LIVRO DOIS9

Seis dias mais tarde, Max encurralou um rato. Na choça americana.

— Olhe só para este filho da puta! — exclamou o Rei. — É o maior rato que já vi!

— Meu Deus — disse Peter Marlowe. — Cuidado para que não morda fora o seu braço!

Estavam todos cercando o rato. Max com uma vassoura de bambu nas mãos, Tex com um bastão de beisebol, Peter Marlowe com outra vassoura. O resto brandia pedaços de pau e facas.

Somente o Rei estava desarmado, mas tinha os olhos no rato e estava pronto para sair do seu caminho. Estava no canto dele, batendo papo com

Peter Marlowe, quando Max dera o primeiro grito, e saltara juntamente com os outros. Tinham acabado de tomar café.

— Cuidado! — gritou, prevendo a súbita corrida do rato para a liberdade. Max atacou-o, selvagemente, e errou. Outra vassoura acertou-o de raspão, derrubando-o por um instante. Mas o rato se pôs de pé de novo, e correu de volta para o canto, e se virou, sibilando, cuspindo e deixando à mostra os dentes pontiagudos.

— Jesus! — exclamou o Rei. — Pensei que o sacana tinha escapado, desta vez.

O rato peludo tinha quase 30 centímetros de comprimento. O rabo media outros 30 centímetros, tendo a espessura do polegar de um homem, na base, e não tinha pêlos. Olhinhos redondos corriam de um lado para o outro, buscando o caminho da fuga. Castanhos e obscenos. A cabeça se afinava para um focinho pontudo, boca estreita, dentes incisivos grandes, muito grandes. Pesaria quase um quilo. Malévolo e muito perigoso.

Max estava respirando com dificuldade pelo esforço, e tinha os olhos fitos no rato.

— Porra, mas eu detesto ratos. Detesto até olhar para eles. Vamos matá-lo. Prontos?

— Espere aí, Max — falou o Rei. — Nâ”o há pressa. Ele não pode fugir, agora. Quero ver o que vai fazer.

— Vai tentar fugir de novo, é o que vai fazer — disse Max.

— E nós o deteremos. Qual é a pressa? — O Rei olhou de novo para o rato e abriu um sorriso. — Você está ferrado, seu filho da puta. Morto.

Quase como se tivesse entendido, o rato avançou para o Rei, de dentes à mostra. Somente os muitos golpes e gritos o fizeram recuar.

— O sacana faria a gente em pedaços, se pudesse meter os dentes na gente — disse o Rei. — Não sabia que podiam ser tão rápidos.

— Ei — intrometeu-se Tex. — Quem sabe deveríamos ficar com ele.

— Mas que conversa é essa?

— Poderíamos ficar com ele. Como mascote. Ou quando a gente não tivesse nada para fazer, soltava-o e corria atrás.

— Ei, Tex — falou Dino. — Podia ser uma boa. Quer dizer, como se fazia antigamente, com as raposas?

— É uma idéia horrorosa — disse o Rei. — Está certo matar o sacana. Mas não há necessidade de torturá-lo, mesmo sendo um rato. Nunca lhe fez mal.

— Pode ser. Mas os ratos são animais nocivos. Não têm o direito de viver.

— Claro que têm — disse o Rei. — Se não fosse por eles, bem, eles comem carniça, como os micróbios. Ora, se não fosse pelos ratos, o mundo todo seria um monte de lixo.

— Porra — interpôs Tex. — Os ratos arruinam as colheitas. Vai ver que foi este filho da mãe que roeu os fundos do saco de arroz, pelo tamanho da barriga dele.

— É — acrescentou Max, malevolamente. — Eles comeram quase quinze quilos, numa noite.

Mais uma vez, o rato avançou para a liberdade. Rompeu o círculo e correu cabana abaixo. Somente por sorte os homens puderam encurralá-lo de novo. Voltou a ficar cercado.

— Melhor acabarmos logo com ele. Da próxima vez, podemos não ter tanta sorte — disse o Rei, ofegante. Subitamente, teve uma inspiração. — Espere aí! — exclamou, quando todos começaram a fechar o cerco.

— O que foi?

— Tive uma idéia. — Voltou-se rapidamente para Tex. — Pegue uma coberta, depressa.

Tex arrancou a coberta da própria cama.

— Agora — disse o Rei. — Você e Max segurem a coberta e peguem o rato.

— Como?

— Quero o bicho vivo. Como é, vamos lá — ordenou o Rei.

— Com a minha coberta? Está maluco? É a única que tenho!

— Arranjo-lhe outra. Mas trate de pegar o filho da mãe.

Todos ficaram olhando boquiabertos para o Rei. Então, Tex deu de ombros. Ele e Max seguraram a coberta, como se fosse um biombo, e começaram a convergir sobre o canto. Os outros, de vassoura em punho, estavam de prontidão para que o rato não escapasse pelas beiradas. E então, Tex e Max deram um mergulho súbito para frente, e o animal ficou preso nas dobras da fazenda. Seus dentes e garras tentaram abrir caminho para a fuga, mas na confusão Max enrolou a coberta, que se tornou uma bola que se contorcia.-Os homens estavam excitados, e gritavam com a captura.

— Mantenham-no quieto — ordenou o Rei. — Max, segure-o. E cuidado para que não fuja. Tex, prepare o café, vamos todos tomar um pouco.

— Que idéia é essa? — quis saber Peter Marlowe.

— É boa demais para contar, sem mais nem menos. Vamos tomar café, primeiro.

Enquanto tomavam café, o Rei se pôs de pé.

— Muito bem, rapazes. Escutem. Temos um rato, certo?

— E daí? — Miller estava tão perplexo quanto os demais.

— Mas não temos comida, certo?

— Certo, mas...

— Ó, meu Deus! — exclamou Peter Marlowe, apalermado. — Não está sugerindo que a gente o coma, está?

— Claro que não — disse o Rei. — A seguir, deu um sorriso angelical. —

Nós não vamos comer. Mas tem muita gente que gostaria de comprar um bocado de carne...

— Carne de rato? — Os olhos de Byron Jones III arregalaram-se, escandalosamente.

— Você está maluco, cara. Acha que alguém iria comprar carne de rato? Claro que não — disse Miller, impaciente.

— Claro que ninguém iria comprar a carne, se soubesse que era de rato. Mas digamos que não saibam, hem? — O Rei deixou as palavras fazerem efeito, depois continuou, afavelmente. — Digamos que a gente não conte para ninguém. A carne vai ter cara de outra carne qualquer. Diremos que é coelho...

— Não existem coelhos na Malásia, meu velho — disse Peter Marlowe.

— Bem, pensem num animal que exista, do mesmo tamanho.

— Creio — disse Peter Marlowe, depois de refletir por um momento -que poderíamos dizer que é esquilo... ou, já sei — falou, todo animado. -Veado. Diremos que é veado...

— Ora, qual é, um veado é muito maior — contestou Max, ainda segurando a coberta que se contorcia. — Atirei num deles uma vez nas Montanhas Alleghenys...

— Não me estou referindo a este tipo de veado. Falo no Rusa tikus. São minúsculos, têm uns vinte centímetros de altura e pesam cerca de um quilo. Mais ou menos do tamanho de um rato. Os nativos o consideram uma fina iguaria. — Ele riu. — A tradução de Rusa tikus é “veado-camundongo”.

O Rei esfregou as mãos, radiante.

— Ótimo, amigão! — Correu os olhos pelo aposento. — Vamos vender coxas de Rusa tikus. E não estaremos mentindo!

Todos acharam graça.

— Agora que já achamos graça, vamos matar logo o maldito rato e vender as malditas pernas — falou Max. — O sacana vai escapulir a qualquer minuto. E pois sim que vou-me deixar morder!

— Temos um rato — disse o Rei, sem ligar para ele. — Agora, só o que temos que fazer é descobrir se é macho ou fêmea. Depois, temos que arrumar outro do sexo oposto. Juntamos os dois. E pronto, estamos no ramo.

— No ramo? — indagou Tex.

— Claro. — O Rei olhou ao seu redor, todo feliz. — Homens, estamos no ramo da reprodução. Vamos ter uma criação de ratos. Com a grana que ganharmos, compraremos galinhas... e a plebe pode comer o tikus. Contanto que ninguém abra o bico, é uma sopa.

Houve um silêncio atônito. A seguir, Tex perguntou, debilmente:

— Mas onde vamos guardar os ratos, enquanto se estiverem reproduzindo?

— Na trincheira. Aonde mais?

— Mas, e se houver um ataque aéreo? Vamos precisar usar a trincheira.

— Vamos isolar uma extremidade. Só o bastante para guardar os ratos. — Os olhos do Rei brilhavam. — Pensem só nisso: 50 desses filhos da mãe grandões por semana para vender. Ora, temos uma mina de ouro. Conhece aquele velho ditado, reproduzem-se como ratos...

— Com que freqüência se reproduzem? — indagou Miller, coçando o rosto, distraidamente.

— Não sei. Alguém sabe? — O Rei esperou, mas todos sacudiram a cabeça. — Porra, onde vamos descobrir os hábitos deles?

— Eu sei — manifestou-se Peter Marlowe. — Na aula do Vexley.

— Hã?

— Na aula do Vexley. Ele ensina Botânica, Zoologia, esse tipo de coisa. Poderíamos perguntar-lhe.

Entreolharam-se, pensativos. De repente, começaram a dar vivas. Max quase derrubou a coberta que se debatia, em meio aos gritos de “Cuidado com o ouro, seu filho da mãe desajeitado”; “Não deixe cair, pelo amor de Deus”; “Cuidado, Max!”.

— Tudo bem, o sacana está firme aqui. — Max abafou as vaias, e depois dirigiu-se a Peter Marlowe. — Para um oficial, você é gente fina. Então, vamos à escola.

— Vocês, não — disse o Rei, vivamente. — Têm serviço a fazer.

— Qual?

— Arranjar outro rato. De sexo diferente deste aqui, seja lá qual for. Peter e eu vamos buscar a informação. Como é, mandem brasa!

Tex e Byron Jones III prepararam a trincheira. Era uma vala de l,80m de profundidade, l,20m de largura e nove metros de comprimento, que ficava exatamente sob a choça.

— Legal! — exclamou Tex, todo excitado. — Tem lugar para mil daqueles sacanas!

Levaram alguns minutos para bolar um portão eficaz. Tex foi roubar tela de galinheiro, enquanto Byron Jones III foi roubar madeira. Jones abriu um sorriso ao se lembrar de uns bons pedaços de madeira pertencentes a um bando de ingleses meio descuidados para vigiá-los. Quando Tex voltou, eleja estava com a armação pronta. Os pregos saíram do telhado da choça, o martelo também fora “tomado emprestado” de um mecânico descuidado na oficina, há meses, juntamente com chaves de parafusos, chaves inglesas, e outras coisas úteis.

Quando o portão estava ajeitadinho, em posição, Tex foi buscar o Rei.

— Bom — disse o Rei, inspecionando-o. — Muito bom.

— Macacos me mordam se sei como vocês conseguem! — exclamou Peter Marlowe. — Fazem tudo muito rápido.

— Se você tem que fazer uma coisa, faz logo. É o estilo americano. — O Rei mandou Tex ir buscar Max.

Max rastejou para debaixo da choça, para juntar-se a eles. Largou o rato com cuidado no seu setor. O rato girou feito louco, buscando desesperada-mente fugir. Quando viu que não conseguia, enfiou-se num canto, de onde ficou silvando para eles, violentamente.

— Parece bem saudável — disse o Rei, sorrindo.

— Ei, temos que dar-lhe um nome — falou Tex.

— É fácil. Adão.

— É, mas se for menina?

— Então é Eva. — O Rei saiu de sob a choça. — Vamos indo, Peter, acabar logo com isso.

A aula do Líder de Esquadrilha Vexley já começara, quando finalmente o encontraram.

— Sim? — perguntou Vexley, espantado ao ver o Rei e um jovem oficial de pé ao lado da choça, ao Sol, olhando para ele.

— Estávamos pensando — começou Peter Marlowe, constrangido — estávamos pensando se podíamos, bem, assistir à aula. Naturalmente, se não estivermos interrompendo — acrescentou, rapidamente.

— Assistir à aula? — Vexley estava confuso. Era um homem triste, com um olho só, um rosto de pergaminho marcado e deformado pelas chamas do seu bombardeiro final. Sua turma tinha apenas quatro alunos, e eram todos idiotas que não tinham interesse na matéria. Sabia que continuava com as aulas apenas para se iludir: era mais fácil fingir que eram um sucesso do que parar. No começo, estivera muito entusiasmado, mas agora, sabia que era puro fingimento. E se parasse com as aulas, não teria objetivo na vida.

Fazia muito tempo, o campo começara uma universidade. A Universidade de Changi. Turmas foram formadas. As Altas Patentes tinham dado ordem para tal.

— É bom para as tropas — disseram. — Vai dar-lhes alguma coisa para fazer. Fará com que se aperfeiçoem. Vai forçá-las a se ocuparem, e assim não se meterão em encrencas.

Havia cursos de idiomas, arte e engenharia... pois entre os 100.000 homens originais havia pelo menos um homem que conhecia qualquer matéria.

O conhecimento do mundo. Uma grande oportunidade. Ampliar os horizontes. Aprender uma profissão. Preparar-se para a utopia que iria existir logo que esta bosta de guerra acabasse e as coisas voltassem ao normal. E a universidade era ateniense. Não havia salas de aula. Apenas um professor que achava uma sombrinha e agrupava os alunos ao seu redor.

Mas os prisioneiros de Changi eram apenas homens comuns, então ficavam plantados em cima dos traseiros, e diziam: “Amanhã vou assistir a uma aula.” Ou então entravam para uma turma, e quando descobriam que o saber exige esforço, faltavam a uma aula, depois a outra, e então diziam: “Amanhã eu volto. Amanhã vou começar a me tornar o que quero ser no futuro. Não posso perder tempo. Amanha”, começo pra valer.”

Mas em Changi, como em qualquer outro lugar, havia somente o hoje.

— Quer mesmo assistir à minha aula? — repetiu Vexley, incrédulo.

— Tem certeza de que não vamos incomodar, senhor? — perguntou o Rei, cordialmente.

Vexley levantou-se com vivo interesse e abriu um espaço para eles, na sombra.

Estava radiante por ver sangue novo. E o Rei! Meu Deus, mas que barato! 0 Rei na aula dele! Quem sabe teria alguns cigarros...

— Encantado, meu rapaz, encantado. — Apertou calorosamente a mão estendida do Rei. — Líder de Esquadrilha Vexley.

— Prazer em conhecê-lo, senhor.

— Capitão-Aviador Marlowe — apresentou-se Peter Marlowe, também apertando a mão de Vexley, e sentando-se na sombra.

Vexley esperou nervosamente até que estivessem sentados e distraidamente apertou o polegar nas costas da mão, contando os segundos até que a depressão na pele se enchesse devagarinho. A pelagra tinha suas compensações, pensou. E ao pensar em pele e osso recordou-se das baleias, e seu único olho se iluminou.

— Bem, hoje eu ia falar sobre as baleias. Entendem de baleias? Ah! — exclamou, extaticamente, quando o Rei tirou do bolso um maço de Kooas, oferecendo-lhe um. O Rei ofereceu cigarros à classe toda.

Os quatro estudantes aceitaram os cigarros e mudaram de lugar para dar mais espaço ao Rei e a Peter Marlowe. Perguntavam-se o que o Rei estaria fazendo ali, mas não queriam realmente saber... ele lhes dera um cigarro de verdade, comprado pronto.

Vexley retomou sua conferência sobre as baleias. Adorava baleias. Era louco por elas.

— As baleias são, sem dúvida, a forma mais elevada a que a natureza aspirou — disse, muito satisfeito com a ressonância de sua voz. Notou a testa franzida do Rei. — Quer fazer alguma pergunta? — indagou, ansioso.

— Quero, sim. As baleias são muito interessantes, mas e quanto aos ratos?

— Como disse? — falou Vexley, polidamente.

— É muito interessante o que dizia sobre as baleias, senhor — continuou o Rei. — Mas eu queria saber é dos ratos.

— O que têm os ratos?

— Só queria saber se o senhor conhece alguma coisa a respeito dos ratos — falou o Rei. Tinha muito o que fazer, e não queria ficar perdendo tempo.

— O que ele quer dizer — falou Peter Marlowe, rapidamente — é que, se as baleias são quase humanas nos seus reflexos, o mesmo também não se aplica aos ratos?

Vexley sacudiu a cabeça e disse, com desgosto:

— Os roedores são totalmente diferentes. Agora, as baleias...

— Diferentes, como? — insistiu o Rei.

— Trato dos roedores no seminário da primavera — disse Vexley, com irritação. — Criaturas nojentas. Não há o que se apreciar nelas. Nada mesmo. Agora, quanto à baleia-azul — voltou Vexley apressadamente ao assunto. — Ah, é a rainha de todas as baleias. Mede mais de trinta metros e pode pesar até cento e cinqüenta toneladas. A maior criatura viva... que já viveu... na Terra. O animal mais poderoso que existe. E seus hábitos de acasalamento — acrescentou Vexley rapidamente, pois sabia que uma discussão da vida sexual sempre mantinha alerta a turma. — O seu acasalamento é maravilhoso. O macho começa a corte soprando nuvens gloriosas de borrifos. Atinge a água com a cauda, perto da fêmea, que espera com luxúria paciente na superfície do oceano. A seguir ele mergulha e emerge bem alto, acima da água, imenso, enorme, vasto, e depois desaba com barulho estrondoso da cauda, fazendo espuma no mar, golpeando a superfície da água. — Então, baixou a voz, sensualmente. — Depois, vem para junto da fêmea e começa a fazer-lhe cócegas com as nadadeiras...

A despeito de sua ansiedade sobre os ratos, até mesmo o Rei começou a prestar atenção.

— E então, ele interrompe a sedução e mergulha de novo, deixando a fêmea ansiosa na superfície, deixando-a quem sabe para sempre. — Vexley fez uma pausa dramática. — Mas, não. Ele não a deixa. Desaparece por cerca de uma hora, nas profundezas do oceano, reunindo as forças, e depois emerge mais uma vez, bem acima da água, e desaba como um trovão numa monstruosa nuvem de borrifos d’água. Vai girando até chegar junto da companheira, agarrando-a com ambas as nadadeiras, e a possui até a exaustão.

Vexley também estava exausto, com a magnificência do espetáculo dos gigantes se acasalando. Ah, poder ter a sorte de testemunhá-lo, de estar presente, um ser humano insignificante...

— O acasalamento acontece mais ou menos em julho, em águas cálidas. O bebê pesa cinco toneladas ao nascer, e mede uns nove metros de comprimento. — Sua risada era treinada. — Imaginem só. — Houve uns sorrisos polidos, e depois Vexley soltou a bomba final, que costumava arrancar uma risada gostosa: — E se imaginarem o tamanho do bebê, já pensaram no tamanho dos “documentos” da baleia-macho?

Novamente, viram-se sorrisos corteses... os alunos regulares já tinham ouvido a piada muitas vezes.

Vexley continuou, descrevendo como o bebê é amamentado durante sete meses pela mãe, que fornece o leite ao filhote através de duas tetas monstruosas que ficam na parte inferior da barriga.

— Como podem imaginar, indubitavelmente — disse, extaticamente — uma amamentação submarina prolongada tem os seus problemas.

— Os ratos amamentam os filhotes? — aproveitou o Rei para perguntar.

— Sim — respondeu o líder de esquadrilha, desalentadamente. — Bem, e quanto à baleia parda...

O Rei deu um suspiro e pôs-se a ouvir Vexley dissertar sobre todas as espécies de baleias imagináveis, das pardas às cinzas, passando pelas assassinas, pigméias e outras. A esta altura, toda a turma já tinha ido embora, exceto Peter Marlowe e o Rei. Quando Vexley acabou, o Rei disse, simplesmente:

— Quero saber tudo sobre ratos.

— Ratos? — gemeu Vexley.

— Tome um cigarro — disse o Rei, gentilmente.


10

— Muito bem, caras, ajeitem-se — mandou o Rei. Esperou até haver silêncio na choça, e o vigia da porta estar em posição. — Temos problemas.

— Grey? — perguntou Max.

— Não. É sobre nossa criação. — O Rei virou-se para Peter Marlowe, que estava sentado na beira de uma cama. — Conte para eles, Peter.

— Bem — começou Peter Marlowe — parece que os ratos...

— Conte desde o começo.

— Tudo?

— Claro. Espalhe o saber, depois poderemos todos dar palpites.

— Muito bem. Encontramos o Vexley. Ele nos disse, textualmente: “O Rattus norvegicus, ou rato norueguês... às vezes chamado Mus decumanus...”

— Mas que papo-furado é esse? — indagou Max.

— Latim, ora essa. Qualquer idiota sabe disso — falou Tex.

— Você sabe latim, Tex? — perguntou Max, boquiaberto.

— Porra, não, mas esses nomes malucos são sempre latim...

— Pela madrugada, gente — falou o Rei. — Querem saber, ou não? — Fez sinal para que Peter Marlowe continuasse.

— Bem, o caso é que Vexley descreveu-os detalhadamente, peludos, sem pêlos na cauda, pesam até um quilo e oitocentos, mas o comum é cerca de novecentos gramas, nesta parte do mundo. Os ratos se acasalam promiscuamente em qualquer época...

— Que diabo quer dizer isso?

— O macho trepa com qualquer fêmea, indiscriminadamente — disse o Rei, impaciente — sem ter época certa.

— Igual a nós, não é isso? — interpôs Jones, afavelmente.

— É, acho que sim — disse Peter Marlowe. — Bem, o rato macho cruza em qualquer época, e a fêmea pode ter até doze ninhadas por ano, cerca de doze por ninhada, mas podendo chegar a quatorze. Os filhotes nascem cegos e indefesos vinte e dois dias após o... contato. — Escolheu a palavra com delicadeza. — Os filhotes abrem os olhos após um período de quatorze a dezessete dias e tornam-se sexualmente maduros em dois meses. Param de se reproduzir mais ou menos aos dois anos, e já são velhos aos três.

— Puxa vida! — exclamou Max, radiante, em meio ao silêncio espantado. — Sem dúvida que temos problemas. Ora, se os filhotes já se reproduzem aos dois meses, e tivermos doze... digamos dez por ninhada, para arredondar... façam as contas. Digamos que nasçam dez filhotes no Dia Um. Outros dez no Dia Trinta. No Dia Sessenta, os primeiros cinco pares já deram cria, e temos cinqüenta. No Dia Noventa, mais cinco pares deram cria, e são outros cinqüenta. No Dia Cento e Vinte, temos duzentos e cinqüenta, mais outros cinqüenta e mais cinqüenta, e nova ninhada de duzentos e cinqüenta. Pela madrugada, dá seiscentos e cinqüenta em cinco meses! No mês seguinte, temos quase seis mil e quinhentos...

— Jesus, mas temos uma mina de ouro! — exclamou Miller, coçando-se furiosamente.

— Temos uma ova — disse o Rei. — Não se não dermos tratos à bola. Primeiro, não podemos botar todos juntos. São canibais. Isso significa que vamos ter que separar os machos e as fêmeas, exceto quando estão cruzando. Outra coisa, eles vão brigar entre si, o tempo todo. O que significa ter que separar os machos dos machos e as fêmeas das fêmeas.

— Então separamos. Qual é o grilo?

— Nenhum, Max — disse o Rei, pacientemente. — Mas temos que ter gaiolas e organizar as coisas. Não vai ser fácil.

— Ora! — exclamou Tex — podemos fazer um monte de gaiolas, sem problemas.

— E você acha, Tex, que podemos fazer com que os ratos fiquem quietos? Enquanto fazemos as gaiolas?

— Não vejo por que não!

— Mais uma coisa — disse o Rei. Estava satisfeito com os homens e mais do que satisfeito com o plano. Era o tipo de negócio que curtia... nada a fazer, exceto esperar. — Eles comem qualquer coisa, viva ou morta. Qualquer coisa. Portanto, não teremos problemas de logística.

— Mas são umas criaturas nojentas e fedem como o diabo — disse Byron Jones III. — Já temos fedor que chegue por aqui, sem ter que botar mais sob nossa própria cabana. E além disso, os ratos são transmissores da peste.

— Quem sabe este é um tipo especial de rato, como o mosquito especial que transmite a malária — disse Dino, esperançoso, com os olhos escuros correndo os homens.

— Claro que os ratos transmitem a peste — disse o Rei, dando de ombros. — E também um monte de moléstias humanas. Mas isso não quer dizer nada. Temos uma fortuna nas mãos e vocês só conseguem ver o lado negativo, seus filhos da mãe. Isso é antiamericano!

— Bem, cara, mas essa história da peste. Como vamos saber se são limpos ou não? — perguntou Miller, enojado.

O Rei achou graça.

— Perguntamos isso ao Vexley e ele disse, abrir aspas: “Vocês logo saberiam. Estariam mortos.” Fechar aspas. Porra, é igual às galinhas. Mantenha-as limpas e bem alimentadas, e correrá tudo bem! Não há com que se preocupar.

