LIVRO TRÊS15

Passava um pouquinho do alvorecer.

Peter Marlowe estava no seu beliche, semi-adormecido.

Será que foi um sonho?, perguntou-se, subitamente desperto. A seguir, seus dedos cautelosos tocaram o pedacinho de trapo que escondia o condensador, e soube que não era sonho.

Ewart retorceu-se no beliche superior, e acordou gemendo.

— ‘Mahlu para a noite — falou, jogando as pernas para fora do leito. Peter Marlowe lembrou-se de que era a vez de sua unidade trabalhar nas fossas. Saiu da choça e foi cutucar Larkin para acordá-lo.

— Hem? Oh, Peter — disse Larkin, largando o sono com esforço. — O que há?

Era difícil para Peter não soltar logo a novidade do condensador, mas queria esperar até Mac também estar presente, portanto falou apenas:

— Trabalho nas fossas, meu velho.

— Puta merda! Outra vez? — Larkin esticou as costas doloridas, amarrou o sarongue e calçou os tamancos.

Foram pegar a rede e a lata de 20 litros 6 caminharam pelo campo, que começava a acordar. Quando chegaram à área das latrinas, não prestaram atenção nos ocupantes, nem estes lhes prestaram atenção.

Larkin levantou a tampa de uma das fossas, Peter Marlowe rapidamente raspou os lados com a rede. Quando tirou a rede do buraco, veio cheia de baratas. Sacudiu a rede dentro da lata, e raspou de novo. Outra bela redada.

Larkin recolocou a tampa, e passaram para o buraco seguinte.

— Segure direito isso aí — falou Peter Marlowe. — Olhe só o que fez! Perdi pelo menos umas 100.

— Há muitas mais — comentou Larkin, enojado, segurando com mais firmeza a lata.

O cheiro era muito ruim, mas a colheita era rica. Logo a lata ficou abarrotada. A menor das baratas media quase quatro centímetros. Larkin tampou bem a lata, e se dirigiram para o hospital.

— Não é a minha idéia de uma dieta regular — comentou Peter Marlowe.

— Você as comeu mesmo em Java, Peter?

— Claro. E você também as comeu, aqui em Changi. Larkin quase deixou cair a lata.

— O quê?

— Não acha que eu iria dar aos médicos a dica de uma iguaria nativa e fonte de proteínas e não me aproveitar dela para nós, ach??

— Mas tínhamos um pacto! — berrou Larkin. — Concordamos, nós três, que não cozinharíamos nada exótico sem primeiro contar ao outro.

— Contei ao Mac, e ele concordou.

— Mas eu não, porra!

— Ora, qual é, Coronel! Tivemos que pegá-las e cozinhá-las em segredo, e escutar você dizer como o preparado estava gostoso. Sentimos tanto nojo quanto você.

— Bem, da próxima vez quero saber. É uma ordem, porra!

— Sim, senhor! — Peter Marlowe deu uma risada abafada. Entregaram a lata na cozinha do hospital. A minúscula cozinha especial que fazia a comida para os que estavam desesperadamente doentes.

Quando voltaram ao bangalô, Mac estava á espera deles. A sua pele estava cinza-amarelada, os olhos injetados e as mãos trêmulas, mas a febre já passara. Podia sorrir de novo.

— Que bom tê-lo de volta, meu cupincha — disse Larkin, sentando-se.

— É.

Peter Marlowe apanhou, displicentemente, a tirinha de pano.

— Ah, a propósito — falou, com indiferença estudada — isso pode ser útil, qualquer hora dessas.

Mac desembrulhou o pano, sem interesse.

— Puta merda! — exclamou Larkin.

— Porra, Peter — falou Mac, com os dedos trêmulos — está querendo que eu tenha um ataque do coração?

Peter Marlowe manteve a voz tão inexpressiva quanto a fisionomia, saboreando imensamente o entusiasmo dele.

— Não há por que ficar tão perturbado por uma bobagem. — E depois não conseguiu mais conter o sorriso. Riu de orelha a orelha.

— Você e a sua maldita sobriedade britânica. — Larkin tentava bancar o azedo, mas também sorria abertamente. — Onde arranjou isso, camarada?

Peter Marlowe deu de ombros.

— Pergunta cretina. Desculpe, Peter — falou Larkin.

Peter Marlowe sabia que jamais lhe perguntariam aquilo de novo. Era muito melhor que não soubessem da aldeia.

Já escurecia.

Larkin estava de vigia. Peter Marlowe estava de vigia. Oculto sob o mos-quiteiro, Mac juntou 6 condensador. Depois, sem conseguir esperar mais, fazendo uma prece, meteu o fio de conexão na fonte de eletricidade. Suando, escutou no único fone de ouvido.

Uma espera agonizante. Estava quente, sob o mosquiteiro, e as paredes e o chão de concreto armazenavam o calor do Sol que desaparecia. Um mosquito zunia raivosamente. Mac praguejou mas não tentou achá-lo ou matá-lo, pois de repente escutou a estática no fone.

Seus dedos tensos, molhados do suor que escorria braços abaixo, escorregaram na chave de parafusos. Enxugou-os. Delicadamente, encontrou o parafuso que girava o sintonizador e começou a torcer suave, muito suavemente. Estática. Só estática. E então, de repente, ouviu a música. Era um disco de Glenn Miller.

A música cessou, e um locutor disse:

— Aqui fala Calcutá. Continuamos o recital de Glenn Miller com o seu disco Moonlight Serenade.

Pelo vão da porta, Mac podia ver Larkin agachado nas sombras, e para além deles homens que cruzavam o corredor entre as filas de bangalôs de cimento. Teve vontade de sair gritando “Ei, rapazes, querem ouvir as notícias daqui a pouco? Estou sintonizado com Calcutá!”

Mac escutou por mais um minuto, depois desligou o rádio e botou com cuidado os cantis nos seus envoltórios de feltro verde-acinzentado e deixou-os descuidadamente sobre as camas. Haveria um noticiário de Calcutá às dez horas, e assim, para poupar tempo, Mac escondeu o fio e o fone de ouvido sob o colchão, ao invés de escondê-los no terceiro cantil.

Estivera curvado sob o mosquiteiro por tanto tempo que deu um jeito nas costas, e gemeu quando ficou de pé.

Larkin volveu o olhar para ele, de sua posição lá fora.

— O que há, meu camarada? Não consegue dormir?

— Não, meu rapaz — disse Mac, vindo agachar-se ao lado dele.

— Devia ir com calma, é o primeiro dia depois que saiu do hospital. — Larkin não precisou que lhe dissessem que o rádio funcionara. Os olhos de Mac brilhavam de entusiasmo. Larkin deu-lhe um soco de mentirinha. — Você é um cara legal, seu velho sacana.

— Onde está o Peter? — perguntou Mac, sabendo que estava de vigia junto aos chuveiros.

— Está ali. O cretinão está só sentado. Olhe para ele.

— Ei, ‘mahlu sanai — chamou Mac.

Peter Marlowe já sabia que Mac tinha acabado, mas se levantou e veio para junto deles e disse:

— ‘Mahlu sendris. — Isso queria dizer ‘‘‘mahlu você mesmo”. Também ele não precisou que lhe contassem.

— Que tal um joguinho de bridge? — perguntou Mac.

— Quem é o quarto?

— Ei, Gavin — chamou Larkin. — Quer ser o quarto?

O Major Gavin Ross levantou-se da cadeira, arrastando as pernas. Apoian-do-se numa muleta, veio vindo bem devagar do bangalô vizinho. Ficou grato pelo convite para o jogo. As noites eram sempre ruins. Tão desnecessária, a paralisia. No passado um homem, agora um nada. Pernas inúteis. Cadeira de rodas para o resto da vida.

Fora atingido na cabeça por uma lasquinha de granada, pouco antes da rendição de Cingapura.

— Não há com que se preocupar — disseram os médicos. — Podemos retirá-la tão logo você possa ir para um hospital adequado, com o equipamento adequado. Temos tempo de sobra.

Mas nunca houve um hospital adequado, com o equipamento adequado, e o tempo se esgotou.

— Deus — disse, dolorosamente, ajeitando-se no chão de cimento. Mac jogou-lhe uma almofada.

— Tome, meu velho!

Levou um momento para Gavin se acomodar, enquanto Peter Marlowe pegava as cartas e Larkin ajeitava o espaço entre eles. Gavin levantou a perna esquerda e tirou-a do caminho, dobrando-a, depois de soltar o fio de arame que prendia a ponta do seu sapato à tira que envolvia a perna, bem sob o joelho. A seguir, tirou a outra perna, igualmente paralisada, do caminho, e recostou-se na almofada apoiada à parede.

— Agora está melhor — falou, alisando o bigode à Kaiser Wilhelm com um movimento rápido e nervoso.

— Como vão as dores de cabeça? — perguntou Larkin, automaticamente.

— Não muito ruins, meu velho — Gavin replicou, do mesmo modo automático. — Você é o meu parceiro?

— Não. Pode jogar com o Peter.

— Essa não, o cara sempre trunfa o meu ás.

— Foi só uma vez — disse Peter Marlowe.

— Uma vez por noite — disse Mac, rindo e começando a dar as cartas.

— ‘Mahlu.

— Duas espadas — abriu Larkin, com um floreio. Continuaram a apostar, furiosa e veementemente.

Mais para o fim da noite, Larkin bateu à porta de um dos bangalôs.

— Sim? — perguntou Smedly-Taylor, espiando para dentro da noite.

— Desculpe incomodá-lo, senhor.

— Oh, alô, Larkin. Encrenca? — Era sempre encrenca. Ficou imaginando o que os australianos andaram aprontando, dessa vez, enquanto se levantava da cama, todo dolorido.

— Não, senhor. — Larkin certificou-se de que ninguém podia ouvi-lo. Suas palavras eram calmas e deliberadas. — Os russos estão a sessenta quilômetros de Berlim. Manila foi libertada. Os ianques desembarcaram em Corregidor e Iwo Jima.

— Tem certeza, homem?

— Sim, senhor.

— Quem... — Smedly-Taylor se interrompeu. — Não. Não quero saber de nada. Sente-se, Coronel — falou suavemente. — Está absolutamente certo?

— Sim, senhor.

— Posso apenas lhe dizer, Coronel — falou o homem mais velho, com voz monótona e solene — que nada posso fazer para ajudar quem quer que seja pegado com... que seja pegado. — Não queria nem pronunciar a palavra rádio. — Não quero saber nada sobre isso. — A sombra de um sorriso perpassou pelo rosto de granito, suavizando-o. — Peço apenas que o protejam com a própria vida, e me contem imediatamente ao ouvirem qualquer coisa.

— Sim, senhor. Pretendemos...

— Não quero saber de nada. Apenas das notícias. — Com ar triste, Smedly-Taylor tocou o ombro dele. — Lamento.

— É mais seguro, senhor. — Larkin ficou contente porque o Coronel não quis saber do plano deles. Haviam decidido que cada um só contaria a duas pessoas. Larkin contaria a Smedly-Taylor e a Gavin Ross; Mac contaria ao Major Tooley e ao Tenente Bosley, amigos pessoais seus; e Peter contaria ao Rei e ao Padre Donovan, o capelão católico. Cada um deles deveria passar a notícia adiante a duas pessoas de sua confiança, e assim por diante. Era um bom plano, pensou Larkin. Corretamente, Peter não quisera contar de onde viera o condensador. Um bom rapaz, aquele Peter.

Bem mais tarde, quando Peter Marlowe voltou à sua choça, depois de ter ido ver o Rei, Ewart estava totalmente desperto. Enfiou a cabeça para fora do mosquiteiro e sussurrou, todo excitado:

— Peter. Já soube da novidade?

— Que novidade?

— Os russos estão a sessenta quilômetros de Berlim. Os ianques desembarcaram em Iwo Jima e Corregidor.

Peter Marlowe sentiu o terror íntimo. Ó, meu Deus, já?

— Boatos, Ewart. Uma besteirada.

— Não é, não. Peter. Há um rádio novo no campo. É pra valer, não é boato. Não é formidável? Santo Deus, esqueci do melhor. Os ianques libertaram Manila. Agora não demora muito, não é?

— Só acredito vendo. — Talvez devêssemos ter dito apenas a Smedly-Taylor, e a mais ninguém, pensou Peter Marlowe, enquanto se deitava. Se Ewart tem conhecimento, não se sabe o que esperar.

Nervosamente, prestou atenção aos ruídos do campo. Quase se podia sentir a excitação crescente de Changi. O campo sabia que estava mantendo contato de novo.

Yoshima suava de medo, em posição de sentido diante do General enfurecido.

— Seu idiota estúpido e incompetente — dizia o General.

Yoshima se preparou para o golpe que vinha, e veio, uma bofetada na cara.

— Ache aquele rádio ou será rebaixado a soldado. Sua transferência está cancelada. Está dispensado.

Yoshima bateu continência, corretamente, e sua reverência foi um modelo de humildade. Deixou os aposentos do General, grato por não lhe ter acontecido mais nada. Amaldiçoados sejam aqueles prisioneiros peçonhentos.

No quartel, enfileirou seu pessoal e esbravejou com eles, e esbofetou-os até a mão lhe doer. Por sua vez, os sargentos esbofetearam os cabos e estes os soldados e os soldados os coreanos. As ordens eram bem claras: “Descubram esse rádio, caso contrário...”

Durante cinco dias nada aconteceu. A seguir, os carcereiros caíram em cima do campo e quase o destroçaram. Mas nada descobriram. O traidor que havia no campo não sabia ainda onde se encontrava o rádio. Nada aconteceu, exceto que o prometido retorno às rações normais foi cancelado. O campo se acomodou para esperar a passagem dos dias compridos, que ainda ficavam mais compridos pela falta de comida. Mas sabiam que, pelo menos, teriam notícias. Não boatos, mas notícias. E estas eram muito boas. A guerra na Europa estava quase acabada.

Mesmo assim, os homens andavam abatidos. Poucos tinham estoques re-serva de alimentos. E as boas notícias tinham seu lado ruim. Se a guerra acabasse na Europa, mais tropas seriam enviadas para o Pacífico. Eventualmente, o próprio Japão seria atacado. E tal ataque endoideceria seus carcereiros. Represálias! Todos sabiam que só havia um fim para Changi.

Peter Marlowe dirigia-se para a área dos galinheiros, com o cantil pendurado no quadril. Mac, Larkin e ele tinham concordado que talvez fosse mais seguro carregar os cantis o máximo que fosse possível. Para o caso de haver uma revista repentina.

