LIVRO UM1
— Vou pegar aquele filho da mãe nojento nem que tenha de morrer tentando. O Tenente Grey ficou satisfeito por ter finalmente dito em voz alta aquilo que o corroía por dentro. O veneno na voz de Grey fez o Sargento Masters acordar dos seus devaneios. Ele estivera sonhando com uma garrafa de cerveja australiana supergelada e um bife a cavalo e a sua casa em Sydney e a mulher e os seios e o cheiro dela. Nem se deu ao trabalho de acompanhar o olhar do Tenente pela janela aberta. Sabia a quem ele se referia, entre os homens seminus que andavam pela trilha de terra batida que ladeava a cerca de arame farpado. Mas ficou surpreso com a explosão de Grey. Normalmente, o Chefe da Polícia Militar de Changi era calado e inabordável como qualquer inglês.
— Poupe suas forças, Tenente — falou Masters, com voz cansada. — Logo os japoneses darão um jeito nele.
— Fodam-se os japoneses — falou Grey. — Quero pegá-lo. Eu o quero nesta cadeia. E quando tiver terminado com ele... quero-o na Cadeia de Utram Road.
— Utram Road? — indagou Masters, erguendo os olhos, estupefato.
— Isso mesmo.
— Juro que entendo sua vontade de pegá-lo — disse Masters. — Mas, bem, não desejaria isso para pessoa alguma.
— Lá é que é o lugar dele. E é onde vou botá-lo. Porque é um ladrão, um mentiroso, um trapaceiro e um sanguessuga. Um maldito vampiro que se alimenta do resto de nós.
Grey levantou-se e chegou mais perto da janela da choça sufocante da Polícia Militar. Abanou, afastando as moscas que subiam das tábuas do chão, e apertou os olhos contra o brilho refratado do Sol do meio-dia que incidia sobre a terra batida.
— Por Deus — disse — vou vingar-me por todos nós.
Boa sorte, meu chapa, pensou Masters. Se alguém pode pegar o Re», esse alguém é você. Possui a dose certa de ódio. Masters não gostava de oficiais, e não gostava da Polícia Militar. Desprezava Grey em particular, porque Grey viera de soldado, e tentava ocultar dos outros o fato.
Mas Grey não estava só no seu ódio. Changi inteira odiava o Rei. Eles o odiavam por seu corpo musculoso, pelo brilho límpido dos seus olhos azuis. Nesse mundo crepuscular dos semivivos, não havia homens gordos ou bem feitos ou roliços ou macios ou esbeltos ou atarracados. Havia apenas rostos dominados por olhos, encimando corpos que eram só pele sobre nervos sobre ossos. Não havia diferença entre eles, salvo a idade, o rosto e a altura. E nesse mundo todo, apenas o Rei comia feito homem, fumava feito homem, dormia feito homem, sonhava feito homem e tinha cara de homem.
— Você — trovejou Grey. — Cabo! Venha aqui!
O Rei notara a presença de Grey desde que dobrara a esquina da cadeia, não porque pudesse enxergar para dentro da escuridão da choça da Polícia Militar, mas porque sabia que Grey era uma pessoa metódica, e quando se tem um inimigo, é de bom alvitre conhecer seu jeito. O Rei sabia tanto sobre Grey quanto um homem pode saber sobre outro.
Ele saiu da trilha e se dirigiu para a choça isolada, destacada como uma espinha entre as feridas das outras choças.
— Queria falar comigo, senhor? — perguntou o Rei, fazendo continência. O sorriso dele era inexpressivo. Os óculos escuros disfarçavam o desprezo do olhar.
Grey fitava o Rei, do alto de sua janela. As feições retesadas de Grey ocultavam o ódio que era parte dele.
— Aonde vai?
— Vou voltar para minha cabana. Senhor — disse o Rei, pacientemente, enquanto sua cabeça funcionava a todo vapor... houve alguma falha, alguém deu uma de delator, qual era a de Grey?
— Onde arranjou essa camisa?
O Rei comprara a camisa, na véspera, de um Major que a conservara com cuidado durante dois anos, pensando no dia em que teria que vendê-la para comprar comida. O Rei gostava de andar asseado e bem vestido, quando os demais não andavam, e estava satisfeito hoje porque sua camisa era limpa e nova, a calça comprida estava vincada, as meias limpas, os sapatos recém-engraxados e o chapéu sem manchas. Divertia-se ao ver que Grey estava praticamente nu, vestindo apenas calça curta pateticamente remendada e tamancos de madeira, e uma boina da Divisão Blindada, verde e grossa de bolor tropical.
— Eu a comprei — disse o Rei. — Faz muito tempo. Não há lei contra a gente comprar uma coisa... aqui ou em outro lugar. Senhor.
Grey sentiu a impertinência do “Senhor”.
— Muito bem, Cabo. Venha até aqui dentro!
— Por quê?
— Só quero bater um papinho — disse Grey, com sarcasmo.
O Rei controlou a raiva, subiu os degraus, passou pela porta e parou perto da mesa.
— E agora? Senhor.
— Esvazie os bolsos.
— Por quê?
— Obedeça. Sabe que tenho o direito de revistá-lo a hora que quiser. — Grey deixou transparecer um pouco do seu desprezo. — Até mesmo o seu oficial em comando concordou.
— Só porque o senhor insistiu.
— E com bons motivos. Esvazie os bolsos.
Com ar cansado, o Rei obedeceu. Afinal de contas, nada tinha a esconder. Lenço, pente, carteira, um maço de cigarros comprados prontos, sua caixa de tabaco cheia de tabaco cru de Java, papéis de cigarro de arroz, fósforos. Grey certificou-se de que todos os bolsos estivessem vazios, depois abriu a carteira. Lá havia 15 dólares americanos e quase 400 dólares japoneses de Cingapura.
— Onde arranjou este dinheiro? — perguntou Grey com brusquidão, com o suor onipresente pingando do corpo.
— Jogando. Senhor.
Grey soltou uma risada sem alegria.
— Tem um bocado de sorte. E vem durando já há quase três anos, não é?
— Já terminou comigo? Senhor.
— Não. Quero ver seu relógio.
— Está na lista...
— Falei que quero ver o seu relógio!
De cara fechada, o Rei tirou do pulso a tira expansível de aço inoxidável e entregou o objeto a Grey.
A despeito do seu ódio pelo Rei, Grey sentiu uma fisgada de inveja. O relógio era automático, à prova d’água e de choque. Um Oyster Royal. O bem mais precioso de Changi... excetuando o ouro. Ele virou o relógio e olhou para os números gravados no aço, depois foi até a parede de folhas de palmeira e tirou de lá a lista de bens do Rei, limpando-a automaticamente das formigas. Em seguida, verificou meticulosamente o número do relógio para ver se coincidia com o número do relógio Oyster Royal da lista.
— Confere — falou o Rei. — Não se preocupe. Senhor.
— Não estou preocupado — retrucou Grey. — É você quem deve ficar preocupado.
Devolveu o relógio, o qual eqüivalia a quase seis meses de comida. O Rei recolocou o relógio no pulso e começou a guardar a carteira e as outras coisas.
— Ah, sim, o seu anel! — disse Grey. — Vamos conferi-lo.
Mas o anel também conferia com a lista. Constava nela como Um anel de ouro, sinete do Clã Gordon. Ao lado da descrição, havia um desenho do selo.
— Como é que um americano possui um anel Gordon? — Grey já fizera essa pergunta muitas vezes.
— Eu o ganhei no pôquer — respondeu o Rei.
— Que memória notável você tem, Cabo — disse Grey, devolvendo o anel. Ele soubera o tempo todo que o anel e o relógio iam conferir com a lista. Usara a revista apenas como pretexto. Sentia-se compelido, quase como por masoquismo, a ficar perto de sua presa, por algum tempo. Sabia, também, que o Rei não se assustava com facilidade. Muitos haviam tentado pegá-lo, e falharam, pois ele era esperto, cauteloso e muito astuto.
— Por quê? — perguntou Grey com aspereza, subitamente fervendo de inveja do relógio, anel, cigarros, fósforos e dinheiro — você tem tanto e o resto de nós nada?
— Não sei. Senhor. Acho que tenho sorte, só isso.
— Onde arranjou esse dinheiro?
— Jogando. Senhor. — O Rei era sempre educado. Sempre dizia “Senhor” para os oficiais, e fazia continência para os oficiais, oficiais ingleses e australianos. Mas sabia que eles tinham ciência da extensão do seu desprezo pelo “Senhor” e pelas continências. Não era o modo americano. Um homem é um homem, independente dos seus antecedentes, ou família, ou posto. Se você o respeita, chama-o de “Senhor”. Se não o respeita, então não o chama assim, e são apenas os filhos da puta que reclamam. Para o diabo com eles.
O Rei recolocou o anel no dedo, abotoou os bolsos e tirou um pouco de pó da camisa com as pontas dos dedos.
— É só? Senhor. — Notou o lampejo de raiva nos olhos de Grey.
A seguir, Grey olhou para Masters, que assistia a tudo nervosamente.
— Sargento, quer dar-me um pouco d’água, por favor? Cansadamente, Masters foi pegar o cantil pendurado na parede.
— Pronto, senhor.
— Essa é de ontem — disse Grey, sabendo que não era. — Encha-o com água fresca.
— Eu podia jurar que já o tinha feito — falou Masters. Depois, sacudindo a cabeça, afastou-se.
Grey deixou o silêncio pesar, enquanto o Rei ficava esperando, tranqüilamente. Uma aragem sacudiu os coqueiros que subiam acima da mata do lado de fora da cerca, trazendo a promessa de chuva. Já havia nuvens negras orlando o céu oriental, e logo cobririam todo o céu. Logo elas virariam o pó em lama, e tornariam o ar úmido respirável.
— Quer um cigarro? Senhor — disse o Rei, oferecendo o maço.
A última vez que Grey fumara um cigarro comprado pronto fora há dois anos, no dia do seu aniversário. Seu 22? aniversário. Fitou o maço e teve vontade de fumar um, de fumar todos.
— Não — falou sombriamente. — Não quero um dos seus cigarros.
— Não se importa que eu fume? Senhor.
— Importo-me, sim!
O Rei manteve os olhos fitos nos de Grey e calmamente pegou um cigarro. Acendeu-o e deu uma boa tragada.
— Tire isso da boca! — ordenou Grey.
— Claro. Senhor. — O Rei deu uma chupada longa e lenta no cigarro, antes de obedecer. Depois, endureceu. — Não estou sob suas ordens, e não há lei que diga que não posso fumar quando tenho vontade. Sou americano e não estou sujeito a nenhum inglês metido a patriota! Já lhe explicaram isso, não foi? Largue o meu pé! Senhor.
— Agora estou atrás de você, Cabo — explodiu Grey. — Logo vai escorregar, e quando o fizer, estarei à espera e então você irá para lá. — O dedo dele tremia enquanto apontava para a jaula tosca de bambu que fazia as vezes de cela. — Lá é que é o seu lugar.
— Não estou infringindo nenhuma lei...
— Então, onde arranja o dinheiro?
— Jogando. — O Rei acercou-se de Grey. A raiva dele estava controlada, mas ele era mais perigoso do que de costume. — Ninguém me dá nada. O que tenho é meu e eu o ganhei. Como o ganhei só a mim diz respeito.
— Não enquanto eu for o Chefe da Polícia Militar. — Os punhos de Grey se cerraram. — Muitas drogas foram roubadas nesses meses. Talvez você saiba alguma coisa sobre elas.
— Ora, seu... Ouça — disse o Rei, furioso — nunca roubei nada na minha vida. Nunca vendi drogas na vida, e não se esqueça disso! Porra, se o senhor não fosse oficial, eu...
— Mas eu sou, e gostaria de vê-lo tentar. Por Deus, como gostaria! Você pensa que é tão durão. Bem, eu sei que não é.
— Vou dizer-lhe uma coisa. Quando sairmos dessa merda de Changi, venha procurar-me para ajustarmos as contas...
— Não me esquecerei! — Grey tentou acalmar o coração que disparava. — Mas lembre-se, até lá estarei vigiando e esperando. Nunca ouvi falar de uma maré de sorte que não se acabasse. E a sua vai acabar!
— Ah, não vai, não! Senhor. — Mas o Rei sabia que havia grande dose de verdade naquilo. A sua sorte fora boa. Muito boa. Mas a sorte é dar duro, planejar e algo mais, e não jogar. Pelo menos se não for um jogo calculado. Como hoje e os diamantes. Quatro quilates inteiros. Finalmente sabia como botar as mãos neles. Quando estivesse pronto. E se ele pudesse fazer esse único negócio, seria o último, e não haveria mais necessidade de jogar... não aqui em Changi.
— Sua maré de sorte vai acabar — disse Grey, maldosamente. — Sabe por quê? Porque você é como todos os criminosos. Ambicioso...
— Não sou obrigado a engolir isso do senhor — falou o Rei, sem conseguir controlar a raiva. — Não sou mais criminoso do que...
— Ah, mas é, sim. Infringe a lei o tempo todo.
— Infrinjo uma ova. A lei japonesa pode dizer...
— Para o diabo a lei japonesa. Estou falando da lei do campo. A lei do campo diz: nada de comércio. E é isso o que você faz.
— Prove!
— Acabo provando. Você vai cometer um deslize. E então veremos como vai sobreviver junto com o resto de nós. Na minha jaula. E depois da minha jaula, providenciarei pessoalmente para que seja mandado para Utram Road!
O Rei sentiu um horror gelado no coração e nos testículos.
— Jesus — falou, tensamente. — Você é bem filho da mãe para fazer isso.
— No seu caso — disse Grey, com os lábios espumando — seria um prazer. Os japoneses são seus amigos!
— Ora, seu filho da puta! — O Rei cerrou o punho imenso e avançou para Grey.
— O que está havendo aqui? — perguntou o Coronel Brant, subindo pesadamente os degraus e entrando na choça. Era um homem pequeno, mal passava de l,52m, com a barba enrolada sob o queixo, à moda sikh. Carregava um bastão militar. O quepe de pala dele já não tinha pala, e estava todo remendado com pano de saco. No centro do quepe, o emblema de um regimento brilhava como ouro, após anos de polimento.
— Nada... nada, senhor. — Grey afastou a súbita nuvem de moscas, tentando controlar a respiração. — Estava apenas... revistando o Cabo...
— Ora, vamos, Grey — interrompeu o Coronel Brant, irritado. — Ouvi o que você disse sobre Utram Road e os japoneses. É perfeitamente legal revistá-lo e interrogá-lo, como todos sabem, mas não há motivo para ameaçá-lo ou destratá-lo. — Virou-se para o Rei, a testa perolada de suor. — Quanto a você, Cabo. Agradeça aos céus que eu não o denuncie por indisciplina ao Capitão Brough. Devia ter mais bom senso e não andar vestido desse jeito. Isso basta para deixar qualquer um maluco. Está pedindo encrenca.
— Sim, senhor — disse o Rei, externamente calmo, mas internamente se amaldiçoando por ter perdido a cabeça... exatamente o que Grey estava querendo que ele fizesse.
— Olhe para minhas roupas — dizia o Coronel Brant. — Que diabo, como acha que me sinto?
O Rei não respondeu. Pensava: Problema seu, cara... cuide de si mesmo, estou cuidando de mim. O Coronel usava apenas uma tanga, feita de metade de um sarongue, amarrada na cintura como um saiote escocês, e por baixo do saiote não havia nada. O Rei era o único homem em Changi que usava cuecas. Tinha seis delas.
— Acha que não tenho inveja dos seus sapatos? — perguntou o Coronel Brant, com irritação. — Quando só o que tenho para usar são essas drogas? — Estava usando os chinelos regulamentares: um pedaço de madeira e uma tira de lona no peito do pé.
— Não sei, senhor — disse o Rei, com humildade velada, tão cara aos ouvidos dos oficiais.
— Certo. Certo. — O Coronel Brant virou-se para Grey. — Acho que lhe deve uma desculpa. É muito errado ameaçá-lo. Temos que ser justos, hem, Grey? — E tirou mais um pouco de suor do rosto.
Grey fez um esforço enorme para deter o palavrão que lhe tremia na ponta dos lábios.
— Desculpe. — A palavra era baixa e tensa, e o Rei quase não conseguiu conter o sorriso.
— Muito bem. — O Coronel Brant meneou a cabeça, depois olhou para o Rei. — Está certo, pode ir. Mas, vestido desse jeito, está pedindo encrenca! A culpa é só sua!
O Rei fez uma bela continência.
— Obrigado, senhor. — E saiu da choça, e do lado de fora, ao calor do Sol, respirou com tranqüilidade e amaldiçoou-se de novo. Jesus, mas fora por pouco. Quase batera no Grey, o que teria sido o ato de um maníaco. Para acabar de se controlar, parou ao lado da trilha e acendeu outro cigarro, e os muitos homens que passaram por ele viram o cigarro e sentiram seu aroma.
— Maldito sujeito — falou, finalmente, o Coronel, ainda seguindo-o com o olhar, e enxugando a testa. Depois, voltou-se para Grey. — Francamente, Grey, você deve estar maluco, provocando-o daquele jeito.
— Sinto muito. Suponho que ele...
— Seja lá o que ele for, não fica bem a um oficial e um cavalheiro perder a calma. Ruim, muito ruim, não acha?
— Sim, senhor. — Nada mais havia que Grey pudesse dizer. O Coronel Brant resmungou, e depois franziu os lábios.
— Certo. Foi sorte eu estar passando. Não posso permitir um oficial brigando com um simples soldado. — Olhou de novo pela porta, odiando o Rei, desejando seu cigarro. — Maldito — falou, sem voltar os olhos para Grey — indisciplinado. Como o resto dos americanos. Bando de gente ruim. Imagine, chamam os oficiais pelo primeiro nome! — Suas sobrancelhas se ergueram, bem alto. — E os oficiais jogam cartas com os soldados! Que barbaridade! Piores que os australianos... e estes são uma parada. Miseráveis! Não são como o Exército Indiano, hem?
— Não. Senhor — retrucou Grey, friamente. O Coronel Brant virou-se rapidamente.
— Não quis dizer... bem, Grey, só porque... — Parou, e de repente ficou com os olhos rasos d’água. — Por que, por que fizeram aquilo? — falou, desalentado. — Por que, Grey? Eu... nós todos os amávamos.
Grey deu de ombros. Se não fosse pelo pedido de desculpas, estaria com pena.
O Coronel hesitou, depois virou-se e saiu da choça. A cabeça baixa, lágrimas silenciosas correndo por seu rosto.
Quando Cingapura caiu, em 1942, os seus soldados sikhs passaram para o lado do inimigo, os japoneses, até quase o último homem, e viraram-se contra os seus oficiais ingleses. Os sikhs estavam entre os primeiros guardas dos prisioneiros de guerra e alguns deles eram bárbaros. Os oficiais dos sikhs não tinham paz. Pois foram apenas os sikhs que mudaram de lado, quase unanimemente, e mais uns poucos de outros regimentos indianos. Os gurkhas foram leais até o último homem, sob tortura e indignidade. E assim o Coronel Brant chorava por seus homens, os homens por quem teria morrido, os homens por quem ainda morria. Grey ficou olhando-o afastar-se, depois viu o Rei fumando ao lado da trilha.
— Ainda bem que eu disse que agora é você ou eu — murmurou consigo mesmo.
Recostou-se no banco, enquanto uma fisgada de dor percorria seus intestinos, relembrando-o de que a disenteria não passara ao largo dele, naquela semana.
— Que vá tudo para o inferno — resmungou, amaldiçoando o Coronel Brant e o pedido de desculpas.
Masters voltou com o cantil cheio, e passou-o para ele. Tomou um gole, agradeceu, e depois começou a planejar como pegaria o Rei. Mas sentiu a fome da hora do almoço, e deixou o pensamento à deriva.
Um leve gemido cortou o ar. Grey olhou abruptamente para Masters, que estava sentado, inconsciente de ter emitido um som, observando o movimento constante das lagartixas nos caibros do telhado, enquanto perseguiam insetos ou fornicavam.
— Está com disenteria, Masters?
Masters afastou desanimado as moscas que faziam mosaicos no seu rosto.
— Não, senhor. Pelo menos, há umas cinco semanas que não a tenho.
— Entérica?
— Não, graças a Deus. Dou a minha palavra. Só amébica. E há quase três meses que não tenho malária. Tenho muita sorte, e estou em boa forma, levando tudo em consideração.
— É. — comentou Grey. Depois, como se tivesse refletido: — Está parecendo em forma. — Mas sabia que teria que arranjar em breve um substituto. Voltou a olhar para o Rei, vendo-o fumar, e nauseado com o desejo de fumar.
Masters gemeu de novo.
— Mas que diabo, o que há com você? — perguntou Grey, irado.
— Nada, senhor. Nada. Devo ter...
Mas o esforço de falar era demasiado, e Masters deixou as palavras irem sumindo e se misturando com o zumbido das moscas. As moscas dominavam o dia, os mosquitos a noite. Não havia silêncio. Nunca. Como seria viver sem moscas, mosquitos e gente? Masters tentou lembrar-se, mas o esforço era grande demais. E então ele ficava sentado, quieto, imóvel, mal respirando, uma casca de homem. E sua alma se retorcia inquieta.
— Muito bem, Masters, pode ir embora — falou Grey. — Vou esperar o seu substituto. Quem é ele?
Masters forçou o cérebro a trabalhar e, depois de um momento, respondeu:
— Bluey... Bluey White.
— Pelo amor de Deus, controle-se — falou Grey, bruscamente. — O Cabo White morreu faz três semanas.
— Ah, desculpe, senhor — disse Masters, debilmente. — Desculpe. Devo ter... É... hã... acho que é Peterson. O inglês. Da Infantaria, acho.
— Está certo. Agora, pode ir almoçar. Mas não remanche para voltar.
— Sim, senhor.
Masters botou o chapéu de cule de palhinha na cabeça, fez continência e se mandou pela abertura da porta, sem porta, puxando para cima os trapos da calça. Deus, pensou Grey, dá para sentir o fedor dele a 20 metros de distância. Precisam dar-nos mais sabão.
Porém, sabia que não era só o Masters. Eram todos eles. Se você não se lavava seis vezes por dia, o suor o envolvia como uma mortalha. E pensando em mortalhas, pensou de novo em Masters... e na marca que este tinha. Quem sabe Masters também tinha ciência dela, e daí, para que se lavar?
Grey tinha visto muitos homens morrerem. Ficou cheio de amargura ao pensar no regimento e na guerra. Maldição, quase gritou, 24 anos e ainda Tenente! E a guerra continuando à sua volta... no mundo todo. Promoções em cada dia do ano. Oportunidades. E cá estou nesse campo de prisioneiros de guerra fedorento, e ainda um Tenente. Ó, Cristo! Se não tivéssemos sido desviados para Cingapura em 1942. Se tivéssemos ido para onde devíamos ir... para o Cáucaso. Se...
— Pare! — exclamou em voz alta. — Você está tão ruim quanto o Masters, seu bestalhão!
No campo, era normal conversar consigo mesmo em voz alta, às vezes. Melhor botar para fora, diziam os médicos, do que prender tudo dentro de si... isso conduzia à insanidade. A maioria dos dias não era assim tão ruim. A gente podia parar de pensar na nossa outra vida, na sua essência — comida, mulheres, lar, comida, comida, mulheres, comida. Mas as noites é que eram perigosas. À noite, a gente sonhava. Sonhava com comida e mulheres. A mulher da gente. E logo se passava a gostar mais de sonhar do que de acordar, e se a gente não tomasse cuidado, sonharia acordado, e os dias se confundiriam com as noites, e a noite com o dia. E então haveria apenas a morte. Suave. Gentil. Era fácil morrer. E uma agonia viver. Exceto para o Rei. Ele não sentia agonia.
Grey ainda o observava, tentando ouvir o que dizia ao homem que se achava ao seu lado, mas estavam longe demais. Grey tentou identificar o outro homem, mas não conseguiu. Pela braçadeira do homem, pôde ver que era um Major. Os. japoneses haviam baixado ordem para que todos os oficiais usassem braçadeiras com as insígnias do posto no braço esquerdo. Em todas as horas. Até mesmo estando nus.
As nuvens negras da chuva aumentavam rapidamente. Raios riscavam o céu do leste, mas ainda assim o Sol brilhava. Uma brisa fétida varreu momentaneamente a poeira, depois deixou que ela se acomodasse.
Automaticamente, Grey usou o mata-moscas de bambu. Uma girada de pulso hábil e semiconsciente e mais outra mosca caiu ao chão, mutilada. Matar uma mosca era um ato de descuido. Se a mutilássemos, então a filha da mãe iria sofrer e pagar, embora apenas parcialmente, o nosso sofrimento. Se a mutilássemos, ela daria gritos mudos até que as formigas e outras moscas viessem lutar por seu corpo ainda vivo.
Mas Grey não sentiu o prazer de sempre em ver o tormento da atormentadora. Estava interessado demais no Rei.
2
— Puxa vida — dizia o Major para o Rei, com jovialidade forçada — e houve aquela vez em que estive em Nova York. Em 1933. Diverti-me à grande. País maravilhoso, os Estados Unidos. Já lhe contei sobre a viagem que fiz a Albany? Era subalterno, na época...
