louco varrido? — perguntou, ofegante.

Max olhava para cima, o rosto todo se mexendo, concentrado em Peter Marlowe. De repente, começou a berrar e se jogou para fora do beliche, lutando insanamente, braços se agitando em desespero, lábios afastados dos dentes, unhas feito garras. Peter Marlowe agarrou-lhe um braço e todos caíram em cima de Max e o arrastaram de volta ao beliche. Foram necessários três homens para segurá-lo, enquanto chutava, berrava, debatia-se e mordia.

— Endoidou de vez! — berrou Tex. — Alguém, bata na cabeça dele!

— Arranjem uma corda! — gritava Peter Marlowe, desesperadamente, enquanto agarrava Max, com o antebraço enfiado sob o queixo de Max, para fugir aos dentes raivosos.

Dino mudou de posição, soltou um braço e deu um forte soco no queixo de Max, deixando-o inconsciente.

— Puxa vida — falou para Peter Marlowe, enquanto se levantavam. — Ele quase acabou com sua raça!

— Rápido — disse Peter Marlowe, com urgência. — Enfiem alguma coisa entre os dentes dele, senão vai arrancar fora a língua.

Dino achou um pedaço de madeira e eles o prenderam entre os dentes de Max. Depois, amarraram-lhe as mãos. Quando Max estava bem preso, Peter Marlowe relaxou, tonto de alívio.

— Obrigado, Tex. Se você não tivesse segurado o braço dele, eu não estaria aqui para contar a história.

— Nem pense mais nisso. Foi ação reflexa. O que vamos fazer com ele?

— Chamar um médico. Ele teve um ataque, só isso. Nem se menciona a faca. — Peter Marlowe esfregou o arranhão na barriga, enquanto olhava para Max, que se sacudia espasmodicamente. — Pobre coitado!

— Graças a Deus você o deteve, Tex — falou Dino. — Chego a suar frio, só de pensar.

Peter Marlowe olhou para o canto do Rei. Parecia muito solitário. Inconscientemente, flexionou o braço e a mão, ufanando-se de sua força.

— Como está ele, Peter? — indagou Tex.

Peter Marlowe levou muito tempo para achar as palavras certas.

— Vivo, Tex, vivo... não morto. — Em seguida, virou-se e saiu da choça para o Sol.

Quando finalmente encontrou o Rei, já escurecia. O Rei estava sentado num toco de coqueiro partido na horta norte, meio escondido pelas trepadeiras. Olhava para longe, sombriamente, e não deu sinal de notar a aproximação de Peter Marlowe.

— Alô, meu velho — disse Peter Marlowe, alegremente, mas a alegria morreu dentro de si ao ver os olhos do Rei.

— O que deseja? Senhor? — perguntou o Rei, insultantemente.

— Queria vê-lo. Só queria vê-lo. — Ó, meu Deus, pensou cheio de pena, ao ver o estado do amigo.

— Pois bem, já me viu. E daí? — O Rei virou-lhe as costas. — Dê o fora! Peter Marlowe agachou-se junto ao toco de coqueiro e tirou dois cigarros comprados prontos do bolso.

— Tome um cigarro. Consegui-os com Shagata!

— Fume-os o senhor mesmo.

Por um momento, Peter Marlowe desejou não ter encontrado o Rei. Mas não foi embora. Acendeu com cuidado os dois cigarros e passou um para o Rei. Este não fez menção de pegá-lo.

— Aceite, por favor.

O Rei jogou longe o cigarro da mão dele.

— Fodam-se você e o seu maldito cigarro. Quer ficar aqui? Pois bem! — Levantou-se e começou a se afastar, em largas passadas. Peter Marlowe segurou-lhe o braço.

— Espere! Este é o dia mais importante de nossas vidas. Não o estrague por causa de uma atitude impensada dos seus companheiros de cela.

— Tire essa mão daí — falou o Rei, entredentes — ou a tiro na marra!

— Não se preocupe com eles — disse Peter Marlowe, as palavras jorrando de sua boca. — A guerra acabou, isso é que é importante. Acabou e nós sobrevivemos. Lembra-se de como vivia tentando enfiar isso na minha cabeça? Como era preciso cuidar do “número um”? E então, você está bem! Conseguiu sobreviver! O que importa o que eles digam?

— Estou-me lixando para eles! Não tem porra nenhuma a ver com isso. E estou-me lixando para você, também!

O Rei soltou o braço, com violência. Peter Marlowe fitou o Rei, desolado.

— Mas que merda, sou seu amigo. Deixe-me ajudá-lo!

— Não preciso de sua ajuda!

— Sei disso. Mas gostaria que continuássemos amigos. Olhe — continuou, com dificuldade. — Logo vai voltar para casa...

— Vou, porra nenhuma — explodiu o Rei, o sangue fazendo pressão em seus ouvidos. — Não tenho casa!

O vento agitava as folhas. Os grilos cantavam monotonamente. Nuvens de mosquitos os cercavam. As luzes das choças começavam a formar sombras desgraciosas, e a Lua navegava num céu de veludo.

— Não se preocupe, amigão — disse Peter Marlowe, compassivamente. — Tudo vai dar certo. — Não recuou ante o medo estampado nos olhos do Rei.

— Vai mesmo? — disse o Rei, atormentado.

— Vai. — Peter Marlowe hesitou. — Lamenta que tenha acabado, não é?

— Deixe-me em paz. Puta que o pariu, deixe-me em paz! — berrou o Rei, afastando-se e voltando a sentar-se no toco de coqueiro.

