Sellars virou-se e caminhou ofegante até o centro da choça.
— Então, vamos revistar a choça. Todos de pé ao lado das camas! Sentido! Deus tenha piedade do homem que o tiver. Eu, pessoalmente, cuidarei para que seja punido com todo o rigor da lei, seus porcos amotinados...
— Cale-se, Sellars.
Todos enrijeceram o corpo quando o Coronel Smedly —Taylor entrou na cabana.
— Há um rádio aqui e eu estava tentando...
— Cale-se.
O rosto gasto de Smedly-Taylor estava tenso ao caminhar até Yoshima, que observava Sellars com espanto e desprezo.
— Qual o problema, Capitão? — perguntou, sabendo qual era.
— Há um rádio na choça. — A seguir, Yoshima acrescentou, com ar de escárnio: — Segundo a Convenção de Genebra que governa os prisioneiros de guerra...
— Conheço muito bem o código de ética — disse Smedly-Taylor, forçando-se a não olhar para a trave de 20-por-20. — Se acredita que aqui há um rádio, por favor, faça uma revista. Ou se sabe onde está, queira pegá-lo e encerrar o assunto. Tenho muito o que fazer, hoje.
— Sua obrigação é fazer cumprir a lei...
— Minha obrigação é fazer cumprir a lei civilizada. Se querem citar as leis, obedeçam-nas em primeiro lugar. Dêem-nos os alimentos e remédios a que temos direito.
— Um dia o senhor irá longe demais, Coronel.
— Um dia estarei morto. Talvez morra de apoplexia, tentando fazer cumprir as regras ridículas impostas por administradores incompetentes.
— Darei parte de sua impertinência ao General Shima.
— Faça-o, por favor. E aproveite para perguntar-lhe quem deu ordem para que cada homem no campo tenha que pegar vinte moscas por dia, para que sejam reunidas e contadas e entregues diariamente no seu gabinete por mim, pessoalmente.
— Vocês, oficiais superiores, estão sempre reclamando do índice de mortalidade causado pela disenteria. As moscas espalham a disenteria...
— Não é necessário lembrar-me das moscas ou do índice de mortalidade — disse Smedly-Taylor, asperamente. — Dêem-nos as substâncias químicas e a permissão para exigir a higiene nas áreas vizinhas, e teremos toda a Ilha de Cingapura sob controle.
— Os prisioneiros não têm o direito...
— O seu índice de disenteria é exagerado. O seu índice de malária é alto. Antes de virem para cá, não havia malária em Cingapura.
— Pode ser. Mas nós conquistamos vocês aos milhares e capturamos vocês aos milhares. Nenhum homem de honra se permitiria ser capturado. Vocês são todos animais, e como tal têm que ser tratados.
— Ao que me consta, muitos japoneses estão sendo feitos prisioneiros no Pacífico.
— Onde ouviu essa informação?
— Boatos, Capitão Yoshima. Sabe como é. Obviamente incorretos. Como incorreto é dizer que a esquadra japonesa não está mais nos mares, ou que o Japão está sendo bombardeado, ou que os americanos capturaram Guadalcanal, Guam, Rabaul e Okinawa, e que no momento estão prestes a atacar o próprio Japão...
— Mentiras! — A mão de Yoshima estava na espada samurai de sua cinta, e ele a tirou três centímetros da bainha. — Mentiras! O Imperial Exército japonês está ganhando a guerra, e logo terá dominado a Austrália e a América. A Nova Guiné está em nossas mãos, e uma esquadra japonesa, neste exato momento, está diante de Sydney.
— Claro. — Smedly-Taylor deu as costas a Yoshima e correu os olhos pela choça. Rostos sem cor o fitavam. — Todos lá para fora, por favor — disse, suavemente.
Sua ordem foi obedecida em silêncio. Quando a cabana ficou vazia, voltou-se para Yoshima.
— Queira fazer a revista.