E então começaram a discutir a criação, seus perigos e potenciais (e todos se davam conta dos potenciais), contanto que eles não tivessem que comer os frutos; e debateram os problemas ligados a uma operação em tão larga escala. Foi então que Kurt entrou na choça, tendo nas mãos uma coberta que se retorcia.

— Arranjei outro — falou, com azedume.

— Arranjou?

— Claro. Enquanto vocês ficam aí papeando, seus sacanas, eu estou agindo. É uma fêmea. — Kurt cuspiu no chão.

— Como sabe?

— Espiei. Vi bastante ratos na Marinha Mercante para ter certeza. E o outro é macho. Também espiei.

Todos se enfiaram debaixo da choça e viram Kurt botar Eva na trincheira. Imediatamente os dois ratos se grudaram ferozmente, e os homens tiveram que se controlar para não dar vivas. A primeira ninhada estava a caminho. Os homens votaram no Kurt para tomar conta dos ratos, e Kurt ficou feliz.

Assim, tinha certeza de que ganharia sua parte. Claro que cuidaria dos ratos. Comida era comida. Kurt sabia que ia sobreviver, mesmo que nenhum outro filho da mãe sobrevivesse.


11

Vinte e dois dias mais tarde, Eva teve cria. Na gaiola ao lado, Adão tentava rasgar a tela de arame para chegar aos alimentos vivos, e quase o conseguiu, mas Tex percebeu o rasgão bem na horinha. Eva dava de mamar aos filhotes. Eram Caim, Abel, Grey e Alliluha; Beulah, Mabel, Junt, Princesa e Princesinha; e Mabel Grande, Junt Grande e Beulah Grande. Dar nome aos machos foi fácil. Mas nenhum dos homens queria dar às fêmeas os nomes das namoradas, irmãs ou mães. Até mesmo os nomes das sogras lembravam a algum outro homem uma paixão ou relacionamento do passado. Levaram três dias para concordar com Beulah e Mabel.

Quando os filhotes estavam com 15 dias, foram postos em gaiolas separadas. O Rei, Peter Marlowe, Tex e Max deram à Eva até o meio-dia para se recuperar; depois, colocaram-na junto com Adão. Foi o início da segunda ninhada.

— Peter — disse o Rei suavemente, enquanto subiam pelo alçapão e voltavam à choça — a nossa fortuna está feita.

O Rei resolvera abrir o alçapão porque sabia que tantas idas à vala sob a choça despertariam curiosidade. Era vital para o sucesso da criação que permanecesse em segredo. Até mesmo Mac e Larkin desconheciam sua existência.

— Onde está o pessoal, hoje? — perguntou Peter Marlowe, fechando o alçapão. Somente Max estava na choça, deitado em seu catre.

— Os infelizes pegaram um destacamento de trabalho. Tex está no hospital. O resto está pilhando por aí.

— Acho que também vou fazer o mesmo. Pelo menos me ocupo. O Rei baixou a voz.

— Tenho uma coisa para ocupá-lo. Amanhã à noite vamos à aldeia. — A seguir, berrou para Max. — Ei, Max, conhece o Prouty? O Major australiano? Da Choça Onze?

— O velhote? Claro.

— Ele não é velho. Não pode ter mais de quarenta anos.

— Por mim, quarenta anos é velho como Deus. Vou levar dezoito anos para chegar lá.

— Se tiver sorte — falou o Rei. — Vá procurar o Prouty. Diga que o mandei.

— E daí?

— Nada. Vá procurá-lo, só isso. E certifique-se de que Grey não está por perto... ou algum dos olheiros dele.

— Já estou indo — disse Max, relutante, deixando-os a sós.

Peter Marlowe estava olhando para os lados da cerca, de onde se partia para o litoral.

— Estava começando a me perguntar se você tinha mudado de idéia.

— Sobre levá-lo comigo?

— É.

— Não precisa preocupar-se, Peter. — O Rei apanhou o café e passou uma caneca para Peter Marlowe. — Quer almoçar comigo?

— Porra, não sei como você consegue — resmungou Peter Marlowe. — Todo o mundo morrendo de fome e você me convida para almoçar.

— Vou comer um pouco de katchang idju.

O Rei destrancou sua caixinha preta e tirou o saco de feijõezinhos verdes, entregando-o a Peter.

— Quer prepará-los?

Enquanto Peter Marlowe os levava até a bica para começar a lavá-los, o Rei abriu uma lata de carne salgada e despejou o conteúdo com cuidado num prato.

Peter Marlowe voltou com os feijões. Estavam bem lavados e não havia nenhuma casca na água limpa. Ótimo, pensou o Rei. Não se precisa dizer ao Peter duas vezes a mesma coisa. E o recipiente de alumínio continha exatamente a quantidade certa de água: seis vezes a altura dos feijões.

Botou-o na chapa quente, acrescentou uma colher de sopa cheia de açúcar e duas pitadas de sal, depois meia lata da carne.

— É o seu aniversário? — indagou Peter Marlowe.

— Hã?

— Katchang idju e carne, numa refeição?

— Você é que não sabe viver.

Peter Marlowe ficou alucinado com o aroma e o barulho do ensopado a ferver. As últimas semanas tinham sido duras. A descoberta do rádio prejudicara o campo. O Comandante japonês “lamentava” ter que diminuir as rações, devido a “colheitas fracas”, e assim até os pequenos estoques reservas das unidades tinham-se acabado. Milagrosamente, não houvera outras repercussões, além da redução da comida.

Na unidade de Peter Marlowe, a redução das rações afetara principalmente a Max. A redução e a inutilidade do seu rádio de cantil.

— Merda — praguejara Mac, depois de semanas tentando localizar o problema. — Não tem jeito, rapazes. Não posso fazer nada, sem desmontar a joça inteira. Tudo parece correto. Sem ferramentas e um tipo de pilha, não consigo achar o defeito.

E então Larkin dera um jeito de arranjar uma pilha minúscula, e Mac reunira suas débeis forças e voltara a testar o rádio, verificando e reverificando. No dia anterior, enquanto testava, dera um suspiro e desmaiara, num profundo coma de malária. Peter Marlowe e Larkin carregaram-no até o hospital, e deitaram-no numa cama. O médico dissera que era apenas malária, mas que com o baço daquele jeito, podia tornar-se muito perigosa.

— O que há, Peter? — perguntou o Rei, notando a súbita seriedade de Marlowe.

— Estava só pensando no Mac.

— O que ele tem?

— Tivemos que levá-lo para o hospital, ontem. Nâ”o está nada legal.

— Malária?

— Tem mais.

— Hã?

— Bem, ele está com a febre. Mas o problema maior não é esse. Ele tem períodos de depressão terrível. Preocupação... com a mulher e o filho.

— Todos os caras casados sofrem assim.

— Não como Mac — explicou Peter Marlowe, tristemente. — Sabe, é que pouco antes de os japoneses desembarcarem em Cingapura, Mac botou a mulher e o filho no último comboio que deixava a ilha. A seguir, ele e sua unidade partiram para Java num junco litorâneo. Quando chegou em Java, soube que todo o comboio fora destruído ou capturado. Não havia prova de nada, somente boatos. E assim, ele não sabe se eles conseguiram passar. Ou se estão mortos. Ou se estão vivos. E se estão... onde estão. O filhinho dele tinha apenas quatro meses de idade.

— Bem, agora o guri está com três anos e quatro meses — falou o Rei, confiantemente. — Regra Número Dois: Não se preocupe com coisa alguma que não possa resolver. — Tirou um vidro de quinino da caixa preta, contou 20 comprimidos e entregou-os a Peter Marlowe. — Tome. Isso dará um jeito na malária dele.

— E quanto a você?

— Tenho de sobra. Não esquente a cabeça.

— Não entendo por que é tão generoso. Dá comida e remédios para nós. E o que lhe damos em troca? Nada. Não entendo.

— Você é um amigo.

— Puxa, fico encabulado de aceitar tanta coisa.

— Deixe pra lá. Tome.

O Rei começou a servir o ensopado. Sete colheradas para ele, e sete para Peter Marlowe. Sobrou cerca de um quarto de ensopado na panela.

Comeram as três primeiras colheradas rapidamente para aliviar a fome, depois terminaram o resto devagar, saboreando.

— Quer mais? — O Rei esperou. Será que o conheço bem, Peter? Sei que podia comer mais uma tonelada. Mas não vai comer, nem que sua vida dependesse disso.

— Não, obrigado. Estou cheio até as tripas.

É bom conhecer o amigo, pensou consigo mesmo o Rei. É preciso ter cuidado. Serviu-se de mais uma colherada. Não porque tivesse vontade. Achou que precisava fazê-lo para não embaraçar Peter Marlowe. Comeu, e guardou o resto.

— Quer preparar-me um cigarro?

Jogou o material para Peter e se afastou. Colocou o resto da carne no resto do ensopado e misturou tudo. Dividiu a mistura em duas partes, que botou em duas latas de comida que tampou e reservou.

Peter Marlowe passou-lhe o cigarro enrolado.

— Prepare um para você — disse o Rei.

— Obrigado.

— Ora, Peter, não espere que eu ofereça. Tome, encha sua caixa.

Tirou a caixa das mãos de Peter Marlowe e lotou-a com o fumo Três Reis.

— O que vai fazer com os Três Reis? Agora que o Tex está no hospital? — indagou Peter Marlowe.

— Nada. — O Rei soltou a fumaça. — A idéia já está esgotada. Os australianos descobriram o processo e estão cobrando menos do que a gente.

— Ah, mas que pena. Como será que descobriram?

— Era um entra e sai, de qualquer modo — disse o Rei, sorrindo.

— Não entendi.

— Entra e sai? A gente entra e sai depressa. Um pequeno investimento para um lucro rápido. Nas duas primeiras semanas, eu já estava coberto.

— Mas você falou que levaria meses para recuperar o dinheiro que investiu.

— Isso era papo de vendedor. Para consumo externo. Um papo de vendedor é um macete para fazer as pessoas acreditarem numa coisa. Todo mundo sempre quer ganhar alguma coisa em troca de nada. E então, você tem que fazer com que acreditem que o estão roubando, que você é o otário, que eles, os compradores, são um bocado mais espertos. Por exemplo. Os Três Reis. A equipe de vendedores, os primeiros compradores, acreditavam que tinham um compromisso comigo, acreditavam que, se trabalhassem duro no primeiro mês, poderiam ser meus sócios e ficarem numa boa, depois, para sempre... com o meu dinheiro. Achavam que eu era um idiota de dar-lhes uma tal oportunidade, depois do primeiro mês. Mas eu sabia que o processo não seria segredo por muito tempo e que o negócio não duraria.

— E como sabia disso?

— Era óbvio. Planejei assim. Eu mesmo revelei o segredo do processo.

— Você o quê?

— É isso aí. Troquei o processo por algumas informações.

— Bem, isso eu entendo. O processo era seu, para fazer dele o que quisesse. Mas, e quanto a todas as pessoas que estavam trabalhando, vendendo o fumo?

— O que é que tem?

— Está me parecendo que você se aproveitou delas. Fez com que trabalhassem durante um mês, quase de graça, e depois puxou o tapete de sob seus pés.

— Puxei, uma ova. Eles também ganharam seus trocados. Estavam achando-me um otário, e fui mais esperto do que eles, só isso. Negócio é isso. — Recostou-se na cama, divertindo-se com a ingenuidade de Peter Marlowe. Este franziu o cenho, tentando compreender.

— Quando alguém começa a falar de negócios, fico totalmente por fora — disse. — Sinto-me um idiota.

— Escute, Não vai demorar muito, e vai estar barganhando com os melhores do ramo — disse o Rei, rindo.

— Duvido.

— Vai fazer alguma coisa hoje à noite? Mais ou menos uma hora depois de escurecer?

— Não, por quê?

— Quer servir de intérprete para mim?

— Com prazer. Quem é, um malaio?

— Um coreano.

— Ah! — A seguir, Peter Marlowe acrescentou, disfarçando depressa: — Claro.

O Rei sabia da aversão de Peter Marlowe, mas não se importava. Um homem tem direito às suas opiniões, é o que sempre dizia. E contanto que essas opiniões não conflitassem com seus propósitos, então, tudo bem.

Max entrou na choça e desabou no beliche.

— Passei uma hora procurando o filho da puta. Depois, fui encontrá-lo na horta. Jesus, com todo aquele mijo que usam como fertilizante, aquele lugar filho da puta fede como um bordel do Harlem num dia de verão.

— Você é bem o tipo de filho da mãe que usaria um bordel do Harlem. A irritação e a aspereza da voz do Rei espantaram Peter Marlowe.

O sorriso e a fadiga de Max desapareceram com igual rapidez.

— Puxa vida, não falei por mal. É só um ditado.

— Então, por que escolher o Harlem? Quer dizer que fede feito um bordel, tudo bem. Todos eles fedem do mesmo jeito. Não há diferença porque um é preto e o outro é branco.

O Rei estava uma fera, a pele do seu rosto estava esticada como uma máscara.

— Calma. Desculpe. Não falei por mal.

Max tinha-se esquecido de que o Rei não gostava que se pixassem os negros. Jesus, quando se mora em Nova York, o Harlem está com você, queira ou não. E lá há bordéis, e comer uma negrinha é danado de bom, para variar. Mesmo assim, pensou com amargura, eu lá vou saber por que ele é todo cheio de dedos quando se trata de crioulos!

— Não falei por mal — repetiu Max, esforçando-se para não olhar para a comida. Sentira o cheiro dela de longe. — Encontrei-o e disse o que você mandou.

— E daí?

— Bem, hã, ele me deu uma coisa para você — falou Max, olhando para Peter Marlowe.

— Porra, entregue-me logo!

Max esperou pacientemente enquanto o Rei examinava de perto o relógio, dava-lhe corda e encostava-o ao ouvido.

— O que você quer, Max?

— Nada. Hã... quer que lave a louça para você?

— Quero. Lave, e depois trate de se mandar daqui.

— Claro.

Max pegou os pratos sujos e levou-os para fora, humildemente, jurando para si mesmo que algum dia ia pegar o Rei. Peter Marlowe ficou calado. Estranho, pensou. Estranho e selvagem. O Rei tem gênio. Isto pode ser valioso, mas na maior parte das vezes é perigoso. Se você parte numa missão, é importante saber o valor do seu companheiro. Numa missão perigosa, como a ida à aldeia, talvez, é de bom alvitre saber ao certo quem está guardando suas costas.

O Rei desatarrachou com cuidado o fundo do relógio. Era de aço inoxidável, e à prova d’água.

— Hum — resmungou o Rei. — Logo vi.

— O quê?

— É fajuto. Olhe só.

Peter Marlowe examinou atentamente o relógio.

— Para mim parece legal.

— Claro. Mas não é o que devia ser. Um Omega. A parte externa é boa, mas a interna é velha. Algum cretino trocou o mecanismo.

O Rei atarrachou de novo o relógio, depois ficou pensativo.

— Está vendo, Peter. É o que eu lhe dizia. A gente tem que ser cuidadoso. Digamos que eu venda esse relógio como sendo um Omega, mas sem saber que é fajuto, posso meter-me numa bela encrenca. Mas contanto que eu saiba a verdade, antecipadamente, posso proteger-me. Todo cuidado é pouco. — Abriu um sorriso. — Vamos tomar mais uma xícara de café, os negócios estão prosperando.

O sorriso se desvaneceu, quando Max voltou com os pratos limpos e guardou-os. Max não disse nada, fez um sinal de cabeça servil e saiu de novo.

— Filho da puta — falou o Rei.

Grey ainda não se havia recuperado do dia em que Yoshima encontrara o rádio. Enquanto subia a trilha na direção da choça de suprimentos, ia remoendo os novos deveres que lhe haviam sido impostos pelo Comandante do Campo na frente de Yoshima, e mais tarde comentados pelo Coronel Smedly-Taylor. Grey sabia que, embora oficialmente tivesse que cumprir as novas ordens, na verdade tinha mais é que ficar de olhos fechados e não fazer nada. Santa Mãe de Deus, pensou, não importa o que eu faça, estarei errado.

Grey sentiu um espasmo crescer no estômago. Parou, enquanto ele ia e vinha. Não era disenteria, apenas diarréia; e a febre ligeira que sentia não era malária, apenas um toque de dengue, uma febre mais fraca, porém mais traiçoeira e caprichosa. Estava com muita fome. Não tinha estoques de comida, nenhuma lata de reserva e nenhum dinheiro para comprar uma. Tinha que sobreviver das rações, sem nenhum extra, e as rações não eram o suficiente, não eram o suficiente.

Quando sair daqui, pensou, juro por Deus que nunca mais vou sentir fome. Terei 1.000 ovos e uma tonelada de carne e açúcar, café, chá e peixe. Vamos cozinhar o dia todo, Trina e eu, e quando não estivermos cozinhando ou comendo, estaremos fazendo amor. Amor? Não, fazendo apenas dor. Trina, aquela vaca, sempre dizendo “Estou muito cansada”, ou “Estou com dor de cabeça”, ou “Pelo amor de Deus, de novo?”, ou “Está bem, acho que vou ter que fazer”, ou “Podemos fazer amor agora, se você quiser” ou “Será que não me pode deixar em paz dessa vez?”, quando ele não pedia com tanta freqüência, e na maioria das vezes se controlava e sofria, ou então o irado “Ah, está bem”, e então ela acendia a luz e ia para o banheiro “se aprontar”, e ele enxergava apenas a glória do seu corpo através da fazenda transparente, até que a porta se fechava, e ele ficava esperando, esperando e esperando até que a luz do banheiro fosse desligada e ela voltasse ao quarto deles. Sempre levava uma eternidade para vir da porta até a cama, e ele via apenas a beleza pura da mulher sob a seda, e sentia a frieza dos seus olhos enquanto o observava, e não tinha coragem de olhar nos olhos dela, e se detestava. E então ela se deitava ao seu lado, e tudo logo acabava silenciosamente e ela se levantava para ir ao banheiro e se lavar, como se o amor dele fosse sujeira, e a água corria, e quando voltava estava toda perfumada, e ele se detestava de novo, insatisfeito, por tê-la possuído quando não queria ser possuída. Fora sempre assim. Nos seus seis meses de casado — 21 dias de licença, foi o que tiveram juntos — haviam feito dor nove vezes. E ele não conseguira tocá-la nem uma vez.

Pedira-a em casamento uma semana depois de tê-la conhecido. Houvera dificuldades e recriminações. A mãe dela o detestava por querer sua única filha logo agora que estava começando a carreira, e era tão moça, só 18 anos. Os pais dele disseram espere, a guerra pode acabar logo e você não tem dinheiro, e bem, ela não é exatamente de boa família, e ele correra os olhos pela casa deles, um prédio velho ligado a 1.000 outros prédios velhos em meio às linhas de bonde retorcidas de Streatham, e viu que os quartos eram estreitos e a mente dos pais era estreita e classe baixa, e que o amor deles era retorcido como as linhas de bonde.

Casaram-se um mês depois. Grey estava muito elegante de farda e espada (alugada por hora). A mãe de Trina não compareceu à cerimônia desenxabida, realizada às pressas entre os alertas dos ataques aéreos. Os pais dele usavam máscaras de desaprovação, seus beijos foram mecânicos e Trina se desmanchou em lágrimas e a certidão de casamento ficou molhada de lágrimas.

Naquela noite, Grey descobriu que Trina não era virgem. Claro que ela agiu como se fosse, e queixou-se durante vários dias, por favor querido, estou toda doída, tenha paciência. Mas não era virgem, e aquilo magoou Grey, pois insinuara muitas vezes que era. Mas fingiu não saber que ela o havia enganado.

A última vez em que vira Trina fora seis dias antes de embarcarem para além-mar. Achavam-se no apartamento deles, e Grey estava deitado na cama, vendo-a vestir-se.

— Sabe para onde vai? — perguntara a moça.

— Não.

O dia fora ruim, a briga da véspera fora ruim, e a falta dela e o fato de que a sua licença terminava naquele dia o oprimiam.

Levantara-se e ficara por trás dela, enfiando as mãos pelo vestido, segurando-lhe os seios firmes, adorando-a.

— Pare!

— Trina, será que podíamos...

— Não seja bobo. Sabe que o espetáculo começa às oito e meia.

— Tem tempo de sobra...

— Pelo amor de Deus, Robin, pare! Vai estragar minha maquiagem!

— Pro diabo sua maquiagem. Não estarei aqui amanhã.

— Talvez seja melhor. Não o acho muito gentil ou bondoso.

— E como espera que eu seja? É errado um marido desejar a mulher?

— Pare de gritar. Meu Deus, os vizinhos vão ouvir.

— Eles que ouçam, porra!

Dirigira-se para ela, mas Trina batera a porta do banheiro na cara dele.

Ao retornar ao quarto, estava fresca e cheirosa. Usava sutiã, combinação curta, calcinhas sob a combinação e meias presas por um minúsculo prende-dor. Pegou o traje de coquetel e começou a vesti-lo.

— Trina... — dissera ele.

— Não.

Ficara de pé diante dela, e os joelhos não o sustentavam.

— Desculpe eu ter gritado.

— Não faz mal.

Inclinara-se para beijar-lhe os ombros, mas ela se afastara.

— Andou bebendo de novo, não é? — falara ela, franzindo o nariz. E então, a raiva dele explodira:

— Vá à merda, só tomei um drinque — berrara, fazendo-a girar, rasgando-lhe o vestido e o sutiã, e jogando-a na cama. Arrancara-lhe todas as roupas, deixando-a nua, exceto pelas meias em tiras. E o tempo todo ela ficara imóvel, fitando-o.

— Ah, Deus, Trina, eu a amo — gemera, desalentado; depois, foi-se afastando, odiando-se pelo que fizera, e pelo que quase fizera.

Trina apanhara as roupas em farrapos. Como que num sonho, ele ficara vendo a moça voltar para junto do espelho, sentar-se diante dele, começar a retocar a maquiagem, cantarolando uma melodia, sem parar.

E então, Grey batera a porta com força e voltara para sua unidade, e no dia seguinte tentara ligar para ela. Não houve resposta. Era tarde demais para voltar para Londres, apesar de suas súplicas desesperadas. A unidade mudou-se para Greenock, para o embarque, e todos os dias, todos os minutos de todos os dias, ele lhe telefonava, mas ela não atendia, nem respondia a seus telegramas alucinados, e então a costa da Escócia foi engolida pela noite, e a noite era apenas navio e mar, e ele era apenas lágrimas.

Grey estremeceu, ao Sol da Malásia. A 16.000 quilômetros de distância. Não foi culpa de Trina, pensou, tonto de nojo de si mesmo. Não foi ela, fui eu. Era ansioso demais. Quem sabe sou maluco. Quem sabe deveria ir ao médico. Quem sabe penso demais em sexo. Tem que ser eu, não ela. Ah, Trina, meu amor.

— Está-se sentido bem, Grey? — perguntou o Coronel Jones.

— Ah, sim, senhor, obrigado. — Grey voltou ao presente e notou que se apoiava debilmente contra a choça de suprimentos. — Foi apenas... um pouquinho de febre.

— Não está com boa cara. — Sente-se um minutinho.

— Está tudo bem, obrigado. Vou... vou buscar um pouco d’água.

Grey foi até a bica, tirou a camisa e enfiou a cabeça debaixo do jato de água. Seu cretino, descontrolar-se desse jeito, pensou. Mas, a despeito de sua determinação, o pensamento voltava inexoravelmente para Trina. Hoje à noite, hoje à noite vou permitir-me pensar nela, prometeu. Hoje à noite, e todas as outras noites. Para o inferno tentar viver sem comida. Sem esperança. Quero morrer. Ah, como eu quero morrer.

E foi então que viu Peter Marlowe subindo o morro. Nas mãos, trazia uma vasilha de rancho americana, segurando-a com cuidado. Por quê?

— Marlowe! — Grey bloqueou-lhe a passagem.

— Que diabo está querendo?

— O que leva aí?

— Comida.

— Não é contrabando?

— Pare de me encher, Grey.

— Não o estou enchendo. “Diga-me com quem andas e te direi quem és.”

— Fique bem longe de mim.

— Infelizmente, não posso, meu velho. É o meu serviço. Quero ver o que leva. Por favor.

Peter Marlowe hesitou. Grey estava no seu direito de ver, e no seu direito de levá-lo ao Coronel Smedly-Taylor, se saísse da linha. E no seu bolso estavam os 20 tabletes de quinino. Ninguém podia ter reservas particulares de remédios. Se fossem descobertos, teria que contar onde os arranjara, e o Rei teria que contar onde os arranjara, e de qualquer modo, Mac precisava deles agora. Assim, destampou a vasilha.

A mistura de carne com katchang idju cheirou divinamente a Grey. Seu estômago deu voltas, e tentou não deixar transparecer a fome que sentia. Inclinou a vasilha com cuidado para enxergar o fundo. Não havia nada ali além da deliciosa comida.

— Onde arranjou isso?

— Ganhei.

— Foi ele quem deu?

— Foi.

— Para onde o está levando?

— Para o hospital.

— Para quem?

— Para um dos americanos.

— E desde quando um Capitão-Aviador, detentor da Cruz do Mérito Aeronáutico, virou menino de recados para um Cabo?

— Vá pro diabo!

— Pode ser que vá. Mas antes de ir, vou ver vocês dois receberem o que merecem.