— Vai dar tudo certo para você — disse Peter Marlowe. — E sou seu amigo. Nunca se esqueça disso. — Estendeu a mão esquerda e tocou o ombro do Rei, e sentiu o ombro se esquivar ao toque.

— Boa-noite, amigão — falou, suavemente. — Até amanhã. — E foi embora, sentindo-se muito infeliz. Amanhã, prometeu a si mesmo, amanha” vou poder ajudá-lo.

O Rei se ajeitou no toco do coqueiro, feliz por estar sozinho, aterrorizado por sua solidão.

Os Coronéis Smedly-Taylor, Jones e Sellars raspavam os pratos.

— Magnífico! — disse Sellars, lambendo o caldo dos dedos. Smedly-Taylor chupava o osso, embora já estivesse bem limpo.

— Jones, meu rapaz, tenho que lhe dar crédito. — Arrotou. — Que modo soberbo de terminar o dia. Delicioso! Igualzinho a coelho! A carne é um pouco dura e fíbrosa, mas uma delícia!

— Há anos que não aprecio tanto uma refeição! — exclamou Sellars. — A carne estava um pouco gordurosa, mas, pela madrugada, que maravilha! — Lançou um olhar para Jones. — Não consegue arranjar mais? Uma coxinha só é pouco.

— Talvez. — Jones pegou com muita delicadeza o último grão de arroz. Seu prato estava seco e vazio, e ele se sentia entupido. — Foi muita sorte, não foi?

— Onde foi que as arranjou?

— Foi o Blakely que me deu a dica. Um australiano as estava vendendo.

— Jones arrotou. — Comprei todas as que ele tinha. — Olhou para Smedly-Taylor. — Que sorte que você tivesse o dinheiro.

Smedly-Taylor resmungou:

— É. — Abriu a carteira e jogou sobre a mesa 360 dólares. — Aí há dinheiro para mais seis. Não há necessidade de fazermos economia, não é, cavalheiros?

— Se tinha todo este dinheiro de reserva, por que não gastou um pouco há meses? — indagou Sellars, olhando para as notas.

— É mesmo, por que não? — Smedly-Taylor levantou-se e espreguiçou-se.

— Porque o estava guardando para hoje! E fim de papo — acrescentou, os olhos de granito fitos em Sellars.

— Ora, qual é, homem, não quero que conte nada. Só que não entendo como conseguiu fazer a coisa, só isso.

— Deve ter tido ajuda de alguém por lá — disse Jones, rindo. — Ouvi dizer que o Rei quase teve um enfarte!

— O quê tem o Rei a ver com meu dinheiro? — perguntou Smedly-Taylor.

— Nada. — Jones começou a contar o dinheiro. Havia mesmo 360 dólares ali, o bastante para 12 coxas de Rum tikus, a 30 dólares cada, que era o preço real delas, e não 60, como Smedly-Taylor acreditava. Jones sorriu consigo mesmo, pensando que Smedly-Taylor bem podia pagar o dobro, com todo o dinheiro que tinha agora. Ficou imaginando como Smedly-Taylor conseguira efetuar o roubo, mas sabia que o outro estava certo em não divulgar seus segredos. Como os três outros Rum tikus. Aqueles que ele e Blakely haviam cozido e comido em segredo à tarde. Blakely comera um, e ele os outros dois. E aqueles dois, somados ao que devorara agora, é que lhe davam aquela sensação de saciedade. — Meu Deus — falou, esfregando a barriga — acho que não posso comer tanto assim, todos os dias!

— Vai-se acostumar — falou Sellars. — Ainda estou com fome. Seja bonzinho e tente arranjar mais.

— Que tal uma partidinha de bridge? — falou Smedly-Taylor.

— Excelente — disse Sellars. — Quem será o quarto?

— Samson?

— Aposto que iria ficar muito aborrecido, se soubesse da carne — falou Jones, rindo.

— Quanto tempo acha que o nosso pessoal vai demorar a chegar a Cingapura? — indagou Sellars, tentando disfarçar sua ansiedade.

Smedly-Taylor olhou para Jones.

— Alguns dias. No máximo uma semana. Se os japoneses daqui forem mesmo ceder.

— Se nos deixaram o rádio, é porque pretendem fazê-lo.

— Espero que sim. Ó, meu Deus, espero que sim. Entreolharam-se, a gostosura da comida esquecida, perdida no medo do futuro.

— Não há com que se preocupar. Vai... dar tudo certo — disse Smedly-Taylor, externamente confiante. Mas, no íntimo, estava em pânico, pensando em Maisie, nos filhos e na filha, perguntando-se se estariam vivos.

Pouco antes do alvorecer, um avião quadrimotor sobrevoou o campo. Se era dos Aliados ou dos japoneses, ninguém sabia, mas, ao primeiro ronco dos motores, os homens haviam entrado em pânico, à espera das bombas que deviam chover sobre eles. Quando elas não caíram, e o avião se afastou, o pânico cresceu ainda mais. Quem sabe se esqueceram de nós... nunca virão.

Ewart entrou na choça às escuras e sacudiu Peter Marlowe, para acordá-lo.

— Peter, corre o boato de que o avião voou em círculos sobre o campo de pouso... e que um homem de pára-quedas saltou dele!

— Você viu?

— Não.

— Falou com alguém que tenha visto?

— Não, é só boato. — Ewart tentou não demonstrar seu temor. — Estou morto de medo de que, tão logo a esquadra entre no porto, os amarelos enlouqueçam.