— E se eu descobrir o rádio?
— Está nas mãos de Deus.
Subitamente, Smedly-Taylor sentiu o peso dos seus 54 anos. Estremeceu sob a responsabilidade do seu fardo, pois, embora estivesse satisfeito em servir, satisfeito por estar aqui na hora da necessidade e satisfeito por cumprir seu dever, agora tinha que descobrir o traidor. Quando achasse o traidor, teria que puni-lo. Um homem desses tinha que morrer, como Daven morreria, se o rádio fosse descoberto. Deus nos ajude que não seja descoberto, pensou desesperado, é o nosso único elo com a sanidade. Se existe um Deus no céu, que o rádio não seja descoberto! Por favor.
Mas Smedly-Taylor sabia que Yoshima tinha razão numa coisa. Ele deveria ter tido a coragem de morrer como um soldado — no campo de batalha, ou tentando fugir. Vivo, o câncer da lembrança o corroía — a lembrança de que a ambição, a sede de poder e os erros tinham causado o estupro do Oriente, e inúmeras centenas de milhares de mortes inúteis.
Mas, pensou, se eu tivesse morrido, e quanto à minha querida Maisie, e ao John — meu filho lanceiro — e ao Percy — meu filho aviador — e à Trudy, casada tão jovem, grávida tão jovem e viúva tão jovem, e quanto a eles? Nunca mais vê-los ou tocá-los ou sentir de novo o calor do lar.
— Está nas mãos de Deus — repetiu, mas como ele, as palavras eram velhas e muito tristes.
Yoshima deu ordens enérgicas aos quatro guardas, que arrancaram os beliches dos cantos da choça e fizeram uma clareira. A seguir, puxaram o beliche de Daven para a clareira. Yoshima foi para o canto e começou a olhar para as vigas, para o telhado de folhas de palmeira e para as tábuas grosseiras logo abaixo. Sua revista era cuidadosa, mas Smedly-Taylor percebeu subitamente que era apenas para impressioná-lo... o esconderijo já era conhecido.
Lembrou-se daquela noite, há muitos e muitos meses, em que eles o procuraram.
— A decisão é de vocês — dissera. — Se forem apanhados, foram apanhados e fim da história. Não posso fazer nada para ajudá-los... nada. — Escolhera Daven e Cox, e dissera, em voz baixa: — Se o rádio for encontrado... tentem não implicar os outros. Precisam tentar, durante algum tempo. Depois, devem dizer que eu autorizei o rádio. Que eu ordenei que o fizessem.
A seguir, dispensara-os, abençoara-os à sua moda e lhes desejara sorte.
Agora, estavam todos atolados no azar.
Esperou impaciente que Yoshima pusesse mãos à obra na trave, odiando aquela agonia de gato-e-rato. Podia sentir o desespero dos homens lá fora. Mas nada podia fazer, a não ser esperar.
Finalmente, Yoshima também se cansou do jogo. O fedor da choça o incomodava. Foi até o beliche e fez uma revista superficial. A seguir, examinou a trave. Mas seus olhos não conseguiam descobrir as aberturas. De cara fechada, examinou mais de perto, com os dedos longos e sensíveis alisando a madeira. Ainda assim, não as descobria.
Sua primeira reação foi de que fora mal informado. Mas não podia acreditar nisso, pois o informante ainda não fora pago.
Resmungou uma ordem, e um guarda coreano entregou-lhe sua baioneta, com o cabo para a frente.
Yoshima bateu com ele na trave, buscando um som oco. Ah, pronto, achara-o! Bateu de novo. O som oco, outra vez. Mas não conseguia encontrar as fendas. Raivosamente, enfiou a baioneta na madeira.
A tampa se soltou.
— Ora, ora.
Yoshima sentiu orgulho de ter encontrado o rádio. O General ficaria satisfeito. Satisfeito o bastante, quem sabe, para entregar-lhe uma unidade de combate, pois o seu Bushido se revoltava de pagar delatores e lidar com esses animais.