Estava de bom humor. Embora o dinheiro que ganhara já tivesse sido gasto há muito tempo, o Rei adiantara comida e fumo por conta dos ganhos futuros. Deus, mas que homem, pensou. Se não fosse por ele, Mac, Larkin e eu estaríamos tão esfomeados quanto o resto de Changi.

O dia estava mais fresco. A chuva da véspera não deixara a poeira levantar. Estava quase na hora do almoço. Ao se acercar dos galinheiros, estugou o passo. Quem sabe vou encontrar alguns ovos, hoje. E então parou, perplexo.

Perto do cerrado que pertencia à unidade de Peter Marlowe, havia uma pequena multidão, uma multidão irada e violenta. Viu, com surpresa, que Grey estava lá. Diante de Grey achava-se o Coronel Foster, vestindo apenas uma tanga imunda, dando pulos para cima e para baixo, feito um maníaco, xingando incoerentemente Johnny Hawkins, que agarrava ao peito, protetoramente, seu cão.

— Oi, Max — falou Peter Marlowe, ao se acercar do galinheiro do Rei. — O que houve?

— Oi, Pete — respondeu Max naturalmente, mudando de posição o ancinho que tinha nas mãos. Notou a reação instintiva de Peter Marlowe ao “Pete”. Oficiais! A gente tenta tratar um oficial como um cara legal, chamando-o pelo nome, e ele fica danado. Eles que vão para o diabo. — É, Pete. — Repetiu de novo, só para sentir o gostinho. — Deu o maior rolo, uma hora atrás. Parece que o cachorro do Hawkins entrou no galinheiro do Tarado e matou uma das galinhas dele.

— Oh, não!

— Vão dar-lhe a cabeça do bicho, pode ter certeza. Foster berrava:

— Quero outra galinha, e quero cobrar os danos. O monstro matou uma das minhas filhas. Quero que seja acusado de assassinato.

— Mas, Coronel — dizia Grey, já no limite de sua paciência — foi uma galinha, não uma criança. Não se pode acusar de...

— Minhas galinhas são minhas filhas, idiota! Galinha, criança, que diferença faz? Hawkins é um assassino sujo. Um assassino, está me ouvindo”!

— Olhe, Coronel — disse Grey, iradamente. — Hawkins não lhe pode dar outra galinha. Já disse que sente muito. O cão se soltou da correia e...

— Quero uma corte marcial. Hawkins, o assassino, e sua fera, uma assassina. — A boca do Coronel Foster espumava. — Aquela maldita fera matou e comeu minha galinha. Comeu-a, e agora só restam penas de uma das minhas filhas.

Rosnando, lançou-se subitalmente sobre Hawkins, mãos estendidas, dedos como garras, arranhando o cão nos braços de Hawkins, e berrando:

— Mato você e sua fera maldita!

Hawkins desviou-se de Foster e empurrou-o. O Coronel caiu ao chio, e Rover ganiu de medo.

— Já pedi desculpas — falou Hawkins, corri voz abafada. — Se tivesse dinheiro, daria com prazer duas, dez galinhas para você, mas não posso! Grey — Hawkins virou-se desesperadamente para ele — pelo amor de Deus, faça alguma coisa!

— Mas que diabo posso fazer? — Grey estava cansado, com raiva e com disenteria. — Sabe que não posso fazer nada. Terei que relatar o que houve. Mas é melhor livrar-se desse cachorro.

— O que quer dizer?

— Santo Deus — falou Grey, furioso — quero dizer livre-se dele. Mate-o. Se não puder, arranje alguém para fazê-lo. Mas, por Deus, não quero esse cão aqui no campo quando escurecer.

— É o meu cão. Não pode mandar que...

— Não posso, porra nenhuma! — Grey tentou controlar os músculos do estômago. Gostava de Hawkins, sempre gostara, mas isso agora nada significava. — Conhece as regras. Foi avisado de que deveria mantê-lo na correia, e longe desta zona. Rover matou e comeu a galinha. Há testemunhas do fato.

O Coronel Foster levantou-se do chão, os olhos sinistros e vidrados.

— Vou matá-lo — sibilava. — Tenho o direito de matá-lo. Olho por olho. Grey postou-se diante de Foster, que se preparava para novo ataque.

— Coronel Foster. Esse assunto será devidamente relatado. O Capitão Hawkins já recebeu ordens para destruir o cão...

Foster não parecia escutar o que Grey dizia.

— Quero aquela fera. Vou matá-la. Como matou minha galinha. É minha. Vou matá-la. — Começou a se arrastar para diante, salivando. — Como ela matou minha filha.

Grey estendeu a mão espalmada.

— Não! Hawkins vai destruir o animal.

— Coronel Foster — dizia Hawkins, abjetamente. — Suplico-lhe, por favor, por favor, aceite minhas desculpas. Deixe-me ficar com o cachorro, isso nunca mais vai acontecer.

— Não vai mesmo. — O Coronel Foster ria feito louco. — Está morto, e é meu. — Arremessou-se para frente, mas Hawkins se afastou, e Grey agarrou o braço do Coronel.

— Pare com isso — berrou Grey — ou mando prendê-lo! Isso não é maneira de um oficial superior se portar. Afaste-se de Hawkins. Afaste-se.

Foster soltou-se de Grey. A voz dele mal passava de um murmúrio, enquanto falava diretamente para riawkins.

— Vou ajustar contas com você, assassino. Vou ajustar contas com você. — Voltou para seu galinheiro, para seu lar, o lugar onde morava e dormia e comia com as filhas, as galinhas. Grey virou-se para Hawkins.

— Lamento, Hawkins, mas tem que se livrar dele.

— Grey — implorava Hawkins — por favor, revogue a ordem. Por favor, eu lhe suplico. Farei qualquer coisa, qualquer coisa.

— Não posso. — Grey não tinha alternativa. — Sabe que não posso, Hawkins, meu velho. Não posso. Livre-se dele. E depressa.

Girou nos calcanhares e afastou-se.

O rosto de Hawkins estava molhado de lágrimas, com o cão aninhado nos braços. Foi então que viu Peter Marlowe.

— Peter, ajude-me, pelo amor de Deus.

— Não posso. Lamento, mas não há nada que eu, ou qualquer um possa fazer.

Desolado, Hawkins olhou à sua volta, para os homens silenciosos. Chorava abertamente, agora. Os homens se afastaram, pois nada havia que pudesse ser feito. Se um homem tivesse morto uma galinha, bem, seria quase a mesma coisa, talvez a mesma coisa. Um momento doloroso, depois Hawkins fugiu soluçando, com Rover ainda nos braços.

— Pobre coitado — comentou Peter Marlowe com Max.

— É, mas graças a Deus não foi uma das galinhas do Rei. Puxa, eu estaria frito. — Max trancou o galinheiro e fez um aceno de cabeça para Peter Marlowe, ao partir.

Max gostava de cuidar das galinhas. Nada como um ovinho extra, de quando em vez. E não há risco quando a gente suga o ovo rapidamente e esmigalha a casca e a coloca junto com a comida das galinhas. Não há pistas, desse modo. E as cascas fazem bem às galinhas. E que diabo, o que é um ovo uma vez ou outra, surripiado do Rei? Contanto que haja ao menos um por dia para o Rei, não dá galho. Porra, não dá! Max estava realmente feliz. Durante uma semana inteirinha ia cuidar das galinhas.

Mais tarde, depois do almoço, Peter Marlowe estava descansando no seu beliche.

— Com licença, senhor.

Peter Marlowe ergueu os olhos e deparou com Dino, de pé ao lado do beliche.

— Sim? — Correu os olhos pela choça e sentiu uma pontada de embaraço.

— Hã, posso falar-lhe, senhor? — O “senhor” soava impertinente, como de costume. Por que será que os americanos não podem dizer “senhor” para que soe normal? — pensou Peter Marlowe. Levantou-se e saiu com Dino. Acompanhou-o até o centro da pequena clareira entre as choças.

— Ouça, Pete — falou Dino, com urgência. — O Rei quer vê-lo. E disse que trouxesse Mac e Larkin.

— O que aconteceu?

— Apenas falou que os trouxesse. Devem encontrar-se com ele dentro da cadeia, na Cela Cinqüenta e Quatro, no quarto andar, dentro de meia hora.

Não era permitida a entrada de oficiais na cadeia. Ordens japonesas, que a polícia do campo fazia cumprir. Deus. Que coisa arriscada.

— Foi só isso que disse?

— É, foi só. Cela Cinqüenta e Quatro, quarto andar, em meia hora. Até logo. Pete.

Mas o que estará acontecendo, perguntava-se Peter Marlowe. Apressou-se a ir contar a Larkin e Mac.

— O que acha, Mac?

— Bem, meu rapaz — disse Mac, cautelosamente — não creio que o Rei nos mandasse chamar, aos três, sem uma explicação, a não ser que fosse importante.

— E essa história de entrar na cadeia?

— Se formos apanhados — disse Larkin — é melhor termos uma desculpa preparada. Grey com certeza vai saber e desconfiar que tem coisa fedendo. O melhor a fazer é irmos em separado. Posso dizer que vou visitar alguns australianos aquartelados na cadeia. E quanto a você, Mac?

— Tem gente do Regimento Malaio ali. Podia estar visitando um deles. E você, Peter?

— Há uns rapazes da RAF que eu poderia ir visitar. — Peter Marlowe hesitou. — Talvez eu devesse ir na frente, para ver o que é, e depois voltar para lhes contar.

— Não. Mesmo que não o vejam entrando, poderão apanhá-lo e detê-lo na saída. Jamais o deixariam entrar de novo. Você não poderia desobedecer uma ordem direta e entrar pela segunda vez. Não, acho melhor irmos todos. Mas independentemente. — Larkin sorriu. — Um mistério, hem? O que será?

— Torço para que não seja encrenca.

— Ah, meu rapaz — falou Mac. — Viver atualmente já é encrenca. Não me sentiria seguro se não fosse... o Rei tem amigos nas altas esferas. Talvez saiba de alguma coisa.

— E quanto aos cantis?

Pensaram por um momento, depois Larkin rompeu o silêncio.

— Nós os levaremos conosco.

— Não e’ perigoso? Quero dizer, se estivermos dentro da cadeia, se houver uma revista de surpresa, jamais conseguiremos escondê-los.

— Se tivermos que ser apanhados, seremos apanhados. — Larkin ficou sério, cara fechada. — Ou está nas cartas, ou não está.

— Ei, Peter — chamou Ewart, ao ver Peter Marlowe sair da choça. — Esqueceu a braçadeira.

— Ah, obrigado. — Peter Marlowe praguejou baixinho, enquanto voltava para o beliche. — Esqueci dessa droga.

— Sempre me esqueço, também. Mas é preciso ter cuidado.

— Isso mesmo. Obrigado, mais uma vez.

Peter Marlowe reuniu-se aos homens que caminhavam pela trilha ao lado do muro. Andou para o norte, e virou a esquina e deparou com o portão, à sua frente. Tirou a braçadeira e sentiu-se subitamente nu, e sentiu que os homens que passavam ou se aproximavam estavam olhando para ele e se perguntando por que esse oficial não estava de braçadeira. Uns 200 metros à frente a estrada oeste terminava. A barricada agora achava-se aberta, para alguns destacamentos de trabalho que voltavam do seu labor diário. A maioria dos trabalhadores estava exausta, puxando as imensas carretas cheias dos troncos de árvores que eram arrancados com tanto esforço dos pantanais, destinados às cozinhas do campo. Peter Marlowe lembrou-se de que, daí a dois dias, faria parte de um daqueles destacamentos. Não se incomodava com os destacamentos de trabalho quase diários no campo de pouso. Aquilo era fácil. Já o trabalho com madeira era outra história. Arrancar as toras era serviço perigoso. Muitos se rompiam internamente pela falta do equipamento que facilitaria a tarefa. Muitos quebravam membros, ou torciam tornozelos. Todos tinham que ir — os que estavam sadios, uma ou duas vezes por semana, tanto os oficiais quanto os soldados, pois as cozinhas consumiam muita lenha — e era justo que aqueles que estavam sadios apanhassem a lenha para os que não estavam.

Ao lado do portão encontrava-se o PM, e do lado oposto do portão, o guarda coreano apoiava-se no muro, fumando e observando com letargia os homens que passavam. O PM olhava para o pessoal que se vinha arrastando, de volta do trabalho. Havia um homem deitado na carreta. Um ou dois geralmente acabavam desse jeito, mas tinham que estar muito cansados, ou muito doentes, para serem rebocados de volta a Changi.

Peter Marlowe passou pelos guardas distraídos e se misturou aos homens que circulavam pela imensa praça de concreto.

Conseguiu entrar num dos blocos de celas, e começou a abrir caminho pelas escadarias de metal, passando por cima de camas e esteiras. Havia homens por toda a parte. Nas escadas, nos corredores e nas celas abertas... quatro ou cinco numa cela projetada para um homem. Sentiu o horror crescente da pressão vinda de cima, debaixo, de todos os lados. O fedor era nauseante. Fedor de corpos apodrecidos. Fedor de corpos humanos sem banho. Fedor de uma geração de corpos humanos confinados. Fedor de muros, muros de prisão.

Peter Marlowe achou a Cela Cinqüenta e Quatro. A porta estava fechada, mas ele a abriu e entrou. Mac e Larkin já se achavam lá.

— Porra, mas o cheiro deste lugar está-me matando.

— A mim, também, meu camarada — disse Larkin. Estava suando. Mac também suava. O ar mostrava-se pesado, e as paredes de concreto encontravam-se úmidas daquele suor e manchadas de mofo.

A cela media uns dois metros de largura por dois e meio de comprimento e três de altura. No centro da cela, cimentada a uma das paredes, ficava uma cama — um bloco sólido de concreto de 90 centímetros de altura e 90 centímetros de largura e um metro e oitenta de comprimento. Um travesseiro de concreto se sobressaía da cama. Num dos cantos da cela ficava o banheiro... um buraco no chão que se ligava aos esgotos. Estes já não mais funcionavam. Havia uma minúscula janela com grades a 2,70m do chão, numa das paredes, mas não dava para se ver o céu, porque a parede tinha 60 centímetros de espessura.

— Mac. Vamos dar-lhes alguns minutos, depois vamo-nos mandar desse lugar dos infernos.

— É, sim, meu rapaz.