— Sim, senhor — disse o Rei, com enfado. — Já contou. — Achou que já tinha sido educado por tempo suficiente, e ainda podia sentir os olhos de Grey em sua pessoa. Embora estivesse seguro e não tivesse medo, ainda assim queria sair do Sol, para fora do alcance daqueles olhos. Tinha muito o que fazer. E se o Major não dissesse logo o que queria, que fosse para o diabo! -Bem, senhor, se me dá licença. Foi um prazer conversar com o senhor.
— Espere um minuto — falou, depressa, o Major Barry, olhando ao redor nervosamente, cônscio dos olhares curiosos dos homens que passavam, e ciente da pergunta mal formulada deles: “Para que ele está conversando com o Rei?” — Eu... hã... será que podia falar com você em particular?
O Rei avaliou-o, pensativo.
— Estamos em particular, aqui. Se o senhor falar baixo.
O Major Barry estava cheio de vergonha. Mas há dias que tentava encontrar-se com o Rei. E essa oportunidade era boa demais para desperdiçar.
— Mas a choça do Chefe da Polícia Militar fica...
— E que é que os tiras têm a ver com se falar em particular? Não estou entendendo, senhor. — O Rei estava inexpressivo.
— Não há necessidade de... hã, bem, o Coronel Sellars disse que você me podia ajudar. — O Major Barry tinha apenas o coto do braço direito, e ficava coçando o coto, tocando-o, alisando-o. — Quer... cuidar de uma coisa para nós, quero dizer, para mim? — Esperou até que ninguém pudesse ouvir.
— É um isqueiro — sussurrou. — Um isqueiro Ronson. Em perfeito estado.
— Agora que fora ao âmago da questão, o Major se sentia mais tranqüilo. Mas ao mesmo tempo, sentia-se nu, dizendo tais palavras para o americano, à luz do Sol, no caminho público.
O Rei pensou por um momento.
— Quem é o dono?
— Sou eu. — O Major ergueu os olhos, espantado. — Meu Deus, não está pensando que o roubei, está? Santo Deus, jamais faria isso. Guardei-o durante todo esse tempo, mas agora, bem, agora temos que vendê-lo. Toda a unidade concordou. — Ele lambeu os lábios secos e acariciou o coto. — Por favor. Você o faria? Pode conseguir o melhor preço.
— Comerciar é contra a lei.
— Sim, mas por favor, será que... por favor? Pode confiar em mim.
O Rei virou-se de modo a ficar de costas para Grey e de cara para a cerca... para a eventualidade de Grey saber leitura labial.
— Vou mandar alguém depois do rancho — disse, em voz baixa. — A senha é: “O Tenente Albany me mandou procurá-lo.” Entendeu?
— Sim. — O Major Barry hesitou, com o coração disparando. — Quando foi que disse?
— Depois do rancho. Almoço!
— Ah, certo.
— Basta dá-lo a ele. E depois de examiná-lo, entrarei em contato com o senhor. A mesma senha. — O Rei sacudiu fora a ponta ardente do cigarro, e jogou a guimba no chão. Já ia pisar nela, quando viu a cara do Major. — Ah! Quer a guimba?
O Major Barry abaixou-se, todo feliz, e apanhou-a do chão.
— Obrigado. Muito obrigado. — Abriu sua latinha de tabaco e tirou com cuidado o papel que envolvia a guimba, e colocou os dois centímetros de tabaco junto com as folhas secas de chá, e misturou tudo. — Nada como um pouco de adoçante — disse, sorrindo. — Muito obrigado. Isso dará pelo menos três bons cigarros.
— Até mais ver, senhor — disse o Rei, batendo continência.
— Oh, bem... — O Major Barry não sabia direito como se expressar. — Não acha — disse nervosamente, falando baixo — que, bem... dá-lo a um estranho, sem mais nem menos, como vou saber que... bem, que tudo vai dar certo?
— A senha, para começo de conversa — disse o Rei, friamente. — E há mais, tenho a minha reputação. Além disso, estou confiando em sua palavra de que não é roubado. Quem sabe é melhor esquecermos tudo.
— Ah, não, por favor não me entenda mal — disse, rapidamente, o Major.
— Estava só perguntando. É que, bem, é só isso que me resta. — Tentou sorrir.
— Obrigado. Depois do almoço. Ah, quanto tempo você. acha que vai levar para, hã, livrar-se dele?
— O mais depressa que puder. Os termos de costume. Eu levo dez por cento do preço de venda — disse o Rei, vivamente.
— Claro. Obrigado, e obrigado mais uma vez pelo tabaco. — Agora que tudo fora dito, o Major Barry sentiu sair um enorme peso de cima de si. Com sorte, pensou, enquanto descia rapidamente o morro, arranjaremos uns 600 ou 700 dólares. O bastante para comprar comida durante meses, com cuidado. Não pensou uma única vez no homem que fora o dono do isqueiro, e que o entregara para ele guardar quando fora para o hospital, há meses, para nunca mais voltar. Isso pertencia ao passado. Hoje, ele era o dono do isqueiro. Era dele. Para vender, se quisesse.
O Rei sabia que Grey o observara o tempo todo. A emoção de ter feito um negócio na frente da choça da PM aumentava o seu bem-estar. Satisfeito consigo mesmo, subiu a ligeira elevação, respondendo automaticamente aos cumprimentos dos homens... oficiais e soldados, ingleses e australianos... que conhecia. Os importantes recebiam tratamento especial, os outros um aceno de cabeça amistoso. O Rei tinha consciência da inveja maldosa deles, mas ela não o incomodava nem um pouquinho. Estava acostumado; aquilo o divertia e aumentava seu valor. E agradava-lhe ser chamado de o Rei pelos homens. Tinha orgulho do que havia feito como homem... como americano. Criara um mundo pela astúcia. Examinava o seu mundo, agora, e estava bem satisfeito.
Parou diante da Choça 24, uma das australianas, e enfiou a cabeça pela janela.
— Ei, Tinker — chamou. — Quero fazer a barba e as unhas.
Tinker Bell era pequeno e magro. Tinha a pele morena, os olhos pequenos e muito castanhos e o nariz descascado. Era tosquiador de ovelhas, mas em Changi era o melhor barbeiro.
— Qual é, será que é o seu aniversário? Já fiz suas unhas anteontem.
— E daí, faça hoje de novo.
Tinker deu de ombros e pulou pela janela. O Rei sentou-se na cadeira que ficava protegida pelo toldo de folhas do telhado, relaxando, satisfeito, enquanto Tinker amarrava o pano no seu pescoço e punha-o na posição certa.
— Olhe só para isso, meu chapa — falou, e segurou um pequeno sabonete sob o nariz do Rei. — Sinta o cheiro.
— Ei — disse o Rei, abrindo um sorriso. — Esse é genuíno.
— Isso eu não sei, meu chapa! Mas é sabonete de violetas da Yardley. Um cupincha meu afanou-o num grupo de trabalho. Bem debaixo do nariz de um maldito japonês. Custou-me trinta dólares — falou, piscando o olho e dobrando o preço. — Posso guardá-lo especialmente para você, se quiser.
— Escute só: pago cinco dólares por vez, ao invés de três, enquanto ele durar — disse o Rei.
Tinker fez as contas, rapidamente. O sabonete ia durar umas oito barbas, talvez dez.
— Tenha dó, meu chapa. Assim, mal recupero meu dinheiro.
— Você foi tapeado, Tink — resmungou o Rei. — Posso comprar isso, no atacado, por quinze dólares o sabonete.
— Puta que o pariu! — exclamou Tinker, fingindo raiva. — Um cupincha meu me fazendo de otário! Isso não é direito! — Furiosamente, misturou água quente e o sabonete perfumado até fazer espuma. Depois, deu uma risada. — Você é mesmo o Rei, meu chapa.
— É — retrucou o Rei, satisfeito. Ele e Tinker eram velhos amigos.
— Pronto, meu chapa? — Tinker perguntou, segurando o pincel cheio de espuma.
— Claro. — E então o Rei viu Tex descendo a trilha. — Espere um minuto. — Ei, Tex! — chamou.
Tex olhou para aquele lado e viu o Rei e veio para junto dele.
— Sim? — Tex era um jovem desajeitado, de orelhas grandes, nariz curvo e olhos satisfeitos, e era alto, muito alto.
Sem que lhe pedissem, Tinker afastou-se, enquanto o Rei dizia a Tex para que se aproximasse.
— Quer fazer uma coisa para mim? — perguntou, suavemente.
— Claro.
O Rei pegou a carteira e tirou de lá uma nota de 10 dólares.
— Vá procurar o Coronel Brant. O baixinho com a barba enrolada sob o queixo. Entregue-lhe isso.
— Sabe onde ele deve estar?
— Junto do canto da cadeia. É o dia dele ficar de olho no Grey. Tex abriu um sorriso.
— Ouvi contar que vocês se desentenderam.
— O filho da mãe me revistou de novo.
— Que saco — disse Tex secamente, coçando a cabeleira curta.
— É. — O Rei achou graça. — E diga ao Brant para não chegar tão atrasado, na próxima vez. Mas você devia ter estado lá, Tex. Cara, aquele Brant é um grande ator. Até fez o Grey pedir desculpas. — Deu um amplo sorriso, e acrescentou mais cinco dólares. — Diga a ele que isso é pelo pedido de desculpas.
— O.K. Só isso?
— Não. — Disse-lhe a senha e onde encontrar o Major Barry, depois Tex seguiu seu caminho, e o Rei se refestelou. No todo, o dia fora muito lucrativo.
Grey atravessou rapidamente a trilha de chão batido e subiu os degraus da Choça 16. Era quase na hora do almoço, e ele estava morto de fome.
Os homens já estavam formando uma fila, impacientes para receber a comida. Rapidamente, Grey foi até sua cama, pegou as duas latas de rancho, a caneca, a colher e o garfo e entrou na fila.
— Por que ela ainda não chegou? — perguntou, cansadamente, ao homem que estava na sua frente.
— E eu lá sei? — retrucou Dave Daven, secamente. O sotaque dele era de um colégio exclusivo — Eton, Harrow ou Charterhouse — e era alto como bambu.
— Só estava perguntando — disse Grey, irritado, desprezando Daven por seu sotaque e berço.
Depois de esperarem durante uma hora, a comida chegou. Um homem levou dois recipientes até o começo da fila, e os pousou no chão. Os recipientes antigamente continham cinco galões de gasolina de alta octanagem. Agora, um deles estava cheio até a metade de arroz seco, translúcido. O outro estava cheio de sopa.
A sopa de hoje era de tubarão... pelo menos, um tubarão fora dividido, grama por grama, em sopa para 10.000 homens. Estava morna e tinha um leve gosto de peixe, e nela havia pedaços de berinjela e repolho, 45 quilos para 10.000. O grosso da sopa era feito de folhas, vermelhas e verdes, amargas mas nutritivas, plantadas com tanto carinho e cuidado nas hortas do campo. Era temperada com sal e pó de carril e pimenta-malagueta.
Em silêncio, cada homem se adiantava na sua vez, observando servirem o homem à sua frente e o homem às suas costas, comparando as porções deles com a que recebia. Mas agora, depois de três anos, as porções eram todas iguais.
Uma xícara de sopa por cabeça.
O arroz fumegava ao ser servido. Hoje serviam arroz de Java, bem solto, o melhor do mundo. Uma xícara por cabeça.
Uma caneca de chá.
Cada homem se afastava com sua ração, e comia silenciosa e rapidamente, numa agonia exótica. Os gorgulhos do arroz eram um alimento adicional, e o inseto ou o verme da sopa eram retirados sem raiva, caso fossem vistos. Mas a maioria dos homens nem prestava atenção na sopa, após o primeiro rápido olhar, para ver se havia nela um pedaço de peixe.
Naquele dia, sobrou um pouco depois de todos terem sido servidos, e verificou-se a lista, e os três homens que a encabeçavam receberam a sobra e agradeceram pelo dia. E então a comida acabou e o almoço acabou, e o jantar era ao pôr-do-sol.
Mas embora houvesse apenas sopa e arroz, aqui e ali no campo de concentração um homem podia ter um pedaço de coco, ou meia banana, ou um pedaço de sardinha, ou um filete de carne salgada ou até mesmo um ovo para misturar ao arroz. Um ovo inteiro era coisa rara. Uma vez por semana, se as galinhas do campo botassem ovo conforme o planejado, cada homem recebia um ovo. Era um grande dia. Alguns homens recebiam um ovo por dia, mas ninguém queria ser um dos poucos contemplados.
— Ei, escutem aqui, homens! — O Capitão Spence estava no centro da choça, mas sua voz podia ser ouvida do lado de fora. Ele era o oficial da semana, o ajudante da choça, um homem pequeno e moreno com feições retorcidas. Esperou até que todos tivessem vindo para dentro.
— Temos que fornecer mais dez caras para o destacamento do bosque, amanhã. — Verificou sua lista, chamou os nomes, depois ergueu os olhos.
— Marlowe? — Não houve resposta. — Alguém sabe onde anda o Marlowe?
— Acho que está com a unidade dele — respondeu Ewart.
— Diga-lhe que está destacado para o grupo de trabalho na pista de pouso, amanhã, está bem?
— Certo.
Spence começou a tossir. A asma dele estava bem ruinzinha, hoje, e depois que os espasmos passaram, continuou:
— O Comandante do Campo teve outra entrevista com o General japonês, hoje de manhã. Pediu rações maiores e suprimentos médicos. — Pigarreou um pouco, no silêncio momentâneo. Depois continuou, com voz inexpressiva. — Recebeu o fora de costume. A ração de arroz permanece cento e vinte e cinco gramas por homem, diariamente. — Spence olhou para as portas, verificando que os dois vigias estavam em posição. Depois, baixou a voz, e todos os homens escutaram com atenção. — Os Aliados estão a uns cem quilômetros de Mandalay, e ainda prosseguindo firme. Estão botando os japoneses para correr. Os Aliados ainda estão lutando na Bélgica, mas o tempo está péssimo. Tempestades de neve. No front oriental, a mesma coisa, mas os russos estão mandando brasa, e esperam tomar Krakov nos próximos dias. Os ianques estão se saindo bem em Manila. Estão perto de... — hesitou, tentando recordar o nome — acho que é do Rio Agno, em Luzon. É só. Mas é bom.
Spence estava contente por esta parte ter acabado. Decorava as notícias diariamente na reunião dos ajudantes das choças, e cada vez que se levantava para repeti-las em público, suava gelado e sentia um vazio no estômago. Um dia desses um delator poderia dedurá-lo e dizer ao inimigo que ele era um dos homens que davam as notícias, e Spence sabia que não era forte o bastante para ficar calado. Ou então, um dia desses um japonês poderia ouvi-lo contando para os outros, e então, então...
— É só isso, pessoal. — Spence foi até o seu catre, nauseado até a alma. Tirou a calça e saiu da choça com uma toalha jogada sobre o braço.
O Sol estava muito forte. Duas horas ainda, até a chegada da chuva. Spence atravessou a rua asfaltada e entrou na fila para tomar uma chuveirada. Ele sempre tinha que tomar uma chuveirada depois das notícias, para tirar o fedor acre de suor do corpo.
— Que tal, meu chapa? — perguntou Tinker.
O Rei olhou para as unhas. Estavam bem manicuradas. Sentia o rosto esticado pelas toalhas quentes e frias, e cheiroso de loção.
— Formidável — disse, enquanto pagava. — Obrigado, Tink. — Saiu da cadeira, botou o chapéu e fez um sinal de cabeça para Tinker e para o Coronel que esperava, pacientemente, sua vez de cortar o cabelo.
Os dois homens ficaram olhando para sua figura que se afastava.
O Rei percorreu a trilha de novo, andar animado, passando pelas cabanas agrupadas, indo para casa. Estava com uma sensação agradável de fome.
A choça americana ficava separada das demais, perto o bastante dos muros para partilhar da sombra da tarde, perto o bastante da trilha circundante que era o fluxo vital do campo, e perto o bastante da cerca. Era perfeito. O Capitão Brough, da Força Aérea Americana, o oficial americano mais antigo, insistira que os soldados americanos tivessem sua própria choça. A maioria dos oficiais americanos teria preferido mudar-se para lá, também — era difícil para eles viverem entre estrangeiros — mas isso não era permitido, pois os japoneses haviam ordenado que os oficiais fossem separados dos soldados. As outras nacionalidades achavam duro engolir isso, os australianos menos do que os ingleses.
O Rei pensava no diamante. Não seria fácil fazer esse negócio, mas ele tinha que fazê-lo. E então, enquanto se acercava da choça, reparou num jovem agachado ao lado da trilha, falando rapidamente em malaio com um nativo. A pele do homem estava bem queimada, e os músculos apareciam sob a pele. Ombros largos. Quadris estreitos. O homem usava apenas um sarongue, que ficava muito bem nele. Seu rosto era irregular, e embora tivesse a magreza típica de Changi, seus movimentos eram graciosos, e ele tinha vida.
O malaio — moreno-escuro, minúsculo — escutava atentamente o que o outro dizia; depois riu, deixando à mostra dentes estragados pela noz-de-areça, e respondeu, acentuando o idioma melodioso com um gesto da mão. O homem riu também, e interrompeu-o com um jorro de palavras, indiferente ao olhar fixo do Rei.
O Rei pôde apenas pegar uma palavra aqui e ali, pois seu malaio era muito ruim, e tinha que se safar com uma mistura de malaio, japonês e um jargão formado por palavras inglesas e chinesas. Escutou a risada gostosa, sabendo que era uma coisa rara. Quando esse homem ria, via-se que o riso vinha de dentro dele. Isso era uma coisa rara, sem preço.
Pensativo, o Rei entrou na cabana. Os outros homens ergueram os olhos e cumprimentaram-no amavelmente. Retribuiu os cumprimentos, sem favoritismos. Mas ele sabia, e eles sabiam.
Dino estava deitado em seu catre, semi-adormecido. Era um homenzinho bem-feito, de pele escura e cabelos escuros, prematuramente salpicados de fios grisalhos, e olhos suaves e velados. O Rei sentiu os olhos sobre si, e meneou a cabeça e viu o sorriso de Dino. Mas os olhos não estavam sorrindo.
Nos fundos da cabana, Kurt levantou os olhos da calça que tentava remendar, e cuspiu no chão. Era um homem atrofiado, com cara de mau, de dentes castanho-amarelados; parecia um rato e sempre cuspia no chão e ninguém gostava dele, pois nunca tomava banho. Perto do centro da cabana, Byron Jones III e Miller jogavam sua interminável partida de xadrez. Ambos estavam nus. Quando o navio mercante de Miller fora torpedeado, há dois anos, ele pesava 130 quilos. Media dois metros de altura. Agora, estava pesando 60 quilos, e as dobras da pele da barriga pendiam sobre seu sexo. Os olhos azuis iluminaram-se quando estendeu a mão e tomou um cavalo. Byron Jones III removeu rapidamente o’ cavalo, e agora Miller viu que sua torre estava ameaçada.
— Entrou pelo cano, Miller — disse Jones, coçando as feridas das pernas.
— Vá pro diabo!
— A Marinha de Guerra sempre pôde vencer a Marinha Mercante em qualquer campo — disse Jones, rindo.
— Assim mesmo, seus filhos da mãe, vocês ainda afundaram. Num navio de guerra!
— É — retrucou Jones, pensativo, brincando com o tapa-olho recordando a morte do seu navio, o Houston, a morte dos companheiros e a perda do olho.
O Rei atravessou toda a extensão da choça. Max ainda estava sentado ao lado de sua cama e da grande caixa negra acorrentada à cama.
— O.K., Max — disse o Rei. — Obrigado. Pode largar, agora.
— Claro. — Max tinha um rosto muito gasto. Provinha do West Side de Nova York, e aprendera bem jovem as lições da vida naquelas ruas. Tinha os olhos castanhos e irrequietos.
Automaticamente, o Rei pegou a caixa de tabaco e deu a Max um pouco do seu fumo cru.
— Puxa, obrigado — falou Max. — Ah, sim, Lee mandou que eu lhe dissesse que já lavou sua roupa. Ele vai pegar a comida, hoje... estamos no segundo turno... mas mandou que lhe dissesse.
— Obrigado. — O Rei pegou seu maço de Kooas, e um silêncio momentâneo caiu sobre a choça. Antes que o Rei pudesse pegar os fósforos, Max já estava acendendo seu isqueiro nativo de pederneira. — Obrigado, Max. — O Rei deu uma tragada profunda. Depois de uma pausa, perguntou: — Quer um Kooa?
— Jesus, claro, obrigado — retrucou Max, sem ligar para a ironia na voz do Rei. — Quer mais alguma coisa?
— Chamo se precisar.
Max atravessou a choça e foi sentar-se na sua cama, ao lado da porta. Olhos viram o cigarro, mas as bocas nada disseram. Era do Max, que fizera jus a ele. Quando fosse o dia deles tomarem conta dos pertences do Rei, então quem sabe também ganhariam um.
Dino sorriu para Max, que piscou o olho. Eles rachariam o cigarro, depois do rancho. Sempre rachavam o que podiam encontrar, ou roubar, ou ganhar. Max e Dino eram uma unidade.
E era a mesma coisa em todo o mundo de Changi. Os homens comiam e confiavam em grupos de dois, três, raramente quatro. Um homem não podia cobrir terreno suficiente, ou encontrar algo de comer e acender uma fogueira e cozinhá-lo e comê-lo... não um homem sozinho. Três era a unidade perfeita. Um para pilhar, um para tomar conta do que fora pilhado, e um de reserva. Quando o reserva não estava doente, também ele pilhava ou tomava conta. Tudo era rachado em três partes: se você ganhava um ovo, ou roubava um coco, ou encontrava uma banana num grupo de trabalho, ou arranjava qualquer coisa, tudo ia para a unidade. A lei, como toda a lei natural, era simples. Só se sobrevivia graças ao esforço mútuo. Esconder algo da unidade, era faltai, pois, se você fosse expulso de uma unidade, logo todo o mundo ficava sabendo. E era impossível sobreviver sozinho.
Mas o Rei não tinha uma unidade. Ele se bastava.
A sua cama ficava no melhor canto da cabana, sob uma janela, colocada no ângulo certo para pegar a brisa mais ligeira. A cama mais próxima ficava a dois metros e meio de distância. A cama do Rei era boa. De aço. As molas eram firmes e o colchão cheio de paina. A cama tinha duas cobertas, e a pureza dos lençóis aparecia por baixo da coberta de cima, perto do travesseiro imaculado. Acima da cama, bem esticado em estacas, havia um mosquiteiro. Impecável.
O Rei também tinha uma mesa e duas poltronas, e um tapete de cada lado da cama. Numa prateleira, atrás da cama, ficava seu equipamento de barbear... navalha, pincel, sabão, lâminas — e ao lado dele, seus pratos e xícaras e fogareiro elétrico feito em casa e utensílios de cozinhar e comer. Na parede de canto estavam penduradas suas roupas, quatro camisas e quatro calças compridas e quatro calças curtas. Havia seis pares de meias e seis cuecas numa prateleira. Sob a cama ficavam dois pares de sapatos, chinelos de banho e um par de lustrosos tamancos indianos.
O Rei sentou-se numa das poltronas e certificou-se de que tudo ainda estivesse no lugar. Notou que o fio de cabelo que colocara delicadamente sobre a navalha não mais se achava lá. Filhos da mãe duma figa, pensou, por que devo arriscar-me a pegar as mazelas deles. Mas ficou calado, tomando nota mentalmente para trancá-la, no futuro.
— Oi — falou Tex. — Está ocupado?
“Ocupado” era outra senha. Queria dizer: “Está pronto para receber a encomenda?”
O Rei sorriu e fez que sim, e Tex passou-lhe com cuidado o isqueiro Ronson.
— Obrigado — disse o Rei. — Quer a minha sopa, hoje?
— Se quero — disse Tex, afastando-se.
O Rei examinou calmamente o isqueiro. Como o Major dissera, era quase novo. Não estava arranhado. Funcionava sem falhar. E estava muito limpo. Desatarrachou o parafuso da pederneira e examinou-a. Era uma pederneira nativa barata, e estava quase no fim; então ele abriu a caixa de charutos da prateleira e pegou o recipiente de pederneiras Ronson, e colocou uma pederneira nova no isqueiro. Apertou a alavanca, e ele funcionou. Um ajuste cuidadoso do pavio, e ficou satisfeito. O isqueiro não era fajuto, e renderia de 800 a 900 dólares, na certa.
De onde estava sentado, podia ver o rapaz e o malaio. Ainda estavam no maior blá-blá-blá.
— Max — chamou, suavemente.
Max atravessou rapidamente a cabana.
— Sim?
— Está vendo aquele cara? — falou o Rei, indicando os dois do lado de fora da janela.
— Qual? O nativo?
— Não, o outro. Vá buscá-lo para mim, está bem? Max saltou pela janela e cruzou a trilha.
— Ei, cara — falou abruptamente para o rapaz. — O Rei quer vê-lo. — E indicou a choça com o polegar. — E depressinha.
O homem ficou olhando abobado para Max, depois acompanhou a direção do polegar e viu a choça americana.