— A quem pertence este beliche? — perguntou Yoshima.
Smedly-Taylor deu de ombros, também ele fingindo que precisava descobrir.
Yoshima lamentava, lamentava sinceramente que Daven só tivesse uma perna.
— Quer um cigarro? — perguntou, oferecendo o maço de Kooas.
— Obrigado. — Daven pegou o cigarro e aceitou o fogo, mas não sentiu o gosto do fumo.
— Como se chama? — perguntou Yoshima, cortesmente.
— Capitão Daven, Infantaria.
— Como perdeu a perna, Capitão Daven?
— Eu... fui atingido por uma mina. Em Johore... ao norte do elevado.
— Foi o senhor quem fez o rádio?
— Fui.
Smedly-Taylor empurrou para longe seu próprio pavor.
— Ordenei ao Capitão Daven que o fizesse. É minha responsabilidade. Ele cumpria ordens minhas.
— É verdade? — perguntou Yoshima, voltando-se para Daven.
— Não.
— Quem mais sabe do rádio?
— Mais ninguém. A idéia foi minha e eu o fiz. Sozinho.
— Por favor, sente-se, Capitão Daven. — A seguir, Yoshima fez um sinal de desprezo na direção de Cox, que estava sentado, soluçando de terror. — Qual é o nome dele?
— Capitão Cox — disse Daven.
— Olhe para ele. Repugnante. Daven deu uma tragada no cigarro.
— Estou com tanto medo quanto ele.
— Mas está controlado. Tem coragem.
— Estou com mais medo do que ele. — Daven manquejou, desajeitadamente, até Cox, sentou-se com dificuldade a seu lado. — Tudo bem, Cox, meu velho — disse, compassivamente, pondo a mão no ombro de Cox. — Está tudo bem. — A seguir, ergueu os olhos para Yoshima. — Cox ganhou a Cruz Militar em Dunquerque antes de completar vinte anos. É outro homem, agora. Construído por vocês, seus filhos da mãe, num período de três anos.
Yoshima controlou o impulso de .bater em Daven. Diante de um homem, mesmo um inimigo, havia um código. Virou-se para Smedly-Taylor e ordenou-lhe que trouxesse os seis homens dos beliches mais próximos do de Daven, e mandou o resto continuar em forma, sob guarda, até novas ordens.
Os seis homens ficaram diante de Yoshima. Somente Spence sabia da existência do rádio, mas, como os demais, negou conhecimento do fato.
— Peguem o beliche e sigam-me — ordenou Yoshima.
Quando Daven tateou em busca da muleta, Yoshima ajudou-o a levantar-se.
— Obrigado — disse Daven.
— Quer mais um cigarro?
— Não, obrigado. Yoshima hesitou.
— Sentir-me-ia honrado se aceitasse o maço.
Daven deu de ombros, aceitou-o, depois foi manquejando até o canto onde estava sua perna de ferro.
Yoshima bradou uma ordem, e um dos guardas coreanos pegou a perna e ajudou Daven a sentar-se.
Os dedos de Daven estavam firmes enquanto prendia a perna, depois levantou-se, pegou as muletas e fitou-as por um momento. A seguir, lançou-as no canto da choça. Depois, foi andando pesadamente até o beliche e olhou para o rádio.
— Tenlr muito orgulho disso — falou. Bateu continência para Smedly-Taylor e saiu da choça.
O pequeno cortejo cruzou o silêncio de Changi. Yoshima ia na frente e marcava o passo segundo a velocidade de Daven. A seu lado ia Smedly-Taylor. Logo depois, vinha Cox, com as lágrimas escorrendo, e indiferente a elas. Os outros dois guardas esperaram com os homens da Choça 16.
Esperaram 11 horas.