— Pelo menos vamos abrir a porta — falou Peter Marlowe, com o suor escorrendo pelo corpo.

— É melhor deixá-la fechada, Peter. É mais seguro — retrucou Larkin, inquieto.

— Preferia estar morto do que viver aqui.

— É. Graças a Deus estamos do lado de fora.

— Ei, Larkin. — Mac mostrou as cobertas largadas sobre a cama de concreto. — Não sei onde estão os homens que vivem nesta cela. Não podem estar todos num destacamento de trabalho.

— Também não sei. — Larkin estava ficando nervoso. — Vamos sair daqui...

A porta se abriu e o Rei entrou, com um largo sorriso de prazer.

— Oi, caras! — Trazia alguns embrulhos nos braços, e afastou-se para o lado para Tex poder entrar, também carregado. — Ponha tudo na cama, Tex.

O rapaz botou a chapa quente elétrica e a panela grande sobre a cama, fechando a porta com um chute, enquanto os outros olhavam, atônitos.

— Vá buscar um pouco de água — disse o Rei para Tex.

— Certo.

— O que esta acontecendo? Por que nos queria ver? — indagou Larkin.

— Vamos fazer uma comidinha — disse o Rei, dando uma risada.

— Mas pelo amor de Deus! Quer dizer que nos trouxe para cá só para isso? Que diabo, por que não podíamos cozinhar no nosso alojamento? — Larkin estava furioso. O Rei simplesmente olhou para ele e abriu um sorriso. Virou-se de costas e desfez um embrulho. Tex voltou com a água e botou a panela no fogareiro elétrico.

— Rajá, olhe, o que... — Peter Marlowe se interrompeu.

O Rei estava colocando quase um quilo de feijões de katchang idju na água. A seguir, acrescentou sal e duas colheres cheias de açúcar. Depois, virou-se e abriu outro pacote envolto em folhas de bananeira e levantou-o.

— Santa Mie de Deus!

Fez-se um silêncio aparvalhado na cela.

O Rei ficou radiante com o efeito de sua surpresa.

— Não lhe disse, Tex — falou, sorridente. — Você me deve um dólar. Mac estendeu a mão e tocou na carne.

— ‘Mahlu. É de verdade. Larkin tocou na carne.

— Já tinha esquecido como era a carne — falou, numa voz cheia de assombro. — Puta merda, mas você é um gênio. Gênio.

— É o meu aniversário. Portanto, achei que deveríamos comemorar. E tenho isto aqui — falou o Rei, levantando alto uma garrafa.

— O que é?

— Saque.

— Não acredito — dizia Mac. — Ora, tem um traseiro inteiro de porco aí. — Inclinou-se para frente e farejou-o. — Meu Deus, é de verdade, de verdade, e fresco como um dia de maio, hurra!

Todos acharam graça.

— É melhor trancar a porta, Tex. — O Rei virou-se para Peter Marlowe. — Tudo bem, sócio?

Peter Marlowe ainda fitava a carne.

— Que diabo, onde a arranjou?

— Uma longa história! — O Rei pegou uma faca e cortou a carne, depois partiu habilmente o traseiro em duas partes, e colocou-as na panela. Todos olhavam fascinados, enquanto ele acrescentava sal, em seguida colocava a panela no centro exato do fogareiro, e depois sentava-se na cama de concreto e cruzava as pernas. — Nada mau, hem?

Durante longo tempo, ninguém falou.

Uma mexida súbita no trinco da porta quebrou o encanto. O Rei fez sinal para Tex, que destrancou a porta, abriu-a um pouco, depois escancarou-a. Brough entrou.

Olhou à sua volta, espantado. Então, notou o fogareiro. Foi até lá e espiou para dentro da panela.

— Puta merda!

— É meu aniversário. — O Rei abriu um sorriso. — Pensei em convidá-lo para jantar.

— Já tem o seu convidado. — Brough estendeu a mão para Larkin. — Don Brough, Coronel.

— Grant é meu nome de batismo! Conhece Mac e Peter?

— Claro. — Brough sorriu para eles, e virou-se para Tex. — Oi, Tex!

— Prazer em vê-lo, Don. O Rei indicou a cama.

— Sente-se, Don. Depois, temos que trabalhar!

Peter Marlowe se perguntou por que seria que os soldados e oficiais americanos se chamavam pelos nomes de batismo com tanta naturalidade. Não soava vulgar ou pedante (parecia quase correto) e já notara que Brough era sempre obedecido como seu líder, embora todos o chamassem de Don... abertamente. Notável.

— Que história é essa de trabalhar? — indagou Brough. O Rei pegou algumas tiras de cobertas.

— Vamos ter que vedar a porta.

— Como! — exclamou Larkin, incrédulo.

— Claro — explicou o Rei. — Quando isso aí começar a cozinhar, somos capazes de ter que enfrentar um motim. Se os caras começarem a sentir esse cheiro, pela madrugada, dá para imaginar o que poderá acontecer. Poderão fazer-nos em pedaços. Este foi o único lugar que achei para cozinharmos em particular. O cheiro vai sair quase todo pela janela. Isto é, se vedarmos a porta. Não poderíamos cozinhar lá fora, de jeito nenhum.

— Larkin estava certo — disse Mac, solenemente. — Você é um gênio, eu nunca teria pensado nisso. Creia-me — acrescentou, rindo — de agora em diante, os americanos incluem-se entre os meus amigos.

— Obrigado, Mac. Agora, é melhor metermos mão à obra.

Os convidados do Rei pegaram as tiras das cobertas e as enfiaram nas fendas à volta da porta, e cobriram a vigia gradeada na porta. Quando terminaram, o Rei inspecionou seu trabalho.

— Bom — falou. — Agora, e quanto à janela?

Ergueram os olhos para o pedacinho gradeado de céu, e Brough sugeriu:

— Vamos deixá-la aberta até o ensopado começar a ferver de verdade. Depois, vamos cobri-la e agüentar o quanto pudermos. Depois, podemos abri-Ia por algum tempo. — Olhou ao seu redor. — Imagino que não faça mal deixar o perfume sair esporadicamente. Como um sinal de fumaça dos índios.

— Está ventando?

— Macacos me mordam se percebi. Alguém percebeu?

— Ei, Peter, ajude-me a subir, rapaz — pediu Mac.

Mac era o menor dos homens, portanto Peter Marlowe deixou que ficasse de pé nos seus ombros. Mac espiou por entre as grades, depois lambeu o dedo e esticou-o para fora.

— Ande logo, Mac, pelo amor de Deus... você não é nenhum franguinho, sabe! — exclamou Peter Marlowe.

— Tenho que testar se tem vento, seu filhote da mãe! — Mais uma vez lambeu o dedo e estendeu-o para fora, e parecia tão concentrado e ridículo que Peter Marlowe começou a rir, e Larkin juntou-se a ele, ambos dobrando-se de rir, e Mac desabou de 1,80m de altura, raspando a perna na cama de concreto, e começou a xingar.

— Olhem só para minha perna, seus amaldiçoados! — exclamou Mac, sufocando. Era só um arranhãozinho, mas havia um filete de sangue. — Porra, quase arranquei fora a pele toda.

— Olhe, Peter — gemeu Larkin, segurando a barriga. — Mac tem sangue. Sempre pensei que só tivesse látex nas veias!

— Vão à merda, seus filhos da mie, ‘mahlu! — falou Mac, irascível, e então foi tomado por um acesso de riso, levantou-se, agarrou Peter Marlowe e Larkin, e começou a cantar uma cantiga de roda.

E Peter Marlowe pegou Brough pelo braço, e Brough pegou Tex, e a cadeia de homens, cantando histericamente, fazia roda em volta do panelão, e do Rei, sentado atrás dele, de pernas cruzadas.

Mac abriu a roda.

— Ave, César. Nós que vamos comer vos saudámos.

Todos juntos, eles o saudaram, depois desabaram no chão, uns por cima dos outros.

— Saia de cima do meu braço, Peter, porra!

— Está com o pé nos meus colhões, seu sacana — disse Larkin para Brough.

— Desculpe, Grant. Ó, meu Deus! Há anos que não rio tanto.

— Ei, Rajá — falou Peter Marlowe — acho que todos deveríamos dar uma mexidinha, pra dar sorte.

— À vontade — falou o Rei. Fazia bem ao seu coração ver aqueles sujeitos tão felizes.

Solenemente, fizeram fila, e Peter Marlowe mexeu a mistura, que agora estava ficando quente. Mac pegou a colher e deu uma mexida, ao mesmo tempo que mimoseava a comida com uma bênção obscena. Larkin, não querendo ficar para trás, começou a mexer, dizendo:

— Ferve, ferve, ferve e borbulha...

— Está maluco? — falou Brough. — Pela madrugada, citando Macbethl

— O que é que tem?

— Dá azar. Citar Macbeth. É como assobiar num vestiário de teatro

— É?

— Qualquer idiota sabe disso!

— Ora vejam! Nunca soube disso antes. — Larkin franziu o cenho.

— De qualquer modo, citou-o erradamente — continuou Brough. — É “Dupla, dupla labuta e bulha; Fogo arde e caldeirão borbulha!”

— Ah, não é mesmo, ianque. Conheço o meu Shakespeare!

— Aposto com você o meu arroz de amanhã.

— Cuidado, Coronel — disse Mac, desconfiado, conhecendo a tendência de Larkin para jogar. — Homem algum apostaria isso assim tão fácil.

— Tudo bem, Mac — disse Larkin, mas não gostou do ar de satisfação na cara do americano. — O que o faz ter tanta certeza de que tem razão?

— Está valendo a aposta? — perguntou Brough.

Larkin pensou um momento. Gostava de um aposta... mas o arroz do dia seguinte era uma parada alta demais.

— Não. Aposto a minha ração de arroz numa mesa de jogo, mas de jeito nenhum vou arriscá-la com Shakespeare.

— Que pena — disse Brough. — Ia ser uma boa a ração extra. É do Quarto Ato, Cena Um, linha dez.

— Porra, como pode ser tão preciso?

— Não é vantagem — falou Brough. — Estava-me formando em letras na USC, com destaque para o jornalismo e a dramaturgia. Vou ser escritor quando sair daqui.

Mac debruçou-se para a frente e olhou para dentro da panela.

— Eu o invejo, meu rapaz. Escrever pode ser a tarefa mais importante do mundo. Se for feita direito.

— Quanta besteira, Mac — disse Peter Marlowe. — Há um milhão de coisas mais importantes.

— Isso só prova que você não está sabendo de nada.

— Os negócios são muito mais importantes — interrompeu o Rei. — Sem os negócios, o mundo pararia... e sem dinheiro e uma economia estável não haveria ninguém para comprar livros.

— Para o diabo os negócios e a economia — disse Brough. — São apenas coisas materiais. É como o Mac diz.

— Mac — falou Peter Marlowe. — O que torna o escrever tão importante?

— Bem, meu rapaz, primeiro é uma coisa que sempre quis fazer e não consigo. Tentei muitas vezes, mas nunca consegui terminar nada. Esta é a parte mais importante... terminar. Mas o mais importante de tudo é que os escritores são as únicas pessoas que podem fazer algo por este Planeta. Um homem de negócios não pode fazer nada...

— Não pode, uma merda — disse o Rei. — E quanto ao Rockefeller? E Morgan, Ford e du Pont? E todos os outros? É a filantropia deles que financia um bocado de pesquisas, bibliotecas, hospitais e arte. Ora, sem a grana deles...

— Mas ganharam o dinheiro deles à custa de alguém retrucou Brough, vivamente. — Bem que podiam devolver um bocado dos seus milhões aos homens que o ganharam para eles. Esses sanguessugas...

— Suponho que você é um democrata, não é? — perguntou o Rei, acaloradamente.

— Pode apostar que sou, meu chapa. Olhe só para o Roosevelt. Veja o que está fazendo pelo país. Levantou-o do chão, quando os malditos republicanos...

— Isso é papo furado, e você sabe. Não teve nada a ver com os republicanos. Foi um ciclo econômico...

— Os ciclos econômicos que vão à merda. Os republicanos...

— Ei, caras — disse Larkin, suavemente. — Nada de política antes da refeição, está bem?

— Bem, vá lá — disse Brough, de cara fechada — mas esse cara é maluco.

— Mac, por que é tão importante? Ainda não entendi.

— Bem. Um escritor pode botar no papel uma idéia... ou um ponto de vista. Se ele for bom, pode balançar as pessoas, mesmo que tenha escrito num pedaço de papel higiênico. E ele é o único na nossa economia moderna que pode fazê-lo... que pode modificar o mundo. Um homem de negócios não pode... sem uma quantia substancial. Um político não pode... sem posição ou poder substanciais. Um agricultor não pode, é claro. Um contador não pode, certo, Larkin?

— Certo.

— Mas você está falando de propaganda — disse Brough. — Não quero escrever propaganda.

— Já escreveu para o cinema, Don? — perguntou o Rei.

— Nunca vendi nada para ninguém. Um cara só é escritor depois de vender alguma coisa. Mas os filmes são importantes pra burro. Sabe que Lenine disse que os filmes eram o mais importante meio de propaganda já inventado? — Viu o Rei preparando o ataque. — E não sou comuna, seu filho da puta, só porque sou democrata. — Virou-se para Mac. — Porra, se você lê Lenine, Stalin ou Trotsky é logo chamado de comunista.

— Bem, Don, tem que admitir que muitos democratas são cor-de-rosa — disse o Rei.

— E desde quando ser pró-russos significa que um cara é comunista? São nossos aliados, sabia?

— Lamento isso... de uma forma histórica — comentou Mac.

— Porquê?

— Vamos ter muitos problemas, mais tarde. Especialmente no Oriente. Essa turma já estava criando muita encrenca, mesmo antes da guerra.

— A televisão é que vai ser a atração do futuro — falou Peter Marlowe, espiando um fio de vapor dançar na superfície do ensopado. — Sabe, vi uma demonstração do Palácio Alexandra, em Londres. Baird está transmitindo um programa, uma vez por semana.

— Ouvi falar da televisão — disse Brough. — Mas nunca vi nenhuma.

— Nem eu, mas podia dar um negócio e tanto — concordou o Rei.

— Não nos Estados Unidos, pode apostar — resmungou Brough. — Pense nas distâncias! Ora, pode servir para um desses paisezinhos, como a Inglaterra, mas não para um país de verdade, como os Estados Unidos.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Peter Marlowe, enrijecendo o corpo.