— Não vão enlouquecer!

— Fui até o gabinete do Comandante do Campo. Há um bando de caras lá, e ficam dando as notícias o tempo todo. A última delas dizia que... —

Ewart não conseguiu falar, por um momento, depois continuou: — ... que as baixas em Hiroxima e Nagasáqui ultrapassam trezentos mil. Dizem que as pessoas continuam morrendo como moscas, por lá... que essa bomba-infernal afeta o ar de um jeito tal que continua matando. Meu Deus, se isso acontecesse com Londres, e eu estivesse no comando de um campo como este... chacinaria todo o mundo. Juro por Deus que o faria.

Peter Marlowe acalmou-o, depois saiu da choça e foi até o portão, na aurora que despontava. Por dentro, ainda estava com medo. Sabia que Ewart tinha razão. Uma bomba-infernal como aquela era demais. Mas vislumbrou, de repente, uma grande verdade, e abençoou o cérebro que inventara tal bomba. Somente as bombas haviam salvo Changi do esquecimento. Ah, disse para si mesmo, não importa o que aconteça por causa das bombas, abençoarei as duas primeiras, e os homens que as fizeram. Somente eles foram capazes de me devolver a vida, quando não havia mais nenhuma esperança de vida. E embora as duas primeiras tenham consumido uma quantidade incrível de gente, foi pela sua imensidão que salvaram as vidas de inúmeras centenas de milhares de outras pessoas. Nossas. E deles. Pelo Senhor Deus, é a pura verdade.

Encontrou-se ao lado do portão principal. Os guardas estavam lá, como sempre. Voltavam as costas para o campo, ainda de fuzil nas mãos. Peter Marlowe observou-os, curiosamente. Tinha certeza de que esses homens morreriam cegamente em defesa dos homens que há apenas um dia eram seus inimigos desprezíveis.

Meu Deus, pensou Peter Marlowe, como há gente incrível neste mundo.

E então, de repente, em meio à luz crescente da aurora, ele viu uma aparição. Um homem estranho, um homem de verdade, com largura e espessura, um homem que tinha jeito de homem. Um homem branco. Usava um estranho uniforme verde, as botas de pará-quedista brilhavam, o emblema na boina faiscava como fogo, trazia um revólver no cinto largo e carregava uma mochila impecável às costas.

O homem caminhou pelo centro da estrada, com os calcanhares batendo no chão, até chegar diante da casa da guarda.

O homem — agora Peter Marlowe podia ver que tinha o posto de Capitão — o Capitão parou, olhou ferozmente para os guardas e falou:

— Saúdem-me, seus malditos sacanas.

Quando os guardas olharam para ele, apalermados, o Capitão chegou perto do guarda mais próximo, arrancou-lhe o fuzil com baioneta das mãos, enfiou-o violentamente no chão, e repetiu:

— Saúdem-me, seus malditos sacanas.

Os guardas fitavam-no, nervosamente. Então o Capitão tirou do cinto o revólver e disparou um único tiro no chão, junto aos pés dos guardas, repetindo:

— Saúdem-me, seus malditos sacanas.

Awata, o Sargento japonês, Awata, o Temível, suando e nervoso, adiantou-se e fez uma reverência. Depois, todos fizeram reverência.

— Melhorou, seus malditos sacanas — falou o Capitão. A seguir, arrancou os fuzis das mãos de cada um dos homens, e lançou-os ao chão. — Voltem para dentro dessa bosta de casa da guarda.

Awata compreendeu o movimento da mão dele. Mandou que os guardas entrassem em forma. A seguir, por ordem dele, todos se inclinaram novamente. O Capitão ficou olhando para eles. Depois, devolveu o cumprimento.

— Saúdem-me, seus malditos sacanas — repetiu o Capitão, mais uma vez. Novamente, os guardas se inclinaram.

— Ótimo — falou o Capitão. — E da próxima vez que eu mandar saudar, saúdem!

Awata e todos os homens se inclinaram, e o Capitão se virou e caminhou para a barricada.

Peter Marlowe sentiu os olhos do Capitão sobre si e sobre os homens em derredor, e teve um sobressalto de medo, recuando.

Viu primeiro a repulsa nos olhos do Capitão, depois a compaixão. O Capitão berrou para os guardas:

— Abram este maldito portão, seus malditos sacanas.

Awata compreendeu o gesto dele e veio correndo com três guardas e tiraram a barricada do caminho.

O Capitão passou, e quando os japoneses começaram a fechar a barricada de novo, berrou:

— Deixem esta porcaria em paz. Obedeceram, e novamente fizeram uma reverência.

Peter Marlowe tentava concentrar-se. Isto estava errado. Completamente errado. Não podia estar acontecendo. E então, subitamente, o Capitão estava postado à sua frente.

— Alô — disse o Capitão. — Sou o Capitão Forsyth. Quem está no comando, aqui? — Suas palavras eram suaves, e muito gentis; mas Peter Marlowe podia apenas sentir os olhos do Capitão, examinando-o da cabeça aos pés.

O que foi? O que há de errado comigo? Peter Marlowe perguntava-se desesperadamente. O que há de errado comigo? Assustado, recuou mais um passo.

— Não precisa ter medo de mim. — A voz do Capitão era profunda e compassiva. — A guerra acabou. Mandaram-me para providenciar que sejam todos bem cuidados.