— Eu? — perguntou incrédulo, olhando de novo para Max.
— É, você — disse Max, impaciente.
— Para quê?
— E como vou saber, ora!
O homem olhou para Max, endurecendo a fisionomia. Pensou por um momento, depois virou-se para Suliman, o malaio.
— Nantilah — disse.
— Bik, tuan — retrucou Suliman, preparando-se para esperar. A seguir, acrescentou, em malaio: — Cuidai-vos, tuan. E ide com Deus.
— Não temais, meu amigo... mas agradeço a vossa preocupação — respondeu o homem, sorrindo. Levantou-se e acompanhou Max para dentro da choça.
— Queria ver-me? — indagou, acercando-se do Rei.
— Oi — disse o Rei, sorridente. Notou que os olhos do homem eram reservados. Aquilo o deixou satisfeito, pois era coisa rara. — Sente-se. — Fez um gesto de cabeça para Max, que foi embora. Sem que fosse preciso pedir, os outros homens que estavam por perto afastaram-se, para que o Rei pudesse falar em particular. — Vamos, sente-se — disse o Rei, cordialmente.
— Obrigado.
— Quer um cigarro?
Os olhos do homem se arregalaram ao ver o Kooa que lhe era oferecido. Hesitou, depois pegou-o. Seu espanto aumentou quando o Rei fez funcionar o Ronson, mas tentou ocultá-lo, e tragou com gosto o cigarro.
— Bom, muito bom — falou, saboreando. — Obrigado.
— Como se chama?
— Marlowe. Peter Marlowe. — Depois, acrescentou, ironicamente: — E você?
O Rei achou graça. Ótimo, pensou, o sujeito tem senso de humor, e não é nenhum puxa-saco. Arquivou a informação, depois perguntou:
— É inglês?
— Sou.
O Rei nunca notara Peter Marlowe antes, mas isso não era incomum, quando havia 10.000 rostos tão parecidos. Examinou Peter Marlowe silenciosamente, e os olhos azuis tranqüilos devolveram o exame.
— Os Kooas são os melhores cigarros por aqui — disse o Rei, finalmente. — Claro que não se comparam com os Camels. Cigarros americanos, os melhores do mundo. Já provou?
— Já — disse Peter Marlowe — mas são um pouco secos, para o meu gosto. A minha marca é Gold Flake. — A seguir, acrescentou educadamente. — Questão de gosto, suponho.
Fez-se novo silêncio, e ele aguardou que o Rei fosse direto ao assunto. Enquanto esperava, concluiu que simpatizava com o Rei, a despeito da sua reputação, e essa simpatia devia-se ao humor que rebrilhava nos seus olhos.
— Você fala malaio muito bem — disse o Rei, fazendo um sinal de cabeça para o malaio, que esperava pacientemente.
— É, acho que não falo mal.
O Rei abafou uma praga pela modéstia forçada inevitável dos ingleses.
— Aprendeu aqui? — perguntou, pacientemente.
— Não. Em Java. — Peter Marlowe hesitou e olhou ao seu redor. — Você tem uma bela moradia.
— Gosto de conforto. Que tal essa poltrona?
— Boa — replicou, demonstrando uma ponta de surpresa.
— Custou-me oitenta dólares — disse o Rei, com orgulho. — Há um ano. Peter Marlowe olhou vivamente para o Rei, para ver se aquilo era uma brincadeira, dizer-lhe o preço sem mais nem menos, mas viu apenas felicidade e orgulho evidentes. Que extraordinário, pensou, dizer uma coisa dessas a um estranho.
— É muito confortável — replicou, disfarçando o embaraço.
— Vou preparar minha bóia. Quer fazer-me companhia?
— Acabei de... almoçar — respondeu Peter Marlowe, cautelosamente.
— Provavelmente ainda tem lugar para mais comida. Quer um ovo? Agora, Peter Marlowe não podia mais esconder seu assombro, e arregalou os olhos. O Rei sorriu e achou que valia a pena tê-lo convidado para comer, só para ter uma reação daquelas. Ajoelhou-se ao lado da sua caixa preta, e destrancou-a com cuidado.
Peter Marlowe fitou o que ela continha, aparvalhado. Meia dúzia de ovos, sacos de grão de café. Vidros de gula malacca, o delicioso açúcar puxa-puxa do Oriente. Bananas. Pelo menos meio quilo de tabaco javanês. Dez ou 11 maços de Kooas. Um vidro cheio de arroz. Outro com um tipo de feijão nativo, katchang idju. Óleo. Muitas guloseimas enroladas em folhas de bananeira. Há anos que não via tantos tesouros em tais quantidades.
O Rei apanhou o óleo e dois ovos, e trancou de novo a caixa. Quando voltou a olhar para Peter Marlowe, viu que os olhos estavam novamente reservados, a fisionomia composta.
— Como quer seu ovo? Frito?
— Bem, parece-me um tanto injusto aceitar. — Peter Marlowe tinha dificuldade em falar. — Quero dizer, não se anda por aí oferecendo ovos, sem quê nem por quê.
O Rei sorriu. Era um sorriso gostoso e fez bem a Peter Marlowe.
— Nem pense nisso. Ponha na conta “das mãos estendidas sobre o mar”... empréstimos e arrendamentos.
Uma ponta de irritação apareceu no rosto do inglês, e seu queixo endureceu.
— O que foi? — perguntou o Rei, abruptamente. Depois de uma pausa, Peter Marlowe respondeu:
— Nada. — Olhou para o ovo. A sua vez de comer ovo seria daí a seis dias. — Se tem certeza que não estou abusando, gostaria dele frito.
— Já vai sair — disse o Rei. Sabia que tinha cometido algum erro, pois a irritação era real. Os estrangeiros são esquisitos, pensou. Nunca se sabe como vão reagir. Botou o fogareiro elétrico em cima da mesa e ligou-o na tomada. — Legal, não é?
— É.
— Foi o Max quem o preparou para mim — disse, fazendo um sinal para a outra extremidade da cabana.
Peter Marlowe acompanhou seu olhar.
Max ergueu os olhos, sentindo o peso dos olhares.
— Quer alguma coisa?
— Não — disse o Rei. — Só estou contando a ele como você ajeitou a fiação da chapa quente.
— Ah! Está funcionando direitinho?
— Claro.
Peter Marlowe levantou-se e debruçou-se na janela, chamando em malaio:
— Rogo-vos que não espereis. Ver-vos-ei novamente amanhã, Suliman.
— Muito bem, tuan, a paz esteja convosco.
— E convosco também. — Peter Marlowe sorriu e sentou-se novamente, e Suliman se afastou.
O Rei quebrou os ovos com cuidado e jogou-os no óleo quente. A gema era amarelo-ouro, e a massa gelatinosa à sua volta chiou e crepitou contra o calor e começou a endurecer, e de repente o frigir encheu a choça. Encheu as mentes e os corações e fez as bocas ficarem cheias d’água. Mas ninguém disse ou fez nada. Exceto Tex. Ele se forçou a levantar e sair da choça.
Muitos homens que cruzavam a trilha sentiram a fragrância e detestaram o Rei com novo vigor. O aroma desceu a ladeira e invadiu a choça da PM. Grey e Masters souberam logo de onde vinha.
Grey levantou-se, nauseado, e foi até a porta. Ia dar uma volta pelo campo, para fugir do aroma. Depois, mudou de idéia, e voltou.
— Vamos, Sargento — chamou. — Vamos fazer uma visitinha à choça americana. É uma boa hora de verificarmos a história de Sellars!
— Está bem — disse Masters, quase derrubado pelo cheiro. — O filho da mãe nojento bem que podia cozinhar antes do almoço... não logo depois... não quando ainda faltam cinco horas para o jantar.
— Os americanos hoje estão no segundo turno. Ainda não comeram.
Dentro da choça americana, os homens iam-se recompondo. Dino tentou dormir de novo, e Kurt continuou a costurar, e o jogo de pôquer prosseguiu, e Miller e Byron Jones III recomeçaram sua interminável partida de xadrez. Mas o frigir destruiu o drama de uma seqüência, e Kurt espetou o dedo e praguejou obscenamente, Dino perdeu a vontade de dormir e Byron Jones III olhou apalermado enquanto Miller tomava sua rainha com um mísero peão.
— Puta merda! — exclamou Byron Jones III, engasgado, para ninguém em especial. — Queria que chovesse.
Ninguém respondeu. Pois ninguém ouvia outra coisa senão o crepitar e o chiar.
O Rei também estava concentrado na frigideira. Orgulhava-se de que ninguém sabia preparar um ovo melhor do que ele. Para ele, um ovo frito tinha que ser preparado com olho de artista, e rapidamente... embora não depressa demais.
O Rei levantou os olhos e sorriu para Peter Marlowe, mas os olhos deste encontravam-se grudados nos ovos.
— Cristo — disse baixinho, mas era uma bênção, não um desrespeito. — Que cheiro bom.
O Rei ficou satisfeito.
— Espere até eu terminar. Vai ver o ovo mais fabuloso que jamais viu. — Polvilhou os ovos delicadamente com pimenta, depois acrescentou sal. — Gosta de cozinhar?
— Gosto — respondeu Peter Marlowe. A voz dele não se parecia com a sua voz verdadeira, aos próprios ouvidos. — Sou eu que preparo a maior parte da comida para minha unidade.
— Como gosta que o chamem? Pete? Peter?
Peter Marlowe disfarçou a surpresa. Apenas amigos antigos e de confiança chamavam a gente pelo primeiro nome... que outro modo de diferençar os amigos dos conhecidos? Olhou para o Rei e viu apenas afabilidade, e então, sem pensar, respondeu:
— Peter.
— De onde vem? Onde fica sua casa?
Perguntas e mais perguntas, pensou Peter Marlowe. Agora, vai querer saber se sou casado, ou quanto tenho no banco. A curiosidade levara-o a atender o chamado do Rei, e quase se amaldiçoou por ter sido tão curioso. Mas a glória dos ovos frigindo apazigüou-o.
— Portchester — respondeu. — Uma aldeiazinha na costa sul. Em Hampshire.
— É casado, Peter?
— Você é?
— Não. — O Rei teria continuado, se os ovos não tivessem ficado prontos. Tirou a frigideira do fogareiro e fez um sinal para Peter Marlowe. — Os pratos ficam atrás de você — falou. Depois, acrescentou, bem orgulhoso: -Olhe só!
Eram os melhores ovos fritos que Peter Marlowe já vira, e assim ele fez ao Rei o maior elogio no mundo inglês:
— Nada mau — disse, inexpressivamente. — Nada mau mesmo, acho. — levantou os olhos para o Rei e manteve a fisionomia tão impassível quanto a voz. deste modo aumentando o elogio.
— Mas de que diabo está falando, seu filho da puta? — explodiu o Rei, furioso. — São os ovos mais fabulosos que já viu na vida!
Peter Marlowe ficou chocado, e fez-se um silêncio mortal na choça. Um assobio repentino quebrou o encanto. Instantaneamente, Dino e Miller se puseram de pé e correram para junto do Rei, e Max ficou vigiando a porta. Miller e Dino empurraram a cama do Rei para o canto e pegaram os tapetes e enfiaram-nos sob o colchão. Depois, empurraram as outras camas para junto da do Rei, e então, como todo o mundo em Changi, o Rei ficou com um espaço de apenas l,20m por l,80m. O Tenente Grey estava parado na porta. Às suas costas, a um nervoso passo de distância, o Sargento Masters.
Os americanos fitaram Grey, e depois de uma pausa, de tamanho suficiente para ser insultante, todos se levantaram. Depois de uma pausa igualmente insultante, Grey fez uma breve continência e disse:
— À vontade.
Só Peter Marlowe não se mexera, continuava sentado na cadeira.
— Levante-se — sibilou o Rei. — Ele vai tirar seu couro. Levante-se! — Sabia por longa experiência que Grey agora estava indócil. Desta feita, os olhos de Grey não o estavam perscrutando, achavam-se apenas fitos em Peter Marlowe, e até mesmo o Rei se crispou.
Grey cruzou toda a cabana sem pressa, até ficar parado diante de Peter Marlowe. Desviou os olhos de Marlowe e fitou os ovos, por um longo momento. Depois, olhou para o Rei, e novamente para Peter Marlowe.
— Está bem longe de casa, não é, Marlowe? .
Os dedos de Peter Marlowe pegaram sua caixa de tabaco e botaram um pouco do fumo num pedaço de rota. Fez um cigarro afunilado e levou-o aos lábios. A extensão de sua pausa era uma bofetada em Grey.
— Ah, não sei, meu velho — disse, suavemente. — Um inglês está em casa onde quer que esteja, não acha?
— Onde está sua braçadeira?
— No cinto.
— Devia estar no seu braço. São as ordens.
— São ordens japonesas. Não gosto de ordens japonesas — disse Peter Marlowe.
— São também as ordens do campo — retrucou Grey.
Suas vozes eram bem calmas, apenas levemente irritadas aos ouvidos americanos, mas Grey sabia e Peter Marlowe sabia. E houve uma súbita declaração de guerra entre ambos. Peter Marlowe odiava os japoneses e Grey representava para ele os japoneses, pois Grey fazia cumprir as ordens do campo que também eram ordens japonesas. Implacavelmente. Entre eles havia um ódio mais profundo, o congênito ódio de classes. Peter Marlowe sabia que Grey o desprezava por seu berço e sotaque, que era o que Grey desejava ter, acima de tudo, e jamais teria.
— Coloque-a! — Grey estava no seu direito, ao dar a ordem.
Peter Marlowe deu de ombros, pegou a braçadeira e enfiou-a no cotovelo esquerdo. Na braçadeira, havia seu posto: Capitão-aviador, Real Força Aérea. Os olhos do Rei se arregalaram. Jesus, um oficial, e eu ia pedir-lhe que...
— Desculpe interromper seu almoço — dizia Grey — mas parece que alguém perdeu alguma coisa.
— Perdeu alguma coisa? — Santo Cristo, o Rei quase berrou. O Ronson! Ó meu Deus, gritava o seu medo. livre-se do maldito isqueiro!
— O que foi, Cabo? — indagou Grey astutamente, notando o suor que porejava o rosto do Rei.
— Está quente, não é? — disse o Rei, bobamente. Podia sentir a camisa engomada se desfazendo com o suor. Sabia que fora incriminado, que lhe tinham dado um golpe. E sabia que Grey estava brincando com ele. Chegou a pensar por um instante em fugir, mas Peter Marlowe estava entre a sua pessoa e a janela, e Grey poderia pegá-lo facilmente. E se corresse, estaria admitindo sua culpa.
Viu Grey dizer alguma coisa, e ficou imóvel entre a vida e a morte.
— Como disse, senhor? — e o “senhor” não era um insulto, pois o Rei fitava Grey, com incredulidade.
— Disse que o Coronel Sellars registrou queixa do desaparecimento de um anel de ouro! — repetiu Grey, malevolamente.
Por um momento, o Rei sentiu a cabeça leve. Não era o Ronson! Entrara em pânico à toa! Era só o maldito anel do Sellars. Ele o vendera a pedido do Sellars há três semanas... com um belo lucro. Com que então o Sellars dera queixa de roubo, hem? Filho da puta mentiroso.
— Puxa — falou, um fio de riso na voz — puxa, que abacaxi. Roubado. Imagine só!
— Eu posso imaginar — disse Grey, com aspereza. — E você?
O Rei não respondeu. Mas teve vontade de sorrir. Não era o isqueiro. Estava salvo!
— Conhece o Coronel Sellars? — perguntou Grey.
— Ligeiramente, senhor. Já joguei bridge com ele, uma ou duas vezes — replicou o Rei, agora bem calmo.
— Ele lhe mostrou o anel, alguma vez? — continuou Grey, implacável.
O Rei vasculhou a memória. O Coronel Sellars lhe mostrara o anel duas vezes. À primeira, quando pedira ao Rei que o vendesse para ele, a segunda quando fora pesar o anel.
— Ah, não, senhor — falou, inocentemente. O Rei sabia que estava seguro. Não havia testemunhas.
— Tem certeza de que nunca o viu?
— Ah, não, senhor.
Grey ficou de repente cheio do jogo de gato-e-rato, e estava nauseado de vontade de comer aqueles ovos. Teria feito qualquer coisa, qualquer coisa por um deles.
— Tem fogo, Grey, meu velho? — pediu Peter Marlowe. Não trouxera consigo o seu isqueiro nativo. E precisava fumar. Desesperadamente. Sua antipatia por Grey lhe ressecara os lábios.
— Não. — Arranje o fogo você mesmo, pensou Grey, com raiva, virando-se para ir embora. E foi então que ouviu Peter Marlowe pedir ao Rei:
— Quer emprestar-me seu Ronson, por favor?
Grey voltou-se, devagarinho. Viu que Peter Marlowe sorria para o Rei. As palavras pareciam gravadas no ar. Depois, espalharam-se para todos os cantos da choça.
Aterrorizado, tentando ganhar tempo, o Rei começou a pegar uns fósforos.
— Está no seu bolso esquerdo — esclareceu Marlowe.
E nesse momento o Rei viveu e morreu e nasceu de novo. Os homens na choça não respiravam. Pois iam ver o Rei feito em pedaços. Iam ver o Rei ser pegado com a boca na botija e levado preso e trancafiado, uma coisa que era a maior das impossibilidades. E no entanto aqui estava Grey e aqui estava o Rei e aqui estava o homem que dedurara o Rei... e o colocara como o cordeiro do sacrifício no altar de Grey. Alguns dos homens estavam horrorizados, outros se rejubilavam, ainda outros sentiam pena, e Dino pensou com raiva: Pombas, era o meu dia de tomar conta da caixa, amanhã!
— Por que não acende o cigarro dele? — perguntou Grey. A fome o abandonara, sentia apenas calor, em seu lugar. Grey sabia que não havia nenhum isqueiro Ronson na lista.
O Rei pegou o isqueiro e acendeu o cigarro de Peter Marlowe. A chama que o queimaria era reta e pura.
— Obrigado. — Peter Marlowe sorriu, e só então deu-se conta da enormidade do seu gesto.
— Com que então... — falou Grey, pegando o isqueiro. Suas palavras soaram majestosas, definitivas e violentas.
O Rei não respondeu, pois não havia resposta. Simplesmente esperou, e agora que estava enrascado, não sentia medo, amaldiçoava apenas sua estupidez. Um homem que falha por sua própria estupidez não tem direito de ser chamado de homem. E não tem direito de ser o Rei, pois o mais forte é sempre o Rei, não apenas pela força, mas Rei pela astúcia, força e sorte juntas.
— De onde veio isto, Cabo? — A pergunta de Grey era uma carícia.
O estômago de Peter Marlowe ficou revirado, e sua cabeça funcionou desesperadamente, e então ele disse:
— É meu. — Sabia que aquilo soava como a mentira que era, por isso acrescentou depressa: — Estávamos jogando pôquer. Eu o perdi. Pouco antes do almoço.
Grey, o Rei e todos os homens olharam para ele, apalermados.
— Você o quê? — indagou Grey.
— Perdi-o — repetiu Peter Marlowe. — Estávamos jogando pôquer. Eu tinha uma seqüência. Conte para ele — acrescentou abruptamente para o Rei, jogando-lhe a bola para testá-lo.
A mente do Rei ainda estava em estado de choque, mas seus reflexos eram bons. Abriu a boca e disse:
— Estávamos jogando stud pôquer. Eu tinha um full hand, e...
— Quais eram as cartas?
— Azes e dois — interrompeu Peter Marlowe, sem hesitar. — Que diabo é esse stud, perguntava a si mesmo.
O Rei se crispou, a despeito do seu controle magnífico. Estivera prestes a dizer reis e damas, e sabia que Grey percebera o seu estremecimento.
— Está mentindo, Marlowe!
— Ora, Grey, meu velho, mas isso é coisa que se diga! — Peter Marlowe estava tentando ganhar tempo. Mas que porra é esse studl — Foi patético — continuou, sentindo o horror-prazer do grande perigo. — Pensei que o havia derrotado. Eu tinha uma seqüência. Foi por isso que apostei o isqueiro. -Conte para ele — falou abruptamente para o Rei.
— Como se joga stud pôquer, Marlowe?
Um trovão rompeu o silêncio, ribombando no horizonte, e o Rei abriu a boca, mas Grey o deteve.
— Perguntei ao Marlowe — falou, ameaçadoramente.
Peter Marlowe sentiu-se impotente. Olhou para o Rei, e embora seus olhos nada revelassem, o Rei entendeu.
— Vamos — falou Peter Marlowe rapidamente — vamos mostrar-lhe.
O Rei imediatamente se virou para pegar as cartas, dizendo sem hesitação:
— Foi a minha carta do buraco... Grey virou-se furioso para ele.
— Falei que queria que o Marlowe me dissesse. Mais uma palavra sua e mando prendê-lo por interferir com a justiça.
O Rei ficou calado. Rezava para que a pista tivesse sido suficiente.
“Carta do buraco”, a expressão foi registrada na memória distante de Peter Marlowe. E recordou-se. E agora que sabia como era o jogo, começou a brincar com Grey.
— Bem — falou com ar preocupado — é como qualquer outro jogo de Pôquer, Grey.
Explique como ele é jogado! — Grey achava que pegara os dois na mentira.
Peter Marlowe olhou para ele, olhar gelado. Os ovos estavam esfriando.
— O que está tentando provar, Grey? Qualquer idiota sabe que são quatro cartas viradas para cima e uma para baixo... uma no buraco.
Um suspiro percorreu o aposento. Grey sabia que agora não havia mais nada que pudesse fazer. Seria sua palavra contra a de Marlowe, e ele sabia, mesmo aqui em Changi, qual prevaleceria.
— Isso mesmo — falou sombriamente, olhando do Rei para Peter Marlowe. — Qualquer idiota sabe. — Devolveu o isqueiro para o Rei. — Não se esqueça de botar na lista.
— Sim, senhor. — Agora que tudo acabara, o Rei deixou transparecer um pouco do alívio que sentia.
Grey olhou para Peter Marlowe uma última vez, e o olhar era a um só tempo promessa e ameaça.
— As tradições de sua escola se orgulhariam muito de você, hoje — disse, com desprezo, e foi saindo da choça, com Masters seguindo-o.
Peter Marlowe ficou vendo Grey se afastar, e quando este chegava à porta, falou um pouco mais alto do que era necessário para o Rei, ainda de olho em Grey:
— Quer emprestar-me seu isqueiro... meu cigarro apagou.
Mas Grey não alterou o passo, nem olhou para trás. Um bom homem, pensou Peter Marlowe sombriamente, bons nervos... um bom homem para ter do nosso lado, numa batalha mortal. E um inimigo para se levar em conta.
O Rei ficou sentado debilmente, no elétrico silêncio, e Peter Marlowe tirou o isqueiro de sua mão flácida e acendeu o cigarro. O Rei buscou automaticamente seu maço de Kooas, enfiou um deles na boca e deixou-o pender, sem senti-lo. Peter Marlowe inclinou-se e acendeu o isqueiro para o Rei. O Rei levou longo tempo para focalizar os olhos na chama, e então viu que a mão de Peter Marlowe estava tão trêmula quanto a sua. Correu os olhos por toda a cabana, onde os homens estavam parados feito estátuas, fitando-o. Podia sentir o suor gelado nos ombros, a camisa grudenta.
Houve um barulho de latas do lado de fora. Dino levantou-se e foi verificar, ansioso.
— Hora do rancho — gritou, todo feliz. O encanto foi quebrado, e os homens deixaram a cabana com os utensílios de comer. E Peter Marlowe e o Rei ficaram completamente sós.
3
Os dois homens ficaram sentados por um momento, terminando de se controlar. Depois, Peter Marlowe falou, com voz trêmula:
— Puxa, mas essa tirou um fino!
— Foi — falou o Rei, após uma pausa sem pressa. Involuntariamente, estremeceu de novo, em seguida pegou a carteira, tirou de lá duas notas de 10 dólares e botou-as em cima da mesa. — Tome — falou — pelo que houve. Mas de agora em diante você está na folha de pagamento. Vinte por semana.
— Como?
— Vou dar-lhe vinte por semana. — O Rei pensou por um momento. — Acho que tem razão — falou, amavelmente, e sorriu. — Vale mais. Digamos trinta. — A seguir, notou a braçadeira e acrescentou: — Senhor.
— Ainda pode chamar-me de Peter — disse Peter Marlowe, com a voz irritada. — E vamos deixar claro... não quero seu dinheiro. — Levantou-se e começou a ir embora. — Obrigado pelo cigarro.
— Ei, espere aí — falou o Rei, atônito. — Mas que diabo deu em você? Peter Marlowe fitou o Rei, com a raiva brilhando nos olhos.
— Que diabo pensa que sou? Enfie seu dinheiro sabe bem onde!
— Alguma coisa errada com o meu dinheiro?
— Não. Só com os seus modos!
— E desde quando os modos têm algo a ver com dinheiro?
Peter Marlowe virou-se abruptamente para partir. O Rei se pôs de pé e ficou entre Peter Marlowe e a porta.
— Espere aí — falou, com voz .tensa. — Quero saber uma coisa. Por que livrou minha cara?