— Quero dizer que, se não fosse pela gente, essa guerra ia continuar indefinidamente. Ora, é o nosso dinheiro, as nossas armas, o nosso poderio...

— Escute aqui, meu velho, saimo-nos muito bem sozinhos... dando aos sacanas como vocês tempo para levantarem a bunda da cadeira. A guerra é sua tanto quanto nossa. — Peter Marlowe olhou com cara feia para Brough, que devolveu o olhar, do mesmo modo.

— É, porra nenhuma! Que merda, por que vocês europeus não podem matar-se uns aos outros como vêm fazendo há séculos, sem nos envolver? Já tivemos que salvar sua pele antes...

E não demorou muito para que todos estivessem discutindo e se xingando, e nenhum escutava o outro, cada um tendo sua própria opinião e só ela estando certa.

O Rei sacudia o punho furiosamente para Brough, que fazia o mesmo, e Peter Marlowe gritava com Mac, quando de repente bateram violentamente à porta.

Silêncio imediato.

— Mas que merda de barulheira é essa? — perguntou uma voz.

— É você, Griffiths?

— Quem estava pensando que fosse, o safado do Adolf Hitler? Quer botar a gente em cana, ou coisa parecida?

— Não. Desculpe.

— Parem com essa merda de barulho!

— Quem é esse cara? — indagou Mac.

— Griffiths. É o dono da cela.

— O quê?

— Claro. Aluguei-a por cinco horas. Três pratas por hora. Não se arranja nada de graça.

— Alugou a cela? — repetiu Larkin, incrédulo.

— Isso mesmo. Este Griffiths é um negociante esperto — explicou o Rei. — Há milhares de homens por aí, certo? Não há paz e quietude, certo? Bem, esse inglês aluga a cela para qualquer um que deseje ficar sozinho. Não é bem a minha idéia de um santuário, mas Griffiths tem um negócio rendoso.

— Aposto que a idéia não foi dele — comentou Brough.

— Capitão, não sei contar mentira. — O Rei sorriu. — Devo confessar que a idéia foi minha. Mas Griffiths ganha o bastante para manter-se, e à sua unidade, muito direitinho.

— Qual é a sua comissão?

— Só dez por cento.

— Se é só dez por cento, é justo — admitiu Brough.

— É — disse o Rei. Jamais mentiria para Brough, não que fosse da conta dele o que quer que fizesse. Brough inclinou-se e mexeu o ensopado.

— Ei, pessoal, está fervendo.

Todos se acercaram da panela. Estava mesmo fervendo.

— É melhor darmos um jeito na janela. Esse troço vai começar a cheirar num minutinho.

Colocaram uma coberta sobre a janela gradeada, e logo a cela estava que era só perfume.

Mac, Larkin e Tex agacharam-se junto à parede, olhos fitos na panela. Peter Marlowe sentou-se no outro lado da cama, e como era o que estava mais perto, de vez em quando mexia a comida.

A água fervia brandamente, fazendo com que os feijõezinhos delicados subissem à superfície, depois cascateassem de volta às profundezas do líquido. Um jato de vapor veio à tona, trazendo consigo o odor substancioso da carne. O Rei inclinou-se e lançou dentro da panela um punhado de ervas nativas, entre elas o açafrão, e cravo-da-índia e alho, e isso aumentou o perfume.

Quando o ensopado já fervia há 10 minutos, o Rei botou o mamão verde na panela.

— É uma loucura — falou. — Um sujeito podia fazer fortuna depois da guerra, se pudesse descobrir um jeito de desidratar o mamão. Esse troço amoleceria carne de búfalo!

— Os malaios sempre o usaram — respondeu Mac, mas ninguém prestava atenção nele, nem ele mesmo, pois estavam todos envoltos no vapor-cheiroso-doce.

O suor escorria pelo peito, queixo, pernas e braços de todos. Porém, mal notavam o suor ou o abafamento. Sabiam apenas que aquilo não era um sonho, que a carne estava cozinhando... ali, diante de seus olhos, e que muito em breve iriam comê-la.

— Onde a conseguiu? — perguntou Peter Marlowe, sem realmente se importar. Precisava dizer alguma coisa para quebrar aquele encanto sufocante.

— É o cachorro do Hawkins — respondeu o Rei, sem pensar em nada, exceto meu Deus como cheira bem, oh como cheira bem!

— O cachorro do Hawkins?

— Está falando do Rover?

— O cachorro dele?

— Pensei que era um porquinho!

— O cachorro do Hawkins?

— Puta que o pariu!

— Quer dizer que este é o traseiro do Rover? — perguntou Peter Marlowe, estupefato.

— Claro — disse o Rei. Agora que o segredo escapara, não se incomodava mais. — Ia contar-lhes depois, mas que diabo! Agora já sabem.

Entreolharam-se todos, apalermados. E então, Peter Marlowe exclamou:

— Mãe de Deus! O cachorro do Hawkins!

— Escutem — disse o Rei, razoavelmente. — Que diferença faz? Ele era o cachorro mais limpinho e comível que já conheci. Muito mais limpo do que qualquer porco. Ou galinha, também. Carne é carne. É muito simples.

Mac disse petulantemente:

— Isso mesmo. Não há nada de mal em comer carne de cachorro. Os chineses vivem comendo. Uma iguaria. Sem dúvida.

— É — disse Brough, seminauseado. — Mas não somos chineses e este é o cachorro do Hawkins!

— Sinto-me como um canibal — disse Peter Marlowe.

— Olhe — disse o Rei. — É como o Mac falou. Não há nada errado com o cachorro. Sintam só o cheiro, pela madrugada!

— Sintam o cheiro! — disse Larkin, pelos demais. Era difícil falar, a saliva quase o sufocava. — Não sinto o cheiro de mais nada, a não ser daquele ensopado, e é o melhor cheiro que já senti, e estou-me lixando se é o Rover ou não, quero comer. — Esfregou a barriga, quase dolorosamente. — Não sei de vocês, seus filhos da mãe, mas estou com tanta fome que sinto cãibra. O que este cheiro está fazendo ao meu metabolismo não é comum.

— Também estou passando mal. E não tem nada a ver com o fato de a carne ser de cachorro — disse Peter Marlowe. A seguir acrescentou, quase num queixume: — Só que não quero comer o Rover. — Fitou Mac. — Como vamos olhar na cara do Hawkins, depois?

— Não sei, meu rapaz. Viro a cara para o outro lado. É, acho que não ia poder olhar na cara dele. — As narinas de Mac tremeram, e ele olhou para o ensopado. — Como isso está cheirando bem!

— Claro — disse o Rei, serenamente — quem não quiser comer, pode ir embora.

Ninguém se mexeu. A seguir, todos se recostaram, imersos nos seus pensamentos. Escutando o borbulhar. Aspirando a fragrância. Que coisa magnífica.

— Não é chocante, quando se pára para pensar — falou Larkin, mais para persuadir-se do que aos outros. — Vejam como nos afeiçoamos às nossas galinhas. Não nos importamos de comê-las... ou aos seus ovos.

— É verdade, meu rapaz — disse Mac. — E lembra-se daquele gato que pegamos e comemos. Não nos importamos, não foi, Peter?

— Não, mas aquele era um gato vadio. Este é o Rover!

— Era! Agora é só carne.

— Foram vocês que pegaram o gato? — perguntou Brough, sem conseguir controlar a raiva. — Aquele de seis meses atrás?

— N5o. Esse foi em Java.

— Ah — disse Brough. Nesse momento, aconteceu de ele olhar para o Rei. — Devia ter adivinhado! — explodiu. — Seu filho da mãe. E nós o procuramos adoidado por quatro horas.

— Não fique chateado, Don. Nós o pegamos. Não deixou de ser uma vitória americana.

— Os meus australianos estão perdendo a bossa — comentou Larkin. O Rei levantou a colher, e a mão tremia ao provar a comida.

— O gosto está bom. — Cutucou a carne. Ainda estava grudada aos ossos. — Vai demorar mais uma hora.

Mais dez minutos, e deu nova provada.

— Quem sabe um pouquinho mais de sal. O que acha, Peter? Peter Marlowe provou. Estava bom, ah, muito bom.

— Uma pitada, só uma pitada!

Todos provaram, um por um. Mais uma pitada de sal, um tiquinho de açúcar, um nadinha de açafrão. E acomodaram-se para esperar na estranha cela de tortura, quase asfixiados.

De tempos em tempos, tiravam a coberta da janela para deixar sair um pouco do perfume e entrar um arzinho fresco.

E do lado de fora de Changi, o perfume nadava na brisa. E dentro da cadeia, ao longo do corredor, fragmentos do perfume varavam a vedação da porta e impregnavam a atmosfera.

— Santo Deus, Smithy, está sentindo o cheiro?

— Claro que estou. Acha que não tenho nariz? De onde está vindo?

— Espere aí! Lá dos lados da cadeia, mais ou menos de lá!

— Aposto que aqueles amarelos sacanas estão cozinhando bem em frente da maldita cerca.

. — Isso mesmo. Sacanas.

— Não acho que sejam eles. Acho que o cheiro vem da cadeia.

— Ora essa, escutem só o Smithy. Olhem para ele, farejando que nem um diabo de um cachorro.

— Estou-lhe dizendo que o cheiro vem da cadeia.

— É só o vento, que está vindo daquela direção.

— Vento nunca cheirou assim antes. É carne cozinhando, estou-lhe dizendo. É carne de vaca. Aposto a minha vida. É ensopado de carne.

— Uma nova tortura japonesa. Filhos da mãe! Mas que sujeira!

— Quem sabe a gente está só imaginando. Dizem que se pode imaginar um cheiro.

— Mas que diabo, como podemos todos estar imaginando? Olhe para os homens, todos eles pararam.

— Quem disse?

— O quê?

— Você falou: “Dizem que se pode imaginar um cheiro.” Quem disse?

— Ó, meu Deus, Smithy, é só um ditado.

— Mas quem foi que disse?

— Porra, como vou saber?

— Então pare de falar “dizem isso” ou “dizem aquilo”. Dá para deixar um cara doido.

Os homens na cela, os escolhidos do Rei, ficaram olhando enquanto ele servia uma porção numa vasilha e a passava a Larkin. Seus olhos deixaram o prato e voltaram para a concha e depois foram para Mac e voltaram para a concha e depois para Brough e para a concha e depois para Tex e para a concha e depois para Peter Marlowe e para a concha e depois para a porção do Rei. E quando todos estavam servidos, atacaram a comida, e sobrara o bastante para pelo menos mais duas porções para cada homem.

Era uma agonia comer tão bem.

Os feijões tinham-se desfeito e agora quase se tornavam parte da espessa sopa. O mamão tinha amolecido a carne e feito com que se soltasse dos ossos, e a carne se desfazia em grandes pedaços, de cor castanho-escuro, devido às ervas, ao mamão e aos feijões. O ensopado tinha a consistência de um verdadeiro ensopado, um ensopado irlandês, com pontinhos de óleo cor de mel salpicando a superfície das suas vasilhas.

O Rei ergueu os olhos do prato, seco e limpo. Fez sinal para Larkin. Este passou sua vasilha, e em silêncio cada um deles aceitou um repeteco, que logo desapareceu. E depois a última porção.

Finalmente, o Rei largou o prato de lado.

— Puta que o pariu.

— Uma perfeição! — exclamou Larkin.

— Soberbo — disse Peter Marlowe. — Já não sabia mais mastigar. Estou com dor nos maxilares.

Mac raspou com cuidado o último feijão e arrotou. Foi um arroto fantástico.

— Nem lhes conto, rapazes, já comi umas lautas refeições na vida, desde carne assada no Simpson’s de Piccadilly até rijsttafel no Hotel des Indes, em Java, e nada, nem uma só refeição, já se comparou a esta. Nunca.

— Concordo — disse Larkin, ajeitando-se mais confortavelmente. — Até no melhor restaurante de Sydney, onde os bifes são maravilhosos... não, nunca saboreei nada assim.

O Rei arrotou e distribuiu pelos presentes um maço de Kooas. A seguir, abriu a garrafa de saque e tomou um longo gole. A bebida era grosseira e forte, mas tirou o gosto de tempero de sua boca.

— Tome — falou, passando-a a Peter Marlowe. Todos beberam e todos fumaram.

— Ei, Tex, que tal um pouco de café? — bocejou o Rei.

— É melhor a gente esperar alguns minutos antes de abrir a porta — disse Brough, pouco se importando que a porta fosse aberta ou não, querendo apenas descansar em paz. — Ó, Deus, sinto-me tão bem!

— Estou tão cheio que acho que vou estourar — falou Peter Marlowe. — Sem dúvida alguma esta foi a melhor...

— Pelo amor de Deus, Peter. Todos já dissemos isso. Já sabemos.

— Bem, mas eu precisava dizer.

— Como foi que conseguiu isso? — perguntou Brough ao Rei, abafando um bocejo.

— Max me contou que o cão matara a galinha. Mandei o Dino ir procurar o Hawkins, que deu o cachorro para ele. Conseguimos que Kurt o abatesse. A minha parte foi o traseiro.

— Por que Hawkins daria o animal para o Dino? — perguntou Peter Marlowe.

— Ele é veterinário.

— Ah, sei.

— É, uma ova — falou Brough. — É da Marinha Mercante. O Rei deu de ombros.

— Então, hoje era veterinário. Não crie caso!

— Tenho que lhe dar crédito. Puta que o pariu, tenho que lhe dar crédito.

— Obrigado, Don.

— Como... como foi que Kurt o matou? — perguntou Brough.

— Não perguntei.

— Fez muito bem, meu rapaz — disse Mac. — Que tal deixarmos o assunto de lado, hem?

— Boa idéia.

Peter Marlowe levantou-se e espreguiçou-se.

— E quanto aos ossos?

— A gente os leva disfarçadamente, quando sair.

— Que tal um joguinho de pôquer? — disse Larkin.

— Boa idéia — disse o Rei, animado. — Tex, prepare o café. Peter, faça uma arrumaçãozinha. Grant, cuide da porta. Don, que tal empilhar os pratos.

— Porra, e o que você vai fazer? — perguntou Brough, levantando-se pesadamente.

— Eu? — O Rei alçou as sobrancelhas. — Vou ficar sentado.

Brough olhou para ele. Todos olharam para ele. E então, Brough disse:

— Estou pensando em fazê-lo oficial... só para ter o prazer de lhe meter a mão.