O Capitão deu um passo à frente. Peter Marlowe recuou, e o Capitão parou. Vagarosamente, o Capitão tirou do bolso um maço de Players. Bons Pla-yers ingleses.

— Quer um cigarro?

O Capitão se adiantou, e Peter Marlowe saiu correndo, apavorado.

— Espere aí! — gritou o Capitão para ele. Depois, aproximou-se de outro homem, que também deu meia-volta e fugiu. E todos os homens fugiram do Capitão.

O segundo grande medo tomou conta de Changi.

Medo de si mesmo. Será que estou bem? Estou mesmo, depois de todo esse tempo? Quero dizer, será que estou regulando bem da cabeça? Faz três anos e meio, afinal. E, meu Deus, lembra o que Van der Zelt falou sobre a impotência? Será que vou funcionar? Serei capaz de fazer amor? Vou-me sair bem? Vi o horror nos olhos do Capitão quando me fitou. Por quê? O que estava errado? Acha que, será que tenho coragem, coragem de perguntar a ele... tudo bem comigo?

Quando o Rei ouviu falar no Capitão pela primeira vez, estava deitado na cama, sorumbático. Ainda ocupava a posição privilegiada sob a janela, mas agora tinha o mesmo espaço que os outros homens... 1,80m por 1,20m. Quando voltara da horta norte, encontrara sua cama e cadeiras mudadas de lugar, e outras camas estavam agora espalhadas pelo espaço que era seu, de direito. Nada dissera; e os homens também nada disseram. Mas o Rei olhara para eles, e todos desviaram o olhar.

Além disso, ninguém buscara ou guardara sua refeição da noite. Fora consumida pelos outros.

— Puxa — falara Tex, distraidamente — acho que esquecemos de você. É melhor estar aqui na hora, na próxima vez. Cada homem é responsável por sua bóia.

Então, o Rei cozinhara uma de suas galinhas. limpara-a, fritara-a e a comera. Ou melhor, comera metade e guardara a outra metade para o desjejum. Agora, sobravam-lhe apenas duas galinhas. As outras haviam sido consumidas durante os últimos dias... e ele as partilhara com os homens que haviam trabalhado.

Na véspera, tentara comprar a loja do campo, mas a pilha de dinheiro que o diamante rendera não tinha nenhum valor. Na carteira, havia 11 dólares americanos, e estes eram aceitos. Mas sabia... gelado até a alma... que não poderia durar para sempre com 11 dólares e duas galinhas.

Dormira pouco na véspera. Mas, na vigília desolada da madrugada, enfrentara-se e dissera a si mesmo que aquilo era uma fraqueza e uma tolice, que não condizia com o comportamento de um Rei... não importava que, quando andasse pelo campo, as pessoas o olhassem como se não existisse — Brant, Prouty, Samson e os demais haviam passado por ele sem retribuir a sua continência. Fora a mesma coisa com todo o mundo. Tinker Bell, Timsen, os PMs e seus informantes e empregados... homens que ajudara ou conhecera, ou para quem vendera algum objeto ou a quem dera comida, cigarros ou dinheiro.

Agiam como se ele não existisse. Ao contrário de antigamente, quando havia sempre olhos a segui-lo, e ódio a cercá-lo, quando percorria o campo, agora não havia nada. Nem olhos, nem ódio, nem sinal de reconhecimento.

Fora enregelante andar pelo campo como um fantasma. Voltar para a choça como um fantasma. Deitar-se na cama como um fantasma.

O nada.

Agora, ouvia as palavras de Tex, que narrava à choça a incrível novidade da chegada do Capitão, e podia sentir o novo medo que os corroía.

— O que foi? — disse. — Por que está todo mundo tão calado? Foi um cara que chegou do exterior, só isso.

Ninguém respondeu.

O Rei se levantou, irritado com o silêncio, odiando-o. Vestiu a melhor camisa que tinha, a calça limpa, e tirou o pó dos sapatos engraxados. Colocou o quepe num ângulo atrevido e ficou parado à porta, por um momento.

— Acho que vou cozinhar alguma coisa, hoje — falou, sem se dirigir a ninguém, em especial.

Ao olhar à sua volta, pôde ver a fome estampada na fisionomia deles, e a esperança mal disfarçada nos seus olhos. Sentiu-se aquecido de novo, normal de novo, e olhou-os de um em um.

— Vai estar ocupado hoje, Dino? — perguntou, finalmente.

— Hã... não, não — disse Dino.

— Preciso que me arrumem a cama e me lavem um pouco de roupa.

— Quer que eu... hã... faça isso para você? — perguntou Dino, constrangido.

— Quer fazer?

Dino praguejou baixinho, mas a lembrança do cheiro da galinha, na véspera, acabou com sua força de vontade.

— Claro — falou.

— Obrigado, amigão — disse o Rei, debochadamente, divertido com a luta evidente que Dino travara com a consciência. Virou-se, e começou a descer as escadas.

— Hã... qual a galinha que vai querer? — gritou Dino para ele.

— Depois resolvo — respondeu o Rei, sem sequer parar. — Arrume a cama e lave as roupas.

Dino encostou-se no vão da porta, observando o Rei caminhar ao Sol ao longo do muro da cadeia, dobrando, em seguida, a esquina.

— Filho da puta!

— Vá pegar a roupa suja — disse Tex.

— Vá à merda! Estou com fome.

— O Rei o engabelou para trabalhar para ele sem a porra da galinha.

— Ele vai comer uma, hoje — falou Dino, teimosamente. — E vou ajuda-Io a comê-la. Nunca comeu nenhuma antes, sem dar um pouco para seu ajudante.