— É óbvio, não acha? Fui eu quem deu a mancada, não podia deixar você com a bomba na mão. O que pensa que sou?
— Não sei. Estou tentando descobrir.
— O erro foi meu, desculpe.
— Não tem do que se desculpar — disse o Rei, vivamente. — O erro foi meu. Banquei o burro. Não teve nada a ver com você. . .
— Não faz diferença. — O rosto de Peter Marlowe era de granito, como seus olhos. — Mas deve pensar que sou um merda completo, se espera que deixe que o crucifiquem. E um merda ainda maior se pensa que quero dinheiro de você... quando fui descuidado. Isso não agüento de pessoa alguma!
— Sente-se um minutinho. Por favor.
— Porquê?
— Porra, porque quero falar com você.
Max hesitou à porta, com as latas de comida do Rei.
— Com licença — disse, cauteloso — aqui está sua bóia. Quer um pouco de chá?
— Não. E Tex fica com a minha sopa, hoje. Pegou a lata de arroz e colocou-a sobre a mesa.
— Está legal — disse Max, ainda hesitante, imaginando se o Rei queria ajuda para tirar o couro do filho da puta.
— Dê o fora, Max. E diga aos outros para nos deixar a sós, por um minuto.
— Claro. — Max saiu, afavelmente. Achava que o Rei agia muito sensatamente, não querendo testemunhas quando pretendia baixar o sarrafo num oficial. O Rei voltou a olhar para Peter Marlowe.
— Estou-lhe pedindo. Quer sentar-se um minuto? Por favor.
— Está bem — falou Peter Marlowe, rigidamente.
— Olhe — disse o Rei, pacientemente. — Você tirou meu pescoço da corda. Ajudou-me... e cabe a mim ajudá-lo. Ofereci-lhe a grana porque queria agradecer. Se não a quer, tudo bem... mas não quis insultá-lo. Se insultei, peço desculpas.
— Desculpe — falou Peter Marlowe, amolecendo. Tenho mau gênio. Não compreendi.
O Rei estendeu a mão.
— Aperte os ossos.
Peter Marlowe apertou a mão do outro.
— NIo gosta do Grey, não é mesmo? — falou o Rei, cautelosamente.
— Não.
— Porquê?
Peter Marlowe deu de ombros. O Rei dividiu o arroz descuidadamente, e entregou-lhe a porção maior.
— Vamos comer.
— Mas, e você? — perguntou Peter Marlowe, olhando assombrado para a quantidade maior.
— Não estou com fome. Perdi o apetite. Jesus, mas tiramos um fino. Pensei que os dois tínhamos entrado bem.
— É — concordou Peter Marlowe, com um esboço de sorriso. — Foi muito divertido, não foi?
— Hem?
— Ora, a emoção. Acho que há anos não curto tanto uma coisa: o perigo-excitação.
— Há muitas coisas que não entendo em você — disse o Rei, debilmente. — Quer dizer que se divertiu?
— Claro... você não? Achei quase tão bom quanto voar um Spitfire. Sabe, na hora você fica com medo, mas ao mesmo tempo não fica... e durante e depois você fica meio atordoado.
— Acho que você é biruta.
— Se não se estava divertindo, por que tentou derrubar-me com aquela de studl Quase morri.
— Não tentei derrubá-lo. Por que, diabo, ia querer derrubá-lo?
— Para tornar a coisa mais emocionante, e para me testar. O Rei enxugou os olhos e o rosto, cansadamente.
— Quer dizer que acha que agi deliberadamente?
— Claro. Fiz o mesmo quando passei as perguntas para você.
— Espere aí, vamos deixar as coisas bem claras: fez aquilo apenas para testar meus nervos? — falou o Rei, com voz ofegante.
— Mas, naturalmente, meu velho — retrucou Peter Marlowe. — Não entendo qual o problema.
— Jesus! — exclamou o Rei, começando a suar de novo, nervoso. — Estávamos quase no xilindró e você fica de brincadeirinhas! — O Rei fez uma pausa para respirar. — Mas que loucura, que loucura total, e quando você hesitou depois de eu ter-lhe dado a pista do “buraco”, pensei que estávamos mortos.
— Grey também pensou assim. Eu estava só brincando com ele. Acabei a brincadeira logo porque os ovos estavam esfriando. E não se vê um ovo frito desses a torto e a direito. Juro que não.
— Pensei que tinha dito que ele não prestava.
— Disse que “não era mau”. — Peter Marlowe hesitou. — Olhe, dizer “nada mau” significa que é excepcional. Essa é uma maneira de elogiar um sujeito sem o deixar embaraçado.
— Você está louco varrido! Arrisca o pescoço... e o meu também... para aumentar o perigo, fica fulo de raiva quando lhe ofereço dinheiro, sem compromisso, e diz que uma coisa é “nada má” quando quer dizer que é ótima. Puxa — acrescentou, estupefato — acho que sou imbecil, ou coisa parecida. — Ergueu os olhos e viu o ar perplexo na cara de Peter Marlowe, e teve que rir. Peter Marlowe também começou a rir, e logo ambos estavam histéricos.
Max enfiou a cabeça pela porta da choça, com os outros americanos logo atrás.
— Mas que diabo deu nele! — exclamou Max, boquiaberto. — Pensei que a esta altura já estaria enchendo o outro de porrada.
— Madonna! — exclamou Dino. — Primeiro, quase fazem picadinho do Rei, e agora está às gargalhadas com o cara que o dedurou.
— Não faz sentido. — 0 estômago de Max estava dando voltas desde o assobio de advertência.
O Rei ergueu os olhos e viu os homens fitando-o. Pegou o que restava do maço de cigarros.
— Tome, Max. Distribua isso. Comemoração!
— Puxa, obrigado. — Max pegou o maço. — Cara! Mas essa foi por pouco. Estamos muito contentes.
O Rei leu os sorrisos. Alguns eram reais, e ele os marcou. Outros eram falsos, e ele os conhecia, de todo jeito. Os homens fizeram eco aos agradecimentos de Max.
Este levou os homens para fora de novo, e começaram a dividir o tesouro. E o choque — disse, baixinho. — Tem que ser. Como uma neurose de guerra. Daqui a pouquinho estará arrancando fora a cabeça do inglês. — Max desviou o olhar ao escutar novas risadas vindas da choça, e deu de ombros. — Está biruta...
— Pelo amor de Deus — dizia Peter Marlowe, segurando a barriga. — Vamos comer. Se não comer logo, depois não vou conseguir.
E assim começaram a comer. Entre espasmos de riso. Peter Marlowe lamentava que os ovos estivessem frios, mas os risos aqueceram os ovos, deixando-os soberbos.
— Precisam de um pouco de sal, não acha? — perguntou, tentando manter a voz inexpressiva.
— Puxa, acho que sim. Pensei que tinha posto bastante. — O Rei franziu a testa e virou-se para pegar o sal, e então viu os olhos risonhos. — Mas que diabo é agora? — indagou, começando a rir, a contragosto.
— Foi uma brincadeira, pelo amor de Deus. Vocês americanos não têm muito senso de humor, não é?
— Vá à merda! E porra, pare de rir!
Quando terminaram os ovos, o Rei começou a fazer café na chapa quente, e procurou por seus cigarros. Aí lembrou-se de que os dera, e abaixou-se para destrancar a caixa preta.
— Tome, prove um pouco desse — falou Peter Marlowe, oferecendo sua caixa de tabaco.
— Obrigado, mas não suporto esse troço. Deixa minha garganta em pandarecos.
— Experimente. Foi tratado. Aprendi com os javaneses.
Indecisamente, o Rei pegou a caixa de cigarros. O tabaco era a mesma erva barata, mas, ao invés de ser amarelo-palha, era dourado-escuro; ao invés de ser seco, era úmido e tinha textura; ao invés de ser inodoro, tinha cheiro de tabaco, doce e forte. Pegou o pacote de papel de arroz e tirou uma quantidade exagerada do fumo tratado. Enrolou um tubo desleixadamente e cortou fora as pontas salientes, deixando cair no chão, descuidadamente, o tabaco excedente.
Puta merda, pensou Peter Marlowe, eu disse para experimentar, não para tomar conta de tudo. Sabia que devia ter apanhado do chão as sobras do tabaco para recolocá-las na caixa, mas não o fez. Há certas coisas que não dão para um cara fazer, pensou novamente.
O Rei acendeu o isqueiro e eles riram juntos ao vê-lo. O Rei deu uma baforada cautelosa, depois mais outra. A seguir, uma boa tragada.
— Mas é ótimo — falou, atônito. — Não tão bom quanto um Kooa... mas é... — Parou e corrigiu-se. — Não é nada mau.
— Nada mau mesmo — disse Peter Marlowe, rindo.
— Mas que diabo, o que você faz?
— Segredos do ofício.
O Rei sabia que tinha uma mina de ouro nas mãos.
— Suponho que seja um processo longo e complicado — falou, com delicadeza.
— Não, até que é fácil. Basta deixar a erva crua de molho no chá, depois espremê-la. A seguir, joga-se por cima um pouco de açúcar refinado, e amassa-se bem. Quando ele estiver bem absorvido, cozinha-se o fumo em fogo baixo, numa frigideira, sempre mexendo, senão estraga. Tem que ficar no ponto certo: nem seco demais, nem úmido demais.
O Rei ficou surpreso que Peter Marlowe lhe houvesse contado o processo com tanta facilidade... sem tentar negociar, primeiro. Claro, pensou, ele está apenas aguçando meu apetite. Não pode ser assim tão fácil, senão todo o mundo estaria fazendo. E ele provavelmente sabe que sou o único com quem pode fazer negócio.
— Só isso? — comentou o Rei, sorridente.
— Só. Não tem grandes segredos.
O Rei já antevia um próspero negócio. E, além de tudo, legal.
— Imagino que todo o mundo em sua choça trate o fumo dessa maneira. Peter Marlowe sacudiu a cabeça.
— Só o faço para a minha unidade. Há meses que implico com eles, contando-lhes todo o tipo de histórias, mas nunca adivinharam o modo exato.
O sorriso do Rei era amplo.
— Então você é o único que sabe como fazê-lo.
— Ah, não! — exclamou Peter Marlowe, e o coração do Rei pareceu afundar. — É um costume nativo, espalhado por Java inteira.
— Mas aqui ninguém o conhece, certo? — indagou o Rei, animando-se.
— Não sei, nunca me preocupei com isso.
O Rei soltou a fumaça pelas narinas e sua cabeça funcionava a 1.000 por hora. Ora, disse consigo mesmo, este é meu dia de sorte.
— Escute aqui, Peter. Tenho uma proposta comercial para lhe fazer. Mostre-me exatamente como se faz, e eu lhe darei... — hesitou. — Dez por cento.
— Como?
— Está certo. Vinte e cinco.
— Vinte e cinco?
— Está bem — disse o Rei, olhando para Peter Marlowe com novo respeito. — Você se vende caro, e isso é bom. Organizo a transa toda. Compraremos grandes quantidades. Teremos que montar uma fábrica. Você supervisiona a produção e eu cuido das vendas. — Estendeu a mão. — Seremos sócios... rachando meio a meio. Negócio fechado.
Peter Marlowe olhou para a mão estendida do Rei. Depois, para seu rosto. Falou, decisivamente:
— Fechado coisa nenhuma!
— Porra — explodiu o Rei — essa é a melhor oferta que vai receber. O que podia ser mais justo? Vou levantar a grana; terei que... — Deteve-se, tomado por um pensamento repentino. — Peter — disse, após um momento, magoado, mas sem deixar transparecer — ninguém tem que saber que somos sócios. Basta mostrar-me como preparar o fumo, e terá sua parte. Pode confiar em mim.
— Sei disso — replicou Peter Marlowe.
— Então, rachamos meio a meio — repetiu o Rei, sorriso de orelha a orelha.
— Não rachamos, não.
— Santo Deus! — exclamou o Rei, sentindo-se pressionado. Mas controlou-se e pensou no negócio. E quanto mais pensava... Olhou à sua volta para se certificar de que não havia ninguém escutando. Depois baixou a voz e disse, roucamente: — Sessenta-quarenta, e jamais ofereci isso a ninguém, na vida: sessenta-quarenta.
— Nada feito.
— Como? — explodiu o Rei, chocado. — Também tenho que tirar algum lucro no negócio. Que diabo está querendo pelo processo? Dinheiro à vista?
— Não estou querendo nada — falou Peter Marlowe.
— Nada? — 0 Rei sentou-se debilmente, destroçado. Peter Marlowe estava confuso.
— Sabe — falou, hesitante — não entendo por que você fica tão entusiasmado com certas coisas. Não posso vender o processo, não me pertence. É um simples costume nativo. Por isso, não poderia aceitar nada de você. Não seria correto. De modo algum. E além disso, eu... — Peter Marlowe se deteve e perguntou, rapidamente. — Quer que lhe ensine, agora?
— Espere aí. Está querendo dizer que não quer nada por me mostrar o processo? Quando ofereci para racharmos sessenta-quarenta? Quando lhe estou dizendo que posso ganhar dinheiro com o negócio? — Peter Marlowe fez que sim com a cabeça. — Mas é uma loucura — falou o Rei, abobado. — Está errado, não entendo.
— Não há o que entender — retrucou Peter Marlowe, com um débil sorriso. — Faça de conta que estou com insolação.
O Rei o examinou por um longo momento:
— Quer dar-me uma resposta franca a uma pergunta franca?
— Claro que sim.
— É por minha causa, não é?
As palavras pesaram no calor, entre os dois.
— Não — respondeu Peter Marlowe, quebrando o silêncio. E havia verdade entre eles.
Uma hora mais tarde, Peter Marlowe estava vendo Tex cozinhar a segunda leva de tabaco. Desta feita, Tex o fazia sem ajuda, e o Rei cacarejava por perto, como uma galinha velha.
— Tem certeza de que ele botou a quantidade certa de açúcar? — perguntou o Rei a Peter Marlowe, ansioso.
— Certíssima.
— Quanto tempo ainda demora?
— Quanto tempo você acha, Tex?
Este devolveu o sorriso de Peter Marlowe e esticou o corpo desengonçado de mais de 1,90m.
— Mais ou menos uns cinco, seis minutos.
— Onde fica a casinha? — perguntou Peter Marlowe, levantando-se.
— A privada? Nos fundos, pelo lado de fora. — O Rei apontou. — Mas não dá para esperar até o Tex terminar? Quero ter certeza de que fez tudo direito.
— O Tex está indo muito bem — disse Peter Marlowe, afastando-se. Quando voltou, Tex tirou a frigideira do fogo.
— Pronto — falou, nervoso, e olhou para Peter Marlowe, para ver se agira na hora certa.
— No ponto — disse Peter Marlowe, examinando o tabaco preparado. Todo excitado, o Rei enrolou um cigarro com papel de arroz. Tex e Peter Marlowe fizeram o mesmo. Acenderam os cigarros. Com o Ronson. Mais uma risada gostosa. E então, silêncio, enquanto cada homem se tornava um con-noisseur.
— Muito bom — declarou Peter Marlowe. — Disse-lhe que era bem simples, Tex.
Tex soltou um suspiro de alívio.
— Nada mau — falou o Rei, pensativo.
— Mas de que diabo está falando — explodiu Tex. — Está danado de bom!
Peter Marlowe e o Rei dobravam-se de rir. Explicaram por que, e Tex também começou a rir.
— Temos que dar um nome ao produto. — O Rei pensou por um momento. — Já sei. Que tal Três Reis? Um pela Real Força Aérea, um pelo Rei Texas, e um por por mim.
— Nada mau — disse Tex.
— Vamos começar a fabricação amanhã. Tex sacudiu a cabeça.
— Fui destacado para um grupo de trabalho.
— Ele que vá para o diabo! Vou mandar o Dino substituí-lo.
— Não, deixe que peço a ele. — Tex levantou-se e sorriu para Peter Marlowe. — Prazer em conhecê-lo, senhor.
— Vamos esquecer o senhor, está bem? — falou Peter Marlowe.
— Claro. Obrigado.
Peter Marlowe ficou olhando Tex afastar-se.
— Gozado — comentou, suavemente, com o Rei. — Nunca vi tantos sorrisos numa só cabana, antes.
— Não há por que não sorrir, não é mesmo? As coisas podiam ser bem piores. Você foi abatido voando sobre a corcova?
— Refere-se à rota Calcutá-Chungking? Sobre o Himalaia?
— É. — O Rei fez sinal para o tabaco. — Encha sua caixa.
— Obrigado. Se não se importa...
— Sempre que estiver com pouco fumo, venha servir-se.
— Obrigado, aceito. É muito gentil. — Peter Marlowe queria mais um cigarro, mas sabia que estava fumando demais. Se fumasse outro agora, a fome ainda seria maior. Melhor ir com calma. Olhou para a sombra do Sol e prometeu-se que não fumaria de novo até que a sombra se mexesse cinco centímetros. — Não fui abatido. A minha pandorga... o meu avião foi atingido num ataque aéreo a Java. Não consegui levantá-lo. Um saco — acrescentou, tentando disfarçar o amargor.
— Não foi tão ruim assim — disse o Rei. — Você podia ter estado dentro dele. Está vivo, e é isso que conta. Que tipo de avião pilotava?
— Um Hurricane. Avião de combate de um só lugar. Mas o meu avião regular é um Spit... Spitfire.
— Já ouvi falar deles... mas nunca vi nenhum. Vocês deixaram os alemães com cara de besta, hem?
— Foi — disse Peter Marlowe, baixinho. — Deixamos mesmo. O Rei ficou surpreso.
— Você não esteve na Batalha da Inglaterra, esteve?
— Estive. Recebi as minhas asas em 1940... bem na horinha.
— Quantos anos tinha?
— Dezenove.
— Puxa, olhando para sua cara, diria que você tinha pelo menos trinta e oito anos, e não vinte e quatro!
— Ora, vá tomar no...! — Peter Marlowe riu. — Quantos anos você têm?
— Vinte e cinco. Que merda! — exclamou o Rei. — Os melhores anos da minha vida, e cá estou eu trancafiado numa cadeia fedorenta!
— Você não está trancafiado. E me parece estar-se saindo muito bem.
— Ainda estamos trancafiados, de um jeito ou de outro. Quanto tempo acha que isso ainda vai durar?
— Botamos os alemães para correr. Não vai demorar muito.
— Acredita nisso?
Peter Marlowe deu de ombros. Cuidado, disse para si mesmo, nunca se pode esquecer o cuidado.
— Acredito, sim. Nunca se sabe ao certo o que é boato ou não.
— E a nossa guerra? E quanto a ela?
Como a pergunta fora feita por um amigo, Peter Marlowe falou livremente:
— Acho que a nossa vai durar para sempre. Ah, vamos derrotar os japoneses. Estou certo disso. Mas quanto a nós, não creio que saiamos daqui.
— Por quê?
— Bem, não creio que os japoneses jamais cedam. O que significa que teremos que desembarcar no país deles. E quando isso acontecer, acho que nos eliminarão, a todos nós aqui. Se as doenças e moléstias já não houverem acabado com a gente.
— Mas por que fariam isso?
— Ora, para poupar tempo, imagino. Acho que quando a rede começar a apertar o Japão, eles começarão a içar seus tentáculos. Por que perder tempo com alguns milhares de prisioneiros? Os japoneses encaram a vida de modo bem diferente do nosso. E a idéia de tropas nossas no solo deles vai levá-los à loucura. — A voz dele era bem calma e inexpressiva. — Acho que estamos ferrados. Claro que espero estar errado. Mas acho que não estou.
— Mas que filho da puta esperançoso você é — disse o Rei, com azedume, e quando Peter Marlowe riu, ele continuou: — Que diabo, do que está rindo? Parece que está sempre rindo nas horas erradas.
— Desculpe, é um mau hábito.
— Vamos sentar lá fora. As moscas estão ficando impossíveis. Ei, Max — chamou o Rei — quer limpar aqui?
Max chegou e começou a limpeza, e o Rei e Peter Marlowe pularam agilmente a janela. Do lado de fora da janela do Rei, havia outra mesinha e um banco sob um toldo de lona, O Rei sentou-se no banco. Peter Marlowe acocorou-se, à moda nativa.
— Nunca pude fazer isso — comentou o Rei.
— É muito confortável. Aprendi em Java.
— Como é que você fala o malaio tão bem?
— Morei algum tempo numa aldeia.
— Quando?
— Em 1942. Após o cessar-fogo.
O Rei esperou pacientemente que ele continuasse, mas Peter ficou calado. Após esperar mais algum tempo, perguntou:
— Como foi que você morou numa aldeia javanesa após o cessar-fogo em 1942, quando todo o mundo estava em campos de prisioneiros de guerra, a essa altura?
Peter Marlowe deu uma risada gostosa.
— Desculpe. Não há muito para contar. Não me agradava a idéia de ficar num campo. Na verdade, quando a guerra acabou, perdi-me nas selvas e acabei por achar a tal aldeia. Eles tiveram pena de mim. Fiquei lá uns seis meses.
— E que tal era?
— Uma maravilha. Eram todos muito bondosos, eu era como um deles. Vestido de javanês, a pele tingida de escuro... bobagem, afinal a minha altura e olhos me traíam... trabalhava nos arrozais.
— Sozinho?
Depois de uma pausa, Peter Marlowe disse :
— Eu era o único europeu ali, se é o que quer saber. — Fixou o olhar no campo, vendo o Sol bater na poeira e o vento levantar a poeira e fazé-la remoinhar. Ó remoinho fazia com que se lembrasse dela. Desviou os olhos para o leste, para um céu nervoso. Mas ela era parte do céu. O vento ficou um pouco mais forte e dobrou os topos dos coqueiros. Mas ela era parte do vento, das folhas e das nuvens mais além.
Peter Marlowe forçou o pensamento para longe dela e ficou vendo o guarda coreano caminhar pesadamente ao longo da cerca, suando com o calor. O uniforme do guarda era cocado e mal-ajambrado, e o quepe tão amassado quanto seu rosto, e o fuzil pousava torto sobre os ombros. Era tão desgracioso quanto ela era graciosa.
Mais uma vez, Peter Marlowe levantou os olhos para o céu, buscando a distância. Somente então podia sentir que não estava dentro de uma caixa... uma caixa cheia de homens, e cheiros de homens, e sujeira de homens, e ruídos de homens. Sem mulheres, pensou Peter Marlowe, desalentado, os homens não passam de uma piada cruel. E sangrou sob o vigor do Sol.
— Ei, Peter! — O Rei olhava para o alto da ladeira, de boca aberta. Peter Marlowe acompanhou o olhar do Rei, e seu estômago deu voltas ao ver que Sean se aproximava. Santo Deus, que vontade de entrar pela janela e sumir, mas sabia que aquilo ainda chamaria mais atenção para si. E então esperou sombriamente, quase sem respirar. Pensou que havia uma boa chance de não ser visto, pois Sean estava muito entretido conversando com o Líder de Esquadrilha Rodrick e com o Tenente Frank Parrish. As três cabeças estavam bem juntas, o papo animado.
E então, Sean olhou para além de Frank Parrish e viu Peter Marlowe, e parou.
Rodrick e Frank também pararam, surpresos. Quando viram Peter Marlowe, pensaram: “Ó, meu Deus.” Mas disfarçaram a ansiedade.
— Alô, Peter — falou Rodrick. Era um homem alto e aprumado, com um rosto bem delineado, tão alto e aprumado quanto Frank Parrish era alto e desleixado.
— Alô, Rod! — respondeu Peter Marlowe.
— Não demoro — disse Sean suavemente para Rodrick, e dirigiu-se para Peter Marlowe e o Rei. Agora que o choque inicial se dissipara, Sean exibia um sorriso amistoso.
Peter Marlowe sentiu a nuca ficar toda arrepiada, levantou-se e esperou. Podia sentir os olhos do Rei cravados nele.
— Alô, Peter — cumprimentou Sean.
— Alô, Sean.
— Está muito magro, Peter.
— Não creio que esteja mais magro do que os outros. Estou bem disposto, felizmente.
— Há tanto tempo não o vejo... por que não dá um pulinho no teatro, de vez em quando? Tem sempre um pouquinho de comida extra por lá... e você sabe como sou, nunca fui de comer muito. — Sean deu um sorriso esperançoso.
— Obrigado — retrucou Peter Marlowe, morto de vergonha.
— Bem, sei que não irá — disse Sean, tristemente — mas será sempre bem-vindo. — Fez uma pausa. — Nunca mais o vejo.
— Bem, sabe como é, Sean. Você em todos os shows e eu, bem, sou destacado para os grupos de trabalho, e outras coisas.
Como Peter Marlowe, Sean estava de sarongue, mas, ao contrário do sarongue de Peter, que era puído e desbotado, o de Sean era novo, branco, e debruado de azul e prateado. E Sean usava um bolero nativo de mangas curtas, acabando logo acima da cintura, cortado justo e enfatizando o busto. O Rei olhava fascinado para o decote entreaberto do bolero.
Sean notou o Rei e sorriu de leve e afastou do rosto os cabelos que o vento havia desmanchado, e brincou com eles até o Rei levantar os olhos. Sean sorriu intimamente, sentindo-se aquecer por dentro, ao ver o Rei enrubescer.