— Aposto dois contra cinco — disse o Rei — que isso de nada lhe adiantaria.

Brough olhou para os outros, depois voltou a olhar para o Rei.

— Provavelmente está certo. Eu acabaria numa corte marcial. — Deu uma risada. — Mas não há regra que diga que não posso tomar sua grana.

Puxou uma nota de cinco dólares e fez sinal para o baralho nas mãos do Rei.

— A carta mais alta ganha!

O Rei abriu as cartas em leque.

— Escolha uma.

Brough mostrou uma dama, exultante. O Rei olhou para o baralho e tirou uma carta... um valete. Brough abriu um sorriso.

— O dobro ou nada.

— Don — disse o Rei, brandamente — desista enquanto está vencendo. — Escolheu outra carta e virou-a para cima. Um ás. — Podia tirar outro ás com a maior facilidade... é o meu baralho!

— Que diabo, então por que não me venceu de início? — perguntou Brough.

— O que é isso, Capitão, senhor. — O Rei se divertia à grande. — Seria indelicado tirar sua grana. Afinal, o senhor é o nosso intrépido líder.

— Vá à merda! — Brough começou a empilhar pratos e vasilhas. — Se não pode vencê-los, una-se a eles.

Naquela noite, enquanto a maior parte do campo dormia, Peter Marlowe jazia desperto sob seu mosquiteiro, sem querer dormir. Saiu do beliche e abriu caminho por entre o labirinto de mosquiteiros e foi lá para fora. Brough também estava acordado.

— Oi, Peter — chamou Brough, suavemente. — Venha sentar-se aqui. Também não está conseguindo dormir?

— Não estava querendo ainda, sinto-me muito bem. Acima deles, a noite era de veludo.

— Que noite maravilhosa.

— É.

— Você é casado?

— Não — retrucou Peter Marlowe.

— Tem sorte. Acho que não é tão ruim quando não se é casado. — Brough ficou calado por um minuto. — Fico maluco imaginando se ela ainda estará lá. Ou se estiver, o que estará fazendo agora?

— Nada. — Peter Marlowe deu a resposta automática, com N’ai nítida em seus pensamentos. — Não se preocupe. — Era como dizer “Pare de respirar.”

— Não que eu a culpe, ou a qualquer outra mulher. Há tanto tempo que estamos longe, tanto tempo. Não é culpa dela.

Brough preparou um cigarro com mãos trêmulas, usando um pouco de chá seco e a guimba de um dos Kooas. Quando estava aceso, deu uma tragada profunda, depois passou-o a Peter Marlowe.

— Obrigado, Don. — Tirou uma baforada, depois devolveu o cigarro. Terminaram o cigarro em silêncio, atormentados pela saudade. Depois, Brough se levantou.

— Acho que agora vou-me deitar. Até qualquer hora, Peter.

— Boa-noite, Don.

Peter Marlowe voltou a olhar para o céu e deixou seus pensamentos ansiosos voarem para N’ai. E sabia que esta noite, como Brough, só havia uma coisa para ele fazer, caso contrário não dormiria nunca.


16

O Dia da Vitória na Europa chegou, e os homens de Changi ficaram eufóricos. Mas era apenas mais um dia, e não os tocou, de verdade. A comida era a mesma, o céu o mesmo, o calor o mesmo, a doença a mesma, as moscas as mesmas, o desgaste o mesmo. Grey ainda vigiava e esperava. O seu espião lhe avisara que em breve o diamante trocaria de mãos. Muito em breve. Peter Marlowe e o Rei esperavam esse dia com a mesma ansiedade. Só faltavam quatro dias.

O Dia do Nascimento chegou e Eva teve mais 12 filhotes. O código para Dia do Nascimento divertira à grande o Rei e seus associados. Grey ouvira falar no Dia N por intermédio do seu espião, e naquele dia cercara a choça deles e revistara todos os homens, à procura de relógios ou o que mais seria vendido no “Dia dos Negócios”. Tira estúpido! O Rei não ficou perturbado pela constatação de que havia um espião na choça. A terceira ninhada já fora concebida.

Agora, havia 70 gaiolas sob a choça. Quatorze já estavam ocupadas. Breve, mais 12 estariam cheias.

Os homens solucionaram o problema dos nomes da maneira mais simples. Os machos receberam números pares, e as fêmeas números ímpares.

— Ouçam — falou o Rei — precisamos preparar mais gaiolas.

Estavam na choça, tendo uma reunião de diretoria. A noite estava fresca e agradável. Uma Lua pálida era tocada pelas nuvens.

— Estamos estourados — falou Tex. — Não há mais tela sobrando em canto algum. A única coisa que podemos fazer é pedir ajuda aos australianos.

— Se fizermos isso — falou Max, devagar — podemos logo entregar todo o negócio nas mãos daqueles filhos da mãe.

Todo o esforço de guerra da choça americana estava concentrado no ouro vivo que rapidamente explodia sob seus pés. Uma equipe de quatro homens já transformara as valas numa rede de passagens. Agora, tinham espaço de sobra para as gaiolas, mas não tinham tela para construí-las. Estavam desesperada-mente necessitados de telas; mais outro Dia N se aproximava, e logo depois dele mais outro Dia N, e depois mais outro.

— Se você conseguisse arranjar cerca de uma dúzia de caras em quem pudesse confiar, podia dar-lhes um casal de ratos e deixar que tivessem suas próprias criações — disse Peter Marlowe, pensativo. — Nós seríamos apenas os criadores do gado.

— Não adianta, Peter, jamais conseguiríamos manter o negócio em sigilo. O Rei preparou um cigarro e lembrou-se de que os negócios não estavam andando bem, recentemente, e que há uma semana inteira não fumava um cigarro comprado pronto.

— A única coisa a fazer — falou, depois de refletir por um momento — é botar o Timsen na sociedade.

— Aquele australiano nojento já não compete o bastante com á gente? — reclamou Max.

— Não temos alternativa — disse o Rei, encerrando o assunto. — Temos que ter as gaiolas... e ele é o único que teria o know-how... e o único em quem confio para ficar de boca fechada. Se a criação seguir de acordo com o plano, haverá grana bastante para todo o mundo. — Ergueu os olhos para Tex. — Vá buscar o Timsen.

Tex deu de ombros e saiu.

— Vamos lá, Peter — disse o Rei. — Vamos dar uma olhada lá embaixo. Seguiu na frente, e abriu o alçapão.

— Puta que o pariu! — exclamou, ao ver a extensão das escavações. — Se cavarmos mais, o raio da choça vai desabar, e então o que será de nós!

— Não se preocupe, chefe — disse Miller, com orgulho. Era o encarregado do destacamento de escavações. — Fiz um esquema que nos permite escavar só em volta das estacas de concreto. Já temos espaço para mil e quinhentas gaiolas, se pudermos arranjar a tela. Ah, e poderíamos duplicar o espaço, se tivéssemos madeira para escorar uns túneis. Fácil, fácil.

O Rei percorreu a trincheira principal, para inspecionar os animais. Adão percebeu sua chegada e arremessou-se ferozmente contra a tela, como se quisesse fazer o Rei em pedaços.

— Amistoso, não é? Miller abriu um sorriso.

— O filho da mãe o conhece de algum lugar.

— Talvez devêssemos dar uma paradinha na reprodução — sugeriu Peter Marlowe. — Até as gaiolas ficarem prontas.

— Timsen é a solução — disse o Rei. — Se alguém nos puder arranjar o material de que precisamos, será ele com seu bando de ladrões.

Voltaram para a choça e limparam a poeira do corpo. Depois de uma chuveirada, sentiram-se melhor.

— Oi, meu cupincha. — Timsen atravessou toda a extensão da choça e veio sentar-se. — Vocês ianques estão com medo de que lhes estourem os colhões, ou o quê? — Era alto e durão, e com olhos fundos.

— Do que está falando?

— Do jeito que vocês estão cavando trincheiras, dá para se imaginar que a merda da Força Aérea inteira está para cair em cima de Changi.

— Não faz mal ser cuidadoso. — O Rei se perguntou mais uma vez se deviam arriscar-se a incluir Timsen no negócio. — Não vai demorar muito para que ataquem Cingapura. E quando o fizerem, nós vamos estar nos subterrâneos.

— Jamais vão atacar Changi. Sabem que estamos aqui. Pelo menos os ingleses sabem. Claro que quando vocês ianques estão nos céus, nunca se pode saber onde, diabo, as bombas vão cair.

Levaram-no numa viagem de inspeção. E ele viu imediatamente a enormidade da organização e do plano.

— Meu Deus, camarada — disse Timsen, sem fôlego, quando estavam de volta à choça. — Tenho que cumprimentá-lo. Meu Deus. E a gente pensando que vocês só estavam com medo. Meu Deus, devem ter lugar para quinhentos ou seiscentos.

— Mil e quinhentos — interrompeu o Rei, displicentemente. — E no próximo Dia N vai ter...

— Dia N?

— Dia do Nascimento.

— Então isso é o que significa Dia N. — Timsen achou graça. — Passamos semanas tentando adivinhar essa. Puta que o pariu. — Riu com gosto. — Vocês são mesmo uns gênios.

— Tenho que admitir que a idéia foi minha. — O Rei tentou não deixar o orgulho transparecer, mas não conseguiu. Afinal de contas, a idéia fora mesmo dele. — No próximo Dia N estamos esperando pelo menos noventa filhotes. No seguinte, cerca de uns trezentos.

As sobrancelhas de Timsen quase encostaram no começo dos cabelos.

— Vou dizer-lhe o que estamos pensando em fazer. — O Rei fez uma pausa, repassando a oferta. — Você nos arranja o material para fazermos mais mil gaiolas. Limitaremos nosso estoque completo em mil... só o melhor. Você bota o produto no mercado e rachamos meio a meio. Num negócio dessa envergadura, vai haver o bastante para todos.

— Quando começamos a vender? — perguntou Timsen, imediatamente. Mesmo assim, a despeito das enormes possibilidades, sentia-se deprimido.

— Vamos dar-lhes dez patas traseiras dentro de uma semana. Usaremos os machos primeiro, e reservaremos as fêmeas. Achamos que só devemos aproveitar as patas traseiras. Aumentaremos o número gradativamente.

— Por que só dez para começar?

— Se entramos logo no mercado com mais, a turma vai desconfiar. Temos que ir com calma.

Timsen pensou durante um momento.

— Tem certeza de que... hã... a carne vai ser... legal?

Agora que havia assumido o compromisso do fornecimento, o próprio Rei estava com nojo. Mas, que diabo, carne é carne, e negócio é negócio.

— Estamos apenas oferecendo carne. Rusa tikus. Timsen meneou a cabeça, lábios comprimidos.

— Não me agrada a idéia de vendê-las aos meus australianos — falou, enjoado. — Puta que o pariu. Não me parece direito. Puta que o pariu, não. Não que eu... bem... não me parece nada direito. Não para o meu pessoal.

Peter Marlowe concordou, sentindo-se igualmente nauseado.

— Nem para os nossos rapazes.

Os três se entreolharam. É, disse o Rei consigo mesmo, não parece nada direito. Mas nós temos que sobreviver. E... de repente, fez-se ã luz em sua cabeça. Empalideceu, e disse tensamente:

— Vá... chamar... os... outros. Tive uma idéia genial.

Os americanos foram rapidamente reunidos. Tensos, observavam o Rei. Este achava-se mais calmo, porém ainda não abrira a boca. Apenas fumava, parecendo ignorar a presença deles. Peter Marlowe e Timsen se entreolharam, perturbados. O Rei se pôs de pé, e a eletricidade aumentou. Apagou o cigarro.

— Homens — começou, e sua voz estava débil, estranhamente exausta. — Faltam quatro dias para o Dia N. Esperamos — consultou o gráfico escrito na parede de folhas — aumentar nossa criação para um pouco acima de cem. Fiz um trato com nosso amigo e associado, Timsen. Ele vai fornecer o material para mil gaiolas; portanto, quando chegar a hora de desmamar as ninhadas, o problema de alojamento já estará resolvido. Ele e seu grupo vão botar a produção no mercado. Nós vamos apenas nos concentrar em reproduzir os melhores espécimes. — Parou, e olhou com firmeza para cada homem. — Homens. De hoje a uma semana começam as vendas.

Agora que a data aterradora estava marcada, todos ficaram assustados.

— Acha mesmo que devemos? — perguntou Max, apreensivo.

— Espere um minuto, sim, Max?

— Essa história de vendas — disse Byron Jones III, mexendo no seu tapa-olho. — A idéia me dá...

— Puta que o pariu, querem esperar um pouco! — exclamou o Rei, impaciente. — Homens. — Todos se inclinaram para frente enquanto o Rei, quase extenuado, falou no mais baixo dos sussurros: — Vamos apenas vender para os oficiais! Para as Autoridades! De Major para cima!

— Ó, meu Deus! — murmurou Timsen.

— Meu Jesus Santíssimo! — disse Max.

— O quê! — exclamou Peter Marlowe, apalermado. O Rei se sentia como um deus.

— É, oficiais. São os únicos filhos da mãe que têm o dinheiro para comprar. Ao invés de comerciamos em massa, vamos transformá-los em artigos de luxo.

— E os sacanas que têm o dinheiro para comprar são aqueles que a gente gostaria de ver comendo a carne! — disse Peter Marlowe.

— Mas que grã-fino safado você é! — exclamou Timsen, embasbacado. — Genial. Ora, eu daria o meu braço direito para ver três filhos da mãe comendo carne de rato, e depois poder contar-lhes...

— Conheço dois — disse Peter Marlowe — a quem de bom grado daria a carne ao invés de vendê-la. Mas se a gente der para os sacanas... ora, são tão unhas-de-fome que vão desconfiar de algo podre!

Max levantou-se e gritou, abafando as risadas.

— Escutem, caras. Escutem. Só um minuto. — Virou-se para o Rei. — Sabe, nem sempre, bem... — Estava tão emocionado que tinha dificuldade em falar. — Nem sempre estive do seu lado. Não há mal nisso. O país é livre. Mas esta... esta é uma idéia tão... tão... que, bem... — Estirou a mão, solenemente.

— Gostaria de apertar a mão do homem que bolou esta idéia! Acho que todos deveríamos apertar a mão de um verdadeiro gênio. Falando por todos os soldados do mundo... estou orgulhoso de você. O Rei!

Max e o Rei trocaram um aperto de mão.