— E ontem à noite?

— Porra, estava uma fera porque ocupamos o espaço dele. — Dino pensava no Capitão inglês, na sua casa e na namorada, e se perguntava se ela ainda o estaria esperando, ou ter-se-ia casado. Claro, disse consigo mesmo, sombriamente, ela estará casada, e não haverá ninguém à espera. E como vou arranjar um emprego, merda?

— Isso era antes — dizia Byron Jones III — aposto que agora o filho da puta vai cozinhá-la e comê-la na nossa frente. — Mas pensava na sua casa. Pois sim que vou continuar morando lá. Preciso arranjar um apartamento só meu. É. Mas com que grana?

— E se o fizer? — perguntou Tex. — Temos só mais um ou dois dias aqui. — Depois, voltar para o Texas, pensava. Será que vão dar-me meu antigo emprego de volta? Onde vou morar? Como vou arranjar dinheiro? Quando for trepar, vai dar certo?

— E quanto ao oficial inglês, Tex? Acha que a gente deve ir falar com ele?

— Sim. Mas que diabo, logo mais, ou amanhã. A gente tem que se acostumar à idéia. — Tex controlou um estremecimento. — Quando olhou para mim... era como se, bem como se estivesse olhando para uma... aberração! Pela madrugada, o que há de tão errado comigo? Estou legal, não estou?

Todos examinaram Tex, tentando ver o que o oficial vira. Mas viam apenas Tex, o mesmo Tex com quem conviviam há três anos e meio.

— Para mim, você está legal — disse Dino, finalmente. — Se tem alguém que é uma aberração, é ele. Imagine se eu ia saltar de pára-quedas em Cingapura, sozinho. Não com esse monte de japonês à solta. Ele sim, é que é a verdadeira aberração.

O Rei acompanhava o muro da cadeia. Você é um filho da puta burro, falou consigo mesmo. Por que está tão chateado, afinal? Tudo vai bem no mundo. Claro. E você ainda é o Rei. Ainda é o único cara que sabe ficar numa boa.

Inclinou o quepe mais atrevidamente, e riu baixinho, lembrando-se do Dino. É, aquele filho da mãe estaria xingando, perguntando-se se iria mesmo comer a galinha, sabendo que fora engabelado para trabalhar. Ele que vá para o diabo, que sofra por antecipação, pensou o Rei, alegremente.

Atravessou a trilha entre duas das choças. Cercando as choças havia grupos de homens. Todos olhavam para o norte, para o portão, calados e imóveis. “Rodeou outra choça, e viu o oficial de pé, numa poça de isolamento, olhando confuso à sua volta, de costas para ele. Viu o oficial dirigir-se para alguns dos homens, e riu sardonicamente ao vê-los recuarem.

Que loucura, pensou, cinicamente. Loucura total, Ter medo do quê? O sujeito é só um Capitão. É, ele vai precisar de uma mãozinha. Mas de que diabo ele tem medo é que não sei!

Estugou o passo, mas pisava sem fazer ruído.

— Bom-dia, senhor — disse, vivamente, batendo continência. 0 Capitão Forsyth deu meia-volta, sobressaltado.

— Ah! Alô. — Retribuiu a continência com um suspiro de alívio. — Graças a Deus alguém aqui é normal.— Depois, deu-se conta do que dissera. — Oh, desculpe. Não quis dizer...

— Tudo bem — replicou o Rei, afavelmente. — Este buraco deixa qualquer um descontrolado. Puxa, mas que prazer em vê-lo. Bem-vindo a Changi!

Forsyth sorriu. Era bem mais baixo do que o Rei, mas parecia um tanque.

— Obrigado. Sou o Capitão Forsyth. Mandaram-me para cuidar do campo até a chegada da esquadra.

— E quando será isso?

— Daqui a seis dias.

— Não dá para chegarem mais depressa?

— Imagino que essas coisas levem tempo. — Forsyth fez um aceno de cabeça para as choças. — O que há com essa gente? É como se eu fosse leproso.

— Acho que estão em estado de choque — disse o Rei, dando de ombros. — Ainda não estão acreditando nos seus olhos. Sabe como são algumas pessoas. E faz um bocado de tempo.

— Faz, sim — disse Forsyth, lentamente.

— Que loucura estarem com medo do senhor. — O Rei deu de ombros de novo. — Mas, é a vida, e é problema deles.

— Você é americano?

— Claro. Somos em número de vinte e cinco. Oficiais e soldados. O Capitão Brough é o nosso oficial mais antigo. Foi abatido voando sobre a montanha, em 1943. Gostaria de conhecê-lo?

— Claro. — Forsyth estava morto de cansaço. Recebera esta missão na Birmânia, há quatro dias. A espera, o vôo, o salto, a caminhada até a casa da guarda e a preocupação com o que iria encontrar; com o que os japoneses fariam e com o modo pelo qual iria cumprir suas ordens, todas essas coisas haviam destroçado seu sono e aterrorizado seus sonhos. Bem, meu velho, você pediu o serviço, e lhe deram, e cá está você. Pelo menos, passou pelo primeiro teste, no portão principal. Seu idiota, falou consigo mesmo, estava tão aterrorizado que só conseguiu dizer: “Saúdem-me, seus malditos sacanas.”

De onde se encontrava, Forsyth podia ver grupos de homens fitando-o das choças e janelas, vãos de porta e sombras. Todos calados.