Calma, Peter Marlowe disse para si mesmo, vá com calma. Se agredir Grey, vai ferrar-se de verdade.

— Acabou de fazer as perguntas, Grey?

— Por enquanto. Mas lembre-se... — Grey deu um passo à frente e o cheiro da comida era uma tortura. — Você e seu maldito amigo vigarista estão na minha lista. Ainda não esqueci do isqueiro.

— Não sei do que está falando. Não desobedeci qualquer ordem.

— Mas vai desobedecer, Marlowe. Se você vende sua alma, chega o dia em que tem que pagar.

— Você está maluco!

— Ele é um vigarista, um mentiroso e um ladrão...

— É meu amigo, Grey. Não é vigarista ou ladrão...

— Mas é mentiroso.

— Todo o mundo é mentiroso. Até você. Negou conhecimento do rádio. E preciso ser mentiroso para ficar vivo. É preciso fazer um bocado de coisas...

— Como puxar o saco de um Cabo para conseguir comida?

A veia da testa de Peter Marlowe inchou, como uma pequena cobra escura. Mas sua voz era macia, e o veneno coberto de mel.

— Devia dar-lhe uma surra, Grey. Mas é falta de educação brigar com as classes inferiores. É injusto, sabe.

— Por Deus, Marlowe... — começou Grey, mas as palavras lhe faltaram, a raiva dentro dele subiu-lhe à garganta, sufocando-o.

Peter Marlowe olhou fundo nos olhos de Grey, e viu que vencera. Por um momento, saboreou a destruição do homem, e depois sua fúria se evaporou, ultrapassou Grey e subiu a colina. Não há necessidade de prolongar uma batalha vencida. Isso também é falta de educação.

Juro pelo Senhor Deus, pensou Grey. Vou fazê-lo pagar por isso. Você vai ficar de joelhos, implorando o meu perdão. Mas não o perdoarei. Nunca!

Mac pegou seis dos tabletes e fez uma careta quando Peter Marlowe ajudou-o a levantar-se um pouco para tomar a água que lhe oferecia. Engoliu e largou-se de novo.

— Deus o abençoe, Peter — sussurrou. — Isso vai dar um jeito em mim. Deus o abençoe, meu rapaz. — Caiu no sono, o rosto queimando e o baço quase estourando, e o cérebro fabricou pesadelos. Viu a mulher e o filho boiando nas profundezas do oceano, comidos pelos peixes, e gritando lá debaixo. E viu a si mesmo, lá no fundo, atacando os tubarões, mas suas mãos não tinham força o bastante, nem sua voz era alta o bastante, e os tubarões arrancavam pedaços enormes da carne de sua carne, e sempre havia mais pedaços para arrancar. E os tubarões tinham vozes, e a risada deles era demoníaca, mas os anjos estavam a seu lado e lhe diziam, rápido, rápido, Mac, rápido ou chegará tarde demais. E a seguir não havia mais tubarões, somente homens amarelos com baionetas e dentes de ouros, pontiagudos como agulhas, cercando-o, e a sua família, no fundo do mar. As suas baionetas eram imensas, afiadas. Eles não, eu!, gritava Mac. Matem a mim! E ficava assistindo, impotente, enquanto matavam sua mulher e matavam seu filho, e depois viravam-se para ele, e os anjos olhavam e sussurravam em coro, Rápido, Mac, rápido. Corra. Corra. Fuja e estará a salvo. E corria, sem querer correr, fugia do filho e da mulher e do mar cheio de sangue, e fugia no meio do sangue e sufocava. Mas ainda assim corria, e eles o perseguiam, os tubarões de olhos rasgados e dentes de agulha dourados, com seus fuzis e baionetas, rasgando sua carne até que ficou acuado. Lutou e suplicou,’ mas não paravam, e agora estava cercado. E Yoshima enfiou a baioneta com toda a força nas suas entranhas. E a dor foi imensa. Além da agonia. Yoshima puxou fora a baioneta e ele sentiu o sangue jorrar de dentro de si, pelo buraco irregular, por todas as aberturas do corpo, pelos próprios poros, até que só sobrou sua alma na casca. Finalmente, a alma lhe fugiu e misturou-se ao sangue do mar. Um alívio imenso e delicioso invadiu-o, infinito, e ficou feliz por estar morto.

Mac abriu os olhos. As cobertas estavam encharcadas. A febre passara. E sabia que estava vivo de novo.

Peter Marlowe ainda estava sentado ao lado da cama, com a noite às suas costas.

— Alô, meu rapaz. — As palavras eram tão fracas que Peter Marlowe teve que se inclinar para percebê-las.

— Está bem, Mac?

— Tudo bem, meu rapaz. Quase que vale a pena ter a febre, para me sentir tão bem depois. Agora, vou dormir. Traga-me um pouco de comida, amanhã. — Mac fechou os olhos e adormeceu. Peter Marlowe descobriu-o e secou aquela casca de homem.

— Onde posso arranjar umas cobertas secas, Steven? — perguntou, ao ver o enfermeiro cruzando depressa a enfermaria.

— Não sei, senhor — disse Steven. Vira esse rapaz muitas vezes. E simpatizava com ele. Quem sabe... mas, não, Lloyd ficaria louco de ciúmes. Uma outra vez. Tem tempo de sobra. — Quem sabe posso ajudá-lo, senhor.

Steven foi até o quarto leito e tirou a coberta de cima do homem deitado, depois tirou habilmente a coberta debaixo, e voltou.

— Tome. Use estas.

— E quanto a ele?

— Oh! — exclamou Steven, com um sorriso meigo. — Não precisa mais delas. Já vêm buscá-lo para o enterro. Pobrezinho.

— Oh! — Peter Marlowe esticou a cabeça para ver quem era, mas era um rosto que não conhecia. — Obrigado — disse, e começou a arrumar a cama.

— Espere — falou Steven. — Deixe que eu faço. Posso fazê-lo muito melhor do que o senhor. — Orgulhava-se de como sabia arrumar uma cama sem magoar o doente. — E não se preocupe com seu amigo — continuou. — Pode deixar que cuido dele. — Cobriu Mac como se fosse uma criança. — Pronto. — Acariciou a cabeça de Mac por um momento, depois pegou um lenço e enxugou os restos de suor da testa do enfermo. — Estará bem dentro de dois dias. Se tiver alguma comida sobrando... — mas deteve-se e olhou para Peter Marlowe com olhos rasos d’água. — Mas que tolice a minha. Não se preocupe, Steven vai achar alguma coisa para ele. Não se preocupe mesmo. Não há nada mais que possa fazer essa noite, portanto vá andando e tenha uma boa noite de sono. Vamos, seja um bom menino.

Sem achar palavras, Peter Marlowe deixou-se levar para fora. Steven deu um sorriso de boa-noite e voltou lá para dentro.

Em meio à escuridão, Peter Marlowe ficou vendo Steven alisar uma testa febril e segurar uma mão trêmula, afastar com carinho os demônios da noite, acalmar os gritos noturnos, ajeitar as cobertas, ajudar um homem a beber e ajudar um homem a vomitar, e o tempo todo um acalanto, delicado e doce. Quando Steven chegou ao Leito Quatro, parou e olhou para o cadáver. Endireitou-lhe os membros e cruzou-lhe as mãos, depois tirou o avental e cobriu o corpo, o toque como uma bênção. O tórax esbelto e liso e as pernas esbeltas e lisas de Steven brilhavam à meia-luz.

— Pobrezinho — sussurrou, correndo os olhos pelo cadáver. — Pobrezinhos. Ah, meus pobrezinhos — falou, chorando por todos eles.

Peter Marlowe afastou-se dentro da noite, cheio de pena, envergonhado de ter sentido nojo de Steven no passado.


12

Enquanto Peter Marlowe se acercava da choça americana, sentia-se cheio de dúvidas. Lamentava ter concordado tão prontamente em servir de intérprete para o Rei, e ao mesmo tempo estava chateado por não querer fazê-lo. Que grande amigo você é, disse para si mesmo, depois de tudo que ele fez por você.

A sensação esquisita no estômago aumentava. Igualzinho a quando se vai voar numa missão, pensou. Não, não era bem assim. A sensação era igual a que se tem quando o diretor da escola nos manda chamar. A outra é igualmente dolorosa, mas ao mesmo tempo é misturada com prazer. Como a aldeia. Essa faz o coração alçar vôo. Arriscar-se assim, só pela curtição... ou, na verdade, pela comida ou pela garota que pode existir lá.

Ficou-se perguntando pela milésima vez por que o Rei ia até a aldeia, e o que fazia lá. Mas perguntar não seria educado, e sabia que precisava apenas de um pouco de paciência para descobrir. Esse era outro dos motivos por que gostava do Rei. Não oferecia informação alguma, guardava para si a maior parte dos seus pensamentos. É o jeito inglês, disse Peter Marlowe consigo mesmo, satisfeito. Solte um pouquinho de cada vez, quando estiver disposto. O que você é ou quem é interessa só a si mesmo... até que sinta vontade de partilhá-lo com um amigo. E um amigo nunca pergunta. Você tem que se abrir espontaneamente, ou então não se abrir.

Como a aldeia. Meus Deus, pensou. Isso mostra o quanto ele o considera, abrir-se desse jeito. Simplesmente perguntar: Você quer vir junto, da próxima vez em que eu for.

Peter Marlowe sabia que era uma loucura ir à aldeia. Mas talvez agora não fosse assim tanta loucura. Agora havia um motivo de verdade. Um motivo importante. Tentar arranjar uma peça para consertar o rádio — ou arranjar um rádio, completo. Por esse motivo valia a pena correr o risco.

Mas, ao mesmo tempo, sabia que teria ido apenas porque fora convidado, e por causa da provável-comida e provável-garota.

Viu o Rei dentro de uma sombra, conversando com outra sombra, ao lado de uma choça. As cabeças estavam bem juntas, as vozes inaudíveis. Estavam tão entretidos que Peter Marlowe decidiu ignorar o Rei, e começou a subir as escadas para entrar na choça americana, cruzando o facho de luz.

— Ei, Peter — chamou o Rei. Peter Marlowe se deteve.

— Já vou falar com você, Peter. — O Rei voltou-se para a outra figura. -É melhor esperar aqui, Major. Logo que ele chegar, eu o aviso.

— Obrigado — disse o homenzinho, a voz úmida de embaraço.

— Quer um pouco de fumo — ofereceu o Rei, e ele foi aceito com avidez. 0 Major Prouty aprofundou-se nas sombras, mas manteve os olhos fitos no Rei, enquanto este voltava para a própria cabana.

— Senti sua falta, meu chapa — disse o Rei para Peter Marlowe, dando-lhe um soquinho de brincadeira. — Como vai o Mac?

— Vai bem, obrigado. — Peter Marlowe queria sair do facho de luz. Que merda, pensou. Tenho vergonha de ser visto com meu amigo. E isso é uma nojeira. Uma bela nojeira.

Mas não pôde deixar de sentir os olhos do Major observando-o, ou evitar a careta quando o Rei disse:

— Vamos, não vai demorar, depois podemos ir trabalhar.

Grey foi até o esconderijo, para o caso de haver um recado para ele na lata. E havia. O relógio do Major Prouty. Hoje à noite. Marlowe e ele.

Grey jogou a lata de volta à vala com a mesma naturalidade com que a apanhara. Depois, espreguiçando-se, levantou-se e voltou para a Choça 16. Mas o tempo todo sua cabeça trabalhava feito um computador.

Marlowe e o Rei. Estarão na “loja” atrás da choça americana. Prouty. Qual deles? Major! Será o da Artilharia? Ou o australiano? Vamos, Grey, perguntou-se com irritação, onde está o arquivo mental de que tem tanto orgulho? Pronto! Choça 11! Um homenzinho! Dos Pioneiros! Australiano!

Terá alguma ligação com Larkin? Não que eu saiba. Um australiano. Então, por que não lidar com Tiny Timsen, o australiano do câmbio negro? Por que o Rei? Quem sabe a coisa é grande demais para o bico do Timsen. Ou quem sabe é mercadoria roubada... é o mais provável, e por esse motivo o Prouty não vai usar os canais australianos de costume. Deve ser por isso.

Grey deu uma olhada para o relógio de pulso. Foi uma coisa instintiva, pois há três anos não possuía relógio, e nem precisava de um para saber as horas da noite ou do dia. Como todos os demais, sabia a hora, pelo menos a hora que era necessário saber.

Ainda é muito cedo, pensou. A troca dos guardas ainda ia demorar um pouco. E quando fosse feita, de sua choça poderia ver o guarda substituído arrastar-se campo afora, subindo a estrada na direção da casa da guarda, passando por sua choça. O homem em questão é o novo guarda. Quem será? Que diferença faz? Logo vou saber. É mais seguro esperar e observar até a hora certa, depois dar o bote. Cuidadosamente. Apenas interrompê-los educadamente. Ver o guarda com o Rei e Marlowe. Melhor vê-los quando o dinheiro trocar de mãos ou quando o Rei entregar o dinheiro ao Prouty. E então, um relatório para o Coronel Smedly-Taylor: “Ontem à noite testemunhei um intercâmbio de dinheiro”, ou quem sabe: “Vi o Cabo americano e o Capitão-Aviador Marlowe, Choça 16, com um guarda coreano. Tenho motivos para crer que o Major Prouty, dos Pioneiros, estava envolvido, e colocou o relógio à venda.”

Isso resolveria o problema. Os regulamentos, pensou satisfeito, eram claros e definidos: “Nada de vendas aos guardas!” Pegos com a boca na botija. E então haveria uma corte marcial.

Uma corte marcial para começo de conversa. Depois a minha cadeia, minha cadeiazinha. Sem extras e ensopados de carne. Sem nada. Apenas engaiolados, engaiolados como os ratos que são. A seguir, serão soltos, cheios de raiva e ódio. E os homens raivosos cometem erros. E da próxima vez, quem sabe Yoshima estaria esperando. Melhor deixar que os japoneses façam seu próprio serviço... não é direito ajudá-los. Talvez nesse caso seja direito. Mas, não. Talvez só uma cutucadinha?

Vou vingar-me de você, maldito Peter Marlowe. Quem sabe mais cedo do que eu esperava. E a minha vingança, de você e daquele vigarista, será um êxtase.

O Rei deu uma olhada no seu relógio de pulso. 21:04. A qualquer segundo, agora. Uma coisa era certa com os japoneses, sempre se sabia o que iriam fazer, cronometrado em segundos, pois uma vez que um esquema fosse traçado, era cumprido.

E então, ouviu os passos. Torusumi dobrou a esquina da choça e veio depressa para o abrigo do toldo de lona. O Rei levantou-se para recebê-lo. Peter Marlowe também se levantou, relutante, detestando-se por isso.

Torusumi era uma figurinha difícil entre os guardas. Muito conhecido. Perigoso e imprevisível. Tinha um rosto, quando a maioria era sem rosto. Estava no campo há cerca de um ano. Gostava de dar duro nos prisioneiros, deixá-los no Sol, gritar com eles, e chutá-los quando tinha vontade.

— Tabe — cumprimentou o Rei, sorrindo. — Quer fumar? — Ofereceu um pouco de fumo cru de Java.

Torusumi deixou à mostra os dentes de ouro, entregou o fuzil a Peter Marlowe e sentou-se. Tirou do bolso um maço de Kooas e ofereceu-os ao Rei, que aceitou um. A seguir, o coreano olhou para Peter Marlowe.

— Amigo ichi-bon — explicou o Rei.

Torusumi resmungou, mostrou os dentes, aspirou o ar por entre os dentes e ofereceu um cigarro. Peter Marlowe hesitou.

— Aceite, Peter — disse o Rei.

Peter Marlowe obedeceu, e o guarda sentou-se à mesinha.

— Diga-lhe — falou o Rei para Peter Marlowe — que ele é bem-vindo.

— Meu amigo diz que sois bem-vindo e que está feliz por ver-vos aqui.

— Ah, agradeço-vos. O meu digno amigo tem alguma coisa para mim?

— Ele quer saber se tem alguma coisa para ele.

— Diga-lhe exatamente o que eu disser, Peter. Seja preciso.

— Terei que passá-lo para o vernáculo. Não dá para traduzir exatamente.

— Tudo bem... mas certifique-se de que está certo... não tenha pressa.

O Rei entregou o relógio. Peter Marlowe notou, surpreso, que estava como novo, todo polido, e com um novo mostrador de plástico, num estojo de couro acamurçado.

— Diga-lhe o seguinte: um sujeito que conheço quer vendê-lo. Mas é caro, e talvez não seja o que ele quer.

Até mesmo Peter Marlowe notou o brilho de avareza nos olhos do coreano quando tirou o relógio do estojo e levou-o ao ouvido, resmungou casualmente e colocou-o sobre a mesa.

Peter Marlowe traduziu a resposta do coreano.

— Tendes alguma outra coisa? Lamento dizer que os Omegas não estão valendo muito em Cingapura, atualmente.

— O vosso malaio é excepcionalmente bom, senhor — Torusumi acrescentou para Peter Marlowe, aspirando o ar por entre os dentes, polidamente.

— Agradeço-vos — disse Peter Marlowe, contrafeito.

— O que foi que ele disse, Peter?

— Só que falo malaio muito bem.

— Ah! Bem, diga-lhe que lamento, mas que é só o que tenho.

O Rei esperou até que isso fosse traduzido, depois sorriu e deu de ombros, pegou o relógio, botou-o no estojo, enfiou-o no bolso e se levantem.

— Salamat! — disse.

Torusumi deixou os dentes à mostra de novo, depois fez sinal para o Rei sentar-se.

— Não é que eu queira o relógio — falou para o Rei. — Mas porque sois meu amigo e tivestes tanto trabalho, devo indagar quanto o homem que possui este relógio insignificante quer por ele?

— Três mil dólares — replicou o Rei. — Sinto que esteja pedindo tão caro.

— Claro que está pedindo caro. O dono tem doença na cabeça. Sou um homem pobre, apenas um guarda, mas como já negociamos no passado e para fazer-vos um favor, ofereço 300 dólares.

— Lamento. Não ouso. Ouvi dizer que há outros compradores que dariam um preço mais razoável através de outros intermediários. Concordo que sois um homem pobre e não deveríeis oferecer dinheiro por um relógio tão insignificante. Claro, os Omegas não valem muito, mas em deferência ao dono, compreendeis que seria um insulto oferecer-lhe menos do que vale um relógio de segunda classe.

— É verdade. Talvez eu deva aumentar o preço, pois mesmo um homem pobre tem honra, e seria honroso tentar diminuir o sofrimento de qualquer homem nesses tempos difíceis. Quatrocentos.

— Agradeço seu interesse pelo meu conhecido. Mas este relógio... sendo um Omega... e sendo que o preço dos Omegas caiu do seu alto nível aceito anteriormente, obviamente há um motivo mais definido para não quererdes negociar comigo. Um homem de honra é sempre honrado...

— Também sou um homem de honra. Não desejo impugnar vossa reputação ou a reputação do vosso conhecido que é dono do relógio. Talvez eu deva arriscar minha reputação e tentar ver se consigo persuadir aqueles miseráveis comerciantes chineses com quem tenho que tratar a dar um preço justo, pelo menos uma vez nas suas miseráveis existências. Estou certo de que concordareis que quinhentos seria o máximo que um homem justo e honrado pagaria por um Omega, mesmo antes de o preço deles baixar.

— Verdade, meu amigo. Mas tenho um pensamento para vós. Talvez os preços dos Omegas não tenham baixado de sua posição ichi-bon. Talvez os miseráveis chineses se estejam aproveitando de um homem honrado. Ora, semana passada mesmo outro de vossos amigos coreanos veio procurar-me e comprou um relógio desses e pagou três mil dólares por ele. Somente ofereci-o a vós por causa da minha longa amizade e da confiança que deve existir entre sócios de tanto tempo.

— Falais a verdade? — Torusumi cuspiu com veemência no chão, e Peter Marlowe preparou-se para o golpe que acompanhara anteriormente tais explosões.

O Rei continuou sentado, imperturbável. Deus, pensou Peter Marlowe, mas ele tem nervos de aço. O Rei pegou um pouco de fumo e começou a preparar um cigarro. Quando Torusumi percebeu, parou de esbravejar e ofereceu o maço de Kooas e se acalmou.

— Estou abismado que os miseráveis comerciantes chineses por quem arrisco a vida sejam tão corruptos. Estou horrorizado ao ouvir o que vós, meu amigo, me dissestes. Pior, estou estarrecido. Pensar que abusaram da minha confiança. Há um ano que venho lidando com o mesmo homem. E pensar que me enganou durante tanto tempo. Acho que vou matá-lo.

— É melhor — falou o Rei — lográ-lo.

— Como? Gostaria muito que meu amigo me dissesse.

— Amaldiçoai-o. Dizei-lhe que vos deram informações que provam que é um trapaceiro. Dizei-lhe que, se não vos der um preço justo no futuro... um preço justo e mais vinte por cento para compensar-vos pelos erros anteriores... então podereis sussurrar nos ouvidos das autoridades. E então elas o pegarão, e pegarão suas mulheres e pegarão seus filhos, e os castigarão até estardes satisfeito.

— Que conselho soberbo. Estou feliz com a idéia do meu amigo. Por causa de sua idéia e da amizade que lhe dedico, ofereço mil e quinhentos dólares. É todo o dinheiro que tenho no mundo, e mais algum dinheiro que me foi confiado por um amigo que está com a doença das mulheres naquele pardieiro chamado hospital, e que não pode trabalhar por si mesmo.

O Rei abaixou-se e bateu nas nuvens de mosquitos que lhe atacavam os tornozelos. Agora está melhorando, rapaz, pensou. Vejamos. Dois mil seria alto. Mil e oitocentos O.K. Mil e quinhentos não é mau.

— O Rei pede-vos que espereis — traduziu Peter Marlowe. — Precisa consultar o miserável que deseja vender-vos mercadoria por preço tão exagerado.

O Rei entrou pela janela e cruzou toda a cabana, verificando. Max estava no seu lugar. Dino num dos lados da trilha, Byron Jones III no outro.

Foi encontrar o Major Prouty, suando de ansiedade, na sombra da choça vizinha à americana.

— Puxa, senhor, lamento — sussurrou o Rei, desanimado. — O cara não está muito interessado.

A ansiedade de Prouty aumentou. Tinha que vender. Ó, meu Deus, pensou, mas que azar. Preciso arranjar o dinheiro, de qualquer jeito.

— Não ofereceu nada?

— O máximo que consegui foi 400.

— Quatrocentos! Ora, todo mundo sabe que um Omega vale pelo menos dois mil dólares.

— Parece que isso é balela, senhor. Ele, bem, ficou desconfiado. De que não Seja um Omega.

— Ele está maluco. Claro que é um Omega.

— Desculpe, senhor — disse o Rei, enrijecendo o corpo de leve. — Só estou relatando...

— Culpa minha, Cabo. Não quis descontar em você. Esses sacanas amarelos são todos iguais. — O que faço agora, Prouty se perguntou. Se não o vender através do Rei, não vou vendê-lo, e a nossa unidade precisa de dinheiro e todo nosso esforço terá sido em vão. O que vou fazer?

Prouty pensou por um minuto, depois falou:

— Veja o que pode fazer, Cabo. Não posso aceitar menos de mil e duzentos. Não posso, mesmo.

— Bem, senhor, não creio que possa fazer muita coisa, mas vou tentar.

— Isso, meu rapaz. Estou contando com você. Não o venderia por tão pouco, mas, bem, a comida está escassa. Sabe como é.

— Sim, senhor — disse o Rei, educadamente. — Vou tentar, mas temo não conseguir que suba muito o preço. Disse que os chineses não estão comprando como antes. Mas farei o possível.

Grey notara Torusumi patrulhando o campo, e sabia que logo chegaria a hora. Esperara muito, e agora estava na hora. Levantou-se e saiu da choça, ajeitando a braçadeira, endireitando o chapéu. Não havia necessidade de testemunhas, a palavra dele bastava. Portanto, foi sozinho.

Seu coração batia agradavelmente. Sempre batia assim, quando ia fazer uma prisão. Atravessou a fila de choças, desceu os degraus e entrou na rua principal. Este era o caminho mais longo. Escolheu-o deliberadamente, pois sabia que o Rei postava vigias quando estava negociando. Mas conhecia as posições deles. E sabia que havia um caminho, através do campo de minas humano.

— Grey!

Olhou na direção do chamado. O Coronel Samson vinha-se aproximando.

— Sim, senhor.

— Ah, Grey, prazer em vê-lo. Como vão indo as coisas?

— Bem, obrigado, senhor — replicou, surpreso por ser cumprimentado de modo tão amistoso. A despeito da pressa em se afastar, não deixou de se sentir muito satisfeito.

O Coronel Samson tinha um lugar especial no futuro de Grey. Samson era Autoridade, mas Autoridade com A maiúsculo. Ministério da Guerra. E com excelentes ligações. Um homem assim seria muitíssimo útil... mais tarde. Samson pertencia ao Estado-Maior do Extremo Oriente e tinha uma função vaga mas importante dentro do Gabinete. Conhecia todos os generais e contava como os recebia socialmente, na sua casa de campo, em Dorset, e como a pequena nobreza comparecia, e as festas ao ar livre e os bailes e caçadas que organizava. Um homem como Samson podia muito bem equilibrar a balança contra a folha de serviços falha de Grey. E a sua classe.