Tex oscilava exuberantemente de um lado para o outro.

— Sellars, Prouty e Grey... ele está na lista...

— Este não tem dinheiro — disse o Rei.

— Que diabo, a gente dá um pouco para ele — falou Max.

— Não podemos fazer isso. Grey não é nenhum idiota. Iria desconfiar -disse Peter Marlowe.

— E quanto ao Thorsen... aquele filho da mãe...

— Nenhum oficial ianque. Bem — falou o Rei, delicadamente — quem sabe um ou dois.

Os vivas foram logo abafados.

— E quanto aos australianos?

— Deixe comigo, camarada — falou Timsen. — Já pensei em três dúzias de fregueses.

— E quanto aos ingleses? — perguntou Max.

— Todos podemos escolher alguns. — O Rei sentiu-se imenso, poderoso e eufórico. — Que sorte que os sacanas que têm a grana, ou os meios de conseguir a grana, sejam aqueles que a gente quer que comam e depois saibam o que comeram — falou.

Pouco antes do toque de apagar as luzes, Max entrou depressa pelo vão da porta sem porta, e murmurou para o Rei:

— Há um guarda vindo para cá.

— Quem é?

— Shagata.

— Está bem — disse o Rei, tentando manter a voz inalterada. — Verifique se todos os vigias estão em posição.

— Certo. — Max afastou-se rapidamente. O Rei falou bem junto de Peter Marlowe.

— Quem sabe houve algum furo — disse, nervoso. — Vamos, é melhor nos prepararmos.

Saiu pela janela, certificando-se de que o toldo de lona estava em posição. E então, ele e Peter Marlowe sentaram-se sob o toldo para esperar.

Shagata enfiou a cabeça sob o toldo, e quando reconheceu o Rei, veio juntar-se a eles. Apoiou o fuzil contra a parede e ofereceu um pacote de Kooas.

— Tabe — cumprimentou.

— Tabe — replicou Peter Marlowe.

— Oi — falou o Rei. A mão dele tremia, ao pegar o cigarro.

— Tendes algo para me vender, esta noite? — perguntou Shagata, com voz sibilante.

— Está perguntado se tem alguma coisa para lhe vender, hoje.

— Diga que não!

— Meu amigo está aborrecido por não ter nada para tentar um homem de bom gosto, esta noite.

— Será que seu amigo teria um tal artigo, digamos em três dias?

O Rei deu um suspiro de alívio, quando Peter Marlowe fez a tradução.

— Diga que sim. E que ele fez bem em verificar.

— Meu amigo diz que é provável que nesse dia tenha algo para tentar um homem de bom gosto. E meu amigo acrescenta que acha que negociar com um homem tão cauteloso é um bom presságio para a conclusão satisfatória da referida transação.

— Sempre é aconselhável, quando os assuntos precisam ser tratados na desolação da noite. — Shagata-san inspirou fundo. — Se eu não chegar dentro de três noites, espere cada noite por mim. Um amigo mútuo insinuou que talvez não consiga cumprir sua parte com absoluta precisão. Mas estou certo de que será de hoje a três noites.

Shagata levantou-se e deu um maço de cigarros para o Rei. Uma ligeira reverência, e a escuridão voltou a envolvê-lo.

Peter Marlowe contou ao Rei o que Shagata acabara de dizer, e o Rei abriu um sorriso.

— Ótimo. Ótimo mesmo. Quer dar uma passadinha aqui amanhã cedo? Podemos discutir os planos.

— Tenho que trabalhar no campo de pouso, amanhã.

— Quer que arranje alguém para ir no seu lugar? Peter Marlowe riu e fez que não com a cabeça.

— É melhor mesmo você ir — falou o Rei. — Para o caso do Cheng San querer fazer contato.

— Acha que tem alguma coisa errada?

— Não. Shagata fez bem em verificar. Eu teria feito o mesmo. Tudo está seguindo de acordo com o planejado. Mais uma semana e o negócio estará fechado.

— Espero que sim. — Peter Marlowe pensou na aldeia, e rezou para que o negócio desse certo. Queria desesperadamente voltar lá de novo, e se voltasse, sabia que teria que possuir Sulina, ou enlouqueceria.

— Q que foi? — O Rei mais pressentira do que vira o estremecimento de Peter Marlowe.

— Estava só pensando que gostaria de estar nos braços de Sulina neste minuto — replicou Peter Marlowe, contrafeito.

— Sim. — O Rei ficou imaginando se ele poderia entornar o caldo por causa da fulana.

Peter Marlowe percebeu a expressão dele, e sorriu de leve. _ Não tem com que se preocupar, meu velho. Eu não faria nenhuma bobagem, se é o que estava pensando.

— Claro. — O Rei sorriu. — Temos muita coisa boa pela frente... e amanhã é o show. Já sabe do que se trata?

— Só sei que se chama Triângulo. E que Sean é a estrela. — A voz de Peter Marlowe ficou subitamente inexpressiva.

— Como foi que quase matou o Sean? — O Rei nunca perguntara isso assim francamente, pois sabia que, com um homem como Peter Marlowe, era sempre perigoso fazer perguntas diretas sobre assuntos pessoais. Mas, agora, sentia instintivamente que a hora era esta.

— Não há muito o que contar — respondeu Peter Marlowe, imediatamente, satisfeito porque o Rei lhe perguntara. — Sean e eu éramos da mesma esquadrilha, em Java. Um dia antes de a guerra acabar ali, Sean não voltou de uma missão. Pensei que tinha morrido.

“Há cerca de um ano... no dia seguinte à minha chegada aqui, vindo de Java... fui assistir a um dos espetáculos do campo. Quando finalmente reconheci Sean no palco, não pode imaginar o choque que senti. Fazia o papel de uma garota, mas aquilo não me chamou a atenção... alguém sempre tinha que fazer os papéis de garotas... portanto refestelei-me e apreciei o espetáculo. Não cansava de me congratular por encontrá-lo vivo e bem-disposto, e não cansava de admirar seu desempenho sensacional como moça... o jeito que andava, falava e se sentava... e suas roupas e peruca eram perfeitas. Fiquei impressionadíssimo com a atuação dele... e no entanto, sabia que nunca se metera com teatro antes.

“Depois do espetáculo, fui aos bastidores para vê-lo. Havia alguns outros esperando, também, e depois de algum tempo tive a sensação estranha de que aqueles caras eram como os tipos que ficam rondando as portas de saída dos teatros, pelo mundo todo... sabe, rapazes babando à espera das namoradas.

“Finalmente, a porta do camarim se abriu e todo o mundo entrou de roldão. Entrei por último, fiquei no vão da porta. Foi então que percebi, chocado, que todos aqueles caras eram homossexuais! Sean estava sentado numa cadeira, e todos eles pareciam derramar-se sobre ele, paparicando-o e chamando-o de ‘querida’, abraçando-o e dizendo-lhe como fora ‘maravilhosa’... tratando-o como a bela estrela do espetáculo. E Sean... Sean estava adorando aquilo! Santo Cristo, estava realmente adorando toda aquela bolinação! Como uma cadela no cio.

“Foi então que ele me viu, e também ficou chocado, é claro.

“Falou ‘Alô, Peter’, mas eu não pude responder nada. Fitava um daqueles malditos camaradas que estava com a mão no joelho de Seah. Este usava uma espécie de négligée, meias de seda e calcinhas, e tive o pressentimento de que chegara até a ajeitar as dobras do négligée para realçar as pernas acima das meias... e parecia que tinha seios, por baixo do négligée. Foi então que me dei conta de que não estava usando peruca... de que todo aquele cabelo era dele mesmo, tão longo e ondulado quanto o de uma garota.

“Então, Sean pediu a todos que se retirassem. ‘Peter é um velho amigo que pensei que estivesse morto’, falou. ‘Preciso falar com ele. Saiam, por favor.’

“Quando eles se haviam retirado, perguntei a Sean: ‘Em nome de Deus, o que lhe aconteceu? Você estava gostando de verdade da bolinação daquela escória.’

“ ‘Em nome de Deus, o que aconteceu a todos nós?’, respondeu Sean. Depois falou, com aquele seu sorriso maravilhoso: ‘Que bom vê-lo, Peter. Pensei que estava morto. Sente-se um momento enquanto tiro a maquiagem. Temos muito que conversar. Veio para cá no destacamento de trabalho de Java?’

“Fiz que sim com a cabeça, ainda em estado de choque, e Sean virou-se para o espelho e começou a tirar a maquiagem com creme de limpeza. ‘O que lhe aconteceu, Peter?’, perguntou. ‘Foi abatido?’

“Quando começou a tirar a maquiagem, comecei a me descontrair... tudo parecia mais normal. Disse a mim mesmo que bancara o cretino, que tudo aquilo fazia parte do espetáculo... sabe como é, manter viva a lenda... e estava certo de que ele apenas fingira estar gostando. Então, pedi desculpas, dizendo: ‘Desculpe, Sean... deve estar-me achando um idiota chapado! Meu Deus, é bom saber que está vivo. Também pensei que você tinha batido as botas.’

“Sean me contou que fora bombardeado por quatro Zeros, e tivera que soltar de pára-quedas. Quando finalmente conseguiu voltar ao campo de pouso e encontrou o meu avião, este era só destroços. Contei-lhe como ateara fogo ao meu avião antes de fugir... não queria que os malditos amarelos consertassem a asa.

“ ‘Oh’, disse ele, ‘imaginei que você se tinha espatifado ao aterrar... que tinha morrido. Fiquei em Bandung, no quartel-general, com o resto do pessoal, e depois fomos enviados para um campo de concentração. Logo depois, fomos mandados para Batávia, e de lá para cá.’

“Sean não parou de se olhar no espelho o tempo todo, e o rosto dele era liso e macio como o de qualquer garota. De repente, tive a estranha sensação de que se havia esquecido completamente de mim. Não sabia o que fazer. Então, ele deu as costas ao espelho e olhou direto para mim, e estava de testa franzida, de modo estranho. Imediatamente percebi o quanto estava infeliz, portanto, perguntei-lhe se queria que me retirasse.

“ ‘Não, Peter. Quero que fique.’

“E então pegou uma bolsa de mulher que estava na penteadeira, tirou de lá um batom e começou a se pintar.

“Fiquei estupefato. ‘O que está fazendo!’, exclamei.

“ ‘Botando batom, Peter.’

“ ‘Pare com isso, Sean. Brincadeira tem hora. O espetáculo já acabou faz meia hora.’

“Mas ele continuou, e quando os lábios estavam perfeitamente pintados, empoou o nariz e escovou o cabelo, e por Deus se não era a bela garota de novo. Eu não podia acreditar. Ainda achava que estava fazendo comigo uma brincadeira de péssimo gosto.

“Ajeitou uma madeixa aqui e ali e depois recostou-se na cadeira, examinou-se no espelho e pareceu absolutamente satisfeito com o que via. Foi então que me viu pelo espelho, fitando-o, e deu uma risada. ‘O que há, Peter? Nunca esteve num camarim antes?’

“ ‘Já’, retruquei. ‘Num camarim feminino.’

“Ele me olhou durante longo tempo. A seguir, endireitou o négligée e cruzou as pernas. ‘Este é um camarim feminino’, falou.

“ ‘Pare com isso, Sean’, disse, ficando irritado. ‘Sou eu, Peter Marlowe. Estamos em Changi, está lembrado? O espetáculo acabou e agora tudo voltou ao normal.’

“ ‘Sim’, falou, perfeitamente calmo. ‘Tudo está normal.’

“Levei muito tempo até conseguir dizer alguma coisa. ‘Bem’, consegui, finalmente, falar, ‘não vai tirar essas roupas e essa porcaria da cara?’

“ ‘Gosto dessas roupas, Peter’, falou, ‘e agora sempre uso maquiagem.’ Levantou-se e abriu um armário, e por Deus se não estava cheio de sarongues, vestidos, calcinhas, sutiãs e coisas assim. Virou-se para mim, e estava perfeitamente calmo. ‘Estas são as únicas roupas que uso, hoje em dia’, falou. ‘Sou uma mulher.’

‘Deve estar maluco!’, exclamei.

“Sean veio para junto de mim e me fitou e não pude tirar da cabeça a idéia de que, sei lá como, ali estava uma moça... parecia uma moça, agia, falava e cheirava como uma moça. ‘Olhe, Peter’, falou, ‘sei que é difícil para você entender, mas mudei. Não sou mais homem, sou mulher.’

“‘Porra, você não é mais mulher do que eu!’, berrei. Mas aquilo não pareceu afetá-lo em, nada. Ficou ali parado, sorrindo feito uma madona, e depois falou:

‘ ‘Sou mulher, Peter.’ Tocou no meu braço, como faria uma moça, e disse: ‘Por favor, trate-me como mulher.’

“Alguma coisa pareceu partir-se dentro da minha cabeça. Agarrei-o pelo braço, arranquei-lhe o négligée dos ombros, rasguei o sutiã com enchimento que usava, e empurrei-o para diante do espelho.

‘Você diz que é mulher?’, berrei. ‘Olhe para você! Porra, cadê seus seios?’

“Mas Sean não ergueu os olhos. Ficou parado diante do espelho, de cabeça baixa, o cabelo caindo em cima do rosto. O négligée pendia do seu corpo, e ele estava nu até a cintura.

“‘Olhe-se bem, seu maldito pervertido!’, berrei. ‘Por Deus, você é um homem, e sempre será!’

“Ficou ali parado, sem nada dizer, e finalmente dei-me conta de que ele estava chorando. E então Rodrick e Frank Parrish entraram correndo e me afastaram rudemente do caminho, e Parrish envolveu Sean no négligée e tomou-o nos braços, e Sean apenas chorava sem parar.

“Frank ficava abraçando-o e dizendo: ‘Tudo bem, Sean, está tudo bem.’ Depois, olhou para mim e percebi que tinha vontade de me matar. ‘Dê o fora daqui, seu sacana nojento’, falou.

“Nem mesmo sei como saí dali... quando dei conta de mim, estava andando a esmo pelo campo, e começava a perceber que não tinha direito, direito algum de fazer o que fizera. Era uma loucura.

O rosto de Peter Marlowe era uma máscara de angústia.

— Voltei ao teatro. Precisava tentar fazer as pazes com Sean. Sua porta estava trancada, mas pensei tê-lo ouvido lá dentro. Bati e bati, mas ele não respondia, nem abria a porta, e fiquei zangado de novo e arrombei a porta. Queria pedir desculpas cara a cara, não através de uma porta fechada.