Podia ver a estrada que dividia o campo em dois, e mais além a área das latrinas. Notou o estado precário das choças, e suas narinas sentiram o fedor de suor, de mofo e de urina. Havia zumbis por toda a parte... zumbis em farrapos, zumbis de tanga, zumbis de sarongue... ossudos e sem carne.

— Está-se sentindo bem? — perguntou o Rei, solícito. — Não está com uma cara muito boa.

— Estou bem. Quem são aqueles pobres infelizes?

— Alguns dos rapazes — disse o Rei. — Oficiais.

— Oquê?!

— Claro. O que há de errado neles?

— Está-me dizendo que aqueles homens são oficiais?

— Isso mesmo. Todas essas choças são de oficiais. Aquela fila de bangalôs é onde moram os oficiais superiores... majores e coronéis. Há mais ou menos mil australianos e ingleses em choças ao sul da cadeia. Dentro da cadeia há cerca de sete ou oito mil ingleses e australianos. Todos soldados.

— São todos assim?

— Senhor?

— Todos têm essa aparência? Todos se vestem desse jeito?

— Claro. — 0 Rei deu uma risada. — Acho que parecem mesmo um bando de vagabundos. Mas isso nunca me incomodou, até agora. — Foi então que se deu conta de que Forsyth o examinava com ar crítico.

— O que foi? — perguntou, apagando o sorriso.

Atrás e à volta deles, os homens os observavam, entre eles Peter Marlowe. Mas todos se achavam longe do alcance das vozes. Perguntavam-se se seus olhos realmente viam um homem, com jeito de homem, com um revólver na cintura, conversando com o Rei.

— Por que é tão diferente deles? — perguntou Forsyth.

— Senhor?

— Por que está vestido decentemente... e os demais estão em farrapos? 0 sorriso do Rei voltou.

— Cuido das minhas roupas. Acho que eles não.

— Está em boa forma física.

— Não tão boa quanto me agradaria, mas acho que não estou mau. Quer que lhe mostre o lugar? Acho que talvez precise de uma mãozinha. Posso reunir alguns rapazes, formar um destacamento de trabalho. No campo não há suprimentos dignos de nota. Mas há um caminhão na garagem. Poderíamos ir até Cingapura e liberar...

— Como é que você é aparentemente único, aqui? — interrompeu Forsyth, as palavras como balas.

— Hem?

Forsyth apontou para o campo com um indicador grosso.

— Estou vendo bem uns duzentos ou trezentos homens, mas você é o único que está vestido. Não vejo um único homem que não seja magro feito um bambu, mas você... — virou-se para olhar para o Rei, com olhos gélidos — não está mau.

— Sou igual a eles. Só que me cuidei. E tive sorte.

— Não existe “sorte” num buraco dos infernos como este!

— Claro que existe — falou o Rei. — E nã”o há mal nenhum em cuidar das suas roupas, em procurar manter-se na melhor forma física possível. Cada um tem que pensar primeiro em si. Não há mal nisso!

— Mal nenhum — disse Forsyth — contanto que não seja à custa dos outros! — Depois, trovejou: — Onde fica o alojamento do Comandante do Campo?

— Logo ali. — O Rei apontou. — Na primeira fila de bangalôs. Não sei o que deu no senhor. Pensei que podia ajudar. Pensei que precisaria de alguém para esclarecer...

— Não preciso de sua ajuda, Cabo! Como se chama?

O Rei lamentou ter perdido seu tempo tentando ajudar. Filho da puta, pensou, furioso, é isso que ganho tentando ajudar.

— King. Senhor.

— Está dispensado, Cabo. Não vou esquecer-me de você. E não vou deixar de falar com o Capitão Brough, na primeira oportunidade.

— Mas que diabo quer dizer com isso?

— Quero dizer que o acho uma figura tremendamente suspeita — falou Forsyth, bruscamente. — Quero saber por que está em boa forma física, e os outros não. Para ficar em forma num lugar como este, é preciso ter dinheiro, e haveria pouquíssimos meios de obtê-lo. Pouquíssimos, mesmo. Delatar, seria um deles! Vender drogas ou comida seria outro...

— Macacos me mordam se vou agüentar essa merda de...

— Está dispensado, Cabo! Mas não se esqueça de que me dedicarei pessoalmente a saber tudo sobre você!

O Rei fez um esforço supremo para não meter a mão na cara do Capitão.

— Está dispensado — repetiu Forsyth, depois acrescentou, selvagemente: — Fora da minha vista!

O Rei bateu continência e se retirou, com o sangue lhe toldando os olhos.

— Alô — disse Peter Marlowe, interceptando o Rei. — Meu Deus, como eu queria ter peito como você.

Os olhos do Rei se desanuviaram e ele grasnou:

— Oi. Senhor. — Bateu continência e começou a passar.

— Meu Deus, Rajá, mas que diabo está havendo?

— Nada. Só que... não estou com vontade de conversar.

— Por quê? Se fiz alguma coisa para magoá-lo, ou para que se enchesse de mim, por favor, diga-me.

— Não tem nada a ver com você. — O Rei forçou um sorriso, mas gritava por dentro, Jesus, o que fiz de tão errado? Alimentei os sacanas, ajudei-os, e agora olham para mim como se não mais estivesse aqui. Voltou a olhar para Forsyth, viu quando passava entre duas choças e desaparecia. E ele, pensou, agoniado, ele pensa que sou um maldito delator.

— O que ele disse? — quis saber Peter Marlowe.

— Nada. Ele... tenho que... fazer uma coisa para ele.