— Está ficando quente, não é? — comentou o Rei, constrangido.
— Suponho que sim — replicou Sean, amavelmente, sem suar ou parecer sentir calor, como sempre... não importa quão alta a temperatura.
Fez-se silêncio.
— Ah, desculpe — disse Peter Marlowe, ao ver Sean olhando para o Rei e esperando pacientemente. — Conhece...
Sean achou graça.
— Meu Deus, Peter. Como está nervoso. Claro que sei quem é o seu amigo, embora nunca tenhamos sido apresentados. — Sean estendeu a mão. — Como vai? É uma grande honra conhecer um Rei!
— Hã... obrigado — disse o Rei, mal tocando a mão, tão pequenina junto a sua. — Hã... quer um cigarro?
— Não, obrigado. Mas se não se importa, vou levar um comigo. Ou melhor, dois, posso? — Sean fez um sinal de cabeça para a trilha. — Rod e Frank fumam, e sei que adorariam.
— Claro — disse o Rei. — Claro.
— Obrigado. É muito gentil.
Mesmo a contragosto, o Rei sentiu o calor do sorriso de Sean. E sem querer, falou, com toda a sinceridade:
— Esteve ótimo em Otelo.
— Obrigado — disse Sean, radiante. — Gostou do Hamletl
— Gostei. E nunca fui muito ligado em Shakespeare. Sean achou graça.
— Isso é que é elogio. Vamos fazer uma nova peça, agora. Frank a escreveu especialmente e deve ser muito divertida.
— Basta ser comum, já será formidável — disse o Rei, mais à vontade — e você será formidável.
— Mas que gentileza. Obrigado. — Sean olhou para Peter Marlowe e seus olhos apresentaram um brilho adicional. — Temo que Peter não concorde com você.
— Pare com isso, Sean — disse Peter Marlowe.
Sean não olhou para Peter Marlowe, somente para o Rei, e sorriu, mas havia fúria por trás do sorriso.
— Peter não me aprova.
— Pare com isso, Sean — repetiu Peter Marlowe, asperamente.
— Por que devo parar? — explodiu Sean. — Você despreza os pervertidos... não é assim que você chama os bichas? Deixou isso bem claro. Não me esqueci!
— Nem eu!
— Não diga! Não gosto de ser desprezado... muito menos por você!
— Já disse para você parar! Não é a hora ou o lugar para isso. E já discutimos isso antes, e você já falou tudo isso antes. Pedi desculpas. Não falei por mal!
— Não. Mas ainda me odeia... por quê? Por quê?
— Não o odeio.
— Então por que sempre me evita?
— É melhor. Pelo amor de Deus, Sean, deixe-me em paz.
Sean fitou Peter Marlowe, e com a mesma rapidez que eclodira, sua raiva desapareceu.
— Desculpe, Peter, provavelmente você tem toda a razão. Sou um idiota. É que às vezes sinto-me só, com vontade de conversar. — Sean estendeu a mão e tocou o braço de Peter Marlowe. — Desculpe. Só queria que fôssemos amigos de novo.
Peter Marlowe não conseguiu dizer nada. Sean hesitou.
— Bem, acho que está na hora de ir andando.
— Sean — chamou Rodrick, lá da trilha — já estamos atrasados.
— Não demoro. — Sean ainda olhava para Peter Marlowe, depois deu um suspiro e estendeu a mão para o Rei. — Prazer em conhecê-lo. Desculpe os maus modos.
O Rei não pôde deixar de tocar a mão dele, outra vez.
— Prazer em conhecê-lo.
Sean hesitou, os olhos sérios e indagadores.
— É amigo do Peter?
Parecia ao Rei que o mundo inteiro ouviu sua resposta, gaguejante:
— Hã, claro, é, acho que sou.
— Estranho, não é mesmo, como uma mesma palavra pode ter tantos significados diferentes. Mas se é amigo dele, não o leve para o mau caminho, por favor. Você tem reputação de ser perigoso, e eu não gostaria de ver o Peter magoado. Gosto muito dele.
— Hã, sim, claro. — Os joelhos do Rei ficaram moles, e sua espinha pareceu derreter-se. Mas o magnetismo do sorriso de Sean invadiu-o. Nunca sentira coisa igual. — Os shows são a melhor coisa aqui do campo — falou. — Fazem a vida valer a pena. E você é a melhor coisa que existe neles.
— Obrigado. — E dirigindo-se a Peter Marlowe: — Faz a vida valer a pena. Sou muito feliz. Gosto do que faço. Faz as coisas valerem a pena, Peter.
— Sim — replicou Peter, atormentado. — Que bom que tudo está bem.
Sean sorriu hesitante pela última vez, depois virou-se depressa e sumiu.
— Puta merda! — disse o Rei, sentando-se. Peter Marlowe também se sentou. Abriu a caixa de tabaco e preparou um cigarro.
— Se a gente não soubesse que ele é homem, juraria por Deus que era mulher — disse o Rei. — Uma bela mulher.
Peter Marlowe balançou a cabeça, desanimado.
— Ele não é como os outros veados — falou o Rei — de jeito nenhum. Não, senhor, não é mesmo. Puxa, tem alguma coisa nele que não é... — O Rei parou, buscou a palavra certa, continuou, desalentado: — Não sei como me expressar. Ele... ele é uma mulher, porra! Lembra quando fez o papel de Desdêmona? Meu Deus, quando, apareceu naquele negligée, aposto que não havia um só homem em Changi que não estivesse de pau duro. Não se pode culpar um homem por se sentir tentado. Eu me sinto tentado, todo o mundo se sente. Quem disser que não, está mentindo. — Depois, olhou para Peter Marlowe, examinando-o com cuidado.
— Ora, pelo amor de Deus! — exclamou Peter Marlowe, irritado. — Está pensando que eu também sou bicha?
— Não — respondeu o Rei, calmamente. — E nem me importo que seja. Contanto que eu saiba.
— Pois é, mas não sou.
— Pois bem que parecia — disse o Rei, abrindo um sorriso. — Briguinha de namorados?
— Vá à merda!
Um minuto mais tarde, o Rei perguntou, cuidadosamente.
— Há muito tempo que conhece o Sean?
— Ele era da minha esquadrilha — finalmente falou Peter Marlowe. — Sean era o caçula, e fui encarregado de tomar conta dele. Fiquei conhecendo-o muito bem. — Jogou fora a ponta ardente do seu cigarro e botou o resto do fumo de volta na caixa. — Na verdade, era o meu melhor amigo. Era um ótimo piloto... derrubou três Zeros sobre Java. — Olhou para o Rei. — Eu gostava muito dele.
— Ele... era assim antes?
— Não.
— Ah, sei que não se vestia como mulher o tempo todo, mas, que diabo, tinha que ser óbvio que era desse jeito.
— Sean nunca foi desse jeito. Era apenas um rapaz muito bonito e meigo. Não tinha nada de efeminado, apenas de... compassivo.
— Já o viu sem roupas, alguma vez?
— Não.
— É, imagino. Ninguém mais viu, também. Nem semidespido.
Deram a Sean um quartinho minúsculo lá no teatro, um quarto particular, coisa a que mais ninguém tinha direito em Changi, nem mesmo o Rei. Mas Sean nunca dormia no quarto. A idéia de Sean sozinho num quarto trancado era perigosa demais, porque havia muitos no campo cuja luxúria vinha à tona, e o resto abafava a luxúria dentro de si. Assim, Sean sempre dormia numa das choças, mas tomava banho e mudava de roupa no quarto particular.
— O que houve entre vocês dois? — indagou o Rei.
— Uma vez, quase cheguei a matá-lo.
Subitamente, a conversa cessou, e ambos ficaram de ouvido atento. Só o que podiam ouvir era um suspiro, algo no ar. O Rei olhou rapidamente ao redor. Sem ver nada de extraordinário, levantou-se e pulou pela janela, Peter Marlowe na sua cola. Os homens na choça também estavam de ouvido atento.
O Rei olhou para os lados da cadeia. Não parecia haver nada errado. Os homens ainda andavam para cima e para baixo.
— O que acha? — indagou o Rei, baixinho.
— Não sei — retrucou Peter Marlowe, concentrando-se. Os homens ainda andavam diante da cadeia, mas agora pareciam andar quase imperceptivelmente mais depressa.
— Ei, olhe — murmurou Tex.
Dobrando a esquina da cadeia, e subindo a ladeira na direção deles, vinha o Capitão Brough. A seguir, outros oficiais começaram a aparecer atrás dele, todos dirigindo-se para as diversas choças dos soldados.
— Encrenca na certa — disse Tex, com azedume.
— Quem sabe é uma revista — falou Max.
O Rei se pôs de joelhos instantaneamente, destrancando a caixa preta. Peter Marlowe disse, rapidamente:
— Até qualquer hora.
— Tome — disse o Rei, jogando-lhe um maço de Kooas — apareça hoje à noite, se quiser.
Peter Marlowe saiu correndo da choça, seguindo ladeira abaixo. O Rei arrancou os três relógios de pulso que estavam enterrados no meio dos grãos de café e levantou-se. Pensou por um momento, depois subiu na cadeira e enfiou os três relógios no meio das folhas de palmeira que formavam o telhado. Sabia que todos os homens haviam visto o novo esconderijo, mas não se importava, pois agora não havia outra coisa a fazer. Depois, trancou a caixa preta, e Brough chegou à porta.
— Muito bem, homens. Para fora.
4
Peter Marlowe não pensava noutra coisa senão no seu cantil, enquanto abria caminho aos empurrões pela multidão de homens suados que se formava na estrada asfaltada. Tentou desesperadamente lembrar-se se havia enchido o cantil, mas não conseguia ter certeza.
Subiu correndo as escadas que levavam à sua choça. Mas esta já estava vazia, e um guarda coreano desmazelado já estava de pé diante da porta. Peter Marlowe sabia que não lhe permitiriam passar, portanto deu meia-volta, esgueirou-se sob o toldo da choça e foi para o outro lado. Correu para a outra porta e já estava ao lado do seu catre, com o cantil na mão, quando o guarda o viu.
O coreano praguejou mal-humorado, veio até onde ele estava e fez sinal para que pusesse o cantil de volta. Mas Peter Marlowe bateu uma continência floreada e disse em malaio, língua que a maioria dos guardas compreendia:
— Saudações, senhor. Talvez tenhamos uma longa espera, e eu vos suplico que me deixeis levar comigo o meu cantil, pois estou com disenteria. — Enquanto falava, sacudia o cantil. Estava cheio.
O guarda arrancou-lhe o cantil das mãos e farejou-o, desconfiado. A seguir, despejou um pouco de água no chão e devolveu com brutalidade o cantil para Peter Marlowe, xingou-o de novo e fez sinal para os homens formados lá embaixo.
Peter Marlowe fez uma reverência, tonto de alívio, e correu para juntar-se a seu grupo.
— Mas que diabo, onde estava, Peter? — indagou Spence, com a dor da disenteria aumentando sua ansiedade.
— Não importa, estou aqui. — Agora que Peter Marlowe estava de posse do seu cantil, ficou até brincalhão. — Como é, Spence, mande os caras entrarem em forma — falou, implicante.
— Vá à merda. Vamos, rapazes, em forma. — Spence contou os homens e perguntou: — Cadê o Bonés?
— No hospital — respondeu Ewart. — Foi para lá logo depois do café. Eu mesmo o levei.
— Mas que diabo, por que não me contou antes?
— Trabalhei o dia inteiro na horta, droga! Vá encher outro!
— Vá com calma, ouviu?
Mas Peter Marlowe não estava prestando atenção às pragas, bate-bocas e boatos. Só esperava que o Coronel e o Mac também estivessem com seus cantis.
Quando havia contado todo o seu grupo, o Capitão Spence foi até onde estava o Tenente-Coronel Sellars, encarregado nominal de quatro choças, e bateu continência:
— Sessenta e quatro, tudo correto, senhor. Dezenove aqui, vinte e três no hospital, vinte e dois nos destacamentos de trabalho.
— Está certo, Spence.
Logo que Sellars teve os números das suas quatro choças, somou-os e levou-os até o Coronel Smedly-Taylor, que era o responsável por 10 choças. A seguir, Smedly-Taylor levou esse número adiante, e assim sucessivamente, dentro e fora da cadeia, até que os totais foram levados ao Comandante do Campo. Este somou o número de homens dentro do campo ao número de homens no hospital e ao número de homens em destacamentos de trabalho, e depois passou o total ao Capitão Yoshima, o intérprete japonês. Yoshima xingou o Comandante do Campo porque o total não conferia: faltava um homem.
Houve uma hora dolorosa de pânico até que o homem que faltava foi encontrado, enterrado no cemitério. O Coronel Dr. Rofer, do Corpo Médico britânico, xingou seu assistente, Coronel Dr. Kennedy, que tentou explicar que era difícil saber a contagem certa, de um instante para o outro, mas o Coronel Rofer xingou-o assim mesmo e disse que aquilo era responsabilidade dele. A seguir, Rofer foi cabisbaixo prestar contas ao Comandante do Campo, que o acusou de ineficiência, e então o Comandante do Campo dirigiu-se a Yoshima e tentou explicar polidamente que o corpo fora encontrado, mas que era difícil manter os números precisos até o último segundo. E Yoshima acusou o Comandante do Campo de ineficiência e disse-lhe que era o responsável... se não conseguia saber um simples número, talvez fosse hora de outro oficial assumir o comando do campo.
Enquanto a raiva percorria os homens formados, os. guardas coreanos revistavam as cabanas, especialmente as dos oficiais. Ali estaria o rádio que buscavam. 0 elo, a esperança dos homens. Queriam encontrar o rádio, como haviam encontrado o outro há cinco meses. Mas os guardas suavam em bicas, como os homens formados suavam em bicas, e a revista deles foi superficial.
Os homens suavam e praguejavam. Alguns desmaiavam. Os que sofriam de disenteria corriam para as latrinas. Os que estavam muito mal agachavam-se ou deitavam-se onde estavam e deixavam a dor rodopiar e consumar-se. Os que estavam sadios não sentiam o fedor. O fedor era normal, a correria para as latrinas era normal, e a espera era normal.
Após três horas, a revista terminou. Os homens foram dispensados. Correram para as choças e a sombra, ou jogaram-se na cama, onde ficaram ofegando, ou foram para os chuveiros e esperaram e reclamaram até que a água lhes aliviou a dor de cabeça.
Peter Marlowe saiu do chuveiro. Enrolou o sarongue na cintura, e foi para o bangalô de concreto dos seus amigos, sua unidade.
— Puki ‘mahlu! — disse Mac, abrindo um sorriso. O Major McCoy era um escocês pequeno, durão e de postura bem ereta. Vinte e cinco anos nas selvas da Malásia haviam feito marcas profundas no seu rosto... isso, e mais bebida e dissipação e ataques de febre.
— ‘Mahlu senderis — replicou Peter Marlowe, agachando-se feliz. A obscenidade malaia sempre o encantava. Não tinha uma tradução literal em inglês, mas “puki” referia-se grosseiramente a uma parte íntima da mulher, e “ ‘mahlu” significava “envergonhado”.
— Seus filhos da mãe, não dá para falarem inglês uma vez na vida? — disse o Coronel Larkin. Achava-se deitado no colchão, que estava jogado no piso. Larkin sofria de falta de ar por causa do calor, e tinha dor de cabeça, restos da malária. Mac piscou para Peter Marlowe.
— A gente fica explicando, mas nada penetra nessa cabeça dura! Não há esperança para o Coronel!
— É isso aí, camarada! — exclamou Peter Marlowe, imitando o sotaque australiano de Larkin.
— Por que cargas-d’água fui meter-me com vocês dois — gemeu Larkin, cansadamente — é que nunca vou saber.
— Porque ele é preguiçoso, hem, Peter? — disse Mac, com um sorriso. — Você e eu fazemos todo o serviço, não é? E ele fica sentado e finge que está inválido... só porque está com uma pontinha de malária.
— Puki ‘mahlu. E me arrume um pouco d’água, Marlowe!
— Pronto, Coronel, senhor! — Entregou a Larkin seu cantil. Quando o viu, o Coronel sorriu, em meio à sua dor.
— Tudo bem, Peter, meu rapaz? — perguntou, suavemente.
— Tudo. Meu Deus, entrei em pânico durante algum tempo.
— Mac e eu também. — Larkin bebeu um gole e devolveu com cuidado o cantil.
— Tudo bem, Coronel? — perguntou Peter Marlowe, assustado com a cor de Larkin.
— Puta merda! — exclamou Larkin. — Nada que uma garrafa de cerveja não pudesse curar. Mas estarei bem amanhã.
Peter Marlowe acenou com a cabeça, concordando.
— Pelo menos, a febre passou — disse. A seguir, apanhou o maço de Kooas, com negligência estudada.
— Meu Deus! — exclamaram Mac e Larkin, a uma só voz. Peter Marlowe abriu o maço e deu um cigarro a cada um.
— Presente de Papai Noel!
— Porra, onde arranjou isso, Peter?
— Espere até termos fumado um pouquinho — disse Mac, com azedume — antes de ouvirmos as más notícias. Ele provavelmente vendeu nossas camas, ou coisa parecida.
Peter Marlowe contou-lhes sobre o Rei e sobre Grey. Escutaram com espanto crescente. Contou-lhes sobre o processo de tratamento do fumo, e escutaram em silêncio até que ele mencionou as porcentagens.
— Sessenta-quarenta! — explodiu Mac, radiante. — Ó, meu Deus, sessenta-quarenta!
— É — disse Peter Marlowe, entendendo Mac erradamente. — Imagine só! Bem, então mostrei-lhe como se fazia. Ficou surpreso quando eu não quis nada em troca.
— Você ensinou o processo de graça? — Mac estava embasbacado.
— Claro. Alguma coisa errada, Mac?
— Por quê?
— Bem, não podia fazer negócio com ele. Os Marlowes não são comerciantes — explicou Peter Marlowe, como se estivesse falando com uma criança. — Simplesmente não agem assim, meu velho.
— Meu Deus, você tem uma oportunidade maravilhosa de ganhar dinheiro e a esnoba desdenhosamente. Suponho que saiba que com o Rei como sócio você poderia ganhar dinheiro bastante para comprar rações em dobro até o dia do Juízo Final. Que diabo, por que não ficou de boca calada e me ensinou e deixou que eu...
— Mas que conversa é essa, Mac? — Larkin interrompeu bruscamente. — O rapaz agiu direito, não teria sido bom para ele ter negócios com o Rei.
— Mas...
— Mas, nada — disse Larkin.
Mac acalmou-se imediatamente, odiando-se por ter explodido. Forçou uma risada nervosa.
— Só estava brincando, Peter.
— Tem certeza, Mac? Meu Deus — falou Peter Marlowe, tristemente. -Será que banquei o idiota? Não queria desapontá-los.
— Não, rapaz, é só o meu jeito de brincar. Vamos, conte-nos o que mais aconteceu.
Peter Marlowe contou-lhes o que acontecera e o tempo todo se perguntava se fizera algo errado. Mac era seu melhor amigo, e era astuto e nunca perdia a paciência. Contou-lhes sobre Sean e, quando acabou, sentiu-se melhor. Depois, foi embora. Era a sua vez de dar comida às galinhas.
Quando ele se foi, Mac disse para Larkin:
— Porra... desculpe. Não tinha motivo para estourar daquele jeito.
— Não o culpo, camarada. O rapaz vive com a cabeça nas nuvens. Tem umas idéias esquisitas. Mas nunca se sabe. Talvez o Rei ainda nos possa ser útil.
— É — disse Mac, pensativo.
Peter Marlowe carregava uma caneca cheia de restos de folhas catados. Passou pela área das privadas até chegar aos galinheiros onde ficavam as galinhas do campo.
Havia galinheiros grandes e pequenos, galinheiros para uma única ave magricela, e um imenso galinheiro para 130 galinhas — aquelas que pertenciam ao campo inteiro, cujos ovos eram para dividir por todos. Os outros galinheiros pertenciam a unidades, ou a um conjunto de unidades que haviam grupado seus recursos. Somente o Rei era proprietário sem sócios.
Mac construíra o galinheiro para a unidade de Peter Marlowe. Nele ficavam três galinhas, a fortuna da unidade. Larkin comprara as aves há sete meses, quando a unidade vendera a última coisa que possuía, a aliança de ouro de Larkin. Este não queria vendê-la, mas Mac estava doente, na época, e Peter Marlowe sofria de disenteria, e duas semanas antes as rações do campo haviam sido novamente diminuídas, portanto Larkin a vendera. Mas não através do Rei, e sim através de um dos seus próprios homens, Tiny Timsen, o comerciante australiano. Com o dinheiro, comprara quatro galinhas do comerciante chinês a quem os japoneses deram a concessão do campo, e junto com as galinhas adquirira também duas latas de sardinha, duas latas de leite condensado e meio litro de óleo de palmeira, cor-de-laranja.
As galinhas eram boas, e punham seus ovos direitinho. Mas uma delas morreu, e os homens a comeram. Guardaram os ossos e os puseram numa panela junto com os miúdos, os pés, a cabeça e o mamão verde que Mac roubara num destacamento de trabalho, e fizeram um ensopado. Durante uma semana inteira seus corpos sentiram-se imensos e limpos.
Larkin abrira uma das latas de leite condensado no dia em que a compraram. Os três tomaram uma colher de sopa por dia cada um, até a lata acabar.
O leite condensado não estragou com o calor. No dia em que não havia mais como raspar a lata, eles a ferveram e beberam o líquido. Estava muito bom.
As duas latas de sardinha e a última lata de leite condensado eram a reserva da unidade. Para o caso de alguma grande maré de azar. As latas eram guardadas num esconderijo, vigiado constantemente por um membro do grupo.
Peter Marlowe olhou à sua volta antes de destrancar a porta do galinheiro, certificando-se de que não havia ninguém por perto para ver como a fechadura funcionava. Abriu a porta e viu dois ovos.
— Tudo bem, Nonya — disse suavemente para a galinha de estimação deles — não vou tocar em você.
Nonya estava chocando sete ovos. Custara muita força de vontade à unidade deixar os ovos debaixo dela, mas se tivessem sorte e saíssem sete pintinhos, e se os sete pintinhos vivessem para se transformar em galos ou galinhas, então o bando deles seria grande, eles poderiam deixar uma galinha permanentemente no choco. E jamais teriam que temer a Enfermaria Seis.
A Enfermaria Seis abrigava os cegos, aqueles que perderam a visão graças ao beribéri.
Qualquer vitamina era mágica contra esta ameaça constante, e os ovos eram uma vasta fonte de força e vitamina, geralmente a única disponível. Era por isso que o Comandante do Campo suplicava e exigia mais ovos do Chefe Supremo. Mas, geralmente, só havia um ovo por semana, para cada homem. Alguns homens recebiam um ovo extra por dia, mas a esta altura geralmente era tarde demais.
Deste modo, as galinhas eram vigiadas noite e dia por um oficial de guarda. Mexer numa galinha pertencente ao campo, ou a outra pessoa, era um crime enorme. Certa vez, pegou-se um homem com uma galinha estrangulada nas mãos, e ele foi espancado até a morte por seus captores. As autoridades consideraram o homicídio justificado.
Peter Marlowe ficou no extremo do seu galinheiro, admirando as galinhas do Rei. Eram sete, gordas e gigantescas, em comparação com as demais. Havia um galo no galinheiro, o orgulho do campo. O nome dele era Sunset. Seu esperma gerava belos filhos e filhas, e podia ser contratado como reprodutor por qualquer um que pagasse o preço: o melhor da ninhada.
Até mesmo as galinhas do Rei eram intocáveis e guardadas como as outras.
Peter Marlowe ficou vendo Sunset pegar uma galinha e cruzar com ela, em meio à poeira. A galinha levantou-se do chão e saiu cacarejando e ainda deu uma bicada numa outra galinha. Peter Marlowe desprezou-se por ficar olhando. Sabia que aquilo era uma fraqueza. Só o faria pensar em N’ai, e seu sexo doeria.
Voltou para o galinheiro, verificou se a porta estava bem trancada e foi embora, segurando os dois ovos com todo o cuidado até chegar ao bangalô.
— Peter, amigo — disse Mac, abrindo um sorriso — este é o nosso dia de sorte!
Peter Marlowe pegou o maço de Kooas e dividiu-o em três montinhos.
— Vamos tirar a sorte para ver quem fica com os dois que sobraram.
— Você fica com eles, Peter — disse Larkin.
— Não, vamos tirar a sorte. A carta mais baixa perde. Mac perdeu e fingiu estar aborrecido.
— Que o diabo o leve! — praguejou.
Abriram os cigarros com cuidado e colocaram o tabaco nas suas caixas, misturando-o com quanto fumo tratado de Java possuíam. Depois, dividiram as suas porções em quatro, e guardaram as três outras porções numa outra caixa; Larkin ficou tomando conta dessas outras caixas. Ter tanto fumo junto era muita tentação.
Abruptamente, os céus se abriram e o dilúvio começou.
Peter Marlowe tirou o sarongue, dobrou-o com cuidado e botou-o na cama do Mac. Larkin comentou, pensativo:
— Peter. Veja onde pisa com o Rei. Ele pode ser perigoso.