“Ele estava deitado na cama, com um corte grande no pulso esquerdo, e sangue por todo o canto. Fiz-lhe um torniquete e saí em busca do Dr. Ken-nedy, e de Rodrick e Frank. Sean parecia um cadáver, e não emitiu um som durante rodo o tempo em que o Dr. Kennedy costurava o corte de tesoura. Quando Kennedy acabou, Frank me disse: ‘Está satisfeito agora, seu filho da mãe nojento?’

“Não pude responder. Fiquei ali, calado, odiando-me.

“‘Dê o fora e não apareça mais’, disse Rodrick.

“Já ia saindo, quando ouvi Sean chamar-me, numa espécie de murmúrio fraco, débil. Virei-me e vi que olhava para mim, não com raiva, mas como se tivesse pena de mim. ‘Desculpe, Peter’, falou. ‘Não foi culpa sua.’

“‘Meu Deus, Sean’, consegui murmurar, ‘não lhe quis fazer nenhum mal.’

“‘Eu sei. Por favor, seja meu amigo, Peter.’ A seguir, virou-se para Parrish e Rodrick e disse: ‘Eu queria ir embora, mas agora’, e deu aquele seu sorriso maravilhoso, ‘estou muito contente por estar em casa de novo.’

O rosto de Peter Marlowe estava sem cor. O suor escorria por seu pescoço e peito. O Rei acendeu um Kooa.

Peter Marlowe alçou ligeiramente os ombros, desanimado, depois levantou-se e foi embora, imerso em seu remorso.


17

— Vamos, andem depressa — disse Peter Marlowe para os homens que bocejavam, enfileirados sem ânimo algum diante da choça. Passava um pouco do alvorecer, e o café da manhã já ficara na lembrança, e sua deficiência servia apenas para aumentar a irritação dos homens. Além disso, o dia longo e escaldante, no campo de pouso, os esperava. A não ser que tivessem sorte.

Corria o boato de que hoje um destacamento iria para o extremo oeste do campo de pouso, onde cresciam os coqueiros. Corria o boato de que três árvores iriam ser derrubadas. E o cerne de um coqueiro era não apenas comestível como muito nutritivo, e uma grande iguaria. Era chamado de “repolho de milionário”, pois um coqueiro inteiro tinha morrido para fornecê-lo. Juntamente com o repolho de milionário haveria também cocos. Mais do que o suficiente para um destacamento de 30 homens. Assim, tanto os oficiais quanto os soldados estavam tensos. O Sargento encarregado da choça aproximou-se de Peter Marlowe e fez continência.

— Estão todos aí, senhor. Vinte homens, eu inclusive.

— Deveríamos ter trinta.

— É, mas só temos vinte. O resto está doente, ou cortando lenha. Nada posso fazer.

— Está certo. Vamos seguir para o portão.

O Sargento botou os homens em marcha, e eles começaram a andar ao longo do muro da cadeia, negligentemente, para ir se juntar ao resto do destacamento do campo de pouso, perto do portão-barricada oeste. Peter Marlowe fez sinal para o Sargento e arrebanhou seus homens, dirigindo-os para a melhor posição... perto do fim da fila, onde seria mais provável que fossem escolhidos para derrubar as árvores. Quando os homens notaram que seu oficial os havia manobrado para a posição acertada, começaram a prestar atenção e se ajeitaram rapidamente.

Todos eles haviam enfiado as camisas velhas nos sacos-de-bóia. Os sacos-de-bóia eram uma instituição, e existiam nas mais diversas formas. Às vezes eram sacos de provisões regulamentares, às vezes malas, às vezes cestas de palha, às vezes sacolas, às vezes um pano e um pedaço de pau, às vezes um pedaço de fazenda. Mas todos os homens carregavam um recipiente para o provável saque. Num destacamento de trabalho sempre havia qualquer coisa a saquear, e se não fosse um repolho de milionário ou um coco, poderia ser um pedaço de madeira lançado à costa pelo mar, madeira para lenha, cascas de coco, bananas, nozes, raízes comestíveis, folhas de muitos tipos, ou até mesmo mamão.

A maioria dos homens usava tamancos de madeira ou de borracha de pneu. Alguns estavam com sapatos com a parte dos dedos cortada fora. E outros usavam botas. Peter Marlowe calçava as botas do Mac. Estavam apertadas, mas, para uma marcha de quase cinco quilômetros e um dia de trabalho, eram melhores do que os tamancos.

A fila indiana de homens começou a marchar através do portão oeste, um oficial responsável por cada companhia. Na frente ia um grupo de coreanos, e no fim da fila um único guarda coreano.

O grupo de Peter Marlowe aguardou perto do final o espaço para unir-se à marcha. Ele esperava ansioso a jornada e a perspectiva das árvores. Ajeitou a camisa mais confortavelmente na tira do bornal, e ajustou o cantil... não o cantil, pois levá-lo num destacamento de trabalho seria perigoso. Nunca se podia saber quando um guarda, ou outra pessoa qualquer, pediria um gole.

Finalmente, chegou a hora de se pôr a caminho, e ele e seus homens começaram a caminhar para o portão. Ao passarem pela casa da guarda, bateram continência, e o Sargento japonês baixo e atarracado ficou de pé na varanda e retribuiu a continência, empertigado. Peter Marlowe deu o número dos seus homens ao outro guarda, que o verificou junto ao total já registrado.

E então estavam fora do campo, pisando na estrada de macadame e alcatrão. Ela se enrascava suavemente, por entre colinas baixas e vales, depois cortava um seringal. As seringueiras estavam malcuidadas e não haviam sido sangradas. Peter Marlowe achou aquilo estranho, pois a borracha valia uma fortuna e era alimento vital para a guerra.

— Alô, Duncan — disse, quando o Capitão Duncan e seu grupo começaram a passar. Marchou em cadência ao lado de Duncan, sempre de olho no seu grupo, que era logo o seguinte.

— Não é ótimo poder saber as notícias de novo? — comentou Duncan.

— É — replicou, automaticamente — se for verdade.

— Devo admitir que parece bom demais para ser verdade.

Peter Marlowe gostava de Duncan. Era um escocês pequeno, ruivo e de meia-idade. Nada parecia abatê-lo. Sempre tinha um sorriso e uma palavra otimista. Peter Marlowe tinha a sensação de que havia algo diferente nele, hoje. O que seria?

Duncan notou sua curiosidade e fez uma careta para mostrar a dentadura nova.

— Ah, então é isso — disse Peter Marlowe. — Estava-me perguntando o que havia de diferente.

— Que tal estão?

— Bem, é melhor do que nada.

— Mas que belo comentário. Achei que estão muito bons.

— Não consigo acostumar-me aos dentes de alumínio. São muito esquisitos.

— Comi o pão que o diabo amassou para arrancá-los. O pão que o diabo amassou!

— Graças a Deus meus dentes estão bem. Precisei obturá-los, no ano passado. Um negror. Você provavelmente agiu bem em tirar todos os seus. Quantos...

— Dezoito — falou Duncan, raivosamente. — Dá vontade de agente cuspir sangue. Mas estavam completamente podres. O dentista falou que tinha algo a ver com a água, a falta de mastigação, dieta de arroz e falta de cálcio. Mas por Deus, sinto-me ótimo com esta dentadura. — Mastigou em seco uma ou duas vezes, refletidamente, depois continuou: — Esses dentistas são muito inteligentes, fazendo esses dentes postiços. Um bocado de engenhosidade. Claro que tenho que admitir que não deixa de ser um choque, não ter os dentes brancos. Mas quanto ao conforto, ora, meu rapaz, há anos que não me sinto tão bem, brancos ou de alumínio, não faz diferença alguma. Sempre tive problemas com os dentes. Eles que vão para o diabo, afinal.

Mais à frente, a coluna de homens chegou para o lado da estrada para deixar passar um ônibus. Era um velharia, bufava e resfolegava, e tinha lugar para 25 passageiros. Mas lá dentro havia quase 60 homens, mulheres e crianças, e do lado de fora havia mais 10 pingentes. No topo do ônibus empilhavam-se gaiolas com galinhas, bagagens e esteiras. Enquanto o asmático ônibus ia passando, os nativos olhavam com curiosidade para os homens, e estes fitavam os gradeados de galinhas semimortas, e esperavam que o maldito ônibus quebrasse ou caísse numa vala, para que pudessem ajudar a empurrá-lo para fora da vala, e soltar cerca de uma dúzia de galinhas. Mas hoje o ônibus passou direto, e muita gente praguejou.

Peter Marlowe seguia ao lado de Duncan, que continuava a tagarelar sobre os dentes e a mostrá-los num amplo sorriso. Mas o sorriso era um negror, grotesco.

Atrás deles um guarda coreano, que se arrastava letargicamente, berrou com um homem que saiu da fila e correu para o lado da estrada, mas o homem simplesmente arriou a calça, evacuou rapidamente e gritou “Sakit ma-rah “ (disenteria), portanto o guarda deu de ombros, pegou um cigarro e acendeu-o enquanto esperava, e não demorou para que o homem estivesse de volta á fila.

— Peter — disse Duncan, baixinho — dê-me cobertura.

Peter Marlowe olhou para frente. A uns 20 metros da estrada, numa trilhazinha perto da vala de escoamento de chuvas, estavam a mulher e a filha de Duncan. Ming Duncan era chinesa de Cingapura. Como era oriental, não foi colocada num campo junto com as mulheres e filhos dos outros prisioneiros, mas vivia em liberdade nos arredores da cidade.. A menina era bonita como a mãe, alta para a idade, e tinha um rosto que não era talhado para suspiros. Uma vez por semana, as duas passavam por ali, “por acaso”, para que

Duncan pudesse vê-las. Ele sempre dizia que, enquanto pudesse vê-las, Changi não era tão ruim.

Peter Marlowe meteu-se entre o guarda e Duncan, ocultando-o, e deixou que Duncan voltasse para junto dos seus homens.

Enquanto a coluna passava, mãe e filha não fizeram nenhum sinal. Quando Duncan passou, os olhos delas encontraram-se com os dele, por um breve instante, e depois viram que ele largara um pedacinho de papel à beira da estrada, mas elas continuaram a caminhar, e então Duncan já tinha passado e se perdera na massa de homens. Mas ele sabia que elas haviam visto o papelzinho, e sabia que continuariam a caminhar até que todos os homens e guardas tivessem desaparecido. Então, voltariam e achariam o papel e leriam o que estava escrito, e este pensamento deixava Duncan feliz. Eu as amo, sinto sua falta, e as duas são a minha vida, escrevera ele. O recado era sempre o mesmo, mas era sempre novo, para ele e para elas, pois as palavras eram escritas a cada nova vez, e valiam a pena serem repetidas, vezes sem conta. Para sempre.

— Não acha que ela está com boa aparência? — perguntou Duncan, juntando-se a Peter Marlowe, de novo.

— Maravilhosa, você tem muita sorte. E Mordeen está ficando uma beleza.

— É, uma beleza de verdade. Vai fazer seis anos em setembro. — A felicidade desapareceu, e Duncan ficou calado. — Como gostaria que esta guerra acabasse — falou, em seguida.

— Agora não vai demorar muito.

— Quando você se casar, Peter, case-se com uma chinesa. São as melhores “mulheres do mundo. — Duncan já dissera a mesma coisa muitas vezes. — Sei que é duro ficar no ostracismo, e é difícil para os filhos... mas morrerei contente se morrer nos braços dela. — Deu um suspiro. — Mas você não me dará ouvidos. Casará com uma inglesa e pensará que está vivendo. Que desperdício! Eu sei. Já experimentei os dois tipos.

— Tenho que esperar para ver, não é, Duncan? — Peter Marlowe riu. A seguir, acelerou o passo, para se posicionar à frente dos seus homens. — Até logo mais.

— Obrigado, Peter — disse Duncan, enquanto ele se afastava.

Estavam quase chegando à pista de pouso. Logo adiante achava-se um grupo de guardas esperando para levar os grupos de homens para as diversas áreas de trabalho. Ao lado dos guardas havia enxadões, pás e picaretas. Muitos dos homens já cruzavam o campo de pouso, sob guarda.

Peter Marlowe olhou para o oeste. Um dos grupos já se dirigia para as árvores. Que merda!

Deteve seus homens e fez continência para os guardas, notando que um deles era Torusumi.

Este reconheceu Peter Marlowe, e sorriu:

— Tabe!

— Tabe — replicou Peter Marlowe, embaraçado pela camaradagem óbvia de Torusumi.

— Levar-vos-ei, e aos vossos homens — disse Torusumi, fazendo sinal para as ferramentas.

— Agradeço-vos — disse Peter Marlowe, e fez sinal para o Sargento. — Temos que ir com ele.

— Esse cretino trabalha na zona leste — falou o Sargento, irritado. — Mas que azar!

— Eu sei — replicou Peter Marlowe, igualmente irritado e, enquanto os homens se adiantavam para pegar as ferramentas, disse para Torusumi. — Espero que hoje nos leveis para o lado oeste. Lá é mais fresco.

— Temos que ir para o leste. Sei que é mais fresco no lado oeste, mas sempre me mandam para o leste.

Peter Marlowe decidiu arriscar-se.

— Talvez devêsseis pedir um melhor tratamento. — Era perigoso fazer uma sugestão a um coreano ou a um japonês. Torusumi observou-o com frieza, depois virou-se abruptamente e caminhou até Azumi, um Cabo japonês, que estava num canto, de cara fechada. Azumi era conhecido por seu mau gênio.

Apreensivamente, Peter Marlowe viu Torusumi inclinar-se e começar a falar rápida e asperamente em japonês. E sentiu o olhar de Azumi sobre si.

Ao lado de Peter Marlowe, o Sargento também observava ansiosamente a conversa.

— O que foi que disse, senhor?

— Disse que seria uma boa idéia se fôssemos para a extremidade oeste, para variar.

O Sargento fez uma careta. Se um oficial era esbofeteado, o Sargento também o era, automaticamente.

— Está-se arriscando... — Interrompeu-se abruptamente ao ver que Azumi vinha na direção deles, acompanhado por Torusumi, dois passos atrás, respeitosamente.