— Queria falar com você, Grey — dizia Samson. — Tenho uma idéia que você talvez ache que valha a pena desenvolver. Sabe que estou compilando a história oficial da campanha. Claro — acrescentou com bom humor — ainda não é a oficial, mas quem sabe será. O General Sonny Wilkinson é o historiador do Ministério da Guerra, como sabe, e estou certo que Sonny se interessará por uma versão in loco. Será que você estaria interessado em verificar alguns dados para mim? Sobre o seu regimento?

Será que estaria, pensou Grey. Ora! Daria qualquer coisa para fazê-lo! Mas não agora.

— Adoraria fazê-lo, senhor. Sinto-me lisonjeado que queira considerar minhas opiniões. Será que amanhã está bem? Depois do café.

— Oh! — exclamou Samson. — Pensei que poderíamos conversar um pouquinho agora. Bem, quem sabe outro dia. Eu o avisarei...

E Grey compreendeu instintivamente que era agora ou nunca. Samson nunca falara muito com ele antes. Quem sabe, pensou desesperadamente, quem sabe posso dar-lhe o bastante para um começo, e ainda assim pegar aqueles dois. Às vezes, as negociações levavam horas. Vale a pena arriscar!

— Pode ser agora, se quiser, senhor. Mas só um pouquinho, se não se importa. Estou com uma ponta de dor de cabeça. Alguns minutos, se não se importa.

— Ótimo. — O Coronel Samson estava muito contente. Tomou o braço de Grey e levou-o de volta para a choça. — Sabe, Grey, seu regimento era um dos meus favoritos. Fez um belo trabalho. Você foi mencionado nos despachos, não foi? Em Kota Bharu?

— Não, senhor. — Por Deus, devia ter imaginado. — Não houve tempo de requisitar condecorações. Não que eu as merecesse mais do que qualquer outro.

Falava a sério. Muitos dos homens mereciam a Cruz da Vitória, e no entanto não receberiam nem uma menção. Não agora.

— Nunca se sabe, Grey — falou Samson. — Talvez, depois da guerra, possamos rever muitas coisas. — Fez Grey sentar-se. — Diga-me, qual era o estado das linhas de batalha, quando você chegou a Cingapura?

— Lamento dizer ao meu amigo — falou Peter Marlowe, em nome do Rei — que o miserável dono deste relógio riu de mim. Disse que o mínimo que aceitaria seriam dois mil e seiscentos dólares. Sinto-me envergonhado de dizer-vos, mas como sois meu amigo, faz-se necessário que o diga.

Torusumi ficou obviamente vexado. Por intermédio de Peter Marlowe, falaram do clima e da falta de comida, e Torusumi lhes mostrou uma foto gasta e vincada da mulher e dos três filhos, e contou-lhes um pouco de sua vida na aldeia dos arredores de Seul, como ganhava a vida como fazendeiro, embora tivesse um diploma universitário, e como odiava a guerra. Contou-lhes como odiava os japoneses, como todos os coreanos odiavam os seus senhores japoneses. Os coreanos nem podem entrar no Exército japonês, falou. São cidadãos de segunda classe e não têm voz ativa em nada, e podem ser chutados daqui para lá, segundo os caprichos do mais inferior dos japoneses.

E assim, ficaram conversando até que, finalmente, Torusumi se levantou. Pegou o fuzil com Peter Marlowe, que o segurara o tempo todo, obcecado pela idéia de que estava carregado e de como seria fácil matar. Mas. por que motivo? E o que aconteceria depois?

— Direi ao meu amigo uma última coisa, por que não gosto de ver-vos de mãos vazias, sem lucro, nesta noite fedorenta, e gostaria que consultásseis o dono ganancioso deste relógio miserável. Dois mil e cem dólares!

— Mas, com todo o respeito, devo lembrar ao meu amigo que o miserável dono, que é Coronel, e como tal, um homem sem humor, falou que só aceitaria dois mil e seiscentos. Sei que não gostaríeis que ele cuspisse em mim.

— É verdade. Mas, deferentemente, sugiro que pelo menos lhe deis a oportunidade de recusar uma última oferta, dada por amizade verdadeira, e na qual eu próprio não terei lucro. E talvez lhe deis uma oportunidade de se retratar por sua grosseria.

— Tentarei, porque sois meu amigo.

O Rei deixou Peter Marlowe e o coreano. O tempo foi passando, e eles esperando. Peter Marlowe escutou a história de como Torusumi foi forçado a se alistar, e de como não tinha estômago para a guerra.

E então o Rei saltou pela janela.

— O homem é um porco, um sacana sem honra. Cuspiu em mim e disse que contaria a todos que sou mau negociante, que me poria na cadeia antes de aceitar menos de dois mil e quatrocentos...

Torusumi esbravejou e ameaçou. O Rei ficou sentado, quietinho, pensando, Jesus, perdi a minha bossa, fui longe demais desta vez, e Peter Marlowe pensou, Santo Cristo, por que, diabo, fui meter-me nisso?

— Dois mil e duzentos — cuspiu Torusumi.

O Rei deu de ombros, desanimado, derrotado.

— Diga-lhe que está bem — resmungou para Peter Marlowe. — Ele é durão demais para mim. Diga-lhe que terei que desistir do raio da minha comissão para compensar a diferença. O filho da puta não vai aceitar nem um centavo a menos. Mas que diabo, onde fica o meu lucro nisso tudo?

— Sois um homem de ferro — disse Peter Marlowe, em nome do Rei. — Direi ao miserável dono Coronel que vai ter o seu preço, mas para isso terei que desistir da minha comissão para compensar a diferença entre o preço que ofereceis e o preço que ele, homem miserável, aceitará. Mas onde fica o meu lucro, nisso tudo? Negociar é uma coisa honrosa, mas mesmo entre amigos deve haver lucro de ambos os lados.

— Porque sois meu amigo, acrescentarei cem dólares. Assim, não ficareis desmoralizado, e da próxima vez não precisareis aceitar a mercadoria de um freguês tão avarento e miserável.

— Agradeço-vos. Sois mais esperto do que eu.

O Rei entregou o relógio no seu estojinho acamurçado e contou o dinheiro do bolo enorme de notas novinhas. Dois mil e duzenros dólares formavam uma bela pilha. A seguir, Torusumi entregou os outros 100. Sorrindo. Passara a perna no Rei, cuja reputação como astuto comerciante era conhecida de todos os guardas. Podia vender o Omega facilmente por 5.000 dólares. Bem, pelo menos por 3.500. Não era um lucro ruim, por uma noite de guarda.

Torusumi deixou o maço aberto de Kooas e um outro maço cheio como compensação pelo mau negócio que o Rei fechara. Afinal, pensou, temos uma longa guerra pela frente, e os negócios vão bem. E se a guerra for curta... bem. seja como for, o Rei seria um aliado útil.

— Saiu-se muito bem, Peter.

— Pensei que ele ia explodir.

— Eu também. Fique à vontade, já volto.

O Rei encontrou Prouty ainda nas sombras. Deu-lhe 900 dólares, quantia que o infeliz Coronel tivera que aceitar, relutantemente, e pegou sua comissão de 90 dólares.

— As coisas estão ficando mais difíceis a cada dia que passa — comentou o Rei.

Estão mesmo, seu filho da mãe, pensou Prouty consigo mesmo. Contudo, 810 não era tão pouco assim, por um Omega fajuto. Riu consigo mesmo: passara a perna no Rei.

— Estou terrivelmente desapontado, Cabo. Era a última coisa que possuía. — Vejamos, pensou, satisfeito, levaremos duas semanas para aprontar um outro. Timsen, o australiano, pode cuidar da venda seguinte.

De repente, Prouty viu Grey que se aproximava. Meteu-se no labirinto das choças, confundindo-se com as sombras, em segurança. O Rei pulou uma janela, para dentro da choça americana, e entrou no jogo de pôquer, sibilando para Peter Marlowe:

— Pegue as cartas, pelo amor de Deus.

Os dois homens cujos lugares ocuparam ficaram calmamente peruando o jogo, e viram o Rei distribuir o monte de notas, até que houvesse uma pilha pequena diante de cada homem, e então Grey chegou à porta.

Ninguém prestou atenção nele até o Rei erguer os olhos, amavelmente.

— Boa-noite. Senhor.

— Boa-noite. — O suor escorria pelo rosto de Grey. — Quanto dinheiro! — Mãe de Deus, nunca vi tanto dinheiro na vida. Não num só lugar. E o que não faria com só um pouquinho dele.

— Gostamos de jogar, senhor.

Grey virou-se e sumiu na noite. Maldito Samson, que fosse para o inferno!

Os homens jogaram algumas rodadas até que foi dado o sinal de “tudo-em-paz”. Então o Rei pegou o dinheiro, não sem dar uma nota de 10 a cada homem, e eles agradeceram em coro. Deu a Dino 10 dólares para cada vigia lá fora, fez um sinal de cabeça para Peter Marlowe, e os dois juntos foram para o seu canto da cabana.

— Merecemos uma xícara de café. — O Rei estava um pouco cansado. O esforço de se manter no topo era desgastante. Esticou-se na cama, e Peter Marlowe fez o café.

— Acho que não lhe trouxe muita sorte — falou Peter Marlowe, suavemente.

— Como?

— A venda. Não foi muito boa, não é? O Rei deu uma gargalhada.

— Tudo de acordo com o planejado. Tome — disse, destacando 110 dólares do bolo e dando-os a Peter Marlowe. — Está-me devendo dois mangos.

— Dois mangos? — Olhou para o dinheiro. — Para que é isso?

— É a sua comissão.

— Porquê?

— Ora essa, não acha que ia botá-lo para trabalhar de graça, acha? O que pensa que sou?

— Falei que teria prazer em fazê-lo. Não mereço nada somente por servir de intérprete.

— Está maluco. Cento e oito mangos — dez por cento. Não é esmola. É seu. Fez jus a ele.

— É você que está maluco. Como é que posso ganhar cento e oito dólares de uma venda de dois mil e duzentos, quando esse foi o preço total e não houve lucro? Não vou ficar com o dinheiro que ele lhe deu.

— Não tem bom uso para ele? Você, Mac ou Larkin?

— Claro que sim. Mas isso não é justo. E não entendo por que cento e oito dólares.

— Peter, não sei como sobreviveu nesse mundo, até agora. Olhe, vou explicar-lhe direitinho: ganhei mil e oitenta dólares nesse negócio; dez por cento são cento e oito; cento e dez menos dois são cento e oito; dei-lhe cento e dez dólares. Você agora me deve dois dólares.

— Mas que diabo, como ganhou tudo isso se...

— Vou contar-lhe. Lição número um no comércio: compra-se barato e vende-se caro, se for possível. Veja essa noite, por exemplo.

O Rei explicou todo contente como passara a perna em Prouty. Quando acabou, Peter Marlowe ficou calado por muito tempo. Depois, disse:

— Parece... bem, parece desonesto.

— Não há nada de desonesto nisso, Peter. Todos os negócios baseiam-se na teoria de que você tem que vender mais caro do que comprou... ou entra pelo cano.

— Sei. Mas sua margem de lucro não está... um pouco alta?

— Porra, não. Todos sabíamos que o relógio era fajuto. Exceto Torusumi. Não se importa de sacaneá-lo, não é? Embora ele possa passá-lo adiante com facilidade para um chinês, e com lucro.

— Acho que não.

— Certo. Veja o Prouty. Estava vendendo mercadoria falsa. Talvez a tenha roubado, raios, não sei. Mas obteve um mau preço porque foi um mau comerciante. Se tivesse tido o peito de pegar o relógio de volta e descer a rua, eu teria ido atrás dele e aumentado o preço. Podia ter barganhado comigo. Está pouco se lixando se der galho com o relógio. Parte do negócio é que sempre protejo meus fregueses... portanto, Prouty está seguro, e sabe disso... enquanto eu posso estar-me metendo numa fria.

— O que vai fazer quando Torusumi descobrir e voltar?

— Ele voltará — sorriu o Rei, de repente, e o calor do seu sorriso era uma alegria de se ver — mas não para dar berros. Que diabo, se fizesse isso, estaria desmoralizado. Jamais admitiria que eu lhe houvesse passado a perna numa transação. Ora, os colegas gozariam loucamente com a cara dele, se eu espalhasse a história. Vai voltar, sem dúvida, mas para tentar lograr-me da próxima vez.

Acendeu um cigarro e passou um para Peter Marlowe.

— E assim — continuou, jovialmente — Prouty recebeu novecentos, menos a minha comissão de dez por cento. Pouco, mas não injusto, e não se esqueça, você e eu estávamos correndo todos os riscos. Agora, quanto às despesas. Tive que pagar cem pratas para mandar limpar e polir o relógio e comprar um vidro novo. Vinte para o Max, que farejou a possível venda, dez por cabeça para cada um dos vigias, e mais sessenta para os rapazes que davam cobertura com o jogo. A soma é mil, cento e vinte. Tirando-se mil, cento e vinte de dois mil e duzentos ficam exatamente mil e oitenta pratas. Dez por cento dessa quantia é cento e oito. Simples.

Peter Marlowe sacudiu a cabeça. Tantos números, tanto dinheiro e tanta emoção. Num momento estavam só conversando com um coreano, no momento seguinte ele tinha 110... 108... dólares nas mãos, sem mais aquela. Puxa vida, pensou, exultante. Isso eqüivale a vinte e tantos cocos ou muitos ovos. Mac! Agora vamos poder dar-lhe comida. Ovos, ovos são do que precisa!

Subitamente, escutou o pai falando, ouviu-o com tanta clareza como se estivesse a seu lado. E podia vê-lo, ereto e corpulento na sua farda da Marinha Real.

“Escute, filho. Existe uma coisa chamada honra. Se vai tratar com um homem, diga-lhe a verdade, e ele terá necessariamente que dizer-lhe a verdade, também, caso contrário não terá honra. Proteja o outro homem como espera que ele o proteja. E se um homem não tem honra, não se associe a ele, pois irá maculá-lo. Lembre-se, há pessoas honradas e pessoas sujas. Há dinheiro honrado e dinheiro sujo.”

“Mas este não é dinheiro sujo”, ouviu-se responder ao pai; “não do jeito que o Rei explicou. Estavam-no fazendo de otário. Foi mais esperto do que eles”.

“E verdade. Mas é desonesto vender a propriedade de um homem e dizer-lhe que o preço foi bem menor do que o preço realmente obtido.” “É, mas...”

“Não há mas nem meio mas, meu filho. É verdade que há níveis de honra... mas cada homem tem que ter um único código. Faça o que quiser. A escolha é sua. Há coisas que um homem tem que decidir por si mesmo. Às vezes, é preciso adaptar-se âs circunstâncias. Mas, pelo amor de Deus, guarde-se, e à sua consciência... ninguém mais o fará... e saiba que uma decisão errada na hora certa poderá destruí-lo mais seguramente do que qualquer bala.”

Peter Marlowe sopesou o dinheiro e pensou no que podiam fazer com aquela bolada, Mac, Larkin e ele próprio. Imaginou uma balança, e os pratos estavam pesados de um dos lados. De direito, o dinheiro pertencia ao Prouty e à sua unidade. Talvez fosse a última coisa que possuíssem no mundo. Talvez, por causa do dinheiro roubado, Prouty e sua unidade, nenhum dos quais conhecia, talvez fossem morrer. Tudo por causa da sua cobiça. Contra tudo isso pesava o Mac. A necessidade dele era premente. E a do Larkin. E a minha. A minha também, não posso esquecer de mim. Lembrava-se do Rei dizendo: “Não é preciso aceitar esmola”, e ele vinha aceitando esmolas. Muitas.

O que devo fazer, meu Deus, o que devo fazer? Mas Deus não respondeu.

— Obrigado. Obrigado pelo dinheiro — falou Peter Marlowe. Guardou-o. E todo seu corpo estava consciente de como queimava.

— Obrigado, coisa nenhuma. Você o ganhou. É seu. Trabalhou por ele. Não lhe dei coisa alguma.

O Rei estava radiante, e sua alegria sufocava o auto desprezo de Peter Marlowe.

— Vamos — disse. — Temos que comemorar nosso primeiro negócio juntos. Com o meu cérebro e o seu malaio, ora, ainda vamos ter um vidão! — E o Rei fritou alguns ovos.

Enquanto comiam, o Rei contou a Peter Marlowe que mandara os rapazes comprarem estoques de comida suplementares, quando soube que Yoshima havia encontrado o rádio.

— A gente tem que arriscar nesta vida, Peter, meu chapa. Claro. Logo imaginei que os japoneses iriam tornar a vida bem dura por algum tempo. Mas só para aqueles que não estavam preparados para descobrir uma saída. Olhe para o Tex. O coitado do filho da puta não teve grana nem para comprar um único ovo. Olhe para você e Larkin. Se não fosse por mim, o Mac ainda estaria sofrendo, o pobre filho da mãe. Claro que tenho prazer em ajudar. Gosto de ajudar os meus amigos. Um homem tem que ajudar os amigos, caso contrário nada vale a pena.

— Suponho que sim — replicou Peter Marlowe. Que coisa terrível de se dizer. Estava magoado com o Rei, e não entendia que a mente americana é simples em algumas coisas, tão simples quanto a inglesa. Um americano tem orgulho da sua capacidade de ganhar dinheiro, e está certo. Um inglês, como Peter Marlowe, tem orgulho de morrer por sua Bandeira. E está certo.

Viu o Rei olhar pela janela e notou o brilho repentino dos seus olhos. Acompanhou a direção do olhar do Rei, e viu um homem subindo a trilha. Quando o homem atravessou o facho de luz, Peter Marlowe o reconheceu. O Coronel Samson.

Quando Samson viu o Rei, acenou amistosamente.

— Boa-noite, Cabo — falou, e continuou o seu caminho. O Rei pegou 90 dólares e entregou-os a Peter Marlowe.

— Faça-me um favor, Peter. Junte uma nota de dez a este bolo e dê tudo àquele sujeito.

— Samson? O Coronel Samson?

— Claro. Irá encontrá-lo perto do canto da cadeia.

— Dar-lhe o dinheiro? Sem mais aquela? Mas o que tenho que dizer?

— Diga-lhe que é da minha parte.

Meu Deus, pensou Peter Marlowe, estarrecido, será que o Samson está na folha de pagamento? Não pode ser! Não posso fazer isso. Você é meu amigo, mas não posso chegar para um Coronel e dizer, tome aqui cem pratas da parte do Rei. Não posso!

O Rei percebeu o que estava havendo com o amigo. Oh, Peter, pensou, você não passa de uma criança. A seguir, acrescentou, ora vá para o diabo! Mas jogou fora o último pensamento e se xingou. Peter era o único sujeito no acampamento que jamais quisera ter como amigo, o único sujeito de que precisava. E assim decidiu ensinar-lhe os fatos da vida. Vai ser dureza, Peter, meu chapa, e pode doer um bocado, mas vou ensinar-lhe nem que tenha que quebrá-lo. Você vai sobreviver e vai ser meu sócio.

— Peter — falou — há vezes em que precisa confiar em mim. Jamais o deixaria entrar numa fria. Enquanto você for meu amigo, confie em mim. Se não quiser ser meu amigo, tudo bem. Mas gostaria que fosse meu amigo.

Peter Marlowe percebeu que esta era outra hora da verdade. Pegue o dinheiro em confiança... ou deixe-o e suma.

A vida de um homem está sempre numa encruzilhada. E não somente a sua vida, não se for um homem. Há sempre outras em jogo.

Sabia que um dos caminhos arriscava a vida de Mac e a de Larkin, juntamente com a sua, pois sem o Rei eram tão indefesos quanto qualquer outro homem no campo; sem o Rei não haveria aldeia, pois sabia que não correria o risco sozinho... nem mesmo pelo rádio. O outro caminho poria em risco uma tradição ou destruiria um passado. Samson era uma força no Exército Regular, um homem de casta, posição e fortuna, e Peter Marlowe nascera para ser oficial — como seu pai antes dele, e seu filho depois dele — e uma tal acusação jamais poderia ser esquecida. E se Samson era um assalariado, então tudo aquilo em que lhe ensinaram a acreditar, não teria valor.

Peter Marlowe ficou vendo a si mesmo pegar o dinheiro, sumir na noite, subir a trilha e encontrar o Coronel Samson, e ouvir o homem murmurar:

— Oh, alô, é Marlowe, não é?

Viu a si mesmo passar o dinheiro para o outro.

— O Rei me pediu que lhe desse isto.

Viu os olhos mucosos se iluminarem, quando Samson contou avidamente o dinheiro, enfiando-o na calça puída.

— Agradeça-lhe — ouviu Samson sussurrar — e diga-lhe que detive o Grey durante uma hora. Foi o máximo que pude detê-lo. Foi o bastante, não foi?

— Foi o bastante. Apenas o bastante. — A seguir, ouviu-se dizendo: — Da próxima vez detenha-o por mais tempo, ou mande avisar, seu sacana cretino!

— Diga-lhe que o detive o quanto pude. Diga ao Rei que lamento muito. Diga-lhe que lamento de verdade, e que não vai acontecer de novo. Prometo. Escute, Marlowe. Sabe como são as coisas. Às vezes, fica um pouco difícil.

— Direi a ele que lamenta muito.

— Sim, sim, obrigado, obrigado, Marlowe. Invejo-o, Marlowe, ser tão íntimo do Rei. Tem sorte.

Peter Marlowe retornou à choça americana. O Rei lhe agradeceu e ele agradeceu o Rei de novo, e saiu para dentro da noite.

Encontrou um pequeno promontório com vista para a cerca de arame e imaginou-se no seu Spitfire, rasgando os céus sozinho, alto, alto, bem alto no céu, onde tudo é puro e limpo, onde não há gente nojenta... como eu... onde a vida é simples e pode-se falar com Deus, e ser de Deus, sem vergonha.


13

Peter Marlowe estava deitado no seu beliche, num estado de semi-adormeci-mento. À sua volta, os homens acordavam, levantavam-se, iam “descarregar”, preparando-se para os destacamentos de trabalho, indo e vindo da choça. Mike já estava ajeitando o bigode, que media 38 centímetros de ponta a ponta; jurara não cortá-lo até que fosse solto. Barstairs já estava de ponta cabeça, fazendo sua ioga, Phil Mint já estava limpando o nariz, com o jogo de bridge já iniciado. Raylins já treinava seus exercícios de canto, Myner já tocava escalas no seu teclado de madeira, o Capelão Grover já tentava animar o pessoal, e Thomas já xingava o atraso do café.

Acima de Peter Marlowe, Ewart, que dormia no beliche superior, acordou gemendo e pendurou as pernas para o lado de fora do beliche.

— ‘Mahlu para a noite!

— Estava-se debatendo pra cachorro. — Peter Marlowe já fizera esse comentário muitas vezes, pois Ewart sempre tinha o sono inquieto.

— Desculpe.

Ewart sempre dizia “Desculpe”. Saltou da cama, pesadamente. O lugar dele não era em Changi. Era a oito quilômetros de distância, no acampamento civil, onde estavam a mulher e a família dele... onde talvez estivessem. Nunca se permitira nenhum contato entre os campos.

— Vamos queimar a cama depois do banho de chuveiro — disse, bocejando. Era baixo, moreno e exigente.

— Boa idéia.

— Ninguém diria que já o fizemos há três dias. Como dormiu?

— Como sempre. — Mas Peter Marlowe sabia que nada mais era como antes, não depois de ter aceito o dinheiro, não depois do Samson.

A fila impaciente para o café já se estava formando, quando levaram o beliche de ferro para fora da choça. Tiraram a cama de cima, e depois arrancaram os postes de ferro que se encaixavam em fendas da cama de baixo. A seguir, tiraram gravetos e cascas de coco do seu setor debaixo da choça e atearam fogo sob as quatro pernas.

Enquanto as pernas aqueciam, pegaram folhas ardentes e mantiveram-nas sob as barras longitudinais e sob as molas. Não demorou e a terra debaixo da cama estava negra de percevejos.

— Pelo amor de Deus, vocês dois — berrou Phil. — Será que têm que fazer isso antes do café? — Era um homem azedo, de peito-de-pombo, com vivos cabelos vermelhos.

Não deram bola. Phil sempre gritava com eles, e sempre queimavam seus beliches antes do café.

— Deus, Ewart — comentou Peter Marlowe. — Dá para pensar que os sacanas podiam pegar o beliche e sair andando com ele.

— Quase que me jogaram para fora da cama, ontem à noite. Bichos nojentos. — Numa súbita onda de raiva, Ewart começou a bater na infinidade de percevejos.

— Calma, Ewart.

— Não posso controlar-me. Eles me deixam todo arrepiado.

Quando haviam completado a cama, deixaram-na esfriando e foram limpar os colchões. Isso levou meia hora. A seguir, os mosquiteiros. Outra meia hora.

A esta altura, as camas já tinham esfriado o bastante para serem tocadas. Remontaram o beliche e levaram-no de volta, e colocaram-no nas quatro latas (cuidadosamente limpas e cheias de água), certificando-se de que as beiradas das latas não tocassem as pernas de ferro.