Smedly-Taylor voltou, e os seis homens voltaram. Daven e Cox não voltaram. Permaneceriam na casa da guarda, e no outro dia iriam para a Cadeia de Utram Road.
Os homens foram dispensados.
Peter Marlowe tinha uma dor de cabeça alucinante, devido ao Sol. Voltou aos tropeções para o bangalô e, depois de uma chuveirada, Larkin e Mac massagearam-lhe a cabeça e o alimentaram. Quando terminou, Larkin saiu e sentou-se ao lado da estrada de asfalto. Peter Marlowe ficou acocorado no vão da porta, de costas para o aposento.
A noite vinha chegando por trás do horizonte. Havia uma imensa solidão em Changi, e os homens que andavam para cima e para baixo pareciam mais perdidos do que nunca.
— Acho que vou recolher-me agora, meu rapaz — disse Mac, bocejando. — Durma cedo.
— Está bem, Mac.
Mac ajeitou o mosquiteiro sobre a cama e enfiou-o sob o colchão. Enrolou um trapo para absorver o suor da testa, depois tirou o cantil de Peter Marlowe do seu envoltório de feltro e soltou o fundo falso. Tirou os envoltórios e as bases dos cantis de Larkin e dele próprio, depois cuidadosamente empilhou-os uns sobre os outros. Dentro de cada cantil havia um emaranhado de fios, condensador e tubo.
Do cantil superior tirou cuidadosamente uma junta-macho de seis pinos com o seu complexo de fios, e encaixou-a habilmente na junta-fêmea do cantil do meio. A seguir, tirou uma junta-macho de quatro pinos e encaixou-a na tomada apropriada, no último cantil.
As mãos e os joelhos lhe tremiam, pois fazer aquilo à meia-luz, apoiado num dos cotovelos, ocultando os cantis com o corpo, era extremamente incômodo.
A noite cobriu o céu, aumentando a opressão. Os mosquitos começaram a atacar.
Quando todos os cantis estavam unidos, Mac esticou as costas para aliviar a dor e secou as mãos escorregadias. Depois, tirou o fone de ouvido do seu esconderijo no cantil superior e verificou as ligações, para se certificar de que estavam ajustadas. O fio isolado da fonte também estava no cantil superior. Desenrolou-o e verificou se as agulhas ainda estavam bem soldadas às extremidades do fio. Mais uma vez secou o suor e rapidamente reexaminou todas as conexões, achando, enquanto o fazia, que o rádio ainda parecia tão puro e limpo como quando ele o terminara secretamente em Java — enquanto Larkin e Peter Marlowe montavam guarda — há dois anos.
Levara seis meses para ser projetado e construído.
Apenas a metade inferior do cantil poderia ser usada — a parte de cima teria que conter água — portanto, não apenas ele teria que comprimir o rádio em três minúsculas unidades rígidas, como teria que botar as unidades em recipientes impermeáveis, depois soldar os recipientes dentro dos cantis.
Eles três haviam carregado os cantis durante 18 meses. Para o caso de haver um dia como este.
Mac se ajoelhou e enfiou duas agulhas no âmago dos fios que uniam a luz do teto à sua fonte. A seguir, pigarreou.
Peter Marlowe se levantou e verificou que não havia ninguém por perto. Desatarrachou rapidamente a lâmpada e ligou o interruptor. Depois, voltou para o vão da porta e ficou de guarda. Viu que Larkin ainda estava em posição, vigiando o outro lado e deu o sinal de tudo-em-paz.
Quando Mac o ouviu, aumentou o volume, pegou o fone de ouvido e prestou atenção.
Os segundos se transformaram em minutos. Peter Marlowe virou-se bruscamente, assustado ao ouvir Mac gemer.
— O que foi, Mac? — indagou.
Mac enfiou a cabeça pelo mosquiteiro, o rosto sem cor.
— Não funciona, cara — disse. — Esta bosta não funciona.