— Claro. Não se preocupe.
Peter saiu para o temporal. Daí a um momento, Mac e Larkin se despiram e saíram também, reunindo-se aos outros homens nus que curtiam a chuvarada.
Seus corpos recebiam com prazer as vergastadas, os pulmões enchiam-se do ar* fresco, as cabeças se desanuviavam.
E as águas lavavam o fedor de Changi.
5
Depois da chuva, os homens ficaram sentados, saboreando o frescor fugaz, esperando a hora de jantar. A água escorria do telhado e rodopiava nas valas, e o chão era só lama. Mas o Sol brilhava orgulhoso no céu branco e azul.
— Ó, Deus! — exclamou Larkin, agradecido. — Assim está melhor.
— É — concordou Mac, os dois sentados na varanda. Mas o pensamento de Mac estava no seu seringal em Kedah, bem mais para o norte. — O calor tem o seu valor... faz a gente apreciar mais o tempo fresco — disse, suavemente. — É como a febre.
— A Malásia é uma bosta, a chuva é uma bosta, o calor é uma bosta, a malária é unia bosta, os percevejos são uma bosta e as moscas são uma bosta — disse Larkin.
— Não em tempos de paz, homem. — Mac piscou o olho para Peter Marlowe. — Não numa aldeia, hem, Peter, meu rapaz?
Peter Marlowe abriu um sorriso. Contara a eles a maior parte das coisas sobre sua aldeia. Sabia que Mac adivinharia o que ele não havia contado, pois Mac vivera sua vida adulta no Oriente, e amava-o tanto quanto Larkin o odiava.
— É o que dizem — falou, serenamente, e todos sorriram.
Não falavam muito. Todas as histórias já haviam sido contadas e recontadas, todas as histórias que queriam contar.
E então, esperaram pacientemente. Quando chegou a hora, cada um foi para sua fila, depois voltou ao bangalô. Tomaram rapidamente a sopa. Peter Marlowe ligou a chapa quente elétrica feita por eles, e fritou um ovo. Puseram as suas porções de arroz na vasilha e ele pôs o ovo sobre o arroz, com um pouco de sal e pimenta. Bateu tudo junto, para que a clara e a gema e o arroz ficassem bem misturados, depois dividiu a mistura e todos a comeram com satisfação.
Quando acabaram, Larkin foi lavar os pratos, pois era sua vez, depois voltaram a sentar-se na varanda para esperar a chamada da hora do crepúsculo.
Peter Marlowe estava olhando preguiçosamente para os homens que andavam pela rua, saboreando sua barriga cheia, quando viu Grey se aproximar.
— Boa-noite, Coronel — cumprimentou Grey a Larkin, batendo continência corretamente.
— Boa-noite, Grey — suspirou Larkin. — O que é, agora? — Quando Grey vinha procurá-lo, era sempre sinal de encrenca.
Grey olhou para Peter Marlowe. Larkin e Mac sentiram a hostilidade entre ambos.
— O Coronel Smedly-Taylor pediu-me que lhe avisasse, senhor — disse Grey. — Dois dos seus homens estavam brigando. O Cabo Townsend e o Soldado Gurble. Estão agora na cadeia.
— Muito bem, Tenente — disse Larkin, sombriamente. — Pode soltá-los. Mande que se apresentem a mim, depois da chamada. Vou mostrar-lhes o que e’ bom! — Fez uma pausa. — Sabe por que brigavam?
— Não, senhor. Mas creio que era por causa do duas-para-o-alto. — Joguinho ridículo, pensou Grey. Coloca-se duas moedinhas num pedaço de pau e depois joga-se as duas para o alto e aposta-se como vão cair: duas caras, duas coroas, uma cara e uma coroa.
— É provável que sim — resmungou Larkin.
— Quem sabe o senhor podia proibir o jogo. Sempre há encrenca quando...
— Proibir o duas-para-o-alto — interrompeu Larkin, abruptamente. — Se fizesse isso, diriam que estou maluco. Não iriam respeitar uma ordem ridícula dessas, e com toda a razão. O jogo faz parte da natureza australiana, já devia saber disso. O duas-para-o-alto é um motivo de diversão para os soldados, e brigar de vez em quando também não é mau. — Levantou-se e esticou os ombros, para afastar a malária. — Jogar é como respirar para um australiano. Ora, lá na Austrália todo o mundo faz suas apostazinhas. — A voz dele tinha uma ponta de irritação. — Eu mesmo gosto de um joguinho de duas-para-o-alto, de quando em vez.
— Sim, senhor — disse Grey. Já vira Larkin e outros oficiais australianos com os seus comandados, rolando no pó, tão excitados e soltando tantos palavrões quanto qualquer soldado. Não admira que a disciplina fosse ruim.
— Diga ao Coronel Smedly-Taylor que cuidarei deles. Puta merda!
— Foi uma pena a história do isqueiro de Marlowe, não foi, senhor? — comentou Grey, olhando atentamente para Larkin.
Os olhos de Larkin ficaram firmes, e repentinamente duros.
— Ele devia ter sido mais cuidadoso. Não acha?
— Sim, senhor — respondeu Grey, após uma pausa longa o suficiente para dar seu recado. Bem, pensou, valeu a pena tentar. Pro diabo com Larkin e pro diabo com Marlowe. Há tempo de sobra. Já ia bater continência e sair, quando uma idéia fantástica o sacudiu. Controlou seu entusiasmo e disse, casualmente: — Ah, a propósito, senhor. Está correndo um boato de que um dos australianos tem um anel de diamantes. — Deu um tempo antes de perguntar: — Sabe de alguma coisa?
Os olhos de Larkin fitavam sob sobrancelhas espessas. Lançou um olhar pensativo a Mac antes de responder:
— Também já ouvi os boatos. Ao que me consta, não é um dos meus homens. Por quê?
— Só estou verificando, senhor — disse Grey, com um sorriso duro. — Naturalmente, o senhor sabe que um anel desses pode ser dinamite. Para o seu dono e mais um bocado de gente. — Acrescentou: — Deveria estar bem trancado.
— Não acho, meu velho — disse Peter Marlowe, e o “meu velho” era discretamente maldoso. — Seria a pior coisa a se fazer... se é que o diamante existe. O que eu duvido. Se estiver num lugar conhecido, um monte de rapazes vai querer vê-lo. E os japoneses o afanariam, logo que soubessem de sua existência.
— Concordo — falou Mac, pensativo.
— Está melhor onde está. No limbo. Provavelmente não passa de mais um boato — disse Larkin.
— Espero que sim — disse Grey, agora convencido de que seu palpite estava certo. — Mas o boato parece bem forte.
— Não é um dos meus homens. — A cabeça de Larkin fervia. Grey parecia saber algo... quem seria? Quem?
— Bem, senhor, se souber de alguma coisa, avise-me. — Os olhos de Grey correram Peter Marlowe de alto a baixo, desdenhosamente. — Gosto de impedir as encrencas antes que comecem. — Em seguida, bateu uma continência caprichada para Larkin, fez um sinal de cabeça para Mac, e se afastou.
Houve um silêncio longo e pensativo no bangalô. Depois, Larkin olhou para o Mac.
— Por que será que ele perguntou aquilo?
— É — falou Mac. — Por quê? Viu como a cara dele ficou toda acesa, como um farol?
— Foi mesmo! — confirmou Larkin, os vincos do rosto mais fundos do que de costume. — Grey tem razão quanto a uma coisa. Um diamante pode custar muito sangue a muitos homens.
— É só um boato, Coronel — falou Peter Marlowe. — Ninguém poderia guardar uma coisa dessas, por tanto tempo. Impossível.
— Espero que .tenha razão. — Larkin franziu a testa. — Deus me ajude, que não esteja com nenhum dos meus rapazes.
Mac se espreguiçou. Sua cabeça doía, e podia sentir um acesso de febre a caminho. Bem, ainda ia demorar uns três dias, pensou calmamente. Já tivera tanta febre que ela fazia parte de sua vida, como respirar. Agora, era uma vez a cada dois meses. Lembrava-se que estivera na bica para se reformar em 1942, por ordem médica. Quando a malária chega ao seu baço... bem, então é hora de ir para casa, meu velho, para a velha Escócia, para o clima frio, hora de comprar aquela fazendola perto de Killin, de onde se vê a glória do Lago Tay. E então você pode viver.
— É — comentou Mac, cansado, sentindo o peso dos seus 50 anos. A seguir, falou em voz alta o que todos estavam pensando. — Mas se tivéssemos a danada da pedrinha, poderíamos agüentar o repuxo sem medo do futuro. Sem medo nenhum.
Larkin preparou um cigano e acendeu-o, dando uma boa baforada. Passou-o para Mac, que fumou e passou-o para Peter Marlowe. Quando estavam quase no fim do cigarro, Larkin jogou fora a ponta ardente e colocou os restos do tabaco na sua caixa. Depois, quebrou o silêncio.
— Acho que vou dar uma volta. Peter Marlowe sorriu.
— Salamat — disse, o que significa: “A paz esteja convosco.”
— Salamat — respondeu Larkin, e saiu para o Sol.
Enquanto Grey subia a ladeira que levava à choça da PM, seu cérebro fervia de entusiasmo. Prometeu a si mesmo que logo que chegasse à choça e soltasse os australianos, prepararia um cigarro para comemorar. Era o seu segundo do dia, embora só tivesse fumo javanês bastante para mais três cigarros, até o dia do pagamento, na semana entrante.
Subiu célere os degraus e fez sinal para o Sargento Masters.
— Pode soltá-los!
Masters retirou a pesada trave da porta da jaula de bambu e os dois cabeçudos ficaram em posição de sentido diante de Grey.
— Os dois devem apresentar-se ao Coronel Larkin, depois da chamada. Os homens bateram continência e saíram.
— Malditos arruaceiros — disse Grey, secamente. Sentou-se, pegou sua caixa e os papéis. Fora extravagante, este mês. Comprara uma página inteira da Bíblia, que dava os melhores cigarros. Embora não fosse um homem religioso, ainda assim parecia meio sacrílego fumar a Bíblia. Grey leu as escrituras do fragmento que se preparava para enrolar: “E então Satã” saiu da presença do Senhor e encheu Jó de furúnculos da sola dos pés até o alto da cabeça. E levou-lhe um caco de louça para que os raspasse com ele; e ele se sentou em meio às cinzas. E então sua esposa disse...”
Esposa! Mas que diabo, por que tive que deparar com essa palavra? Grey praguejou e virou o papel.
A primeira frase do outro lado era: “Por que não morri ao deixar o ventre? Por que não expirei quando saía de dentro da barriga?”
Grey ergueu o corpo abruptamente, quando uma pedra veio voando pela janela, bateu contra uma parede e caiu com barulho no chão.
A pedra estava enrolada num pedaço de jornal. Grey apanhou-a e correu para a janela. Mas não havia ninguém à vista. Grey sentou-se e alisou o jornal, que tinha escrito nas bordas: Faço um trato com você. Entrego-lhe o Rei numa bandeja... se fechar os olhos quando eu comerciar um pouquinho no lugar dele, depois que o pegar. Se concordar com o trato, fique de pé diante da choça por um minuto com esta pedra na mão esquerda. A seguir, livre-se do outro tira. Os caras dizem que é um tira honesto, portanto vou confiar em você. .
— O que diz aí, senhor? — perguntou Masters, fitando com olhos turvos o jornal.
Grey amassou o papel, formando uma bola.
— Alguém acha que trabalhamos bem demais para os japoneses — falou, asperamente.
— Mas que filho da mãe! — exclamou Masters, indo até a janela. — O que eles acham que aconteceria se a gente não cuidasse da disciplina? Os sacanas passariam o dia todo se engalfinhando.
— É isso mesmo — concordou Grey. A bola de papel parecia ter vida na sua mão. Se esta oferta for para valer, pensou, o Rei pode sei derrubado.
Não era uma decisão fácil de tomar. Teria que cumprir sua parte no acordo. Sua palavra empenhada não voltava atrás; era um “tira” honesto, e tinha muito orgulho de sua reputação. Grey sabia que faria qualquer coisa para ver o Rei dentro da jaula de bambu, despido dos seus enfeites... chegaria até a fechar um pouco os olhos à transgressão das regras. Ficou imaginando qual dos americanos podia ser o delator. Todos odiavam o Rei, tinham inveja dele... mas quem bancaria o Judas, quem arriscaria as conseqüências, caso fosse descoberto? Fosse quem fosse o homem, jamais poderia ser uma ameaça tão grande quanto o Rei.
E assim, foi lá para fora com a pedra na mão esquerda e examinou atentamente os homens que passavam. Mas nenhum deles deu-lhe qualquer sinal.
Jogou fora a pedra e dispensou Masters. A seguir, ficou sentado na choça, esperando. Já perdera a esperança, quando outra pedra voou pela janela, enrolada no segundo recado: Examine uma lata que está na vala ao lado da Choça 16. Duas vezes ao dia, de manhã e depois da chamada. Ela será a nossa intermediária. Ele está negociando com Turasan, esta noite.
6
Naquela noite, Larkin ficou deitado no seu colchão, sob o mosquiteiro, seriamente preocupado com o Cabo Townsend e o Soldado Gurble. Eles se haviam apresentado a Larkin, após a chamada.
— Mas por que cargas-d’água vocês estavam brigando? — perguntara repetidamente, e a resposta taciturna era sempre a mesma:
— Duas-para-o-alto.
Mas Larkin soubera instintivamente que estavam mentindo.
— Quero a verdade — dissera, com raiva. — Qual é, vocês dois são amigos. Vamos, por que estavam brigando?
Mas os dois homens haviam mantido o olhar no chão, obstinadamente. Larkin os interrogara individualmente, mas cada um, por sua vez, dera a mesma resposta carrancuda:
— Duas-para-o-alto.
— Muito bem, seus filhos da mãe — dissera Larkin finalmente, com voz áspera. — Vou dar-lhes uma última chance. Se não me contarem a verdade, vou transferir os dois do meu regimento. E no que me diz respeito, vocês deixarão de existir!
— Mas Coronel — exclamara Gurble, ofegante — o senhor não faria isso!
— Dou-lhes trinta segundos — dissera Larkin, maldosamente, falando sério. E os homens sabiam que falava sério. E sabiam que a palavra de Larkin era a lei no regimento, pois Larkin era como o pai deles. Ser expulso significaria que não mais existiriam para seus camaradas, e sem estes, eles morreriam. Larkin esperara um minuto. Depois, falara: — Muito bem. Amanhã...
— Eu conto, Coronel — interrompera Gurble. — Esse cretino me acusou de roubar a comida dos meus camaradas. Esse cretino disse que eu estava roubando...
— E estava mesmo, seu filho da mãe nojento!
— Sentido! — trovejara Larkin, impedindo que se atracassem. O Cabo Townsend havia contado primeiro o seu lado da história.
— Este é o meu mês de trabalhar na cozinha. Hoje tivemos que cozinhar para cento e oitenta e oito...
— Quem está faltando? — indagara Larkin.
— Billy Donahy, senhor. Baixou hospital hoje à tarde.
— Continue.
— Bem, senhor. Cento e oitenta e oito homens, com direito a cento e vinte e cinco gramas de arroz por dia, dá um total de vinte e três quilos e meio. Sempre vou pessoalmente ao depósito com um colega para ver o arroz ser pesado e depois o transporto, para me certificar que recebemos toda nossa porção. Bem, hoje estava vigiando a pesagem quando tive uma eólica daquelas. Assim, pedi ao Gurble que carregasse o arroz para a cozinha. Ele é o meu melhor colega, por isso achei que podia confiar nele...
— Não toquei num só grão, seu filho da mãe. Juro por Deus...
— Faltava arroz quando eu voltei! — berrara Townsend. — Quase duzentos e cinqüenta gramas, ou seja, a ração de dois homens!
— Eu sei, mas não...
— Os pesos não estavam errados! Verifiquei-os debaixo do seu nariz, cretino!
Larkin fora com os homens verificar os pesos, e viu que estavam corretos. Não havia dúvida de que a quantidade certa de arroz saíra do depósito, pois as rações eram pesadas publicamente todas as manhãs pelo Tenente-Coronel Jones. Só havia uma resposta.
— No que me diz respeito, Gurble — falara Larkin — você está fora do meu regimento. Está morto.
Gurble saíra para a escuridão, tropegamente, choramingando, e Larkin dissera a Townsend.
— Fique de boca calada sobre esse assunto.
— Puxa vida, Coronel — retrucara Townsend. — Os soldados o fariam em pedaços, se soubessem. E com razão! O único motivo pelo qual não contei a eles é porque ele era meu melhor colega. — De repente seus olhos encheram-se de lágrimas. — Puxa vida, Coronel, nós nos alistamos juntos. Acompanhamos o senhor por Dunquerque e aquela droga de Oriente Médio e toda a Malásia. Eu o conheci quase que a minha vida toda, e teria apostado a minha vida...
Agora, recordando tudo, pouco antes de dormir, Larkin estremeceu. Como é que um homem pode fazer uma coisa dessas, perguntou-se, desanimado. Como? Logo o Gurble, a quem conhecia há tantos anos, que até mesmo trabalhara no seu gabinete, em Sydney!
Fechou os olhos e tirou Gurble da cabeça. Cumprira seu dever, e era seu dever proteger a maioria. Deixou o pensamento vagar, até a mulher Betty, preparando um bife a cavalo, a sua casa com vista para a baía, a sua filhinha, a vida que ia viver depois. Mas quando? Quando?
Grey subiu suavemente os degraus da Choça 16, como um ladrão dentro da noite, dirigindo-se para sua cama. Tirou a calça e se enfiou sob o mosquiteiro, deitando-se nu sobre o colchão, muito satisfeito consigo mesmo. Acabara de ver Turasan, o guarda coreano, esgueirar-se pelo canto da choça americana e sob o toldo de lona; vira o Rei pular cautelosamente a janela para encontrar-se com Turasan. Grey ficara apenas mais um momento nas sombras. Estava apenas verificando a informação do espião, e ainda não havia necessidade de saltar sobre o Rei. Não. Ainda não, agora que o delator provara ser de confiança.
Grey mudou de posição na cama, coçando a perna. Os dedos experientes agarraram o percevejo e o esmagaram. Ouviu o estalido que o inseto fez ao estourar e sentiu o fedor adocicado do sangue que continha... seu próprio sangue.
Em volta do seu mosquiteiro, nuvens de mosquitos zumbiam, buscando o furinho inevitável. Ao contrário da maioria dos oficiais, Grey recusara-se a converter sua cama em beliche, pois detestava ter que dormir acima ou abaixo de outra pessoa. Apesar dos beliches significarem mais espaço.
Os mosquiteiros ficavam presos num arame que dividia ao meio o comprimento da choça. Até mesmo durante o sono os homens estavam presos um ao outro. Quando um homem se virava, ou puxava o mosquiteiro para prendê-lo melhor sob o colchão ensopado, todos os mosquiteiros se sacudiam um pouco, e todos os homens se sentiam cercados.
Grey esmagou outro percevejo, mas não estava concentrado nos insetos. Hoje estava muito feliz... com o dedo-duro, com o seu compromisso de pegar o Rei, com o anel de diamantes, com Marlowe. Estava muito satisfeito, pois solucionara o enigma.
É simples, repetiu de novo consigo mesmo. Larkin sabe quem tem o diamante. O Rei é o único no campo que pode providenciar a venda. Somente os contatos do Rei são bons o bastante para tal. Larkin não iria procurar o Rei diretamente, então mandou Marlowe. Este é o intermediário.
A cama de Grey balançou quando Johnny Hawkins, muito doente, tropeçou nela, semidesperto, dirigindo-se para a privada.
— Cuidado, pelo amor de Deus! — exclamou Grey, irritado.
— Desculpe — disse Johnny, tateando em busca da porta.
Dentro de alguns minutos, Johnny estava de volta, aos tropeções. Algumas pragas sonolentas acompanharam sua trajetória. Mal Johnny chegou a seu beliche, já estava na hora de voltar à privada. Desta vez, Grey não notou a cama balançar, pois estava trancado dentro de si mesmo, prevendo as jogadas prováveis do inimigo.
Peter Marlowe achava-se totalmente desperto, sentado nos degraus duros da Choça 16, sob o céu sem Lua, os olhos, ouvidos e mente perscrutando a escuridão. De onde estava podia ver as duas estradas — a que dividia o campo em dois e a que margeava os muros da cadeia. Tanto os guardas japoneses e os coreanos quanto os prisioneiros se utilizavam dos dois caminhos. Peter Marlowe era a sentinela norte.
Atrás dele, nos outros degraus, sabia que o Capitão-Aviador Cox concentrava-se como ele, perscrutando a escuridão, para ver se havia perigo. Cox vigiava o sul.
O leste e o oeste não eram guardados porque a Choça 16 tinha entradas apenas pelo norte ou sul.
De dentro da choça, e por toda a parte, ouviam-se os ruídos dos adormecidos... gemidos, risadas estranhas, roncos, choramingos, gritos semi-abafa-dos... misturados à suavidade dos murmúrios dos insones. Era uma noite fresca e boa aqui, acima da estrada. Tudo estava normal.
Peter Marlowe teve um sobressalto, como um cão que avista a presa. Pressentira o guarda coreano antes mesmo de tê-lo divisado na escuridão, e quando chegou a ver realmente o guarda, já dera o sinal de advertência.
Nos fundos da choça, Dave Daven não escutou o primeiro assobio, de tão absorto no seu trabalho. Quando escutou o segundo, mais urgente, respondeu-o, arrancou as agulhas, largou-se no catre e prendeu a respiração.
O guarda se arrastava pelo campo, fuzil no ombro, e não viu Peter Marlowe, ou os outros. Mas sentiu seus olhos. Apressou o passo e saiu da esfera do ódio.
Depois de uma eternidade, Peter Marlowe ouviu Cox dar o sinal de tudo-bem, e descontraiu-se novamente. Mas seus sentidos permaneceram alerta.
Nos fundos da choça, Daven recomeçou a respirar. Levantou-se com cuidado sob o grosso mosquiteiro no beliche de cima. Com infinita paciência religou as duas agulhas às extremidades do fio isolante por onde passava a corrente. Depois de uma busca desgastante, sentiu as agulhas entrarem nos buraquinhos da trave de 20-por-20 que servia de cabeceira do beliche. Uma gota de suor formou-se no seu queixo e caiu na trave, quando ele encontrou as duas outras agulhas que estavam ligadas ao fone de ouvido e novamente, após uma busca cega e torturante, sentiu com as pontas dos dedos os buracos que lhes correspondiam, e enfiou as agulhas direitinho na trave. O fone de ouvido começou a funcionar, em meio à estática:
“...e as nossas forças estão-se movendo rapidamente pelas selvas para Mandalay. E aqui terminam as notícias. Aqui fala Calcutá. Vamos resumir as notícias: forças americanas e britânicas estão fazendo o inimigo recuar na Bélgica, e no setor central, na direção de Saint-Hubert, em meio a fortes tempestades de neve. Na Polônia, os exércitos russos estão a 32 quilômetros de Krakow, também sob fortes nevascas. Nas Filipinas, as forças americanas lançaram uma cabeça-de-ponte sobre o Rio Agno, dirigindo-se para Manila. Formosa foi bombardeada à luz do dia por B-29 americanos, sem perdas. Na Birmânia, exércitos britânicos e indianos vitoriosos estão a uns 50 quilômetros de Mandalay. O próximo noticiário será às seis horas, hora de Calcutá.”
Daven pigarreou de leve e sentiu o fio isolante vivo dar um leve repuxão e se soltar, quando Spence, no beliche ao lado, tirou o seu grupo de agulhas da fonte. Rapidamente, Daven soltou as suas quatro agulhas, recolocando-as no seu estojo de costura. Enxugou o suor do rosto, e cocou o lugar onde os percevejos o mordiam. A seguir, soltou os fios do fone de ouvido, apertou com cuidado os terminais, e colocou-o numa bolsa especial na sua sunga, por trás dos testículos. Abotoou a calça e dobrou o fio, enfiando-o pelas presilhas do cinto e dando um nó com ele. Pegou um trapo e enxugou as mãos, depois tapou com cuidado os buraquinhos na trave, enchendo-os de poeira, disfarçando-os perfeitamente.
Ficou deitado na cama por mais um momento para recobrar as forças e se coçando. Quando já estava mais sereno, saiu de sob o mosquiteiro e pulou para o chão. A essa hora da noite nunca se dava ao trabalho de colocar a perna postiça, por isso passou a mão nas muletas e foi-se balançando suavemente em direção à porta. Não fez nenhum sinal ao passar pelo beliche de Spence. A regra era essa. Todo cuidado é pouco.
As muletas rangeram, madeira contra madeira, e pela décima milionésima vez Daven pensou na sua perna. Aquilo já não o incomodava muito, atualmente, embora o coto doesse pra cachorro. Os médicos lhe disseram que logo teria que cortar mais um pedaço dele. Isso já fora feito duas vezes, uma vez uma operação verdadeira abaixo do joelho, em 1942, quando pisara num terreno minado. Outra vez acima do joelho, sem anestesia. Só de pensar nisso, sentiu rangerem os dentes e jurou que jamais passaria por aquilo de novo. Mas dessa próxima vez, a última vez, não seria assim tão ruim. Eles tinham anestesia, aqui em Changi. Seria a última vez, porque não havia mais muita coisa para amputar.