— Que dia é hoje, Ewart? — perguntou Peter Marlowe distraidamente, enquanto esperavam pelo café.

— Domingo.

Peter Marlowe estremeceu, recordando aquele outro domingo.

Foi depois que a patrulha japonesa o apanhou. Estava num hospital em Bandung, naquele domingo. Naquele domingo, os japoneses disseram a todos os pacientes prisioneiros de guerra que apanhassem seus pertences e começassem a marchar, porque iriam para um outro hospital. Haviam formado filas, às centenas, no pátio. Somente os oficiais superiores não iriam. Diziam os boatos que estavam sendo enviados para Formosa. 0 General também ficou, ele que era o oficial mais antigo, que abertamente andava pelo campo em comunhão com o Espírito Santo. 0 General era um homem aprumado, de ombros retos, e sua farda estava molhada do cuspe dos conquistadores.

Peter Marlowe lembrava-se de ter carregado seu colchão pelas ruas de Bandung, debaixo de um céu quente, com gente silenciosa que gritava enfileirando-se ao longo das ruas, com vestes multicoloridas. A seguir, jogara fora o colchão. Pesado demais. Depois, caíra ao chão, mas logo se levantara. A seguir, os portões da prisão se abriram e os portões da prisão se fecharam. Havia espaço suficiente para se deitar no pátio. Mas ele, e alguns outros, foram trancados sozinhos em celas minúsculas. Havia correntes na parede e um buraquinho no chão que fazia as vezes de latrina, e em volta da latrina havia fezes acumuladas há anos. A terra era coberta de palha fedida.

Na cela ao lado estava um maníaco, um javanês que enlouquecera e matara três mulheres e duas crianças antes que os holandeses o dominassem. Agora, não eram os holandeses os seus carcereiros. Também eles estavam encarcerados. Durante os dias e as noites inteiras, o maníaco sacudia as correntes e berrava.

Havia um buraquinho na porta de Peter Marlowe. Ele ficava deitado na palha, olhando para os pés lá fora, esperando pela comida, e ouvindo os prisioneiros praguejando e morrendo, pois havia peste.

Esperou para sempre.

E então chegou a paz e a água limpa e não havia mais somente um buraquinho no mundo, mas o céu estava lá em cima, e havia água fresca no seu corpo, lavando a sujeira. Abriu os olhos e viu um rosto gentil, que estava de cabeça para baixo, e havia outro rosto, e ambos estavam cheios de paz, e ele pensou que estava realmente morto.

Mas eram Mac e Larkin. Haviam-no encontrado pouco antes de saírem da prisão para um outro campo. Pensaram que era javanês, como o maníaco da cela ao lado, que ainda uivava e sacudia as correntes, pois também ele gritava em malaio e se parecia com os javaneses...

— Vamos, Peter — disse Ewart de novo. — Está na hora do rancho.

— Ah, obrigado.

Peter Marlowe pegou suas vasilhas de comida.

— Está-se sentindo bem?

— Estou. — Depois de um momento, falou: — É bom estar vivo, não é?

No meio da manhã, as notícias correram Changi inteira. O Comandante japonês ia devolver ao campo a ração padrão de arroz, para comemorar uma grande vitória japonesa no mar. O Comandante dissera que uma força-tarefa americana fora totalmente destruída, que deste modo o avanço nas Filipinas fora detido, que naquele mesmo momento as forças japonesas estavam-se reagrupando para a invasão do Havaí.

Boatos e contraboatos. Opiniões e contra-opiniões.

— Uma besteirada! Inventaram isso para cobrir uma derrota!

— Acho que não. Nunca aumentaram a comida para comemorar uma derrota.

— Escute só o paspalho! Aumento! Estão apenas nos devolvendo algo que nos haviam tirado. Não, meu velho... acredite no que digo. Os malditos japoneses estão recebendo o troco merecido. Pode acreditar em mim!

— Porra, mas o que você sabe que nós não sabemos? Tem um rádio, por acaso?

— Se tivesse, pode apostar a calça que não lhe contaria.

— Por falar nisso, e quanto a Daven?

— Quem?

— O tal que tinha o rádio.

— Ah, sim, lembro-me. Mas não o conhecia. Como é que ele era?

— Um cara legal, é o que dizem. Pena que tenha sido preso.

— Gostaria de descobrir o filho da mãe que dedurou ele. Aposto que era da Força Aérea. Ou um australiano. Aqueles filhos da mãe venderiam as almas por meio vintém!

— Sou australiano, seu inglês filho da mãe.

— Ah, calminha, estava só brincando.

— Tem um senso de humor gozado, seu sacana.

— Como é, vamos com calma, vocês dois. Está quente demais. Quem me empresta um cigarro?

— Tome um baforada.

— Puxa, mas que gosto forte!

— Folhas de mamoeiro. Eu mesmo as curei. Não é ruim, depois que a gente se acostuma.

— Olhe lá!

— Onde?

— Subindo a estrada. Marlowe!

— É aquele? Puta merda! Ouvi dizer que se ligou ao Rei.

— Foi por isso que o mostrei a você, seu idiota! 0 campo inteiro está sabendo. Tem andado dormindo, ou o quê?

— Não o culpo. Faria o mesmo, se tivesse meia chance. Dizem que o Rei tem dinheiro, anéis de ouro e comida para alimentar um batalhão.

— Ouvi dizer que é homossexual. E que Marlowe é sua nova namorada.

— Isso mesmo.

— É, uma ova. 0 Rei não é homossexual, é só um grande vigarista.

— Também acho que não é homossexual. Mas que é vivo, isso é. Filho da mãe miserável.

— Homossexual ou não, queria estar na pele do Marlowe. Ouviu contar que tem uma pilha enorme de dólares? Eu soube que ele e Larkin estavam comprando uns ovos e uma galinha inteira.

— Está maluco. Ninguém tem tanto dinheiro... exceto o Rei. Eles têm as próprias galinhas. Vai ver que uma delas morreu, só isso! Mais uma das suas lorotas!

— O que acha que Marlowe está levando naquela vasilha?

— Comida. O que mais? Não é preciso saber grande coisa para saber que é comida.

Peter Marlowe dirigia-se para o hospital.

Na tigela de comida, levava um peito de galinha, a perna e a coxa. Peter Marlowe e Larkin haviam-na comprado do Coronel Foster por 60 dólares e um pouco de tabaco e a promessa de um ovo fértil da ninhada que Rajah, filho de Sunset, breve fertilizaria através de Nonya. Haviam decidido, com a aprovação de Mac, dar uma outra chance a Nonya, não matá-la como merecia, pois nenhum dos ovos dera pintinho. Quem sabe não era Nonya, dissera Mac, quem sabe o galo, de propriedade do Coronel Foster, não prestava... e todo aquele bater de asas e bicar e montar as galinhas era só pra inglês ver.

Peter Marlowe ficou sentado com Mac, enquanto este comia a galinha.

— Meu Deus, rapaz, já nem me lembro mais quando me senti tão bem ou tão cheio.

— Que bom. Está com ótima aparência, Mac.

Peter Marlowe contou a Mac de onde viera o dinheiro das galinhas, e Mac falou:

— Fez bem em aceitar o dinheiro. Provavelmente o tal Prouty roubou ou fabricou a coisa. Estava errado ao tentar vender uma mercadoria fajuta. Lembre-se, rapaz, Caveat emptor.

— Então, por que será que me sinto tão culpado? Você e Larkin dizem que agi bem. Embora eu ache que Larkin não esteja tão certo quanto você...

— É o comércio, meu rapaz. Larkin é contador, não é um comerciante de verdade. Quanto a mim, conheço as manhas do mundo.

— Você não passa de um pobre plantador de borracha. Que diabo entende de negócios? Passou anos enfiado num seringal!

— É bom que lhe diga — falou Mac, abespinhado — que grande parte do trabalho de um seringueiro se resume em tratar de negócios. Ora, todos os dias é preciso lidar com os hindus ou os chineses... e esta é uma raça de comerciantes. Ora, meu rapaz, inventaram todos os truques que existem.

E assim continuaram a conversa, e Peter Marlowe ficou feliz ao ver Mac reagir de novo a suas gozações. Quase sem notar, passaram a falar em malaio. E então, Peter Marlowe disse, casualmente:

— Conheceis a coisa que é feita de três coisas? — Por medida de segurança, falava do rádio em parábola. Mac olhou ao redor para se certificar de que não estavam sendo ouvidos.

— Em verdade conheço. O que há com ela?

— Tendes certeza agora da natureza da sua doença?

— Não estou certo... mas quase certo. Por que perguntais?

— Porque o vento trouxe um murmúrio que falava de remédios para curar os vários tipos de doença.

O rosto de Mac se iluminou.

— Wah-lah! — exclamou. — Fizestes um velho muito feliz. Dentro de dois dias sairei daqui. E então, levar-me-eis ao murmurador.

— Não, não é possível. Preciso fazê-lo eu mesmo. E depressa.

— Não vos quero exposto ao perigo — disse Mac, pensativo.

— O vento trouxe esperança. Como está escrito no Alcorão, sem esperança o homem não passa de um animal.

— Talvez fosse melhor esperar do que procurar a vossa morte.

— Eu esperaria, mas o conhecimento que busco tenho que saber hoje.

— Por quê? — perguntou Mac, abruptamente, em inglês. — Por que hoje, Peter?

Peter se amaldiçoou por ter caído na armadilha que planejara tão cuidadosamente evitar. Sabia que, se falasse da aldeia a Mac, este ficaria louco de preocupação. Não que Mac pudesse detê-lo, mas sabia que não iria, se Mac e Larkin lhe pedissem para não ir. Que diabo vou fazer agora, pensou? E, então, lembrou-se do conselho do Rei.

— Hoje, amanhã, não importa. Só estava interessado — falou, e jogou seu trunfo. Levantou-se. O truque mais velho do mundo. — Bem, até amanhã, Mac. Quem sabe Larkin e eu apareçamos aqui logo mais à noite.

— Sente-se, meu rapaz. A não ser que tenha o que fazer.

— Não tenho nada que fazer.

Mac passou nervosamente para o malaio.

— Falais a verdade? Aquele “hoje” nada significava? O espírito do meu pai sussurrava que os moços correm riscos que até o demônio evitaria.

— Está escrito, a escassez de anos não implica falta de sabedoria.

Mac examinava Peter Marlowe, com ar indagador. Ele estará aprontando alguma? Junto com o Rei? Bem, pensou, cansado, Peter já está atolado até a tampa no perigo do rádio, e, afinal, trouxe consigo um terço dele, desde Java.

— Pressinto perigo para vós — falou, finalmente.

— Um urso pode tirar o mel do vespão sem perigo. Uma aranha pode procurar em segurança sob as pedras, pois sabe onde e como procurar. — O rosto de Peter Marlowe manteve-se inexpressivo. — Não temais por mim, ó Velho. Procuro apenas sob as pedras. Mac balançou a cabeça, satisfeito.

— Conheceis o meu recipiente?

— Por certo.

— Creio que adoeceu quando uma gota de chuva entrou por um buraco no seu céu, e tocou uma coisa e apodreceu-a como uma árvore caída na selva. A coisa é pequena, como uma cobrinha, fina como uma minhoca, baixa como uma barata. — Gemeu e se esticou. — Minhas costas estão-me matando — falou, em inglês. — Quer ajeitar o travesseiro para mim, meu rapaz? — Quando Peter Marlowe se debruçou, Mac se ergueu e murmurou no seu ouvido. — Um condensador de acoplamento, trezentos microfarádios.

— Está melhor? — perguntou Peter, quando Mac se recostou.

— Muito melhor, meu rapaz. Agora, vá dando o pira. Toda essa conversa fiada me cansou.

— Sabe que se diverte com ela, seu velho sacana.

— Corte o velho, puki ‘mahlu!

— Senderis! — retrucou Peter Marlowe, e saiu para o Sol. Um condensador de acoplamento, 300 microfarádios. Que diabo é um microfarádio?

O vento que vinha da direção da garagem trazia-lhe o cheiro doce do ar carregado de gasolina, óleo e graxa. Acocorou-se ao lado da trilha, sobre a grama, para saborear o aroma. Meu Deus, pensou, como o cheiro da gasolina me traz lembranças. Aviões e Gosport, Farnborough e oito outras pistas de pouso, e Spitfires e Hurricanes.

Mas não vou pensar neles agora, vou pensar no rádio.

Mudou de posição, sentou-se na posição de lótus, pé direito sobre a coxa esquerda, pé esquerdo sobre a coxa direita, mãos no colo, os nós dos dedos se tocando e os polegares se tocando e os dedos apontando para o umbigo. Muitas vezes já se sentara daquele modo. Ajudava-o a pensar, já que, depois que passava a dor inicial, uma quietude invadia o corpo, e a mente voava livre.

Ficou ali sentado, muito quieto, e os homens passavam por ele, quase sem o notar. Não havia nada de estranho em ver-se um homem sentado naquela posição, ao calor do meio-dia, superbronzeado, e de sarongue. Nada de estranho, mesmo.

Agora, sei o que tem que ser obtido. De algum modo. Tem que haver um rádio na aldeia. As aldeias são como as pegas — juntam todo o tipo de coisas; e riu, recordando sua aldeia em Java.

Descobrira-a, andando aos tropeções pela selva, exausto e perdido, mais morto do que vivo, longe dos muitos caminhos que entrecruzavam Java. Correra por muitos quilômetros e a data era 11 de março. As forças da ilha haviam capitulado no dia 8 de março, e o ano era 1942. Durante três dias vagara a esmo pela floresta, comido pelos insetos e rasgado pelos espinhos e chupado pelas sanguessugas e ensopado pelas chuvas. Não vira ninguém, não ouvira ninguém desde que saíra do campo de pouso norte, o aeródromo de caças em Bandung. Abandonara sua esquadrilha, o que restava dela, e abandonara o seu Hurricane. Mas antes de fugir, fizera do seu avião morto — retorcido, destruído por bombas e balas traçantes — uma pira funerária. Um homem não podia deixar de, pelo menos, cremar o amigo.

Quando descobriu a aldeia, era a hora do pôr-do-sol. Os javaneses que o cercavam eram hostis. Não tocaram nele, mas a raiva nos seus rostos era visível. Fitaram-no em silêncio, e ninguém fez um movimento para socorrê-lo.

— Podem dar-me um pouco de comida e água? — pedira. Não houve resposta.

A seguir, vira o poço, fora até ele, acompanhado pelos olhos irados, e saciara a sede. A seguir, sentara-se e pusera-se a esperar.

A aldeia era pequena, bem escondida. Parecia rica. As casas, construídas em volta de uma praça, eram sobre estacas e feitas de bambu e folhas de palmeira. E sob as casas via muitos porcos e galinhas. Próximo de uma casa maior havia um curral, com cinco búfalos-da-India dentro. Aquilo queria dizer que a aldeia era rica.

Finalmente, foi levado à casa do chefe da aldeia. Os calados nativos subiram a escada, mas não entraram na casa. Ficaram sentados na varanda, escutando e esperando.

O chefe era velho, moreno-escuro e mirrado. E hostil. A casa, como todas as outras, constava de um grande aposento dividido em pequenas partes por biombos de folhas de palmeira.

No centro da parte destinada a comer, conversar e pensar, via-se uma privada de porcelana, completa com assento e tampa. Não havia canos ligados ao vaso, que ficava no lugar de honra, sobre um tapete trançado. Diante do vaso, sobre outro tapete, acocorava-se o chefe. Seus olhos eram penetrantes.

— O que quer? Tuan! — E o “Tuan” era uma acusação.

— Só queria um pouco de comida e água, senhor... e quem sabe poder ficar aqui durante algum tempo, até me recuperar um pouco.

— Chama-me de senhor, quando há três dias você e o resto dos brancos nos xingavam e cuspiam em nós?

— Nunca os xinguei. Fui mandado para cá para tentar proteger seu país dos japoneses.

— Eles nos libertaram dos holandeses nojentos! Como libertarão todo o Extremo Oriente dos imperialistas brancos!

— Talvez. Mas acho que lamentarão o dia em que eles chegaram!

— Saia da minha aldeia. Vá com o resto dos imperialistas. Vá antes que eu chame os japoneses em pessoa.

— Está escrito: “Se um estranho vier até vós e pedir-vos hospitalidade, recebei-o para serdes bem-visto aos olhos de Alá.”

O chefe da aldeia olhara para ele, apalermado. Pele moreno-escura, bolero curto, sarongue multicolorido e o pano de cabeça enfeitado na escuridão que aumentava.

— O que sabe do Alcorão e das palavras do Profeta?

— Louvado seja o seu nome — respondera Peter Marlowe. — O Alcorão foi traduzido em inglês há muitos anos por muitos homens. — Estava lutando pela vida. Sabia que, se pudesse ficar na aldeia, poderia conseguir um barco para chegar até a Austrália. Não que soubesse manobrar um barco, mas valia a pena correr o risco. O cativeiro seria a morte.

— Você é um dos Fiéis? — perguntara o chefe, atônito.

Peter Marlowe hesitara. Podia facilmente fingir que era muçulmano. Parte do seu treinamento constara do estudo do Livro do Islã. Os oficiais das forças de Sua Majestade tinham que servir em muitas terras. Oficiais hereditários são treinados em muitas coisas acima e além da educação formal.

Se dissesse que sim, estaria a salvo, pois a maioria dos javaneses era muçulmana.

— Não, não sou um dos Fiéis. — Estava cansado, no fim das suas forças. — Pelo menos, não sei se sou. Ensinaram-me a crer em Deus. Meu pai nos costumava dizer, a mim e a minhas irmãs, que Deus tem muitos nomes. Até mesmo os cristãos dizem que existe uma Santíssima Trindade... que existem partes de Deus.

“Não acho que importe que nome se dê a Deus. Deus não vai incomodar-se de ser chamado de Jesus, ou Alá, ou Buda ou Jeová, ou até mesmo Você!... porque, se é Deus, sabe que somos meros mortais e que não sabemos muito de coisa alguma.

“Acredito que Maomé foi um homem de Deus, um profeta de Deus. Acho que Jesus também foi um homem de Deus, como Maomé se refere a ele no Alcorão, o ‘mais imaculado dos Profetas’. Que Maomé tenha sido o último dos Profetas, como alegava, isso eu não sei. Acho que nós, humanos, não podemos ter certeza de nada que se relacione com Deus.

“Mas não creio que Deus seja um velho com longas barbas brancas que fica sentado num trono dourado lá no alto do céu. Não creio, como Maomé prometeu, que os Fiéis irão para um paraíso onde se deitarão em divas de seda e beberão vinho e terão muitas donzelas ao seu dispor, ou que o Paraíso será um jardim cheio de folhagens verdes, riachos puros e árvores frutíferas. Não creio que os anjos tenham asas nas costas.”

A noite cobriu a aldeia. Um bebê chorou e foi ninado até dormir de novo.

— Um dia, saberei ao certo por que nome devo chamar Deus. O dia em que morrer. — O silêncio pesou. — Acho que seria muito deprimente descobrir que não existe Deus.

O chefe da aldeia fizera sinal a Peter Marlowe para sentar-se.

— Pode ficar. Mas sob condições. Jurará obedecer às nossas leis e ser um de nós. Trabalhará nos arrozais e na aldeia, trabalho de homem. Nem mais nem menos do que qualquer outro homem. Aprenderá a nossa língua e falará somente a nossa língua e usará nossas vestes e tingirá a pele. Sua altura e cor dos olhos gritarão bem alto que é um homem branco, mas quem sabe a tintura, as vestimentas e o idioma possam protegê-lo por algum tempo. Talvez possamos dizer que é meio javanês, meio branco. Não tocará em nenhuma mulher daqui sem permissão. E me obedecerá sem discutir.

— De acordo.

— Mais uma coisa. É perigoso ocultar um inimigo dos japoneses. Precisa saber que, quando chegar a hora de escolher entre você e meu povo, para proteger minha aldeia, escolherei a aldeia.

— Compreendo. Obrigado, senhor.

— Jure pelo seu Deus — uma sombra de sorriso perpassara pelo rosto do velho — jure por Deus que concorda com essas condições, e que as obedecerá.

— Juro por Deus que concordo e que obedecerei. E nada farei para prejudicá-los enquanto aqui estiver.

— Já nos prejudica com sua simples presença, meu filho — replicara o velho.

Depois que Peter Marlowe comera e bebera, o chefe disse:

— Agora, não falará mais inglês. Apenas malaio. Deste minuto em diante. É a única maneira de aprender depressa.

— Está bem. Mas, primeiro, posso perguntar-lhe uma coisa?

— Pode.

— O que significa o vaso? Quero dizer, nato há canos ligados a ele.

— Não significa nada, salvo que me dá prazer ver as caras das minhas visitas e ouvi-las pensar “Que coisa ridícula para se ter como enfeite numa casa.”

E o velho dera imensas gargalhadas e as lágrimas correram-lhe pelas faces, e toda a casa ficara alvoroçada, e as suas mulheres vieram acudi-lo e esfregar-lhe as costas e a barriga, e depois todo o mundo ria também, inclusive Peter Marlowe.

Peter Marlowe sorriu de novo, recordando. Aquele sim era um homem! Tuam Abu. Mas hoje não vou pensar mais na minha aldeia, ou meus amigos na aldeia, ou em N’ai, a filha da aldeia que me deram para tocar. Hoje vou pensar no rádio, e em como vou conseguir o rádio, e aguçar minhas faculdades mentais para a aldeia, logo mais.

Soltou-se da posição de lótus, depois esperou pacientemente até que o sangue voltasse a correr novamente em suas veias. Ao derredor, sentia o doce cheiro da gasolina, trazido pela brisa, que também trazia o som de vozes cantando um hino religioso. Vinham do teatro ao ar livre, que hoje era a Igreja Anglicana. Na semana anterior fora uma Igreja Católica, na anterior a Igreja Adventista do Sétimo Dia, e ainda na anterior uma outra igreja qualquer. Eram tolerantes, em Changi.

Havia muitos paroquianos lotando as cadeiras toscas. Alguns estavam lá por fé, outros por falta de fé. Alguns estavam lá para ter alguma coisa para fazer, outros porque não havia mais nada para fazer. Hoje, o serviço religioso estava sendo conduzido pelo Capelão Drinkwater.

A voz do Capelão Drinkwater era melodiosa e sonora. A sinceridade jorrava dele e as palavras da Bíblia ganhavam vida, e davam esperança, e faziam a gente esquecer que Changi era a realidade, e que a barriga da gente estava vazia.

Hipócrita nojento, pensou Peter Marlowe, desprezando Drinkwater, recordando de novo...

— Ei, Peter — Dave Daven murmurara, naquele dia — olhe lá.

Peter Marlowe vira Drinkwater conversando com um cabo mirrado da RAF chamado Blodger. O beliche de Drinkwater ficava num lugar privilegiado perto da porta da Choça 16.

— Aquele deve ser o novo ordenança dele — dissera Daven. Até mesmo no campo a tradição secular era mantida.

— O que aconteceu ao outro?

— Lyles? Disseram-me que estava no hospital. Enfermaria Seis. Peter Marlowe se pusera de pé.

— Drinkwater pode fazer o que quiser com o pessoal do Exército, mas não vai pegar um dos meus.

Caminhara os quatro beliches que os separavam.

— Blodger!

— O que quer, Marlowe? — indagara Drinkwater. Peter Marlowe o ignorara.

— O que está fazendo aqui, Blodger?

— Vim só ver o capelão, senhor. Desculpe, senhor — falara, adiantando-se. — Não consigo vê-lo muito bem.

— Capitão-Aviador Marlowe.

— Ah. Como está, senhor? Sou o novo ordenança do capelão, senhor.

— Suma-se daqui, e antes de pegar um emprego de ordenança, venha primeiro falar comigo!

— Mas, senhor...

— Quem pensa que é, Marlowe? — falara Drinkwater, bruscamente. — Não tem autoridade sobre ele.

— Ele não vai ser seu ordenança.

— Por quê?

— Porque eu disse que não. Pode retirar-se, Blodger.

— Mas, senhor, eu vou cuidar do capelão direitinho, vou mesmo. Trabalharei muito...

— Onde arranjou este cigarro?

— Ora, escute aqui, Marlowe... — começara Drinkwater. Peter Marlowe virara-se violentamente para ele.

— Cale a boca! — Os outros homens da choça pararam o que estavam fazendo e começaram a se aproximar. — Onde arranjou este cigarro, Blodger?

— Foi o capelão que me deu — choramingara Blodger, recuando, assustado com o tom de voz de Marlowe. — Dei a ele o meu ovo. Ele me prometeu fumo em troca do meu ovo diário. Eu quero o fumo, ele pode ficar com o ovo.

— Não há mal nisso — vociferara Drinkwater. — Não há mal em dar um pouco de tabaco para o rapaz. Foi ele que me pediu, em troca de um ovo.

— Já visitou recentemente a Enfermaria Seis? — perguntara Peter Marlowe. — Ajudou-os a admitirem o Lyles? O seu último ordenança? Não tem mais visão, agora.

— Não é culpa minha. Não fiz nada com ele.

— Quantos dos ovos dele você comeu?

— Nenhum. Não comi nenhum.