— Sou seu amigo. Deixe-me ajudar. Não basta que eu esteja aqui?

Mas o Rei só queria esconder-se. Forsyth e os outros haviam demolido sua fachada. Sabia que estava perdido. E, sem fachada, sentia-se aterrorizado.

— Até mais ver — resmungou, bateu continência e saiu, apressado. Meu bom Jesus, chorava intimamente, devolva-me minha fachada. Por favor, devolva-a.

No dia seguinte, um avião sobrevoou o campo. Do seu bojo foi lançada uma carga de suprimentos. Alguns deles caíram dentro do campo. Aqueles que caíram do lado de fora foram ignorados. Ninguém abandonava a segurança de Changi. Ainda podia ser um truque. Nuvens de moscas se agitavam, alguns homens morreram.

Mais outro dia. E então, aviões começaram a voar em círculo sobre o campo de pouso. Um Coronel adentrou o campo em largas passadas. Trazia consigo médicos e enfermeiros, além de suprimentos médicos. Outros aviões sobrevoaram e pousaram.

E de repente havia jipes correndo pelo campo, e homens imensos com charutos, e quatro médicos. Todos americanos. Entraram campo adentro e deram injeções nos americanos e deram-lhes galões de suco de laranja fresco, comida e cigarros, e os abraçaram... os seus rapazes, os seus heróis. Puseram-nos em jipes e levaram-nos ao Portão de Changi, onde havia um caminhão à espera.

Atônito, Peter Marlowe assistia a tudo. Não são heróis, pensou, confuso. Nem nós. Perdemos. Perdemos a guerra, a nossa guerra. Não foi? Não somos heróis. Não somos.

Viu o Rei por entre a névoa que toldava sua mente. O seu amigo. Há dias que tentava falar com ele, mas sempre que se aproximava o Rei se esquivava. “Depois, agora estou ocupado”, sempre dizia o Rei. Mesmo quando os novos americanos chegaram, nunca havia tempo.

E assim Peter Marlowe ficou junto ao portão, com muitos homens, vendo a partida dos americanos, querendo despedir-se pela última vez do amigo, esperando pacientemente para agradecer-lhe pelo seu braço, e pelas risadas que haviam compartilhado.

Entre os que assitiam à partida, estava Grey.

Forsyth achava-se ao lado do caminhão, exausto. Entregou a lista.

— Fique com o original, senhor — disse ao oficial americano mais antigo. — Seus homens estão todos arrolados por posto, arma e número de série.

— Obrigado — disse o Major, uma pará-quedista atarracado, de bochechas flácidas. Assinou o papel, e devolveu as cinco outras cópias. — Quando chega o resto do seu pessoal?

— Daqui a uns dois dias.

O Major olhou à sua volta, e estremeceu.

— Você bem que está precisando de uma ajudazinha.

— Tem medicamentos sobrando, por acaso?

— Claro. Temos um avião lotado. Olhe, depois que nossos rapazes estiverem a caminho, trago tudo para cá nos nossos jipes. Deixo também com você um médico e dois enfermeiros, até a chegada dos seus.

— Obrigado. — Forsyth tentou apagar do rosto a fadiga, esfregando-o. — Bem que estamos precisando. Vou assinar um vale pelos medicamentos, e meus superiores honrarão minha assinatura.

— Porra de papel nenhum. Quer os medicamentos, são seus. Para isso é que estão aqui. — Virou-se. — Muito bem, Sargento, coloque-os no caminhão. — Andou até o jipe, e ficou vendo a maça ser amarrada firmemente. — O que acha, Doutor?

— Ele vai chegar aos Estados Unidos — o médico lançou um olhar para a figura inconsciente envolta na camisa-de-força — mas é caso perdido. Enlouqueceu completamente.

— Puta que o pariu — disse o Major, cansadamente, e fez uma marquinha na lista, diante do nome de Max. — Que coisa injusta. — Baixou a voz. — E quanto ao resto deles?

— Vão mal. Sintomas de retraimento, de um modo geral. Ansiedade sobre o futuro. Só há um que está em forma física relativamente decente.

— Macacos me mordam se entendo como qualquer deles conseguiu sobreviver. Esteve na cadeia?

— Dei uma voltinha rápida por lá. Foi o bastante.

Peter Marlowe a tudo assistia, deprimido. Sabia que sua infelicidade não se devia exclusivamente à partida do amigo. Era mais do que isso. Achava-se triste porque os americanos estavam indo embora. Tinha a sensação de que seu lugar era com eles, o que era errado, porque eram estrangeiros. No entanto, sabia que não se sentia um estrangeiro, quando estava com eles. Será inveja?, pensou. Ou ciúme? Não creio. Não sei por que, mas sinto que vão para casa, e fiquei para trás.

Aproximou-se mais do caminhão, quando as ordens foram dadas e os homens começaram a subir. Brough, Tex, Dino, Byron Jones III e todos os outros. Resplendentes nos seus novos uniformes engomados, pareciam irreais. Falavam, gritavam e riam. Todos, menos o Rei. Estava ligeiramente de lado. Sozinho.

Peter Marlowe estava feliz por seu amigo estar de novo entre sua gente, e rezava para que, logo que se pusessem a caminho, tudo desse certo para o Rei.

— Subam no caminhão, rapazes.

— Vamos, subam no rajo do caminhão.

— Próxima parada, EUA!

Grey não se deu conta de que estava parado ao lado de Peter Marlowe.