— Oh, alô, Peter — disse, quase tropeçando no colega. — Não o vi.
— Alô, Dave.
— Bela noite, não é? — Dave jogou o corpo com cuidado degraus abaixo. — Minha bexiga está-se engraçando de novo.
Peter Marlowe sorriu. Se Daven dissera isso, significava que as notícias eram boas. Se ele dissesse: “Vou dar uma mijada”, significava que nada estava acontecendo no mundo. Se dissesse: “Meus intestinos estão me matando”, significava uma grande derrota em algum lugar do mundo. Se dissesse: “Segure minha muleta um instante”, significava uma grande vitória.
Embora Peter Marlowe fosse ouvir as notícias detalhadamente no dia seguinte, decorá-las com Spence e contar para as outras choças, gostava de saber de imediato como estavam as coisas. E então ficou sentado, olhando Daven que se arrastava de muletas para o mictório, gostando dele, respeitando-o.
Daven parou, com a muleta rangendo. O mictório era feito de um pedaço dobrado de ferro corrugado. Daven ficou olhando sua urina correr para a extremidade baixa, depois cascatear, espumante, da calha enferrujada para o grande tambor, aumentando a escuma que se formava na superfície do líquido. Lembrou-se de que o dia seguinte era dia de coleta. O tambor seria levado embora, juntado a outros, e levado para as hortas. O líquido seria misturado à água, depois essa mistura seria colocada cuidadosamente, xícara por xícara, sobre as raízes das plantas tratadas e vigiadas pelos homens que plantavam a comida do campo. Esse fertilizante tornaria mais verde as verduras que comiam.
Daven detestava verduras. Mas eram comida, e a gente tinha que comer.
Uma brisa deixou gelado o suor das suas costas, e trouxe consigo o travo do mar, a cinco quilômetros de distância, cinco anos-luz de distância.
Daven ficou pensando em como o rádio estava funcionando perfeitamente. Sentiu-se muito satisfeito consigo mesmo ao lembrar-se como erguera delicadamente uma lasca fina do alto da trave, e como fizera ali embaixo um buraco de 15 centímetros de profundidade. Como tudo isso fora feito em segredo. Como ele levara cinco meses embutindo o rádio, trabalhando à noite e de madrugada e dormindo de dia. Como a tampa se encaixava com tanta perfeição que, quando se cobria com poeira as beiradas, seu contorno não podia ser visto, nem mesmo de muito perto. E como os buracos das agulhas também eram invisíveis quando cobertos de pó.
A idéia de que ele, Dave Daven, era o primeiro no campo a ouvir as notícias enchia-o de orgulho. E tornava-o único. A despeito da perna. Um dia ele ouviria a notícia do término da guerra. Não apenas a guerra européia. A guerra deles. A guerra do Pacífico. Graças a ele, o campo estava ligado ao exterior, e sabia que o terror, o suor e a angústia valiam a pena. Somente ele, Spence, Cox, Peter Marlowe e os dois coronéis ingleses sabiam onde o rádio ficava. Era sensato agir assim, pois quanto menos gente soubesse, menor o perigo.
Claro que havia perigo. Sempre havia olhos indiscretos, olhos em que não se podia necessariamente confiar. Sempre havia a possibilidade de alcagüetes. Ou de se deixar escapar alguma coisa, involuntariamente.
Quando Daven voltou para a porta da choça, Peter Marlowe já se retirara para seu beliche. Daven viu que Cox ainda estava sentado nos degraus opostos, mas isso era de se esperar, pois as regras ditavam que as duas sentinelas não se retiravam ao mesmo tempo. O coto de Daven começou a cocar loucamente, mas não exatamente o coto, e sim o pé que não mais estava lá. Subiu para seu beliche, fechou os olhos e rezou. Sempre rezava antes de dormir, para o sonho não vir, a imagem nítida do querido Tom Cotton, o australiano, que fora pegado com o outro rádio e fora levado sob escolta para a Cadeia de Utram Road, com o chapéu de cule derrubado atrevidamente sobre um dos olhos, cantando debochadamente Waltzing Matilda, e o refrão era “Fodam-se os Japoneses”. Mas no sonho de Daven era ele, não Tommy Cotton. quem ia com os guardas. Ele ia com eles, e ele ia tomado de um terror abjeto.
— Ó, Deus — rezou Daven, lá no íntimo — dai-me a paz da Vossa coragem. Tenho tanto medo e sou tão covarde.
O Rei estava fazendo a coisa de que mais gostava na vida. Contava uma pilha de notas novinhas. Lucro de uma venda.
Turasan segurava educadamente sua lanterna elétrica, com o facho cuidadosamente abafado e focalizado na mesa. Estavam na “loja” como a chamava o Rei, juntinho à choça americana. Agora, do toldo de lona caía outro pedaço de lona, até o chão, ocultando a mesa e os bancos dos olhos onipresentes. Era proibido aos guardas e prisioneiros comerciarem, por ordem dos japoneses, passando a ser, desse modo, uma ordem também do Comandante do Campo.
O Rei tinha armado sua expressão de “tapeado-num-negócio” e contava de cara fechada.
— O.K. — suspirou o Rei finalmente, quando as notas chegaram a 500. — Ichi-bon!
Turasan acenou com a cabeça, assentindo. Era um homem baixo e atarracado, com cara de lua cheia e a boca coalhada de dentes de ouro. Deixara o fuzil descuidadamente encostado à parede da choça, às suas costas. Apanhou a caneta Parker e a reexaminou atentamente. O ponto branco estava lá. A pena era de ouro. Levantou a caneta mais para perto da luz encoberta e apertou os olhos para se certificar, mais uma vez, de que as palavras 14 quilates estavam gravadas na pena.
— Ichi-bon — resmungou, finalmente, e chupou o ar entre os dentes. Também ele afivelara sua expressão de “tapeado-num-negócio”, e ocultava sua satisfação. Por 500 dólares japoneses, a caneta era uma excelente aquisição, e sabia que conseguiria facilmente o dobro por ela, dos chineses de Cingapura.
— Seu maldito negociante ichi-bon — disse o Rei, carrancudo. — Semana que vem, talvez um relógio de puIso ichi-bon. Mas sem grana, não negocio. Tenho que ganhar uma grana.
— Grana demais — falou Turasan, indicando a pilha de notas com a cabeça. — Relógio logo, talvez?
— Talvez.
Turasan ofereceu seus cigarros. O Rei aceitou um, deixando que Turasan o acendesse. A seguir, Turasan chupou o ar entre os dentes pela última vez, e abriu seu sorriso dourado. Botou o fuzil no ombro, curvou-se educadamente e sumiu dentro da noite.
O Rei abriu um largo sorriso enquanto terminava o cigarro. Uma bela noite de trabalho, pensou: 50 dólares pela caneta, 150 para o homem que falsificou o ponto branco e gravou a pena... 300 dólares de lucro. O fato de que a cor sumiria da pena em uma semana não incomodava o Rei nem um pouquinho. Sabia que a esta altura, Turasan já a teria vendido a um chinês. O Rei entrou pela janela da sua choça.
— Obrigado, Max — falou, baixinho, pois a maioria dos americanos na choça já dormia. — Pode descansar, agora. — Separou duas notas de 10 dólares. — Dê a outra ao Dino. — Geralmente não pagava tanto a seus homens por um período tão curto de trabalho. Mas essa noite estava muito generoso.
— Puxa, obrigado.
Max saiu às pressas, e foi dizer ao Dino para relaxar, entregando-lhe uma nota de 10 dólares.
O Rei botou o bule de café na chapa quente. Tirou as roupas, pendurou a calça, e botou a camisa, cueca e meias na cesta de roupa suja. Vestiu uma sunga limpa, quarada ao Sol, e enfiou-se sob o mosquiteiro.
Enquanto esperava que a água fervesse, foi recordando o dia de trabalho. Primeiro, o Ronson. Conseguira que o Major Barry aceitasse 550, menos 55 dólares, que era sua comissão de 10%, e registrara o isqueiro com o Capitão Brough como “ganho no pôquer”. Ele valia pelo menos 900 dólares, fácil; portanto, fora um bom negócio. Do jeito que a inflação está crescendo, pensou, é importante ter o máximo possível da grana em mercadoria.
O Rei lançara o empreendimento do fumo tratado com uma reunião de vendas. Tudo acontecera conforme o planejado. Todos os americanos se haviam oferecido como vendedores, e os contatos ingleses e australianos do Rei acharam ruim. O que era normal. Já combinara comprar 10 quilos de fumo javanês de Ah Lee, o chinês que tinha a concessão da loja do campo, e ele o arranjaria com bom desconto. Uma das cozinhas australianas já concordara em ceder um dos seus fornos diariamente por uma hora, para que toda a leva de tabaco pudesse ser cozida de uma só vez, sob a supervisão de Tex. Como todos os homens trabalhavam na base de comissão, a única despesa do Rei era com o tabaco. Amanhã, o tabaco preparado estaria à venda. Do jeito que ele arrumara tudo, teria um lucro de 100%. O que não era mais do que justo.
Agora que o projeto do tabaco estava em andamento, o Rei estava pronto para atacar o do diamante...
O sibilar da cafeteira fervente interrompeu sua meditação. Saiu de sob o mosquiteiro e destrancou a caixa preta. Botou três colheres cheias de pó de café na água e acrescentou uma pitada de sal. Quando a água levantou fervu-ra, ele a tirou do fogo e esperou até que baixasse.
O aroma do café espalhou-se pela choça, atormentando os homens que ainda estavam acordados.
— Jesus! — exclamou Max, involuntariamente.
— O que foi, Max? — perguntou o Rei. — Não consegue dormir?
— Não. Estou /com a cabeça cheia demais. Estive pensando. Podemos faturar adoidado com aquele tabaco,
Tex mexeu-se, inquieto, sentindo o aroma.
— Esse cheiro me faz lembrar de quando eu procurava petróleo.
— Como? — O Rei derramou água fria para a borra ir para o fundo, depois botou uma colher de sopa cheia de açúcar na sua caneca, e encheu-a.
— A melhor parte da perfuração é de manhã. Depois de um turno da noite suarento e longo nas máquinas. Quando a gente senta com os colegas e toma o primeiro bule escaldante de café, ao alvorecer. E o café é fumegante e doce, e ao mesmo tempo um pouco amargo. E talvez você olhe por entre o emaranhado de torres e vê o Sol nascendo no Texas. — Deu um longo suspiro. — Puxa, isso é que é vida.
— Nunca estive no Texas — disse o Rei. — Já viajei muito, mas não no Texas.
— É a terra de Deus.
— Quer uma xícara?
— Se quero. — Tex se aproximou, com sua caneca. O Rei se serviu de uma segunda xícara. A seguir, deu meia xícara para Tex.
— Max?
Este também ganhou meia xícara. Bebeu depressa o café.
— Ajeito isso para você de manhã — falou, levando o bule cheio de borra.
— Certo. Boa-noite, rapazes.
O Rei enfiou-se de novo sob o mosquiteiro e certificou-se de que estivesse bem esticado sob o colchão. A seguir, deitou-se gostosamente entre os lençóis. Viu Max, do outro lado da cabana, juntar um pouco d’água à borra do café, para deixar marinar, ao lado do seu catre. O Rei sabia que Max aproveitaria a borra para o seu desjejum. Pessoalmente, o Rei não gostava de usar o pó duas vezes. O café ficava amargo demais. Mas os rapazes achavam ótimo. Se Max queria reaproveitar o pó, tudo bem, pensou, de bom humor. O Rei não aprovava o desperdício.
Fechou os olhos e passou a pensar no diamante. Finalmente sabia quem o possuía, como obtê-lo, e agora que a sorte lhe trouxera Peter Marlowe, sabia como podia ser feita a complicadíssima transação.
Uma vez que se fica conhecendo um homem, disse o Rei para si mesmo, satisfeito, que se conhece o seu calcanhar-de-aquiles, sabe-se como lidar com ele, como fazer com que se encaixe nos seus planos. É, o seu palpite dera certo, quando deparara com Peter Marlowe pela primeira vez, acocorado como um nativo no pó, tagarelando em malaio. A gente tem que arriscar seus palpites, neste mundo.
Agora, pensando na conversa que tivera com Peter Marlowe depois da chamada da hora do crepúsculo, o Rei sentiu o calor da expectativa espalhar-se no corpo.
— Nada acontece nesse buraco do inferno — dissera o Rei, inocentemente, enquanto se sentavam ao abrigo da choça, sob o céu sem Lua.
— Isso mesmo — concordara Peter Marlowe. — É repugnante. Um dia é igual a todos os outros, dá para deixar um cara maluco.
O Rei fizera que sim com a cabeça, esmagando um mosquito.
— Conheço um sujeito que tem toda a emoção que quer, e ainda sobra.
— É? O que ele faz?
— Cruza a cerca de arame. À noite.
— Meu Deus. Mas isso é comprar barulho. Ele deve ser pirado!
Mas o Rei notara o lampejo de excitação nos olhos de Peter Marlowe. Esperou em silêncio, sem nada dizer.
— Por que ele age assim?
— Na maioria das vezes, de curtição.
— Quer dizer, emoção?
O Rei tornara a acenar com a cabeça. E Peter Marlowe assobiara baixinho.
— Não creio que eu tivesse tanta coragem.
— Às vezes, o sujeito vai à aldeia malaia.
Peter Marlowe olhara pela cerca de arame, imaginando a aldeia que todos sabiam existir no litoral, a cinco quilômetros de distância. Certa vez, tinha subido à cela mais alta da cadeia, e escalara a parede até a minúscula janela de grades. Tinha olhado por ela e vira o panorama da selva e da aldeia, juntinho ao litoral. Naquele dia, havia navios no mar. Navios pesqueiros e navios de guerra inimigos... grandes e pequenos... como se fossem ilhas no espelho do mar. Continuara olhando, fascinado com a proximidade do mar, pendurado às grades, até que as mãos e os braços ficaram cansados. Depois de descansar um pouco, iria subir e olhar de novo. Mas não o fez. Nunca mais. Doía demais. Sempre vivera perto do mar. Longe dele, sentia-se perdido. Agora, estava perto dele outra vez. Mas estava fora do seu alcance.
— É muito perigoso confiar numa aldeia inteira — dissera Peter Marlowe.
— Não, se você os conhece.
— Isso é verdade. Esse homem vai mesmo à aldeia?
— Foi o que me disse.
— Acho que nem o Suliman se arriscaria a tanto.
— Quem?
— Suliman. O malaio com quem eu estava conversando, hoje à tarde.
— Parece que já faz um mês — dissera o Rei.
— É mesmo, parece.
— Que diabo um sujeito como o Suliman está fazendo nesse buraco? Por que simplesmente não se mandou, quando a guerra acabou?
— Ele ficou preso em Java. Suliman era seringueiro na plantação de Mac. Mac é um dos caras da minha unidade. Bem, o batalhão de Mac, o Regimento Malaio, saiu de Cingapura e foi mandado para Java. Quando a guerra acabou, Suliman teve que ficar junto com o batalhão.
— Que diabo, ele podia ter-se desgarrado. Há milhões deles em Java...
— Os javaneses o teriam reconhecido imediatamente, e é provável que o denunciassem.
— Mas e quanto ao papo da co-prosperidade, sabe como é, a Ásia para os asiáticos?
— Infelizmente, não vale grande coisa. Não adiantou também para os javaneses. Não, se não obedecessem.
— O que quer dizer?
— Em 1942, no outono de quarenta e dois, eu estava num campo nos limites de Bandung — explicara Peter Marlowe. — Fica nas colinas de Java, no centro da ilha. Nessa época havia muitos amboneses, menadoneses e diversos javaneses conosco... homens que estiveram no Exército holandês. Bem, o campo era dureza para os javaneses, pois muitos eram de Bandung e suas mulheres e filhos moravam do lado de fora da cerca. Durante muito tempo, eles costumavam escapulir e passar a noite fora, depois voltar para o campo antes do alvorecer. O campo não era muito vigiado, portanto era fácil. Mas muito perigoso para os europeus, porque os javaneses os denunciavam aos japoneses, e eles estavam fritos. Certo dia, os japoneses proclamaram que quem quer que fosse descoberto do lado de fora seria fuzilado. Naturalmente, os javaneses pensaram que aquilo se referia a todos, menos a eles... já lhes fora dito que daí a duas semanas todos seriam livres para partir, em todo o caso. Certa manhã, sete deles foram presos. Puseram-nos em forma, no dia seguinte. O campo inteiro. Os javaneses foram encostados num muro e fuzilados. Sem mais nem menos, diante de todos nós. Os sete corpos foram enterrados... com honras militares... onde caíram. A seguir, os japoneses fizeram um jardinzinho em volta das tumbas. Plantaram flores e isolaram toda a área com uma cerca de cordas brancas, e colocaram um cartaz em malaio, japonês e inglês: Estes homens morreram por seu país.
— Está-me gozando!
— Não estou, não. Mas o engraçado é que os japoneses puseram uma guarda de honra nas tumbas. Depois, cada guarda japonês, cada oficial japonês que passava pelo “santuário” tinha que bater continência. Sem exceção. E nessa época, os prisioneiros tinham que se levantar e fazer reverência sempre que avistavam um soldado japonês, caso contrário, levavam uma coronhada de fuzil na cabeça.
— Não faz sentido. O jardim e as continências.
— Faz para eles. É a mente oriental. Para eles, faz perfeito sentido.
— Mas não faz mesmo. De jeito nenhum!
— É por isso que não gosto deles — dissera Peter Marlowe, pensativo. — Tenho medo deles, porque não tenho parâmetro para julgá-los. Não reagem como deveriam. Nunca.
— Ah, não sei. Conhecem o valor do dinheiro, e pode-se confiar neles, na maioria das vezes.
— Está falando comercialmente? — Peter Marlowe dera uma risada. — Bem, quanto a isso, não sei. Mas quanto às pessoas em si... Houve outro fato que presenciei. Num outro campo em Java... lá estavam sempre mudando a gente de lugar, não é como em Cingapura... também em Bandung. Havia um guarda japonês, um dos melhores. Não implicava com a gente, como a maioria. Bem, este homem, a quem chamávamos de Sunny, pois vivia sempre sorrindo, adorava cachorros. E Sunny sempre tinha uma meia dúzia deles a seu lado, quando percorria o campo. O seu favorito era um cão-pastor... uma cadela. Um dia, a cadela teve uma ninhada dos cachorrinhos mais engraçadinhos do mundo, e Sunny parecia o japonês mais feliz do mundo, treinando os cachorrinhos, rindo e brincando com eles. Quando começaram a andar, fez tre-las de barbante para eles, e andava por todo o campo puxando os bichinhos. Certo dia, estava puxando os filhotes, quando um deles resolveu sentar-se. Sabe como são os cachorrinhos, ficam cansados e se sentam. Sunny arrastou-o um pouquinho, depois deu um repelão. O bichinho ganiu, mas empacou.
Pelei Marlowe fizera uma pausa, preparando um cigarro. A seguir, continuara:
— Sunny agarrou firme o barbante e começou a girar o cãozinho acima da cabeça, na ponta da corda. Girou-o cerca de doze vezes, dando risadas, como se aquilo fosse a maior piada do mundo. Então, quando o cãozinho desesperado ganhou impulso, ele deu uma rodada final e largou o barbante. O bichinho deve ter voado uns quinze metros. E quando caiu no chão duro, arrebentou-se como um tomate maduro.
— Mas que filho da mãe!
Depois de um momento, Peter Marlowe dissera:
— Sunny foi até onde estava o cãozinho. Olhou para ele, depois desatou a chorar. Um dos nossos pegou uma pá e enterrou os restos, e o tempo todo Sunny se rasgava de dor. Quando a sepultura estava lisa, ele enxugou as lágrimas, deu ao homem um maço de cigarros, xingou-o durante cinco minutos, deu-lhe uma coronhada na virilha, depois fez uma reverência para a sepultura, outra para o homem ferido, e se afastou, todo sorridente, com os outros cães e filhotes.
O Rei sacudira a cabeça, devagar.
— Quem sabe ele era só louco. Sifilítico.
— Não, Sunny não era. Os japoneses parecem agir como crianças, mas têm corpos de homens, e força de homens. Apenas encaram as coisas como as crianças. A perspectiva deles é oblíqua... para nós... e distorcida.
— Ouvi contar que as coisas foram brabas em Java, depois da rendição — dissera o lei, para que o outro continuasse falando. Levara quase uma hora para fazer com que Peter Marlowe começasse a falar, e queria que este se sentisse à vontade.
— De certo modo. Claro que em Cingapura havia mais de cem mil homens, portanto os japoneses tinham que ser cautelosos. A cadeia de comando ainda existia, e muitas unidades achavam-se intactas. Os japoneses estavam pressionando muito para tomar a Austrália, e não ligavam muito, contanto que os prisioneiros de guerra se comportassem e se organizassem em campos. Foi a mesma coisa em Sumatra e Java, durante algum tempo. A idéia deles era seguir em frente e tomar a Austrália, depois todos seríamos mandados para lá como escravos.
— Está maluco — dissera o Rei.
— Não estou, não. Foi um oficial japonês que me contou, depois que fui capturado. Mas quando a marcha deles foi detida na Nova Guiné, começaram a limpar suas linhas. Em Java não havia muitos de nós, portanto podiam dar-se ao luxo de ser brutos. Disseram que não tínhamos honra... os oficiais... porque nos deixáramos ser capturados. Assim, não nos consideravam prisioneiros de guerra. Cortaram nosso cabelo e nos proibiram de usar as insígnias de oficial. Acabaram por deixar que “voltássemos a ser” oficiais outra vez, embora não nos permitissem deixar crescer o cabelo de novo. — Peter Marlowe sorrira. — Como foi que chegou aqui?
— A mancada de costume. Eu fazia parte de uma equipe de construção de uma pista de pouso. Nas Filipinas. Tínhamos que sair de lá a toque de caixa. O primeiro navio que pudemos pegar dirigia-se para cá, e embarcamos nele. Imaginávamos que Cingapura seria tão segura quanto o Forte Knox. Quando chegamos aqui, os nipônicos já estavam quase passando por Johore. Houve um pânico de última hora, e todos os rapazes tomaram o último comboio a sair daqui. Menos eu, achei arriscado, e fiquei. O comboio foi torpedeado no mar. Usei a cabeça... e estou vivo. Na maioria das vezes, só os otários são mortos.
— Não creio que eu tivesse tido a sabedoria de ficar... se tivesse a oportunidade — comentara Peter Marlowe.
— A gente tem é que cuidar do número um, Peter. Mais ninguém cuida. Peter Marlowe pensara muito nessa frase — cuidar primeiro de si. Pedaços de conversa varavam a noite. Ocasionalmente, uma explosão de raiva. Sussurros. As nuvens constantes de mosquitos. De longe vinha o som lamentoso de um apito de navio, seguido de outro em resposta. As palmeiras farfalhavam, delineadas contra o céu escuro. Uma folha seca caíra do alto de uma palmeira e desabara no chão da selva.
Peter Marlowe quebrara o silêncio.
— Esse amigo seu. Vai mesmo à aldeia?
O Rei olhara dentro dos olhos de Peter Marlowe.
— Quer ir? — perguntara, baixinho. — Da próxima vez que eu for? Um leve sorriso retorcera os lábios de Peter Marlowe.
— Quero...
Um mosquito zumbiu no ouvido do Rei num crescendo irritante. Ele se levantou bruscamente, pegou a lanterna elétrica e vasculhou o interior do mosquiteiro. Finalmente, o inseto pousou na cortina, e o Rei esmagou-o habilmente. A seguir, verificou cuidadosamente que não houvesse furos na tela, e deitou-se outra vez.
Dentro de um momento, apagou. O sono vinha rápida e tranqüilamente para o Rei.
Peter Marlowe ainda estava acordado, no seu beliche, coçando as mordidas dos percevejos. O que o Rei lhe dissera havia despertado muitas lembranças...
Lembrou-se do navio que o trouxera, e a Mac e Larkin, de Java, um ano antes.
Os japoneses haviam ordenado ao Comandante de Bandung, um dos campos em Java, que arranjasse 1.000 homens para um destacamento de trabalho. Os homens seriam enviados para outro campo próximo durante duas semanas, com boa comida (rações duplas) e cigarros. A seguir, seriam transferidos para outro local. Boas condições de trabalho.
Muitos homens se haviam oferecido para ir, por causa das duas semanas. Alguns foram obrigados. Mac se oferecera como voluntário, e indicara Larkin e Peter Marlowe também.
— Nunca se sabe, rapazes — explicara, quando eles o xingaram. — Se pudermos ir para uma ilhazinha, bem, Peter e eu conhecemos o idioma. E afinal, o lugar não pode ser pior do que este.
E assim, decidiram trocar o mal que conheciam pelo mal que estava por vir.
O navio era um minúsculo vapor de carga. No começo da prancha de embarque havia muitos guardas e dois japoneses de branco, com máscaras brancas. Às costas traziam grandes recipientes, e nas mãos borrifadores ligados aos recipientes. Todos os prisioneiros e seus pertences foram esterilizados com os borrifadores, para que não levassem micróbios javaneses para o navio limpo.