Peter Marlowe agarrara uma Bíblia e a enfiara nas mãos de Drinkwater.

— Jure sobre a Bíblia, então acreditarei em você. Jure, ou por Deus que acabo com você!

— Juro! — gemera Drinkwater.

— Seu sacana mentiroso — gritara Daven. — Vi você tirar os ovos de Lyles. Todos nós vimos.

Peter Marlowe agarrara a vasilha de comida de Drinkwater, achando o ovo. A seguir o quebrou de encontro ao rosto de Drinkwater, enfiando-lhe a casca boca adentro. Drinkwater desmaiou.

Peter Marlowe jogara-lhe uma tigela de água no rosto, e ele voltara a si.

— Deus o abençoe, Marlowe — murmurara. — Deus o abençoe por ter-me mostrado como estava errado. — Ajoelhara-se ao lado do beliche. — Ó, Deus, perdoe este miserável pecador. Perdoe os meus pecados...

Agora, neste domingo ensolarado, Peter Marlowe escutava Drinkwater terminar o seu sermão. Há muito que Blodger já fora para a Enfermaria Seis, mas Peter Marlowe jamais poderia provar se fora para lá com a ajuda de Drinkwater. Este ainda conseguia muitos ovos, de alguma fonte.

O estômago de Peter Marlowe avisou-lhe de que era hora do almoço.

Quando voltou para sua choça, os homens já estavam esperando, impacientes, vasilha na mão. O extra não ia sair hoje. Ou amanhã, segundo os boatos. Ewart já fora verificar na cozinha. O de sempre. Isso já servia, mas por que cargas-d’água não se apressavam?

Grey estava sentado na beirada de sua cama.

— Ora, Marlowe! — exclamou — está comendo conosco, atualmente? Mas que surpresa agradável.

— É, Grey, ainda estou comendo aqui. Por que não vai brincar de bandido e ladrão? Sabe, provocar alguém que não se possa defender!

— Nem pensar, meu velho. Estou de olho em caça grande.

— Muito boa sorte. — Peter Marlowe pegou suas vasilhas. Do lado oposto, Brough, peruando um jogo de bridge, piscou o olho.

— Tiras! — sussurrou. — São todos iguais.

— É isso aí.

Veio para junto de Peter Marlowe.

— Ouvi dizer que arranjou um novo amigão.

— É verdade. — Peter Marlowe fechou a guarda.

— Ê um país livre. Mas, às vezes, um cara tem que se arriscar e dizer umas verdades.

— É?

— Sim. Companhias perigosas às vezes podem causar problemas.

— Isso e’ verdade em qualquer país.

— Quem sabe — falou Brough, abrindo um sorriso — quem sabe gostaria de tomar uma xícara de café comigo e bater um papo.

— Gostaria, sim. Que tal amanhã? Depois do rancho... — Involuntariamente, usou a palavra do Rei. Mas não se corrigiu. Sorriu, e Brough devolveu o sorriso.

— A bóia chegou! — gritou Ewart.

— Graças a Deus — gemeu Phil. — Quer fazer uma troca, Peter? 0 seu arroz pelo meu ensopado?

— Pode esperar sentado!

— Não custa nada tentar!

Peter Marlowe saiu da choça e entrou na fila da comida. Raylins estava distribuindo o arroz. Ótimo, pensou, não há com que se preocupar hoje.

Raylins era de meia-idade, e calvo. Fora gerente-assistente do Banco de Cingapura e, como Ewart, pertencia ao Regimento Malaio. Em tempos de paz, era formidável pertencer a essa organização. Muitas festas, críquete, pólo. Era preciso pertencer ao Regimento para ser alguém. Raylins também era encarregado, do fundo de refeições, e os banquetes eram a sua especialidade. Quando puseram uma arma em suas mãos, disseram-lhe que estava em guerra, ordenaram-lhe que levasse o seu pelotão para o outro lado do elevado e lutasse contra os japoneses, ele olhara para o Coronel e começara a rir. O serviço dele era contas bancárias. Mas aquilo em nada o ajudara, e tivera que pegar 20 homens, tão destreinados quanto ele próprio, e marchar estrada acima. Marchara, e de repente os seus 20 homens eram três. Treze haviam sido mortos instantaneamente na emboscada. Quatro estavam apenas feridos, deitados no meio da estrada, aos berros. A mão de um deles fora arrancada, e ele fitava o coto com ar apalermado, segurando o sangue na mão que sobrara, tentando derramá-lo de volta no braço. Outro ria, ria, enquanto tentava enfiar as entranhas de volta no buraco aberto.

Raylins ficara olhando idiotamente para o tanque japonês que descia a estrada, com os canhões disparando. Depois, o tanque já tinha passado, e os quatro eram apenas manchas no asfalto. Olhara para os três homens que sobraram — Ewart era um deles. Devolveram-lhe o olhar. E então estavam todos correndo, correndo apavorados para dentro da selva. E depois se perderam. E depois ele ficara sozinho, sozinho numa noite de horror, cheia de sanguessugas e ruídos, e a única coisa que o salvou da insanidade foi uma criança malaia, que o encontrou falando palavras sem nexo, e o levara até uma aldeia. Ele se esgueirara para dentro de um prédio onde estavam os restos de um exército. No dia seguinte, os japoneses fuzilaram dois em cada 10. Ele e mais alguns outros continuaram no prédio. Mais tarde, foram postos num caminhão e mandados para um campo, e ele se achara entre sua gente. Mas jamais pôde esquecer seu amigo Charles, aquele com os intestinos à mostra.

Raylins passava a maior parte do tempo numa névoa. Não conseguia entender por que não estava no seu banco, mexendo com seus números, mímeros limpos e precisos, e por que estava num campo, em que se destacava numa coisa. Podia dividir uma quantidade ignorada de arroz em tantas partes exatamente iguais. Quase até o último grão.

— Oh, Peter — falou Raylins, dando-lhe sua porção — conhecia Charles, não conhecia?

— Conhecia, sim, um bom sujeito.

Peter Marlowe não o conhecia. Nenhum deles o conhecia.

— Acha que ele conseguiu enfiar tudo de volta? — perguntou Raylins.

— Claro que sim.

Peter Marlowe afastou-se com sua comida, enquanto Raylins se virava para o próximo da fila.

— Ah, Capelão Grover, que dia quente, não? Conhecia Charles, não é?

— Sim — respondeu o capelão, olhos fitos na medida do arroz. — Estou certo de que conseguiu, Raylins.

— Que bom, que bom ouvir isso. Que lugar estranho para achar as suas entranhas, do lado de fora, sem mais nem menos.

A mente de Raylins vagueou até o seu banco fresquinho e até a mulher, que veria logo mais à noite, quando saísse do banco, no seu bangalozinho jeitoso, perto do hipódromo. Deixe ver, pensou, hoje à noite teremos cordeiro para o jantar. Cordeiro! E uma cerveja fresca e gostosa. Depois, vou brincar com a Penelope, enquanto a patroa fica na varanda, costurando.

— Ah — falou, feliz, reconhecendo Ewart. — Quer jantar com a gente hoje à noite, Ewart, meu velho? Não quer trazer a patroa?

Ewart resmungou entredentes. Pegou o arroz, o ensopac1 :> e foi-se afastando.

— Calma, Ewart — aconselhou Peter Marlowe.

— Calma, uma ova! Como pode saber o que sinto? Juro por Deus que ainda vou matá-lo.

— Não se preocupe...

— Preocupar! Estão mortas. A mulher e a filha dele estão mortas. Eu as vi mortas. Mas minha mulher e meus dois filhos? Onde estão, hem? Onde? Mortos em algum lugar, também. Têm que estar, depois de todo esse tempo. Mortos!

— Estão no acampamento civil...

— E como você pode saber, meu Deus? Você não sabe, eu não sei, e ele fica só a oito quilômetros daqui. Estão mortos! Ó, meu Deus! — E Ewart sentou-se e começou a chorar, derrubando o arroz e o ensopado no chão. Peter Marlowe apanhou do chão o arroz e as folhas que boiavam no ensopado, e devolveu-os ao prato de Ewart.

— Na semana que vem vão deixá-lo escrever uma carta. Ou quem sabe, deixarão você ir visitá-los. O Comandante do Campo está sempre pedindo uma lista das mulheres e crianças. Não se preocupe, estão bem. — Peter Marlowe deixou-o chorando com a cara enfiada no arroz, pegou sua própria tigela e foi para a choça.

— Alô, camarada — disse Larkin. — Foi ver o Mac?

— Fui. Está muito bem. Já começou a se irritar, quando se fala na idade dele.

— Vai ser bom ter o velho Mac de volta. — Larkin enfiou a mão sob o colchão e tirou de lá uma vasilha de comida sobressalente. — Tenho uma surpresa! — Destampou a vasilha e revelou um quadrado de cinco centímetros de uma substância castanha, semelhante a uma massa.

— Por tudo que há de mais sagrado! Blachang! Onde foi que arranjou?

— Surripiei-o, é claro.

— O senhor é um gênio, Coronel. Gozado que não senti o cheiro. — Peter Marlowe se inclinou e tirou um pedacinho do blachang. — Isto vai-nos durar umas duas semanas.

Blachang era uma iguaria nativa, fácil de fazer. Na época apropriada, ia-se para a praia e pegava-se com rede as inúmeras criaturinhas do mar que pairavam nas ondas. Depois, era só enterrá-las numa cova forrada de algas marinhas, cobri-las com mais algas marinhas e esquecê-las por dois meses.

Quando se abria a cova, os peixes tinham-se decomposto e formado uma pasta fedorenta. Só o fedor dela quase lhe arrancava fora a cabeça, e destruía o seu olfato por uma semana. Prendendo a respiração, você tirava a pasta da cova e fritava-a. Mas tinha que ficar contra o vento, senão sufocava. Quando esfriava, era só dar-lhe a forma de blocos, e vendê-la por uma fortuna. Antes da guerra, 10 centavos por um cubo. Agora, talvez 10 dólares por uma lasca. Por que uma iguaria? Era proteína pura. E uma fraçãozinha dela dava gosto a uma tigela inteira de arroz. Claro que era fácil pegar desinteria com ela. Mas se tivesse sido envelhecida da maneira correta, e cozida da maneira certa, e não tivesse sido tocada pelas moscas, não tinha perigo.

Mas a gente nunca perguntava. Simplesmente dizia: “O senhor é um gênio, Coronel”, punha um pouco no prato de arroz e saboreava.

— Vamos levar um pouco para o Mac, hem?

— Boa idéia. Mas ele na certa vai reclamar de que não está bem cozido.

— O velho Mac se queixaria se estivesse perfeitamente cozido... — Larkin se interrompeu. — Ei, Johnny — chamou um homem alto que ia passando, puxando pela trela um vira-lata esquelético. — Quer um pouco de blachang, meu camarada?

— Se quero?

Deram-lhe uma porção numa folha de bananeira, falaram do tempo e perguntaram como ia o cachorro. John Hawkins amava seu cão acima de todas as coisas. Dividia com ele sua comida — é espantoso ver as coisas que um cachorro consegue comer — e o animal dormia no seu beliche. Rover era um bom amigo. Fazia um homem sentir-se civilizado.

— Querem jogar um pouco de bridge, logo mais? Trarei um quarto parceiro — disse Hawkins.

— Hoje à noite não posso — falou Peter Marlowe, aleijando moscas.

— Posso convidar o Gordon, da choça vizinha — sugeriu Larkin.

— Ótimo. Depois do jantar?

— Certo, até lá.

— Obrigado pelo blachang — disse Hawkins, enquanto ia embora, com Rover latindo contente a seu lado.

— Porra, como ele consegue o bastante para se alimentar e àquele vira-lata, é uma coisa que não entendo — falou Larkin. — Ou como consegue evitar que o cão avance na comida de outro cara qualquer!

Peter Marlowe mexeu o arroz, misturando cuidadosamente o blachang. Tinha muita vontade de partilhar com Larkin o segredo da viagem de hoje à noite. Mas sabia que era perigoso demais.


14

Sair do campo era bastante simples. Só uma corrida curta até uma parte ensombreada da cerca de seis voltas de arame; em seguida, atravessá-la com facilidade, e depois uma corrida rápida para a selva. Quando pararam para tomar fôlego, Peter Marlowe desejou estar de volta em segurança, conversando com Mac, Larkin, ou até mesmo Grey.

Todo esse tempo, disse para si mesmo, estive querendo estar aqui fora, e agora que estou, morro de medo.

Era uma coisa estranha... achar-se do lado de fora, olhando para o lado de dentro. De onde estavam, podiam ver o campo. A choça americana ficava a uns 100 metros de distância. Havia homens andando para cima e para baixo. Hawkins levava o cachorro para passear. Um guarda coreano patrulhava o campo. As luzes estavam desligadas nas diversas choças, e a verificação noturna já fora feita há muito tempo. E, no entanto, o campo estava aceso, com os insones. Era sempre assim.

— Vamos indo, Peter — sussurrou o Rei, e eles se aprofundaram ainda mais na vegetação.

O planejamento fora bom. Até agora. Quando ele chegara na choça, o Rei já estava preparado.

— É preciso ter ferramentas para fazer um serviço direito — dissera, mostrando-lhe um par de botas japonesas, com solas de crepe e couro macio e silencioso, bem engraxadas, e o “traje”: uma calça chinesa preta e uma blusa curta.

Somente Dino estava por dentro da viagem. Fizera os dois embrulhos e largara-os, secretamente, no ponto onde cruzariam a cerca. Depois voltara, e só então Peter Marlowe e o Rei saíram andando, despreocupadamente, dizendo que iam jogar bridge com Larkin e outro australiano. Tiveram que esperar mais meia hora angustiante antes de o caminho estar livre para correrem para o fosso ao lado da cerca, mudarem de roupa e cobrirem de lama o rosto e as mãos. Mais um quarto de hora antes de poderem correr para a cerca, sem serem observados. Depois que haviam passado, e estavam em posição, Dino viera buscar as roupas que deixaram para trás.

A selva à noite. Sinistra. Mas Peter Marlowe sentia-se em casa. Era igualzinho a Java, aos arredores de sua aldeia, portanto seu nervosismo diminuiu um pouco.

O Rei mostrava o caminho, sem hesitar. Já fizera a viagem cinco vezes, anteriormente. Caminhava com todos os sentidos alertas. Tinha-se que passar por um guarda. Ele não tinha uma trajetória definida, apenas patrulhava ao acaso. Mas o Rei sabia que, na maioria das vezes, o guarda encontrava uma clareira qualquer e dormia.

Depois de um período de ansiedade, no qual cada folha ou graveto podre parecia anunciar aos gritos sua passagem, e cada galho vivo parecia querer detê-los, chegaram à trilha. Haviam passado pelo guarda. A trilha levava ao mar. E depois, à aldeia.

Cruzaram a trilha e começaram a circular. Acima do pesado teto de folhagens, uma meia-lua estava espetada no céu sem nuvens. A quantidade certa de luz para dar-lhes segurança.

Liberdade. Nada de cercas de arame e nada de gente. Privacidade, finalmente. E aquilo tornou-se um repentino pesadelo para Peter Marlowe.

— O que houve, Peter? — sussurrou o Rei, sentindo que havia algo errado.

— Nada... é só que... bem, é um choque estar do lado de fora.

— Logo se acostuma. — O Rei olhou para o relógio. — Temos cerca de um quilômetro e meio à nossa frente. Estamos adiantados, portanto é melhor esperarmos.

Descobriu um local com muitas trepadeiras retorcidas e árvores caídas, e encostou-se a elas.

— Podemos ficar esperando aqui.

Esperaram e escutaram a floresta. Grilos, sapos, chilreios repentinos. Silêncios repentinos. O rugido de alguma fera desconhecida.

— Um cigarro viria a calhar.

— Para mim, também.

— Mas não aqui. — A mente do Rei estava funcionando. Metade dela estava atenta aos ruídos da selva. A outra metade, a todo o vapor, repassava a estratégia do futuro negócio. É, falou consigo mesmo, é um bom plano.

Verificou a hora. O ponteiro dos minutos andava devagar. Mas dava-lhe mais tempo para planejar. Quanto mais se planeja antes de uma transação, melhor. Nenhum deslize, e um lucro maior. Graças a Deus pelos lucros! O cara que inventou os negócios é que foi um verdadeiro gênio. Compre por pouco e venda por muito. Use a cabeça. Arrisque-se, e o dinheiro vai entrar aos borbotões. E com dinheiro, tudo é possível. Principalmente, o poder.

Quando sair daqui, pensou o Rei, vou ser milionário. Vou ganhar tanto dinheiro que vai fazer o Forte Knox parecer um cofrinho de criança. Vou criar uma organização, cheia de tipos leais, mas carneiros. Os “crânios”, sempre se pode comprar. E uma vez que se saiba o preço de um homem, pode-se usá-lo ou abusá-lo, à vontade. É isso que faz o mundo girar. Existe a elite, e o resto. Eu sou a elite. E vou continuar sendo.

Nada mais de ser abusado, ou empurrado de cidade em cidade. Isso já passou. Eu era apenas um garoto. Amarrado ao Pai — amarrado a um homem que servia mesas, ou enchia o tanque dos carros de gasolina, ou fazia entrega de catálogos telefônicos, ou transportava lixo, ou choramingava uma esmola para comprar uma garrafa. E depois, limpar a sujeira. Nunca mais. Agora, os outros vão limpar a minha sujeira.

Só o que preciso é de grana.

“Todos os homens sã”o criados iguais... certos direitos inalienáveis.”

Graças a Deus pelos Estados Unidos, o Rei disse para si mesmo, pela bilionésima vez. Graças a Deus nasci americano.

— É a terra de Deus — falou, quase que consigo mesmo.

— Como?

— Os Estados Unidos.

— Por que?

— É o único lugar no mundo onde se pode comprar qualquer coisa, onde se tem uma chance de vencer. Isso é importante, se você não nasceu em berço de ouro, Peter, e muito poucos nasceram. Mas se não nasceu, e quer trabalhar, ora, há tantas, mas tantas oportunidades, que é de deixar um cara tonto. E se um cara não trabalha e não se ajuda, porra, então não presta, e não é americano, e...

— Escute! — avisou Peter Marlowe, subitamente alerta. De longe vinha o leve som de passos que se aproximavam.

— É um homem — sussurrou Peter Marlowe, enfiando-se cada vez mais para dentro da proteção das folhagens. — Um nativo.

— Porra, como é que sabe?

— Está usando tamancos nativos. Diria que é velho. Arrasta os pés. Escute, dá para ouvir agora sua respiração.

Momentos mais tarde o nativo apareceu em meio ao crepúsculo, e caminhou pela trilha, despreocupado. Era um velho, e trazia aos ombros um porco selvagem morto. Observaram-no passar e sumir.

— Ele nos notou — disse Peter Marlowe, preocupado.

— Notou, uma ova.

— Não, estou certo que notou. Talvez pensasse que era um guarda japonês, mas eu estava de olho nos pés dele. Sempre se pode dizer pelos pés, se você foi notado: ele deu uma paradinha no ritmo de suas passadas.

— Quem sabe era uma fenda no caminho, ou um graveto. Peter Marlowe sacudiu a cabeça.

Amigo ou inimigo?, pensou o Rei, febrilmente. Se for da aldeia, então tudo bem. A aldeia inteira sabia quando o Rei vinha, pois recebiam sua parte de Cheng San, o seu contato. Não o reconheci, o que não é de surpreender, pois muitos dos nativos estavam na pescaria noturna, das outras vezes em que fui à aldeia. O que fazer?

— Vamos esperar, depois fazer um rápido reconhecimento. Se ele for hostil, irá para a aldeia, e se apresentará ao chefe. O chefe fará um sinal para nos arrancarmos.

— Acha que pode confiar neles?

— Eu posso, Peter. — Recomeçou a andar. — Fique uns vinte metros atrás de mim.

Encontraram a aldeia facilmente. Quase facilmente demais, pensou Peter Marlowe, desconfiado. Do seu posto na elevação, examinaram-na. Alguns ma-laios acocorados fumavam numa varanda. Um porco grunhia aqui e ali. Em volta da aldeia havia coqueiros, para além deles, o mar fosforescente. Alguns barcos, velas arriadas, redes imóveis. Nenhuma sensação de perigo.

— Para mim está parecendo O.K. — murmurou Peter Marlowe.

O Rei cutucou-o, abruptamente. Na varanda da cabana do chefe, estavam o chefe e o homem que haviam visto. Os dois malaios estavam num papo animado, depois uma risada distante quebrou o silêncio, e o homem desceu a escada.

Ouviram-no gritar. Dentro de um momento, apareceu uma mulher correndo. Ela tirou o porco dos ombros dele, levou-o até o braseiro e colocou-o no espeto. Logo apareceram outros malaios, brincando, rindo, reunindo-se.

— Lá está ele! — exclamou o Rei.

Vindo da direção da praia, via-se um chinês alto. Atrás dele, um nativo amava as velas do pequeno barco pesqueiro. Reuniu-se ao chefe, trocaram breves cumprimentos, e acocoraram-se para esperar.

— Tudo bem — disse o Rei, rindo. — Lá vamos nós.

Levantou-se e, mantendo-se nas sombras, deu a volta cautelosamente. Nos fundos da choça do chefe, uma escada de mão levava à varanda, bem acima do solo. O Rei subiu por ela, Peter Marlowe logo atrás. Quase que imediatamente, ouviram o barulho da escada sendo retirada.

— Tabe — disse o Rei, sorrindo, quando Cheng San e Sutra, o chefe, entraram.

— Que bom vê-lo, tuan — disse o chefe, procurando palavras inglesas. -Quer makan... comer, sim? — O sorriso dele deixava à mostra dentes manchados de noz-de-areca.

— Trinta Kassih... obrigado. — O Rei estendeu a mão para Cheng San. — Como tem passado, Cheng San?

— Eu bom tempo todo. Sabe, eu... — Cheng San buscou a palavra, e então ela apareceu. — Aqui, quem sabe tempo bom também.

O Rei indicou Peter Marlowe.

— Ichi-bon amigo. Peter, diga-lhes alguma coisa, sabe como é, saudações e essa coisa toda. Ao trabalho, rapaz. — Sorriu, puxou um maço de Kooas e ofereceu ciganos a todos.

— Meu amigo e eu vos agradecemos a acolhida — começou Peter Marlowe. — Apreciamos a gentileza do vosso convite para comermos convosco, sabendo da escassez que há atualmente. Certamente apenas uma cobra da selva recusar-se-ia a aceitar a generosidade de vossa oferta.

Tanto Cheng San quanto o chefe abriram enormes sorrisos.

— Wah-lah — disse Cheng San. — Vai ser bom poder dizer através de vós ao meu amigo Rajá todas as palavras que estão na minha boca miserável. Muitas vezes tive vontade de dizer coisas, mas nem eu nem meu bom amigo Sutra conseguíamos achar as palavras para dizê-las. Diga ao Rajá que é um homem sábio e astuto de encontrar um intérprete tão fluente.

— Ele disse que sou um bom porta-voz — falou Peter Marlowe satisfeito, agora sentindo-se calmo e seguro. — E está contente que agora pode mandar brasa direto.

— Pelo amor de Deus, continue falando o seu inglês bem-educado. Esse papo de porta-voz está fazendo você parecer um vagabundo.

— Oh, e tenho estudado Marx com muita assiduidade — disse Peter Marlowe, vexado.

— Pois então pare.

— Ele também o chamou de Rajá. Vai ser o seu apelido daqui pra frente. Quero dizer, “de agora em diante”.

— Vá à merda, Peter!

— Vá tomar no..., irmão!

— Vamos, Peter, não temos muito tempo. Diga isso ao Cheng San. Quanto à nossa transação. Vou...

— Ainda não pode falar de negócios, meu velho — disse Peter Marlowe, chocado. — Vai estragar tudo. Primeiro, teremos que tomar café, depois comer alguma coisa, e só então começar.

— Diga-lhes agora.

— Se o fizer, ficarão muito ofendidos. Ofendidíssimos. Escute o que lhe digo.

O Rei pensou por um momento. Bem, disse consigo mesmo, se você compra um “crânio”, não é bom negócio não usá-lo... salvo se você tiver um palpite. É aí que o negociante esperto se faz ou se destrói... quando vai pelo seu palpite, e não pelo “crânio”. Mas, no presente caso, não tinha nenhum palpite, portanto concordou.

— Tudo bem. Faça como quiser.

Ficou fumando seu cigarro, escutando Peter Marlowe falar com eles. Examinava Cheng San de banda. Suas roupas eram melhores do que da última vez. Usava um anel novo que parecia uma safira, talvez cinco quilates. Seu rosto limpo, imberbe, era da cor do mel, e seu cabelo, bem cuidado. É, o Cheng San estava-se virando, numa boa. Quanto ao velho Sutra, não se está saindo tão bem. O sarongue dele está velho, desfiado na bainha. Nenhuma jóia. Da vez passada, tinha um anel de ouro. Agora, não tem mais, e a marca deixada pelo anel era quase imperceptível, o que significava que não o havia tirado só para a transação desta noite.