— Dizem — falou, olhando para o caminhão — que há um avião só para levá-los de volta aos Estados Unidos. Um avião especial. Será possível? Só um punhado de soldados e uns oficiais subalternos?

Peter Marlowe também não se dera conta da presença de Grey. Examinou-o, cheio de desprezo.

— Você não passa de um maldito esnobe, Grey, para falar a verdade. A cabeça de Grey girou violentamente.

— Ah, é você.

— É — comentou Peter Marlowe, indicando o caminhão com um gesto de cabeça. — Eles acham que um homem vale tanto quanto outro qualquer. Então ganham um avião, só para eles. É uma grande ideia, se a gente pára para pensar.

— Não me diga que as classes superiores finalmente se deram conta de...

— Ora, cale a boca! — exclamou Peter Marlowe, afastando-se, sentindo o gosto da bile na boca.

Ao lado do caminhão estava um Sargento, um homem enorme com muitas listras na manga e um charuto apagado na boca.

— Vamos, entrem no caminhão — repetia, pacientemente. O Rei era o último a subir.

— Pela madrugada, entre no caminhão! — rosnou o Sargento. O Rei não se mexeu. Então, impaciente, o Sargento jogou fora o charuto, e de dedo em riste, berrou: — Ei, você, Cabo! Mexa essa bunda e entre no caminhão!

O Rei saiu do seu transe.

— Sim, Sargento! Desculpe, Sargento! — Humildemente, entrou no caminhão e ficou de pé, enquanto os demais se sentavam, e à sua volta havia homens entusiasmados falando uns com os outros, mas nunca com ele. Ninguém parecia notá-lo. Segurou-se no lado do caminhão enquanto o veículo arrancava, levantando do chão a poeira de Changi.

Peter Marlowe correu para adiante, desesperadamente, levantando a mão para acenar para o amigo. Mas o Rei não olhou para trás. Não olhou para trás nem uma vez.

Subitamente, Peter Marlowe sentiu-se muito só, parado ah, junto ao portão de Changi.

— Valeu a pena ver isso — debochou Grey. Peter Marlowe virou-se para ele, furioso.

— Suma antes que eu tome uma providência.

— Foi bom vê-lo ir embora desse jeito. “Você, Cabo, mexa essa bunda e entre no caminhão.” — Havia um brilho maldoso nos olhos de Grey. — Como o lixo que era.

Mas Peter Marlowe lembrava-se do Rei como realmente era. Aquele não era o Rei, que dizia humildemente: “Sim, Sargento.” Não o Rei. Este fora um outro homem, arrancado do ventre de Changi, o homem que Changi nutrira por tanto tempo.

— Como o ladrão que era — disse Grey, deliberadamente. Peter Marlowe fechou o punho esquerdo.

— Já lhe avisei, pela última vez.

Então, mandou um soco na cara do Grey, lançando-o para trás, mas Grey não caiu, e se jogou sobre Peter Marlowe. Os dois homens se engalfinharam, e subitamente Forsyth apareceu ao lado de ambos.

— Parem com isso — ordenou. — Mas que diabo, por que estão brigando?

— Por nada — disse Peter Marlowe.

— Tire a mão de cima de mim — falou Grey, soltando o braço da mão de Forsyth. — Saia do caminho!

— Mais encrenca por parte de qualquer dos dois, e mando prendê-los no alojamento. — Estarrecido, Forsyth notou que um dos homens era Capitão, o outro Capitão-Aviador. — Deviam envengonhar-se, brigando como simples soldados! Vão, os dois, sumam daqui. A guerra acabou, pelo amor de Deus!

— Acabou? — Grey lançou mais um olhar para Peter Marlowe, depois se afastou.

— O que há entre vocês dois?

Peter Marlowe tinha o olhar perdido ao longe. Já não se enxergava nem sinal do caminhão.

— Você não compreenderia — disse, e foi embora.

Forsyth ficou olhando para ele, até que desapareceu de seus olhos. Pode repetir isso um milhão de vezes, pensou, exausto. Não compreendo nada de nenhum de vocês.

Voltou-se para o Portão de Changi. Como sempre, havia grupos de homens olhando calados para fora. Como sempre, o portão estava vigiado. Mas os guardas eram oficiais, e não mais japoneses ou coreanos. No dia de sua chegada, o Capitão mandara-os embora, e postara uma guarda de oficiais para cuidar da segurança do campo e evitar que os homens saíssem. Mas os guardas eram desnecessários, pois ninguém tentara escapar. Não entendo, pensou Forsyth, cansadamente. Não faz sentido. Nada aqui faz sentido.

Foi então que se lembrou de que não dera queixa do americano suspeito... o tal Cabo. Tivera tanto com que se preocupar que simplesmente se esquecera do homem. Seu idiota, agora é tarde demais! Foi então que se lembrou de que o Major americano iria voltar. Ótimo, pensou, vou contar-lhe. Ele se encarregará do sujeito.

Dois dias depois, chegaram mais americanos. E um General americano de verdade. Estava cercado, como uma abelha-rainha, por um enxame de fotógrafos, repórteres e ajudantes-de-ordens. Levaram o General ao bangalô do Comandante do Campo. Mandaram que Peter Marlowe, Mac e Larkin fossem para lá. O General pegou o fone do rádio, e fingiu escutar.

— Assim, General!

— Mais uma foto, General!

Empurraram Peter Marlowe para a frente, e mandaram que se debruçasse sobre o rádio, como se estivesse explicando seu funcionamento ao General.

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