No pequeno porão de carga da popa havia ratos, piolhos e fezes, e havia um espaço de seis metros por seis metros no centro do porão. Em toda a volta do porão, presas ao casco, do convés ao teto, havia cinco camadas de prateleiras fundas. A altura entre as prateleiras era de cerca de 90 centímetros, e sua profundidade era de três metros.
Um Sargento japonês mostrou aos homens como sentar nas prateleiras, de pernas cruzadas. Cinco homens em fileira, depois cinco homens em fileira ao lado destes, depois cinco homens em fileira ao lado destes. Até que todas as prateleiras estivessem lotadas.
Quando os protestos de pânico tiveram início, o Sargento disse que os soldados japoneses eram transportados dessa maneira, e o que servia para o glorioso Exército japonês servia também para a escória branca. Um revólver forçou os cinco primeiros homens, ofegantes, para dentro da escuridão claustrofóbica, e a pressão dos homens que desciam para o porão forçou os outros a fugirem da massa que empurrava, para dentro das prateleiras. Estes, por sua vez, foram forçados por outros. Joelho com joelho, costas com costas, lado a lado. Os homens que sobraram — quase 100 — ficaram aparvalhados na pequena área de seis por seis, agradecendo aos céus não estarem metidos nas prateleiras. As escotilhas ainda estavam abertas, e o Sol castigava o porão.
O Sargento levou uma segunda fileira, que incluía Mac, Larkin e Peter Marlowe, para o porão da proa, e também este começou a ser lotado.
Quando Mac chegou ao porão abafado, deu um gemido e desmaiou. Peter Marlowe e Larkin o seguraram, e em meio à balbúrdia abriram caminho à força, voltando pela prancha até o convés. Um guarda tentou empurrá-los de volta. Peter Marlowe gritou, suplicou e mostrou o rosto trêmulo de Mac. O guarda deu de ombros e deixou-os passar, fazendo sinal na direção da proa.
Larkin e Peter Marlowe empurraram, xingaram e abriram um espaço para deitar Mac.
— O que vamos fazer? — perguntou Peter Marlowe a Larkin.
— Vou tentar arranjar um médico. A mão de Mac agarrou Larkin.
— Coronel. — Abriu imperceptivelmente os olhos e sussurrou bem rápido. — Estou bem. Tive de dar um jeito de tirar a gente de lá. Pelo amor de Deus, finjam que estão cuidando de mim e não se preocupem se me virem “ter” um ataque.
E assim, eles seguraram Mac enquanto ele choramingava, em delírio, e se debatia e vomitava a água que o forçavam a beber. Ele continuou assim até o navio zarpar. Agora, até mesmo o convés estava coalhado de homens.
Não havia espaço suficiente para todos os homens a bordo se sentarem ao mesmo tempo. Mas como havia filas para tudo — filas para água, para o arroz, para as privadas — cada homem podia sentar-se durante algum tempo.
Naquela noite, uma tormenta fustigou o navio durante seis horas. Os que estavam nos porões tentavam fugir do vômito, e os que estavam no convés tentavam fugir do temporal.
O dia seguinte foi calmo, sob um céu azul. Um homem caiu ao mar. Os que estavam no convés — homens e guardas — ficaram olhando durante muito tempo, enquanto ele se afogava na esteira do navio. Depois disso, ninguém mais caiu no mar.
No segundo dia, os cadáveres de três homens foram lançados ao mar. Alguns guardas japoneses dispararam seus fuzis para tornar a cerimônia mais militar. O serviço foi breve... era preciso entrar nas filas.
A viagem durou quatro dias e cinco noites. Para Mac, Larkin e Peter Marlowe, transcorreu sem novidades...
Peter Marlowe ficou deitado no colchão ensopado, ansiando pelo sono. Mas seu pensamento corria incontrolável, repisando terrores do passado e temores do futuro. E lembranças que seria melhor esquecer. Pelo menos agora, que estava só. Lembranças dela.
A alvorada já despontava quando finalmente adormeceu. Mas até mesmo então, seu sono foi cruel.
7
Os dias se sucediam, numa monotonia de dias.
E então, certa noite, o Rei foi ao hospital do campo procurar Masters. Encontrou-o na varanda de uma das choças, deitado numa cama fedorenta, semiconsciente, olhos fitos na parede de folhas.
— Alô, Masters — disse o Rei, depois de certificar-se de que ninguém estava ouvindo. — Como se sente?
Masters levantou os olhos, sem o reconhecer.
— Sente?
— Claro.
Passou-se um minuto, depois Masters resmungou:
— Não sei. — Um fio de saliva escorria do seu queixo.
O Rei apanhou sua caixa de fumo e encheu a caixa vazia pousada sobre a mesa, ao lado da cama.
— Masters — disse o Rei. — Obrigado por ter-me avisado.
— Avisado?
— Do que você leu no pedaço de jornal. Só queria agradecer, e dar-lhe um pouco de fumo.
Masters esforçou-se por recordar.
— Ah! Não é direito um colega espionar um colega. É sujeira, sacanagem! — E depois morreu.
O Dr. Kennedy se aproximou e puxou a coberta grosseira cuidadosamente sobre o rosto de Masters.
— Amigo seu? — perguntou ao Rei, com os olhos cansados e gélidos, sob um colchão de espessas sobrancelhas.
— De certo modo, Coronel.
— Ele tem sorte — disse o médico. — Acabaram-se as dores.
— É uma maneira de encarar a coisa, senhor — disse o Rei, polidamente. Pegou o fumo e devolveu-o à própria caixa. Masters não precisaria dele, agora.
— Do que ele morreu?
— De falta de ânimo. — O médico abafou um bocejo. Tinha os dentes manchados e sujos, os cabelos escorridos e sujos, as mãos rosadas e imaculadas.
— Quer dizer vontade de viver?
— É uma maneira de encarar a coisa. — O médico olhou de cara feia para o Rei. — Não há perigo de você morrer disso, não é?
— Que diabo, não. Senhor.
— O que o torna tão invencível? — perguntou o Dr. Kennedy, odiando aquele corpanzil que vendia saúde e força.
— Não estou entendendo. Senhor.
— Por que você está numa boa, e todo o resto não?
— Tenho sorte, só isso — disse o Rei, começando a se retirar. Mas o médico agarrou-lhe a camisa.
— Não pode ser só sorte. Não pode. Quem sabe você é o demônio, enviado para nos atormentar ainda mais! Você é um vampiro e um trapaceiro e um ladrão...
— Escute aqui. Jamais roubei ou trapaceei na vida, e não vou agüentar isso de ninguém.
— Então, quer-me contar como consegue? Como? É só o que quero saber. Não entende? Você é a resposta para todos nós. Você é bom ou é mau, e quero saber o que é.
— Está maluco — disse o Rei, afastando o braço bruscamente.
— Pode ajudar-nos...
— Ajude a si mesmo. Preocupo-me comigo mesmo. Preocupe-se consigo.
— O Rei notou como o jaleco branco do Dr. Kennedy pendia do seu peito emagrecido. — Tome — falou, dando-lhe o resto de um maço de Kooas. — Tome um cigarro. É bom para os nervos. Senhor. — Girou nos calcanhares e saiu apressado, estremecendo. Detestava hospitais. Detestava o fedor e a doença e a impotência dos médicos.
O Rei desprezava a fraqueza. Esse médico, pensou, está pronto para abotoar o paletó, o filho da puta. Um cara maluco desses não vai durar muito. Como o coitado do Masters. Mas quem sabe o Masters não era coitado... era Masters e era fraco e portanto não prestava. O mundo era uma selva, e os fortes sobreviviam e os fracos tinham que morrer. Era você ou o seu vizinho. É isso aí. Não há outro jeito.
O Dr. Kennedy fitou os cigarros, abençoando sua boa sorte. Acendeu um. Todo seu corpo saboreou a nicotina. A seguir, entrou na enfermaria, foi até onde estava Johnny Carstairs, detentor da DSO (Ordem do Mérito Militar), Capitão do 1? Regimento Blindado, que já era quase cadáver.
— Tome — disse, passando-lhe o cigarro.
— E o senhor, Dr. Kennedy?
— Não fumo, nunca fumei.
— Que sorte. — Johnny tossiu ao dar uma baforada, e um pouco de sangue veio junto com o escarro. O esforço da tosse contraiu seus intestinos, e um líquido sanguinolento saiu de dentro dele, pois os músculos do seu ânus há muito haviam perdido o controle. — Doutor — disse Johnny. — Quer calçar as minhas botas, por favor? Tenho que me levantar.
O velho olhou ao seu redor. Era difícil enxergar, pois a luz noturna da enfermaria era baixa e cuidadosamente velada.
— Não estou vendo nenhuma por aqui — replicou, olhando com olhos míopes para Johnny, que se sentara na beira da cama.
— Ah. Bem, o que se vai fazer.
— Que tipo de botas eram?
Um fio fino de lágrimas escorreu dos olhos de Johnny.
— Eu cuidava muito bem daquelas botas. Marchei uma vida inteira com elas. Eram a única coisa que me restava.
— Quer outro cigarro?
— Ainda estou terminando, obrigado.
Johnny voltou a deitar-se, no seu próprio excremento.
— Que pena, as minhas botas — disse.
O Dr. Kennedy suspirou e tirou as próprias botas sem cadarços e botou-as nos pés de Johnny.
— Tenho outro par — mentiu, depois ficou de pé, descalço, com dor nas costas.
Johnny remexeu os dedos dos pés, sentindo o toque do couro áspero. Tentou olhar para as botas, mas o esforço era demasiado.
— Estou morrendo — disse.
— Sim — falou o médico. Houve uma época... será que houve mesmo?... em que teria forçado uma mentirinha piedosa. Mas agora não havia por quê.
— Que coisa sem sentido, não é, Doutor? Vinte e dois anos e nada. Do nada para o nada.
Uma corrente de ar trouxe a promessa do alvorecer para a enfermaria.
— Obrigado por ter emprestado suas botas — falou Johnny. — Foi uma coisa que sempre prometi a mim mesmo... um homem tem que estar de botas.
Morreu.
O Dr. Kennedy tirou as botas dos pés de Johnny e voltou a calçá-las.
— Enfermeiro! — chamou, vendo um enfermeiro na varanda.
— Sim, senhor? — respondeu Steven, vivamente, vindo em sua direção, um balde de diarréia na mão esquerda.
— Chame r> destacamento dos enterros para vir pegar este aqui. Ah, e pode dispor da cama do Sargento Masters, também.
— Simplesmente não dá para eu fazer tudo, Coronel — disse Steven, largando o balde no chão. — Tenho que levar três comadres para as Camas Dez, Vinte e Três e Quarenta e Sete. E o pobre Coronel Hutton está muito desconfortável. Tenho que mudar o curativo dele. — Steven olhou para a cama e balançou a cabeça. — Nada senão mortos...
— É esse o serviço, Steven. 0 mínimo que podemos fazer é enterrá-los. E quanto mais depressa, melhor.
— É, acho que sim. Pobres rapazes. — Steven suspirou e enxugou delicadamente o suor da testa com um lenço limpo. A seguir, recolocou o lenço no bolso do macacão branco de enfermeiro, apanhou o balde do chão, cambaleou um pouco sob seu peso, e saiu porta afora.
O Dr. Kennedy tinha nojo dele, do seu cabelo preto untuoso, suas axilas e pernas raspadas. Ao mesmo tempo, não podia culpá-lo. O homossexualismo era uma maneira de sobreviver. Os homens brigavam pelo Steven, partilhavam com ele suas rações, davam-lhes cigarros... tudo isso em troca do uso temporário do seu corpo. E afinal de contas, perguntou-se o médico, o que há de tão repugnante nisso? Quando se pensa no “sexo normal”, bem, clinicamente é tão repugnante quanto o homossexualismo.
Com a mão áspera cocou o saco distraidamente, pois hoje a coceira estava forte. Involuntariamente, tocou o membro. Estava insensível, frouxo.
Lembrou-se que há meses não tinha uma ereção. Bem, pensou, é por causa da dieta alimentar pobre. Não havia por que se preocupar. Logo que sair daqui e me alimentar direito, tudo ficará bem. Um homem de 43 anos ainda é um homem.
Steven voltou com o destacamento mortuário. O corpo foi posto numa maça e levado embora. Steven trocou a única coberta. Daí a um momento, entrou outra maça, e o novo paciente ocupou a cama.
Automaticamente, o Dr. Kennedy tomou o pulso do homem.
— A febre vai ceder amanhã — falou. — É só malária.
— Sim, Doutor. — Steven ergueu os olhos, afetadamente. — Devo dar-lhe um pouco de quinino?
— Claro que tem que lhe dar quinino!
— Desculpe, Coronel — disse Steven mordazmente, jogando a cabeça para trás. — Só estava perguntando. Somente os médicos podem autorizar o uso de drogas.
— Pois bem, dê-lhe o quinino, e pelo amor de Deus, Steven, pare de fingir que é um raio de uma mulher.
— Ora! — As pulseiras de argola de Steven chacoalharam quando ele, todo ofendido, voltou-se para cuidar do paciente. — É muito injusto implicar com uma pessoa que só está tentando fazer o melhor, Dr. Kennedy.
O médico estava para estourar com Steven quando, neste momento, o Dr. Prudhomme entrou na enfermaria.
— Boa-noite, Coronel.
— Oh, alô. — O Dr. Kennedy virou-se para ele, agradecido, dando-se conta de que teria sido uma cretinice estourar com Steven. — Tudo bem?
— Tudo. Posso falar-lhe um momento?
— Claro.
Prudhomme era um homem pequeno e sereno — de peito de pombo — com as mãos manchadas pelos anos lidando com substâncias químicas. Tinha uma voz profunda e gentil.
— Temos dois apêndices para amanhã. Um deles acaba de chegar na Emergência.
— Está bem. Vou dar uma olhada neles antes de sair.
— Quer operar? — Prudhomme lançou um olhar para o fundo da enfermaria, onde Steven segurava um vaso para um homem vomitar.
— Quero. Assim fico ocupado — replicou Kennedy. Espiou para o canto escuro. À meia-luz da lâmpada elétrica velada, as pernas longas e esguias de Steven se destacavam. Igualmente sobressaía a curva das suas nádegas na calça apertada e curta.
Sentido o olhar dos homens, Steven ergueu os olhos. Sorriu.
— Boa-noite, Dr. Prudhomme.
— Alô, Steven — respondeu Prudhomme, suavemente.
O Dr. Kennedy percebeu, entristecido, que Prudhomme ainda olhava para Steven. Prudhomme virou-se para Kennedy, notando seu choque e mal-estar.
— Ah, a propósito, terminei a autópsia daquele homem que foi achado na fossa. Morte por sufocação — disse, baixinho.
— Se um homem é achado de ponta cabeça, enfiado numa fossa, é mais do que provável que a morte se deva à sufocação.
— É verdade, Doutor — disse Prudhomme, sem se abalar. — Escrevi no atestado de óbito: “Suicídio enquanto estava com a mente perturbada.”
— Já identificaram o corpo?
— Já. Hoje à tarde. Era um australiano, chamado Gurble. O Dr. Kennedy esfregou o rosto.
— Não é a maneira que eu escolheria para cometer suicídio. Pavorosa. Prudhomme concordou com a cabeça, e seus olhos voltaram a fitar Steven.
— Sem dúvida. É claro, ele pode ter sido colocado lá.
— Havia marcas no corpo?
— Nenhuma.
O Dr. Kennedy tentou parar de notar o modo como Prudhomme olhava para Steven.
— Bem, seja assassinato ou suicídio, é uma maneira horrível. Horrível! Imagino que nunca vamos saber o que foi ao certo.
— Houve um rápido inquérito, hoje à tarde, logo que se soube quem era. Aparentemente, faz alguns dias, o tal homem foi pegado roubando rações de uma choça.
— Oh, sei.
— Bem, seja lá o que tenha sido, ele mereceu, não acha?
— Imagino que sim. — O Dr. Kennedy estava com vontade de continuar a conversa, pois se sentia solitário, mas percebeu que Prudhomme se achava interessado somente no Steven. — Bem — falou — acho melhor ir ver os doentes. Quer vir junto?
— Não, obrigado, tenho que preparar os pacientes para a operação. Enquanto o Dr Kennedy saía da enfermaria, viu, com o canto do olho,
Steven passar perto de Prudhomme, e este fazer-lhe uma carícia furtiva. Ouviu a risada de Steven, e viu que ele retribuía a carícia, aberta e intimamente.
A obscenidade deles deixou-o pasmo, e sabia que deveria voltar para a enfermaria, mandar que se separassem e levá-los à corte marcial. Mas estava cansado demais, portanto foi andando para o outro extremo da varanda.
O ar estava parado, a noite escura e desfolhada, a Lua, como um arco gigante, pendurada nas vigas do céu. Os homens ainda cruzavam a trilha, mas todos calados. Tudo esperava pelo alvorecer.
Kennedy olhou para as estrelas, tentando ler nelas uma resposta à sua pergunta constante. Quando, ó, Deus, este pesadelo terá fim?
Mas não havia resposta.
Peter Marlowe estava na latrina dos oficiais, apreciando a beleza do alvorecer e a beleza de uma evacuação agradável. A primeira era freqüente, a segunda rara.
Ele sempre escolhia a última fila, quando vinha às latrinas, em parte porque ainda detestava evacuar em público, em parte porque lhe desagradava ter alguém às suas costas, e em parte porque era divertido ver os outros.
As fossas tinham sete metros e meio de profundidade, 60 centímetros de diâmetro, e ficavam a l,80m de distância uma das outras. Vinte fileiras descendo a inclinação, 30 privadas por fileira. Cada uma delas era coberta com madeira, com uma tampa solta.
No centro da área ficava um único trono feito de madeira. Uma privada convencional. Era prerrogativa dos coronéis. Todos os demais tinham que se agachar, à moda nativa, com os pés de cada lado do buraco. Não havia telas de espécie alguma, toda a área ficava às vistas do céu e do campo.
Sentado em esplendor solitário no trono estava o Coronel Samson. Exceto pelo sovado chapéu de cule, estava nu. Sempre usava o chapéu, era mania dele. A não ser quando estava raspando a cabeça, ou massageando-a ou esfregando óleo de coco e outras esquisitices nela, para ver se recobrava o cabelo. Tivera uma moléstia desconhecida, e certo dia perdera todos os pêlos da cabeça, inclusive cílios e sobrancelhas. 0 resto dele era peludo como um macaco.
Outros homens estavam espalhados pela área, cada um o mais longe possível do vizinho. Cada um com um cantil. Cada um abanando para afastar as nuvens de moscas.
Peter Marlowe disse a si mesmo que um homem nu agachado evacuando é a criatura mais feia do mundo... talvez a mais patética.
Por enquanto, havia apenas a promessa de um novo dia, uma névoa mais clara, dedos de ouro espalhando-se pelo céu de veludo. A terra estava fresca, pois chovera durante a noite, e a brisa era fresca e delicada, cheirando a maresia e a jasmim.
É, pensou Peter Marlowe satisfeito, vai ser um bom dia.
Quando acabou, inclinou o cantil, ainda agachado, e lavou os vestígios das fezes, usando com habilidade os dedos da mão esquerda. Sempre a esquerda. A mão direita é para comer. Os nativos não têm palavras para mão esquerda ou mão direita, é somente mão de cocô e mão de comer. E todos os homens usavam água, pois o papel, qualquer papel, era valioso demais. Exceto o Rei. Ele tinha papel higiênico de verdade. Dera um pedaço para Peter Marlowe e este o partilhara com sua unidade, pois era um excelente papel para cigarro.
Peter Marlowe levantou-se, amarrou de novo o sarongue, e voltou para sua choça, na expectativa do desjejum. Seria mingau de arroz e chá fraco, como sempre, mas hoje a unidade tinha também um coco... outro presente do Rei.
Nos poucos dias em que conhecia o Rei, haviam travado uma amizade rara. Os laços eram parte comida, parte fumo e parte ajuda... o Rei curara as úlceras tropicais dos tornozelos de Mac com Salvarsan — curou-as em dois dias, depois de terem supurado durante dois anos. Peter Marlowe sabia também que, embora os três recebessem de braços abertos a fortuna e o auxílio do Rei, gostavam dele especialmente por ele mesmo. Quando se estava com ele, emanava força e confiança. A gente se sentia melhor e mais forte também... era como se fosse possível alimentar-se da magia que o cercava.
— Ele é um feiticeiro! — falou, involuntariamente, Peter Marlowe, em voz alta.
A maioria dos oficiais da Choça 16 ainda dormia, ou estava deitada esperando a hora do café, quando ele entrou. Tirou o coco de sob o travesseiro e pegou o raspador e o facão. A seguir, foi lá para fora e sentou-se num banco. Uma pancada hábil com o facão abriu o coco em duas metades perfeitas, derrubando a água numa vasilha. A seguir, começou a raspar com cuidado metade do coco. Raspas da polpa caíram dentro da água.
A outra metade do coco ele raspou e colocou num recipiente diferente. Botou esta polpa num pedaço de mosquiteiro e espremeu com cuidado, deixando o caldo cair numa xícara. Hoje, era a vez de Mac adicionar o caldo adocicado ao seu mingau de arroz matinal.
Peter Marlowe pensou mais uma vez que alimento maravilhoso era o resíduo do coco. Rico em proteína e completamente sem sabor. No entanto, era só botar uma lasquinha de alho nele, e ficava alho puro. Um quarto de sardinha, e o todo adquiria gosto de sardinha, que daria sabor a muitos pratos de arroz.
De repente, ficou louco de vontade de comer o coco. Estava com tanta fome que nem ouviu os guardas se aproximando. Nem sentiu sua presença, até que já estavam bloqueando agourentamente a porta da choça, e todos os homens estavam de pé.
Yoshima, o oficial japonês, quebrou o silêncio.
— Há um rádio nesta choça.
8
Yoshima esperou cinco minutos para que alguém falasse. Acendeu um cigarro, e o som do fósforo foi como um trovão.
A primeira reação de Dave Daven foi, ó, meu Deus, quem foi o sacana que nos denunciou, ou bobeou? Peter Marlowe? Cox? Spence? Os coronéis? Sua segunda reação foi de terror — um terror absurdamente misturado com alívio — de que o dia tinha chegado.
O medo de Peter Marlowe era igualmente sufocante. Quem deixara escapar o segredo? Cox? Os coronéis? Ora, até mesmo Mac e Larkin não sabem que eu sei! Santo Cristo! Utram Road!
Cox estava petrificado. Encostou-se no beliche, olhando de um par de olhos puxados para o outro, e somente o fato de estar apoiado o impedia de cair.
O Tenente-Coronel Sellars era o encarregado nominal da choça, e sua calça estava pegajosa de medo, quando entrou no recinto com seu assistente, Capitão Forrest.
Bateu continência, o rosto e a papada vermelhos e molhados de suor.
— Bom-dia, Capitão Yoshima...
— Não é um bom dia. Há um rádio aqui. Um rádio contraria as ordens do Imperial Exército japonês. — Yoshima era pequeno, miúdo e impecável. Uma espada samurai pendia do seu cinto grosso. As botas até os joelhos brilhavam como espelhos.
— Não estou sabendo de nada disso. Não. De nada — vociferou Sellars. — Você! — Um dedo trêmulo apontou para Daven. — Sabe de alguma coisa?
— Não, senhor.
Sellars virou-se e olhou para os ocupantes da choça.
— Onde está o rádio? Silêncio.
— Onde está o rádio? — Achava-se quase histérico. — Onde está o rádio? Ordeno que seja entregue imediatamente. Sabe que somos todos responsáveis pelas ordens do Imperial Exército.
Silêncio.
— Levo vocês todos à corte marcial — berrou, sacudindo as bochechas flácidas. — Vão todos ter o que merecem. Você! Como se chama?
— Capitão-Aviador Marlowe, senhor.
— Onde está o rádio?
— Não sei, senhor.
Foi então que Sellars viu Grey.
— Grey! Você não é o Chefe da Polícia Militar? Se existe um rádio aqui, é sua responsabilidade, sua e de mais ninguém. Devia ter comunicado o fato às autoridades. Levá-lo-ei à corte marcial, e vai constar de sua folha...
— Não sei de nenhum rádio, senhor.
— Mas, por Deus, devia saber — berrou Sellars, o rosto contorcido e roxo. Cruzou furioso a choça, até onde ficavam os cinco oficiais americanos. — Brough! O que sabe dessa história?
— Nada. E é Capitão Brough, Coronel.
— Não acredito em você. É bem o tipo de encrenca que vocês causariam, seus malditos americanos. Não passam de uma ralé indisciplinada...
— Não sou obrigado a ouvir essa merda de você!
— Não fale comigo desse jeito. Diga “Senhor” e fique em posição de sentido.
— Sou o oficial americano mais antigo aqui, e não vou tolerar insultos seus, ou de quem quer que seja. Desconheço a existência de um rádio no contingente americano. Desconheço a existência de um rádio nesta choça. E se existisse, pode apostar que não lhe diria. Coronel!