Ouviu as mulheres no outro canto da choça tagarelando baixinho, e do lado de fora, a quietude da aldeia à noite. Pela janela sem vidros chegava o cheiro do porco assado. Isso significava que a aldeia estava realmente necessitada de Cheng San — o seu atravessador no mercado negro para o peixe que a aldeia devia vender diretamente para os japoneses — e presenteava-o com o porco. Ou quem sabe o velho que pegara o porco selvagem estava dando uma festa para os amigos. Mas o pessoal em volta do fogo estava esperando ansiosamente, tão ansiosamente quanto nós. Claro que estão com fome. 0 que quer dizer que as coisas andam brabas em Cingapura. A aldeia devia ter um bom estoque de comida, bebida e tudo o mais. Cheng San não devia estar fazendo um bom trabalho em contrabandear o peixe deles para os mercados. Quem sabe os nipônicos já estavam de olho nele. Quem sabe não vai durar muito neste mundo!

Então, quem sabe precisa da aldeia mais do que a aldeia precisa dele. E se está ostentando para eles: roupas novas e jóias. Quem sabe Sutra já está de saco cheio com os negócios ruins e está pronto para trocá-lo por outro sujeito que lide com o mercado negro.

— Ei, Peter — falou. — Pergunte a Cheng San como vai o comércio de peixes em Cingapura.

Peter Marlowe traduziu a pergunta.

— Disse que o comércio vai bem. A escassez de alimentos é de tal ordem que ele consegue obter os melhores preços da ilha. Mas disse que os japoneses estão severíssimos. Está ficando mais difícil a cada dia comerciar. E infringir as leis do mercado está-se tomando cada vez mais caro.

A-rá! Peguei-o. O Rei ficou exultante. Então Cheng não viera apenas por causa do meu negócio! É o peixe e a aldeia. Como posso tirar vantagem disso? Aposto que Cheng San está tendo dificuldades em entregar a mercadoria. Quem sabe os japoneses interceptaram alguns barcos, e engrossaram. O velho Sutra não é nenhum tolo. Sem dinheiro não há negócio, e Cheng San sabe disso. Não faz transação, não faz mais negócio, e o velho Sutra vai vender para outro. Sim, senhor. Portanto, o Rei sabia que podia explorar, e mentalmente subiu seu preço inicial.

E então a comida chegou. Batata-doce assada, berinjela frita, água de coco, fatias grossas de porco assado, cheias de óleo. Bananas. Mamões. O Rei notou que não havia o “repolho do milionário” ou o cordeiro ou a carne de boi ou os doces que os malaios tanto apreciavam. É, as coisas estavam mesmo difíceis.

A comida estava sendo servida pela primeira mulher do chefe, uma velha enrugada. Era ajudada por uma das filhas dele, Sulina. Bonita, macia, curvilínea, pele cor de mel. Cheirosa. Usando um sarongue novo, em homenagem aos visitantes.

— Tabe, Sam — disse o Rei para Sulina, piscando o olho.

A garota estourou na risada, e tentou disfarçar timidamente seu embaraço.

— Sam? — disse Peter Marlowe, fazendo careta.

— Claro — respondeu o Rei, secamente. — Ela me lembra o meu irmão.

— Irmão?

— Gozação. Não tenho irmão nenhum.

— Ah! — Peter Marlowe pensou por um momento, depois perguntou: — Por que Sam?

— O velhote não me quis apresentar — disse o Rei, sem olhar para a garota — então eu lhe dei um nome. Acho que combina com ela.

Sutra sabia que o que eles estavam dizendo tinha algo a ver com a filha. Sabia que errara deixando-a entrar ali. Talvez, em outra época, ele tivesse gostado que um dos tuan-tuan a notasse, e a levasse para o seu bangalô, para ser sua amante por um ou dois anos. Então, ela voltaria para a aldeia conhecendo bem os homens, com um belo dote, e seria fácil para ele achar um bom marido para a filha. Assim é que teria sido, no passado. Mas agora, o romance significava apenas encontros casuais no meio do mato, e Sutra não queria isso para a filha, embora estivesse na hora dela tornar-se mulher.

Inclinou-se para a frente e ofereceu a Peter Marlowe um pedaço especial de porco.

— Quem sabe isto aguçaria o vosso apetite?

— Agradeço-vos.

— Pode ir, Sulina.

Peter Marlowe percebeu o tom de decisão na voz do velho, e notou a sombra de tristeza que toldou o rosto da garota. Esta inclinou-se, porém, e saiu. A velha mulher continuou lá para servir os homens.

Sulina, pensou Peter Marlowe, sentindo uma ânsia há muito esquecida. Não é tão bonita quanto N’ai, que era a perfeição, mas é da mesma idade, e bonita. Uns 14 anos, e no ponto. Meu Deus, bem no ponto.

— A comida não vos agrada? — perguntou Cheng San, divertindo-se com a atração óbvia de Peter Marlowe pela jovem. Talvez pudesse tirar proveito disso.

— Pelo contrário. Talvez seja boa demais, pois meu paladar já se desacostumou à boa comida, comendo como comemos. — Peter Marlowe lembrou-se que, para salvaguardar o bom gosto, os javaneses só falavam em parábolas sobre as mulheres. Virou-se para Sutra. — Há muito tempo, um sábio guru disse que há muitas espécies de alimento. — Alguns para o estômago, outros para os olhos, outros para o espírito. Hoje, tive alimentos para o estômago. E as vossas palavras, e as do Tuan Cheng San foram alimentos para o espirito. Estou repleto. Mesmo assim, ofereceram-me... ofereceram-nos... alimentos para os olhos. Como agradecer-vos por vossa hospitalidade?

O rosto de Sutra se enrugou. Muito bem dito. Assim, aceitou o elogio e disse, simplesmente:

— Um ditado sábio. Talvez, futuramente, os olhos possam ter fome de novo. Precisamos discutir a sabedoria dos antigos numa outra oportunidade.

— Que cara de convencido é essa, Peter?

— Não estou com cara de convencido, apenas satisfeito comigo mesmo. Estava dizendo a ele que achávamos a sua garota bonita.

— E é! Uma uva! Que tal convidá-la para tomar café conosco?

— Pelo amor de Deus. — Peter tentou manter a voz calma. — Você não pode simplesmente marcar um programa, desse jeito. É preciso levar tempo, ir aos poucos.

— Porra, este não é o jeito americano. Você conhece uma dona, gosta dela e ela de você, e vão para a cama.

— Você não tem finura.

— Pode ser. Mas tenho mulher às pampas.

Eles riram, e Cheng San perguntou qual fora a piada, e Peter Marlowe lhes contou que o Rei dissera: “Deveríamos abrir uma loja na aldeia e nem pensar em voltar para o campo.”

Depois de terem tomado o café, Cheng San deu o primeiro passo.

— Imagino que é arriscado vir do campo, à noite. Mais arriscado do que a minha vinda aqui para a aldeia.

O primeiro roundé nosso, pensou Peter Marlowe. Segundo o estilo oriental, Cheng San estava em desvantagem, pois se desmoralizara ao dar o primeiro passo. Virou-se para o Rei.

— Muito bem, Rajá. Pode começar. Já ganhamos um ponto.

— Foi?

— Foi. O que quer que eu lhe diga?

— Diga-lhe que tenho um grande negócio. Um diamante. Quatro quilates. Engastado em platina. Perfeito, branco-azulado. Quero trinta e cinco mil dólares por ele. Cinco mil dólares malaios britânicos, o resto em dinheiro japonês falsificado.

Os olhos de Peter Marlowe se arregalaram. Estava de frente para o Rei, portanto sua surpresa não foi aparente para o chinês. Mas Sutra a notou. Como não era parte do negócio, simplesmente ganhava uma porcentagem como intermediário, recostou-se para assistir aos golpes e contragolpes. Não havia necessidade de se preocupar com Cheng San — Sutra sabia, à própria custa, que o chinês podia cuidar-se muito bem.

Peter Marlowe traduziu. A enormidade da transação cobriria qualquer lapso de boas maneiras. E ele queria dar uma sacudidela no chinês.

Cheng San, pegado de surpresa, ficou palpavelmente interessado. Pediu para ver o diamante.

— Diga-lhe que não está comigo. Diga-lhe que farei a entrega em dez dias. Diga-lhe que preciso ter o dinheiro comigo três dias antes da entrega, porque o dono só o soltará depois que tiver o dinheiro.

Cheng San sabia que o Rei era um negociante honesto. Se dizia que tinha o anel e o entregaria, então o faria. Sempre fizera. Mas arranjar uma tal quantia e deixá-la entrar no campo, onde nunca podia saber onde o Rei se encontrava... bem, era um risco enorme.

— Quando poderei ver o anel? — perguntou.

— Diga-lhe, que, se quiser, pode vir ao campo, em sete dias.

Quer dizer que devo entregar o dinheiro sem sequer ter visto o diamante!, pensou Cheng San. Impossível, e o Tuan Rajá sabe disso. Negócio muito ruim. Se realmente for de quatro quilates, posso obter 50... 100.000 dólares por ele. Afinal de contas, conheço o chinês dono da máquina que imprime o dinheiro. Mas os 5.000 em dólares malaios britânicos... isso já é outra história. Teria que comprá-los no mercado negro. E a que taxa? Seis para um seria caro, 20 para um, barato.

— Diga ao meu amigo o Rajá — falou — que este é um estranho acordo comercial. Sendo assim, preciso pensar, por mais tempo do que é costume um homem de negócios pensar.

Foi até a janela e ficou olhando para fora.

Cheng San estava cansado da guerra e das maquinações escusas que um comerciante tinha que suportar para ter lucro. Pensou na noite e nas estrelas e na estupidez do homem, lutando e morrendo por coisas que não teriam valor permanente. Ao mesmo tempo, sabia que os fortes sobrevivem e os fracos perecem. Pensou na mulher e nos filhos, três homens e uma mulher, e nas coisas que gostaria de comprar para dar-lhes conforto. Pensou também na segunda mulher que gostaria de comprar. De um jeito ou de outro, tinha que fechar este negócio. E valia o risco de ter que confiar no Rei.

O preço é justo, raciocinou. Mas como salvaguadar o dinheiro? Achar um intermediário em quem pudesse confiar. Teria que ser um dos guardas. O guarda poderia ver o anel. Poderia entregar o dinheiro se o anel fosse de verdade e o peso correto. E depois o Tuan Rajá poderia fazer a entrega, aqui na aldeia. Não havia necessidade de confiar no guarda para pegar o anel e passá-lo às suas mãos. Como confiar num guarda?

Quem sabe poderíamos inventar uma história... que o dinheiro era um empréstimo ao campo dado pelos chineses de Cingapura... não, não servia, pois o guarda teria que ver o anel. Assim, o guarda teria que estar completamente “por dentro”. E esperaria uma gratificação substancial.

Cheng San voltou-se para o Rei. Notou que o Rei suava muito. Ah, pensou, quer desesperadamente vender! Mas talvez saiba que quero desesperada-mente comprar. Você e eu somos os únicos em condições de fechar um tal negócio. Ninguém tem fama de comerciante honesto como você... e ninguém salvo eu, entre todos os chineses que negociam com o campo, é capaz de entregar uma quantia tão grande.

— Bem, Tuan Marlowe. Tenho um plano que talvez proteja tanto ao meu amigo o Rajá quanto a mim mesmo. Primeiro, concordamos com um preço. O preço mencionado é alto demais, mas isso não interessa, no momento. Segundo, concordamos com um intermediário, um guarda em quem ambos possamos confiar. Dentro de dez dias, darei a metade do dinheiro ao guarda, que examinará o anel. Se for mesmo o que o dono diz que é, ele passará o dinheiro às mãos do meu amigo o Rajá. Este fará a entrega aqui, a mim. Trarei um perito para pesar a pedra. A seguir, pagarei a outra metade do dinheiro, e levarei a pedra.

O Rei prestou muita atenção enquanto Peter Marlowe traduzia.

— Diga-lhe que está bem. Mas tenho que ter o preço integral. O sujeito não entregará o anel sem a grana nas mãos.

— Então, diga ao meu amigo o Rajá que darei ao guarda três quartos do preço combinado para ajudá-lo a negociar com o dono.

Cheng San achava que 75% certamente cobririam a quantia paga ao dono. O Rei estaria meramente jogando com seu lucro, pois sem dúvida era um negociante suficientemente bom para obter uma comissão de 25%.

O Rei já contava com os três quartos; aquilo lhe daria dinheiro de sobra para manobrar. Quem sabe poderia abater alguns dólares do preço inicial pedido pelo dono, 19.500. É, até o momento, ia tudo bem. Agora, vamos ao principal.

— Diga-lhe que está bem. Quem ele sugere que seja o intermediário?

— Torusumi.

O Rei sacudiu a cabeça. Pensou por um momento, depois disse, diretamente para Cheng San:

— Que tal Immuri?

— Diga ao meu amigo que prefiro outro. Quem sabe Kimina?

O Rei soltou um assobio. Um Cabo! Nunca negociara com ele. Perigoso demais. Tem que ser alguém que eu conheça.

— Shagata-san?

Cheng San concordou. Este era o homem que queria, mas não queria sugerir seu nome. Queria ver quem o Rei queria... Uma verificação final da honestidade do Rei.

É, o Shagata era uma boa escolha. Não inteligente demais, mas inteligente o bastante. Já lidara com ele anteriormente. Ótimo.

— Agora, quanto ao preço — disse Cheng San. — Sugiro que o discutamos. Quatro mil dólares falsificados por quilate. Total: dezesseis mil. Quatro mil em dólares malaios à taxa de quinze por um.

O Rei sacudiu a cabeça suavemente, depois disse para Peter Marlowe:

— Diga-lhe que não vou ficar barganhando merda nenhuma. O preço é trinta mil, cinco mil em dólares malaios a oito por um, em notas pequenas. Meu preço final.

— Precisa pechinchar um pouco mais — falou Peter Marlowe. — Que tal dizer trinta e três mil, depois...

— Não. — O Rei balançou a cabeça. — E quando traduzir, use uma palavra como “merda”.

Relutantemente, Peter Marlowe voltou-se para Cheng San.

— Meu amigo diz o seguinte: Não vai perder tempo pechinchando. Seu preço final é trinta mil, cinco mil em dólares malaios à taxa de oito por um. Tudo em notas de pouco valor.

Para sua surpresa, Cheng San disse imediatamente:

— Concordo. — Também ele não queria perder tempo pechinchando. O preço era justo e sentira que o Rei estava inabalável. Chega uma hora em todos os negócios em que um homem tem que decidir, sim ou não. O Rajá era um bom comerciante.

Apertaram-se as mãos. Sutra sorriu e trouxe uma garrafa de saque. Bebe-ram à saúde dos presentes até a garrafa ficar vazia. Depois, acertaram os detalhes.

Dali a 10 dias, Shagata viria à choça americana na hora da troca da guarda da noite. Traria o dinheiro, e veria o anel antes de entregá-lo. Três dias mais tarde, o Rei e Peter Marlowe se encontrariam com Cheng San na aldeia. Se, por algum motivo, Shagata não pudesse ir no dia marcado, iria no dia seguinte, ou no seguinte. Do mesmo modo, se o Rei não pudesse comparecer ao encontro marcado na aldeia, viriam no dia seguinte.

Depois de trocarem os cumprimentos de praxe, Cheng San disse que precisava aproveitar a maré. Inclinou-se cortesmente, e Sutra foi com ele, acom-panhando-o até a praia. Ao lado do barco, começaram uma discussão educada sobre o negócio dos peixes.

O Rei estava eufórico.

— Que maravilha, Peter! Estamos na jogada!

— Você é fantástico! Quando disse para dar o preço final para ele, sem mais conversa fiada, bem, meu velho, pensei que o tinha perdido. Não agem desse jeito.

— Tive um palpite — foi só o que o Rei disse. A seguir acrescentou, mordendo um pedaço de carne. — Você vai ganhar dez por cento... do lucro, é claro. Mas vai ter que suar por ele, seu filho da puta!

— Como um cavalo! Deus! Pense só em todo esse dinheiro. Trinta mil dólares fariam uma pilha de notas de uns trinta centímetros.

— Mais — disse o Rei, contagiado pelo entusiasmo.

— Meu Deus, mas você tem peito! Como foi que bolou esse preço? Ele concordou, bumba, sem mais aquela! Um papo de um momento, e bumba, você fica rico!

— Ainda tenho muito com que me preocupar até que o negócio esteja fechado. Muita coisa pode dar errado. Não é negócio fechado até o dinheiro ser entregue e estar no banco.

— Ah, nem pensei nisso.

— Um axioma comercial. Não se pode pôr conversa no banco. Só as notinhas.

— Ainda nem posso acreditar. Estamos fora do campo, com a barriga cheia como há semanas não estava. E as perspectivas são ótimas. Cara, você é um gênio.

— Vamos esperar para ver, Peter. — O Rei se levantou. — Espere aqui. Volto dentro de uma hora, mais ou menos. Tenho um outro negocinho a resolver. Contanto que a gente saia daqui dentro de umas duas horas, tudo bem. Aí chegaremos no campo pouco antes do amanhecer. É a melhor hora. É quando os guardas estão mais relaxados. Até já — falou, desaparecendo degraus abaixo.

Mesmo a contragosto, Peter Marlowe sentiu-se sozinho, e com bastante medo.

Santo Deus, o que ele está aprontando? Aonde vai? E se chegar atrasado? E se não voltar? E se um japonês chegar à aldeia? E se eu tiver que ficar por minha conta? Devo ir à procura dele? Se não voltarmos até o alvorecer, Jesus Cristo, vão dar por nossa falta, e teremos que fugir. Para onde? Será que Cheng San ajudará? Perigoso demais! Onde será que ele mora? Será que conseguiremos chegar às docas e arrumar um barco? Quem sabe entrar em contato com os guerrilheiros que dizem estar operando?

Controle-se, Marlowe, seu covarde de uma figa! Está parecendo uma criança de três anos. Dominando sua ansiedade, preparou-se para esperar. E foi então que se lembrou do condensador de acoplamento — 300 microfarádios.

— Tabe, Tuan — sorriu Kasseh, quando o Rei entrou em sua choça.

— Tabe. Kasseh.

— Quer comida?

Fez que não com a cabeça, e abraçou-a com força, as mãos percorrendo o corpo dela, que ficou na ponta dos pés para abraçar-lhe o pescoço, com os cabelos como plumas de ouro negro que caíam até a cintura.

— Muito tempo — disse ela, excitada pelo toque dele.

— Muito tempo — replicou. — Sentiu saudade?

— Hã-hã — fez ela, rindo, e imitando o sotaque dele.

— Ele já chegou?

A moça fez que não com a cabeça.

— Não gostar dessa coisa, tuan. Tem perigo.

— Tudo tem perigo.

Ouviram passos, e logo uma sombra manchou a porta. Ela se abriu, e entrou um chinês pequeno e escuro. Usava sarongue e tamancos indianos. Sorriu, mostrando dentes quebrados e manchados. Às costas, trazia um facão de guerra embainhado. O Rei notou que a bainha estava bem lubrificada. Muito fácil arrancar o facão da bainha e cortar fora a cabeça de um homem, sem mais aquela. E havia um revólver enfiado no cinto do homem.

O Rei pedira a Kasseh que entrasse em contato com os guerrilheiros que operavam em Johore, e este homem era o resultado. Como a maioria, eram bandidos convertidos lutando agora contra os japoneses sob a bandeira dos comunistas, que lhes forneciam armas.

— Tabe. Fala inglês? — perguntou o Rei, forçando um sorriso. Não estava gostando da cara do chinês.

— Por que quer falar conosco?

— Pensei que pudéssemos fazer um negócio.

O chinês lançou um olhar lascivo a Kasseh, que se encolheu, assustada.

— Dê o fora, Kasseh — mandou o Rei.

Ela se foi silenciosamente, atravessando a cortina de contas que dava para os fundos da casa.

O chinês ficou vendo a moça afastar-se.

— Tem sorte — disse para o Rei. — Muita sorte. Aposto que a mulher diverte dois, três homens numa noite. Não?

— Quer conversar sobre o negócio? Sim ou não?

— Cuidado, homem branco. Quem sabe conto japoneses você está aqui. Quem sabe conto aldeia segura para prisioneiros brancos. Então eles matam aldeia.

— Você vai acabar morto rapidamente, desse jeito.

O chinês resmungou, depois se acocorou. Mudou o facão de posição, leve e ameaçadoramente.

— Quem sabe fico com mulher, agora.

Jesus, pensou o Rei, será que cometi um engano.

— Tenho uma proposta para vocês. Se a guerra acabar de repente, ou os japoneses resolverem começar a cortar os prisioneiros de guerra em pedaços, quero vocês por perto para me proteger. Pagarei dois mil dólares americanos quando estiver a salvo.

— Como vamos saber se japoneses matam prisioneiros?

— Saberão. Sabem a maioria das coisas que acontecem.

— Como vamos saber você paga?

— O governo americano pagará. Todo mundo sabe que há uma recompensa.

— Dois mil! ‘Mahlu! Pegamos dois mil qualquer hora. Só assaltar banco. Fácil.

O Rei fez seu gambito.

— Tenho ordens do nosso oficial comandante para lhes garantir dois mil por cabeça para cada americano que for salvo. Se começar a carnificina.

— Não entendo.

— Se os japoneses começarem a acabar com nossa raça... a nos matar. Se os Aliados desembarcarem aqui, os japoneses vão ficar muito maus. Ou se os Aliados desembarcarem no Japão, a turma aqui vai vingar-se. Se o fizerem, vocês saberão, e quero que nos ajudem a escapar.

— Quantos homens?

— Trinta.

— Demais.

— Quantos pode garantir?

— Dez. Mas o preço vai ser cinco mil por homem.

— É demais.

O chinês deu de ombros.

— Está bem. Negócio fechado. Conhecem o campo. O chinês mostrou os dentes num sorriso retorcido.

— Conhecemos.

— Nossa choça fica na parte leste. É uma pequenina. Se tivermos que fugir, fugiremos pela cerca de arame logo ali. Se estiverem na selva, poderão dar-nos cobertura. Como vamos saber se estão em posição?

O chinês deu de ombros novamente.

— Se não estivermos, vocês morrem, de qualquer jeito.

— Poderia dar-nos um sinal?

— Nada de sinal.

Isso é uma loucura, disse o Rei para si mesmo. Não sabemos quando teremos que tentar fugir, e se for uma coisa repentina, não haverá meios de mandar uma mensagem aos guerrilheiros em tempo. Talvez apareceçam, talvez não. Mas se acharem que vão ganhar 5.000 por cabeça para cada um de nós que ajudarem a fugir, pode ser que fiquem de vigia de agora em diante.

— Ficarão de olho no campo?

— Talvez líder dizer sim, talvez não.

— Quem é seu líder?

O chinês deu de ombros e palitou os dentes.

— Negócio fechado, então?

— Pode ser. — Os olhos dele eram hostis. — Acabou?

— Acabei. — O Rei estendeu a mão. — Obrigado.

O chinês olhou para a mão estendida, deu um riso de deboche, e caminhou para a porta.

— Lembre. Apenas dez. Resto matar! — E foi embora.

Bem, vale a pena tentar, tranqüilizou-se o Rei. Esses sacanas estão precisando do dinheiro. E o Tio Sam pagaria. Porra, por que não? Afinal, para que pagamos impostos?

— Tuan — disse Kasseh com ar sério, de pé, à porta. — Não gostar dessa coisa.

— É preciso arriscar. Se houver uma matança repentina, talvez a gente possa escapar. — Piscou para ela. — Vale a tentativa. Estaríamos mortos, de qualquer jeito. Então, tanto faz. Talvez tenhamos uma linha de retirada.

— Por que não fazer trato só para você? Por que não ir com ele agora e fugir do campo?

— Primeiro, é mais seguro no campo do que com os guerrilheiros. Não há por que confiar neles, salvo numa emergência. Segundo, um único homem não vale o trabalho que teriam. Foi por isso que lhe pedi para salvarem trinta. Mas ele disse que só podiam cuidar de dez.

— Como vai escolher dez?

— Contanto que eu esteja no bolo, é cada um por si.

— Talvez seu oficial comandante não goste de só dez.

— Vai gostar, se for um dos que escapar.

— Acha japoneses matar prisioneiros?

— Pode ser. Mas vamos esquecer isso, está bem?

— Esquecer. — Ela sorriu. — Você com calor. Toma chuveiro, sim?

— Sim.

Na parte da choça em que se tomava banho, o Rei jogou baldes d’água sobre o corpo, tirada do poço de concreto. A água estava fria, fazendo-o soltar uma exclamação abafada, e sua pele arder.

— Kasseh!

Ela cruzou as cortinas, trazendo uma toalha. Ficou parada, olhando para ele. É, o seu tuan era um belo homem. Forte e belo e a cor da sua pele era agradável. Wah-lah, pensou, que sorte tenho de ter um homem assim. Mas é tão grande, e eu tão pequenina. É duas cabeças mais alto do que eu.

Apesar disso, sabia que o agradava. É fácil agradar um homem. Quando se é mulher. E não se tem vergonha de ser mulher.

— Do que está sorrindo? — perguntou o Rei, ao ver o sorriso dela.

— Ah, tuan, só pensava, você tão grande e eu tão pequenina. Mas, quando deitamos juntos, não tem muita diferença, não é?

Ele soltou uma risadinha abafada, deu-lhe uma palmada carinhosa na bunda e pegou a toalha.

— Que tal uma bebida?

— Está pronta, tuan.

— O que mais está pronto?

Ela riu com a boca e os olhos. Os dentes eram branquíssimos, os olhos castanho-escuros, a pele macia e cheirosa.

— Quem sabe, tuan? — A seguir, saiu do quarto.

Mas que mulheraço, pensou o Rei, vendo-a afastar-se, enxugando-se vigorosamente. Sou um cara de sorte.

Kasseh fora arranjada por Sutra quando o Rei viera pela primeira vez à aldeia. Os detalhes foram acertados com cuidado. Quando a guerra acabasse, ele teria que pagar a Kasseh 20 dólares americanos por cada vez que ficara com ela. Ele conseguira abater alguns dólares do preço inicialmente pedido — negócio era negócio — mas, a 20 dólares, ela era uma pechincha.

— Como sabe que vou pagar? — perguntara à moça.

— Não sei. Mas se não pagar, não pagou, e tive apenas prazer. Se pagar, então tenho dinheiro e prazer, também. — E sorrira.

Calçou os chinelos nativos que ela deixara para ele, depois atravessou a cortina de contas. Ela estava à sua espera.

Peter Marlowe ainda observava Sutra e Cheng San lá na praia. Cheng San se inclinou e entrou no barco, e Sutra ajudou a empurrar o barco para dentro do mar fosforescente. Depois, Sutra voltou para a choça.

— Tabe-lah! — exclamou Peter Marlowe.

— Quereis comer mais?

— Não, obrigado, Tuan Sutra.

Puxa vida, pensou Peter Marlowe, mas que diferença poder recusar comida. Mas comera o bastante, e comer mais seria indelicado. Era óbvio que a aldeia era pobre, e que a comida não seria desperdiçada.

— Ouvi contar — falou, especulativamente — que as notícias, as notícias da guerra, são boas.

— Foi o que também ouvi, mas nada que um homem possa repetir. Apenas boatos.

— É uma pena que hoje não seja como antigamente, quando um homem podia ter um rádio e ouvir as notícias, ou ler um jornal.

— Verdade. É uma pena.

Sutra não demonstrou ter entendido. Acocorou-se no seu tapete, preparou um cigarro, em forma de funil, e começou a fumar, sugando com força a fumaça.

— Ouvimos contar coisas ruins do campo — disse o velho, finalmente.

— Não é tão ruim, Tuan Sutra. Conseguimos dar um jeito. Mas não saber como anda o mundo, isso sim é ruim.

— Ouvi contar que havia um rádio no campo, e que os donos do rádio foram presos. E que agora estão na cadeia de Utram Road.

— Tendes notícias deles? Um era meu amigo.

— Não. Apenas soubemos que foram levados para lá.

— Gostaria muitíssimo de saber corno estão.

— Conheceis o lugar, e como ficam os homens levados para lá, portanto já sabeis o que é feito.

— Verdade. Mas sempre se espera que alguns tenham sorte.

— Estamos nas mãos de Alá, disse o Profeta.

— Cujo nome seja louvado.

Sutra lançou-lhe outro olhar; depois, tirando baforadas do cigarro, calmamente, perguntou:

— Onde aprendestes o malaio?

Peter Marlowe contou-lhe de sua vida na aldeia. Como trabalhara nos arrozais e vivera como javanês, que e quase a mesma coisa que viver como malaio. Os costumes são os mesmos, a língua a mesma, exceto pelas palavras ocidentais comuns — sem fio, na Malásia, rádio em Java, carro a motor na Malásia, automóvel em Java. Mas o resto era igual. Amor, ódio, doença, e as palavras que um homem diz a um homem, ou um homem a uma mulher, são as mesmas. As coisas importantes são sempre as mesmas.

— Como se chamava a vossa mulher na aldeia, meu filho? — perguntou Sutra. Teria sido indelicado perguntar antes, mas agora que tinham falado das coisas do espírito e do mundo, e de filosofia e de Alá, e tinham citado o Profeta, louvado seja o seu nome, agora não era grosseria perguntar.

— Chamava-se N’ai Jahan.

O velho deu um suspiro satisfeito, recordando sua juventude.

— E ela o amava muito e profundamente.

— Sim. — Peter Marlowe podia vê-la nitidamente.

Viera à sua choça, certa noite, quando ele se preparava para dormir. Usava um sarongue vermelho e dourado, e minúsculas sandálias apareciam sob a bainha. Trazia um colar fino de flores no pescoço, e a fragrância das flores encheu a choça e todo o universo dele.

Colocara sua esteira no chão, e se inclinara profundamente diante dele.

— Meu nome é N’ai Jahan — dissera. — Tuan Abu, meu pai, escolheu-me para partilhar a vossa vida, pois não é bom um homem ficar sozinho. E estais sozinho já faz três meses.

N’ai devia ter uns 14 anos, mas nas terras de sol-e-chuva, uma garota de 14 anos já éuma mulher, com os desejos de uma mulher, e deveria estar casada, ou pelo menos vivendo com o homem escolhido pelo pai.

Sua pele morena tinha um brilho leitoso e os olhos eram dois topázios, e as mãos eram pétalas de orquídea, e os pés miúdos, e seu corpo de menina-mulher era acetinado e guardava dentro de si a felicidade de um colibri. Era filha do Sol e filha da chuva. O nariz era esguio e bem-feito, as narinas delicadas.

N’ai era toda cetim, cetim líquido. Firme onde devia ser firme. Macia onde devia ser macia. Forte onde devia ser forte. E fraca onde devia ser fraca.

O cabelo era negro, longo, uma rede delicada para cobri-la.

Peter Marlowe sorrira para ela. Tentara ocultar seu embaraço, e ser como ela, livre e feliz, e não ter vergonha. Ela despira o sarongue e ficara orgulhosamente diante dele, e dissera:

— Rezo para que seja digna de fazer-vos feliz e fazer-vos dormir-macio. E suplico-vos que me ensineis todas as coisas que vossa mulher precisa saber para vos fazer “próximo a Deus”.

Próximo a Deus, que maravilha, pensou Peter Marlowe; que maravilha descrever o amor como sendo próximo a Deus. Ergueu os olhos para Sutra.

— Sim. Amamo-nos muito e longamente. Agradeço a Alá ter vivido e amado até a eternidade. Como são gloriosos os caminhos de Alá. Uma nuvem se estendeu e lutou com a Lua pela posse da noite.

— É bom ser homem — disse Peter Marlowe.

— A vossa falta vos incomoda esta noite?

— Não. Verdade. Não esta noite. — Peter Marlowe examinou o velho malaio, gostando dele pela oferta, feita com tanta gentileza. — Ouça, Tuan Sutra. Vou abrir minha mente para vós, pois acredito, que com o tempo, poderíamos ser amigos. Com o tempo, poderíeis avaliar a minha amizade e o meu “eu”. Mas a guerra é uma assassina do tempo. Portanto, vou falar-vos como a um amigo, o que ainda não sou.

O velho não deu resposta. Continuou fumando e esperando que o outro prosseguisse.

— Preciso de uma pequena parte de um rádio. Existe algum rádio na aldeia, mesmo velho? Quem sabe, se estiver quebrado, eu poderia tirar uma pecinha dele.

— Sabeis que os rádios são proibidos pelos japoneses.

— Verdade, mas, às vezes, existem lugares secretos para esconder aquilo que é proibido.

Sutra refletiu. Havia um rádio na sua choça. Quem sabe Alá havia enviado Tuan Marlowe para tirá-lo de lá. Achava que podia confiar nele, porque Tuan Abu já o havia feito, antes dele. Mas se Tuan Marlowe fosse pegado do lado de fora do campo com o rádio, inevitavelmente a aldeia seria envolvida.

Deixar o rádio na aldeia também era perigoso. Claro que um homem poderia enterrá-lo bem fundo, na selva, mas isso não fora feito. Devia ter sido feito, mas não fora feito, pois a tentação de escutar era sempre grande demais. A tentação das mulheres de escutar música era grande demais. A tentação de saber quando os outros não sabiam, era grande. Em verdade, está escrito: Vaidade, tudo é vaidade.

Melhor, decidiu ele, deixar as coisas que são do homem rosado permanecerem com o homem rosado.

Levantou-se e fez sinal para Peter Marlowe e foi mostrando o caminho, atravessando a cortina de contas até os lugares mais escuros da choça. Parou diante da porta do quarto de Sulina. Estava deitada na cama, com o sarongue desamarrado e amplo à volta do corpo, os olhos cristalinos.

— Sulina — falou Sutra — vá para a varanda vigiar.

— Sim, Pai. — Sulina saltou da cama e amarrou o sarongue e ajustou o bolero. Ajustou-o, na opinião de Sutra, um pouquinho demais, deixando bem nítida a promessa dos seios. É, está mesmo na hora de a garota se casar. Mas com quem? Não há homens casadouros.

Afastou-se para deixar a garota passar, de olhos baixos e recatados. Mas nada havia de recatado no requebro dos quadris, e Peter Marlowe também o notou. Devia dar-lhe uma surra, pensou Sutra, mas sabia que não devia ficar zangado com ela. Não passava de uma mocinha no limiar da vida adulta. Ser tentadora faz parte do jeito da mulher... ser desejada faz parte da necessidade da mulher.

Talvez devesse dar-vos ao inglês. Quem sabe isso diminuiria o vosso apetite. Ele parece homem bastante para tanto! Sutra soltou um suspiro. Ah, se pudesse ser jovem de novo!

Tirou o pequeno rádio de sob a cama.

— Vou confiar em vós. Este rádio é bom. Funciona bem. Podeis levá-lo. Peter Marlowe quase o deixou cair, de tão excitado.

— Mas, e quanto a vós? Certamente, este rádio não tem preço.

— Não tem preço. Levai-o convosco.

Peter Marlowe virou o rádio. Era um receptor principal, em boas condições. O fundo foi removido e os tubos rebrilhavam à luz do lampião. Havia muitos condensadores. Muitos. Trouxe o aparelho mais para perto da luz e examinou com cuidado as suas entranhas, centímetro por centímetro.

O suor começou a escorrer do seu rosto. E então descobriu o que queria, 300 microfarádios.

Agora, o que vou fazer?, perguntou-se. Será que levo só o condensador? Mac falou que estava quase certo. Melhor levar o aparelho inteiro, e se o condensador não se adaptar ao nosso, teremos outro. Daremos um jeito de escondê-lo num canto qualquer. Vai ser bom ter um sobressalente.

— Agradeço-vos, Tuan Sutra. Não dá para eu vos agradecer o bastante por este presente. Eu sou os milhares de Changi.

— Suplico-vos que nos protejais. Se um guarda vos vir, enterrai-o na selva. Minha aldeia está nas vossas mãos.

— Nada temais. Eu a protegerei com a minha vida.

— Acredito em vós. Mas talvez seja uma tolice fazer isso.

— Há vezes, Tuan Sutra, em que creio verdadeiramente que os homens não passam de tolos.

— Tendes uma sabedoria que ultrapassa a vossa idade.

Sutra deu-lhe um pedaço de pano para envolver o rádio, depois voltaram para a sala principal. Sulina estava nas sombras da varanda. Quando entraram, ela se levantou.

— Quereis um pouco de comida ou bebida, Pai?

Wah-lah, pensou Sutra rabugentamente, pergunta a mim, mas refere-se a ele.

— Não. Ide para a cama.

Sulina fez um meneio atrevido de cabeça, mas obedeceu.

— Acho que minha filha merece uma surra.

— Seria uma pena marcar uma coisinha tão delicada — falou Peter Marlowe. — Tuan Abu costumava dizer: “Batei na mulher pelo menos uma vez por semana, e tereis paz na vossa casa. Mas nato batais com muita força, para não deixá-la com raiva, pois então ela na certa vos baterá também, e muito vos magoará!”

— Conheço o ditado. É bem verdadeiro. As mulheres são incompreensíveis.

Falaram de muitas coisas, acocorados na varanda, fitando as águas. O mar estava manso, e Peter Marlowe pediu permissão para ir nadar.

— Não há correnteza — disse o velho malaio — mas, às vezes, há tubarões.

— Tomarei cuidado.

— Nadai apenas nas sombras, junto aos barcos. Às vezes os japoneses caminham pela praia. Há um embasamento de canhão a uns cinco quilômetros daqui. Mantende os olhos abertos.

— Tomarei cuidado.

Peter Marlowe ateve-se às sombras enquanto corria para os barcos. A Lua baixava no céu. Não há muito tempo, pensou.

Junto aos barcos alguns homens e mulheres preparavam e consertavam redes, conversando e rindo entre si. Não prestaram atenção a Peter Marlowe, quando este se despiu e entrou no mar.

A água estava quente, mas com bolsões frios, como em todos os mares orientais, e achou um e tentou ficar nele. A sensação de liberdade era gloriosa, e era quase como se fosse de novo um garotinho tomando um banho de mar noturno no Atlântico com o pai por perto, gritando: “Não vá muito longe, Peter! Olhe a correnteza!”

Nadou por baixo d’água e sua pele bebeu o sal do mar. Quando veio à tona, cuspiu água como uma baleia, e nadou preguiçosamente para a parte rasa, onde ficou deitado de costas, lavado pelas ondas, gozando sua liberdade.

Enquanto sacudia as pernas nas ondas que rodopiavam na sua virilha, deu-se conta, de repente, que estava completamente nu, e que havia homens e mulheres a 20 metros de distância dali. Mas não se sentiu constrangido.

A nudez se tornara um modo de vida no campo. E os meses passados na aldeia javanesa lhe haviam ensinado que não havia vergonha nenhuma em ser um ente humano, com desejos e necessidades.

O calor sensual do mar brincando com ele, e o calor pesado da comida dentro do seu corpo, despertaram um fogo súbito no seu sexo. Virou-se abruptamente de barriga para baixo e voltou para dentro do mar, escondendo-se.

Ficou de pé no fundo do mar, com água até o pescoço, e olhou para a praia e para a aldeia. Os homens e mulheres ainda estavam consertando as redes. Podia ver Sutra na varanda da choça, fumando na sombra. Mais para o lado, viu Sulina, iluminada pela luz do lampião, encostada na moldura da janela. Segurava o sarongue frouxamente contra o corpo e olhava para o mar.

Sabia que estava olhando para ele, e imaginou, envergonhado, se tinha visto. Observava-a, e ela o observava. Então, viu quando ela tirou o sarongue e pegou uma toalha limpa e branca para secar o suor que cintilava no seu corpo.

Era filha do Sol e filha da chuva. 0 cabelo longo e escuro escondia a maior parte do seu corpo, mas ela o moveu até que lhe acariciasse as costas, e começou a trançá-lo. E o tempo todo o fitava, sorrindo.

E então, subitamente, cada vibração da correnteza era uma carícia, cada toque da brisa uma carícia, cada fio de alga uma carícia... dedos de cortesãs, matreiros, com séculos de experiência.

Vou possuí-la, Sulina.

Vou possuí-la, custe o que custar.

Tentou fazer com que Sutra saísse da varanda, com a força do seu pensamento. Sulina observava. E esperava. Tão impaciente quanto ele.

Vou possuí-la, Sutra. Não me impeça! Não o faça. Ou juro por Deus...

Não viu o Rei se acercando das sombras, nem o notou deter-se, surpreso ao vê-lo deitado de barriga para baixo, na parte rasa da praia.

— Ei, Peter. Peter!

Ouvindo a voz em meio à névoa, Peter Marlowe virou a cabeça devagar e viu o Rei chamando-o.

— Vamos indo, Peter. Está na hora de a gente se mandar.

Ao ver o Rei, lembrou-se do campo, da cerca, do rádio, do diamante, do campo, da guerra, do campo, do rádio e do guarda por quem tinham que passar, e será que voltariam a tempo e quais seriam as novidades e como Mac ficaria feliz com os 300 microfarádios e o rádio sobressalente que funcionava. A ereção desapareceu. Mas a dor continuou.

Levantou-se e foi-se vestir.

— Mas você é cara de pau — falou o Rei.

— Porquê?

— Andar por aí deste jeito. Não está vendo a filha do Sutra espiando você?

— Já viu muitos homens sem roupa, e não há nada de mau nisso. — Sem ereção, não havia nudez.

— Às vezes, não o entendo. Cadê o seu recato?

— Perdeu-se há muito tempo. — Vestiu-se depressa e reuniu-se ao Rei nas sombras. Seu sexo doía violentamente. — Ainda bem que chegou na hora em que chegou. Obrigado.

— Porquê?

— Por nada.

— Estava com medo que o tivesse esquecido?

— Não. — Peter Marlowe sacudiu a cabeça. — Deixe pra lá. Mas obrigado. O Rei o fitou, depois deu de ombros.

— Vamos. Dá para a gente ir fácil, agora. — Seguiu na frente, passando pela choça de Sutra, e acenou. — Salamat.

— Espere, Rajá. Não demoro nada!

Peter Marlowe subiu correndo a escada e entrou na choça. O rádio ainda estava lá. Com ele debaixo do braço, embrulhado no pedaço de pano, inclinou-se diante de Sutra.

— Agradeço-vos. Está em boas mãos.

— Ide com Deus. — Sutra hesitou, depois sorriu. — Protegei vossos olhos, meu filho. Senão, quando houver alimento para eles, não podereis comer.

— Lembrar-me-ei. — Peter Marlowe sentiu o rosto quente. Será que as histórias são verdadeiras, que os idosos podem ler os pensamentos, de tempos em tempos. — Agradeço-vos. A paz esteja convosco.

— A paz esteja convosco até nosso próximo encontro.

Peter Marlowe virou-se e saiu. Sulina estava à janela, quando passaram por seu quarto. Estava coberta pelo sarongue, agora. Seus olhos se encontraram e um acordo foi feito e selado. Ficou olhando enquanto os dois homens subiam a inclinação, disfarçadamente, na direção da selva, e enviou-lhes mentalmente votos de uma viagem segura até que desapareceram.

Sutra suspirou, depois entrou silenciosamente no quarto de Sulina, que estava à janela sonhadoramente, com o sarongue enrolado nos ombros. Sutra trazia um bambu fino nas mãos e deu-lhe uma vergastada seca e forte, mas não forte demais, nas nádegas nuas.

— Isso é por terdes tentado o inglês quando não mandei que o tentásseis — falou, esperando parecer muito zangado.

— Sim, Pai — choramingou ela, e cada soluço seu era uma facada no coração dele. Mas, quando ficou sozinha, enroscou-se gostosamente no colchão e deixou as lágrimas correrem um pouco, curtindo-as. E o calor se espalhou por seu corpo, ajudado pela ardência da vergastada.

Quando estavam a cerca de quilômetro e meio do campo, o Rei e Peter Marlowe derarn uma paradinha para respirar. Foi então que o Rei notou, pela primeira vez, o pequeno volume enrolado no pano.

Estivera andando na frente, e tão concentrado no sucesso da noite de trabalho, e tão alerta a qualquer possível perigo na escuridão, que ainda não o tinha notado.

— O que tem aí? Uma comidinha extra?

Ficou vendo Peter Marlowe abrir um sorriso e orgulhosamente desembrulhar o volume.

— Surpresa!

O coração do Rei falhou seis batidas.

— Ora, seu maldito filho da puta! Está louco varrido?

— O que há? — indagou Peter Marlowe, estupefato.

— Está maluco? Isso vai-nos causar mais problemas do que dá para imaginar. Não tem o direito de arriscar nossos pescoços por causa de uma bosta de um rádio. Não tem o direito de usar os meus contatos para fazer os seus malditos negócios.

Peter Marlowe sentiu-se oprimido pela escuridão, enquanto fitava o Rei, incrédulo. Depois, falou:

— Não fiz por mal...

— Ora, seu maldito filho da puta! — vociferou o Rei. — Os rádios são veneno.

— Mas não há nenhum no campo...

— Não diga. Trate de livrar-se desta porra neste instante. E tem mais. Estamos acabados. Você e eu. Não tem o direito de me envolver num troço sem o meu conhecimento. Deveria enchê-lo de porrada!

— Experimente. — Agora Peter Marlowe estava raivoso e belicoso, tão belicoso quanto o Rei. — Parece esquecer que estamos em guerra, e que não há rádio no campo. Um dos motivos por que vim, foi que tinha esperanças de poder obter Um condensador. Mas agora tenho um rádio inteiro... que funciona.

— Livre-se dele!

— Não.

Os dois homens se defrontaram, tensos e inflexíveis. Por uma fração de segundo, o Rei esteve pronto para cortar Peter Marlowe em pedaços.

Mas o Rei sabia que a raiva não ajudava, quando se tinha que tomar uma decisão importante, e agora que tinha superado o nauseante choque inicial, podia ser crítico e analisar a situação.

Primeiro, tinha que admitir que, embora fosse um mau negócio arriscar tanto, o risco fora bem-sucedido. Se Sutra não estivesse disposto a dar o rádio a Peter Marlowe, teria dito: “Qual, não há nenhum rádio por aqui”, e mudado de assunto. Portanto, nenhum mal fora feito. E fora um negócio particular entre Pete e Sutra, porque Cheng San já tinha ido embora.

Segundo, um rádio cuja existência conhecia, e que não estava na sua choça, seria utilíssimo. Poderia estar sempre por dentro da situação, e saberia a hora exata de tentar sua fuga. Portanto, afinal de contas, nenhum mal fora feito... exceto que Peter passara dos limites de sua autoridade. Bem, vejamos: se você confia num sujeito, e o contrata, está contratando sua inteligência. Não há vantagem em se ter ao lado um cara que só obedece ordens e fica para-dão. E Peter fora espetacular durante as negociações. Se e quando houvesse a fuga, bem, Peter estaria na equipe. Seria preciso um cara que falasse a língua local. É, e Peter não tinha medo. Portanto, o Rei já sabia que seria uma loucura atacá-lo mesmo antes que sua mente lhe disesse para aproveitar comercialmente a nova situação. De fato, tinha dado um chilique, como um garotinho de dois anos.

— Pete. — Notou o queixo retesado de Peter Marlowe, como num desafio. Será que eu agüento com o filho da puta. Claro. Sou mais pesado do que ele uns 20... talvez 35 quilos.

— O que é?

— Desculpe ter estourado com você. O rádio é uma boa idéia.

— Como?

— Acabei de pedir desculpas. É uma ótima idéia.

— Não o entendo — disse Peter Marlowe, desanimado. — Num minuto parece um maluco, no seguinte está dizendo que é uma boa idéia.

O Rei gostava desse filho da puta. Tinha garra.

— É que, os rádios me dão nos nervos, não há futuro neles. — Deu uma risadinha suave. — Não têm valor de revenda.

— Não está mais cheio de mim?

— Porra, claro que não. Somos amigos do peito. — Deu-lhe um soquinho de brincadeira. — Só fiquei chateado porque você não me contou. Isso não foi legal.

— Sinto muito. Tem razão. Peço desculpas. Foi uma coisa ridícula e injusta. Puxa, não quero colocá-lo em situação difícil, de jeito algum. Sinto muito, de verdade.

— Aperte os ossos. Desculpe o estouro. Mas, da próxima vez, avise-me antes de fazer qualquer coisa.

Peter Marlowe apertou a mão do Rei.

— Palavra de honra.

— Para mim, chega. — Graças a Deus, tudo estava em paz agora. — Então, que diabo quer dizer com condensador?

Peter Marlowe contou-lhe sobre os três cantis.

— Portanto, só o que Mac precisa é de um condensador, certo?

— Disse que acha que sim.

— Sabe o que acho? Acho que seria melhor só tirar o condensador e largar o rádio. Enterrá-lo aqui. Estaria seguro. Então, se o seu não funcionar, a gente pode voltar e buscá-lo. Mac poderia pôr o condensador de volta com toda a facilidade. Esconder este rádio no campo ia ser uma dureza, e ia ser uma tentação dos diabos tê-lo à mão para ligar, não é?

— É. — Peter Marlowe olhou de modo penetrante para o Rei. — Voltará comigo para pegá-lo?

— Claro.

— Se... por qualquer motivo... eu não puder voltar, você voltaria para pegá-lo? Se Mac ou Larkin lhe pedissem?

O Rei pensou por um momento.

— Claro.

— Dá sua palavra?

— Sim. — O Rei sorriu. — Dá um bocado de importância a essa história de “palavra”, não é, Peter?

— De que outro modo se pode julgar um homem!

Peter Marlowe levou apenas um momento, para arrebentar os dois fios que ligavam o condensador às entranhas do rádio. Mais um minuto, e o rádio estava envolto no pano protetor, e um buraco pequeno fora aberto no chão da selva. Puseram uma pedra chata no fundo do buraco, depois cobriram o rádio com uma boa quantidade de folhas, puseram a terra de volta, alisando-a bem, depois puxaram um tronco de árvore para marcar o local. Duas semanas na umidade da tumba acabariam com a utilidade do rádio, mas duas semanas era tempo de sobra para vir buscá-lo, caso os cantis ainda não funcionassem.

Peter Marlowe enxugou o suor do corpo, pois uma súbita camada de calor pousara sobre eles, e o cheiro de suor deixara alucinadas as nuvens crescentes de insetos à sua volta.

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