Azumi, um homem pequeno, de pernas arqueadas, parou a cinco passos de Peter Marlowe, depois ficou olhando na cara dele por uns 10 segundos. Peter Marlowe preparou-se para a bofetada que com certeza viria. Mas não veio. Ao invés disso, Azumi sorriu de repente, mostrou os dentes de ouro, chupou o ar entredentes e apanhou um maço de cigarros. Ofereceu um deles a Peter Marlowe e disse algo em japonês que Peter Marlowe não compreendeu, mas percebeu Shoko-san, e ficou ainda mais espantado, pois nunca fora chamado de Shoko-san antes. “Shoko”é “oficial”e “san” quer dizer “senhor”, e ser chamado de Sr. Oficial por um filho da mãe malvado como Azumi era um alto elogio.

— Arignato — disse Peter Marlowe, aceitando o fogo. “Obrigado” era só o que sabia de japonês, além de “À vontade”, “Sentido”, “Marcha rápida”, “Continência” e “Venha cá, seu filho da mãe branco”. Mandou que o Sargento, obviamente intrigado, fosse formar os homens.

— Sim, senhor — disse o Sargento, satisfeito de ter uma desculpa para afastar-se dali.

Então Azumi deu uma ordem rápida em japonês a Torusumi, e este também se adiantou e disse “Hotchatore”, que quer dizer “Marcha rápida”. Quando já tinham cruzado metade do campo de pouso, e estavam fora do alcance dos ouvidos de Azumi, Torusumi sorriu para Peter Marlowe.

— Vamos para a extremidade oeste, hoje. E vamos derrubar as árvores.

— Vamos? Não entendi.

— É simples. Contei a Azumi-san que sois o intérprete do Rei, e que achei que ele devia saber disso, já que fica com dez por cento dos nossos lucros. Assim — Torusumi deu de ombros — é claro que temos que cuidar um do outro. E talvez possamos discutir uns negócios, durante o dia.

Peter Marlowe ordenou debilmente a seus homens que parassem.

— O que foi, senhor? — perguntou o Sargento.

— Nada, Sargento. Ouçam, todos! Sem barulho. As árvores são nossas.

— Puta que o pariu, que maravilha. Houve um começo de vivas, logo abafado.

Quando chegaram às três árvores, Spence e seu grupo de trabalho já estavam lá, com o guarda deles. Torusumi acercou-se do guarda e tiveram o maior bate-boca em coreano. Mas Spence e seus homens irados foram postos em fila e levados embora pelo furioso guarda.

— Que diabo, por que ficou com as árvores, seu sacana? Chegamos aqui primeiro! — gritou Spence.

— Pois é — disse Peter Marlowe, solidariamente. Sabia muito bem como Spence se sentia.

Torusumi fez sinal para Peter Marlowe e veio sentar-se na sombra, encostando o fuzil a uma árvore.

— Ponde alguém de vigia — bocejou. — Sereis o responsável, se eu for pego dormindo por algum japonês peçonhento ou coreano.

— Podeis dormir descansado, confiando em mim — replicou Peter Marlowe.

— Acordai-me na hora de comer.

— É o que será feito.

Peter Marlowe colocou vigias nos pontos principais, depois liderou o ataque furioso às árvores. Queria as árvores derrubadas e retalhadas antes que alguém mudasse as ordens.

Ao meio-dia, as três árvores estavam no chão, e o repolho de milionário tinha sido retirado delas. Os homens estavam exaustos e mordidos de formiga, mas não se importavam, pois o saque do dia fora imenso. Havia dois cocos por cabeça para levar para casa, e mais 15 de reserva. Peter Marlowe disse que guardariam cinco para Torusumi e rachariam os outros dez no almoço. Dividiu dois repolhos de milionário e falou que o outro devia ser guardado para Torusumi e Azumi, para o caso de o quererem. Se não quisessem, também ele seria dividido.

Peter Marlowe estava encostado a uma árvore, ofegando de cansaço, quando um súbito assobio, avisando que havia perigo, fez com que se pusesse rapidamente de pé e corresse para junto de Torusumi, sacudindo-o para que acordasse.

— Um guarda, Torusumi-san, depressa.

Torusumi ficou de pé rapidamente e ajeitou o uniforme.

— Ótimo. Volte para as árvores e pareça ocupado — falou, suavemente. A seguir Torusumi foi andando, naturalmente, para a clareira. Quando reconheceu o guarda, descontraiu-se, fez sinal para o homem vir para a sombra, e ambos encostaram os fuzis nas árvores, recostaram-se e começaram a fumar.

— Shoko-san — chamou Torusumi. — Tranqüilize-se, é só o meu amigo. Peter Marlowe sorriu, e depois chamou:

— Ei, Sargento. Abra dois dos melhores cocos frescos e leve-os para os guardas. — Ele próprio não podia levá-los, não ficaria bem.

O Sargento escolheu os dois com cuidado, e cortou fora as tampas. A casca externa era castanho-esverdeada, tinha cinco centímetros de espessura e era resistente. A polpa branca que forrava o interior do fruto era bem macia, dava para se comer de colher, se a gente tivesse vontade, e a água era fresca e doce.

— Smith — chamou.

— Pronto, Sargento.

— Leve isso aqui para aqueles malditos amarelos.

— Por que eu? Sempre tendo que fazer mais do que...

— Trate de ir-se mandando pra lá.

Smith, um cockney baixo e miúdo, ficou de pé resmungando, e obedeceu.

Torusumi e o outro guarda beberam com gosto. Depois, Torusumi dirigiu-se a Peter Marlowe:

— Nós vos agradecemos.

— A paz esteja convosco — replicou Peter Marlowe.

Torusumi tirou do bolso um maço amassado de Kooas e entregou-os a Peter Marlowe.

— Agradeço-vos — disse Peter Marlowe.

— A paz esteja convosco — replicou, delicadamente, Torusumi.

Havia sete cigarros. Os homens insistiram para que Peter Marlowe ficasse com dois. Os outros cinco foram divididos, um para cada quatro homens, e com o consentimento geral, seriam fumados após o almoço.

Este se constituía de arroz, água de peixe e chá fraco. Peter Marlowe aceitou apenas o arroz, e misturou nele um pouquinho de blachang. Como sobremesa, saboreou sua parte do coco. Depois, recostou-se, cansado, no toco de uma das árvores, e ficou olhando para o campo de pouso, esperando acabar a hora do almoço.

Para o sul havia uma colina, e cercando a colina milhares de cules chineses. Todos carregavam dois cestos de bambu numa vara de bambu, sobre os ombros; subiam a colina, enchiam os dois cestos de terra, desciam a colina e esvaziavam os cestos. O movimento deles era perpétuo, e quase se podia ver a colina ir desaparecendo. Sob o Sol escaldante.

Há quase dois anos que Peter Marlowe vinha ao campo de pouso quatro, cinco vezes por semana. Quando ele e Larkin viram pela primeira vez o local, cheio de morros, pântanos e areia, tinham dado risada e afirmado que aquilo nunca viraria um campo de pouso. Afinal de contas, os chineses não tinham tratores ou buldôzeres. Mas agora, dois anos depois, já havia uma pista funcionando, e a pista grande, para os bombardeiros, estava quase pronta.

Peter Marlowe admirou-se da paciência de todas aquelas formigas-operá-rias, e se perguntou o que suas mãos não seriam capazes de fazer, se pudessem utilizar equipamentos modernos.

Seus olhos se fecharam e ele dormiu.

— Ewart! Cadê o Marlowe? — perguntou Grey, secamente.

— Num grupo de trabalho no campo de pouso. Por quê?

— Diga a ele para se apresentar a mim no minuto em que voltar.

— Onde você vai estar?

— Como posso saber, que diabo! Basta dizer-lhe que me procure. Quando Grey saiu da choça, sentiu um espasmo crescendo e começou a andar depressa na direção das latrinas. Antes de chegar ao meio do caminho, o espasmo chegou ao auge, e um pouco do muco sanguinolento saiu de dentro dele, ensopando ainda mais o absorvente de grama que usava na calça. Atormentado e muito fraco, recostou-se contra uma choça, para recobrar as forças.

Grey sabia que estava na hora de trocar o absorvente de novo, pela quarta vez, hoje, mas não se importava. Pelo menos, o absorvente era higiênico, e poupava sua calça, a única que possuía. E sem o absorvente, não podia andar por aí. Que coisa repulsiva, pensou, parece absorvente feminino. Que merda! Mas, pelo menos, era eficiente.

Deveria ter avisado que estava doente, hoje, mas não podia, não quando tinha conseguido botar a mão no Marlowe. Ah, não, isso era bom demais para perder, e ele queria ver a cara do Marlowe quando lhe contasse. Valia a dor saber que ele estava ferrado. Aquele filho da mãe sujo, safado. E através do Marlowe, o Rei ia suar um pouco. Dentro de dois dias, teria ambos nas mãos. Pois sabia do diamante e sabia que o contato seria feito na semana seguinte. Não sabia exatamente quando, mas lhe diriam. Você é esperto, disse consigo mesmo, esperto de ter um sistema tão eficiente.

Foi até a sua choça-cadeia e mandou o PM esperar lá fora. Trocou o absorvente e esfregou as mãos, esperando lavar a mancha, a mancha invisível.

Sentindo-se melhor, Grey forçou-se a descer os degraus da varanda e dirigiu-se à choça de suprimentos. Hoje iria fazer a inspeção semanal dos suprimentos de arroz e alimentos. Os suprimentos sempre conferiam, pois o Tenente-Coronel Jones era eficiente e dedicado, e sempre pesava a ração diária de arroz pessoalmente, em público. Portanto, nunca havia chance de trapaça.

Grey admirava o Tenente-Coronel Jones e gostava do jeito que tinha de fazer tudo ele mesmo... assim, evitava qualquer deslize. Invejava-o, também, pois era muito moço para ser Tenente-Coronel. Só 33 anos. É de dar engulhos, pensou, ele é um Tenente-Coronel e você, apenas Tenente... e a única diferença é ter estado na função certa, na hora certa. Apesar de tudo, você está-se saindo bem, e fazendo amigos que o apoiarão quando a guerra acabar. Claro, Jones era um soldado civil, portanto não iria continuar nas Forças Armadas depois do fim da guerra. Mas Jones era amigão de Samson, e também de Smedly-Taylor, chefe de Grey, e jogava bridge com o Comandante do Campo. Filho da mãe de sorte. Jogo bridge tão bem quanto você, mas nunca me convidam, e trabalho mais do que qualquer um.

Quando Grey chegou à choça de suprimentos, ainda se estava processando a pesagem do arroz do dia.

— Bom-dia, Grey — disse Jones. — Já vou atendê-lo.

Era um homem alto, bonitão, bem-educado, quieto. Tinha um rosto de garoto, e o apelidaram de o Garoto Coronel.

— Obrigado, senhor. — Grey ficou olhando enquanto os representantes de uma cozinha — um Sargento e um soldado — vieram para junto da balança. Cada cozinha mandava dois homens virem apanhar sua ração (um para ficar de olho no outro). A contagem dos homens apresentada pelos representantes era verificada, e o arroz pesado. A seguir, rubricava-se a folha de contagem.

Quando a última cozinha foi servida, o que restava no saco de arroz foi levado para dentro da choça pelo Sargento-Intendente Blakely. Grey entrou na choça atrás do Tenente-Coronel Jones e escutou, distraído, os números que este lhe apresentava, com voz cansada:

— Nove mil, quatrocentos e oitenta e três oficiais e soldados. Hoje foram entregues dois mil, trezentos e setenta e três quartos de libras de arroz, quatro onças por homem. Aproximadamente doze sacos. — Fez um sinal para os sacos vazios de juta. Grey ficou vendo Jones contá-los, sabendo que seriam 12.

Um dos sacos tinha dez libras a menos, o que não era incomum, e restam vinte e um quarto de libras.

O Tenente-Coronel foi pegar o saco quase vazio e colocou-o na balança que o Sargento-Intendente Blakely trouxera para dentro da choça. Colocou os pesos no outro prato, marcando 20 e 1/4 de libras, cerca de 10 quilos. O saco levantou-se e ficou equilibrado.

— Confere — sorriu, satisfeito, olhando para Grey.

Tudo o mais — uma costela de boi, 16 barris de peixe seco, 20 quilos de gula malacca, cinco dúzias de ovos, 25 quilos de sal e sacos de grãos de pimenta e pimenta-malagueta seca — conferia perfeitamente, também.

Grey assinou a tabela da Intendência, e fez uma careta ao sentir novo espasmo.

— Disenteria? — perguntou Jones, preocupado.

— Só um pouquinho, senhor. — Grey correu os olhos pela semi-escuridão, depois bateu continência. — Obrigado, senhor. Até para a semana.

— Obrigado, Tenente.

Ao sair da choça, Grey foi acometido de novo espasmo e tropeçou na balança, derrubando-a e espalhando os pesos pelo chão de terra batida.

— Desculpe — pediu Grey — foi muito descuido de minha parte. Ergueu a balança do chio, e começou a tatear em busca dos pesos, mas

Jones e Blakely já estavam de joelhos, apanhando-os.

— Não se incomode, Grey — disse Jones; depois, falou asperamente para Blakely: — Já lhe falei para botar a balança no canto.

Mas Grey já pegara do chão um peso de duas libras. Não podia acreditar no que via, e levou o peso para perto da porta, inspecionando-o bem junto da luz, para se certificar de que seus olhos não o estavam enganando. Não estavam. Na base do peso de ferro havia um buraquinho cheio até a borda com barro. Ele tirou o barro com a ponta da unha, o rosto cor de cera.

— O que foi, Grey? — indagou Jones.

— Adulteraram este peso.

As palavras eram uma acusação.

— O quê? Impossível! — Jones acercou-se de Grey. — Deixe ver. — Durante uma eternidade, ele o ficou examinando, depois sorriu. — Não o adulteraram. Este é simplesmente um furo corretivo. O peso provavelmente era uma fração mais pesado do que devia ser. — Deu um riso débil. — Meu Deus, por um momento você me deixou preocupado.

Grey foi rapidamente até onde estavam os outros pesos e apanhou mais um. Também este apresentava um furo.

— Santo Deus! Foram todos adulterados.

— Isso é um absurdo — falou Jones. — São apenas furos cor...

— Sei o bastante sobre pesos e medidas para saber que não são permitidos furos. Não furos corretivos. Se o peso estiver errado, não entra em circulação.

Virou-se violentamente para Blakely, que se encolhia junto à porta.

— O que sabe sobre isso?

— Nada, senhor — disse Blakely, apavorado.

— É melhor me contar!

— Não sei de nada, senhor, juro...

— Muito bem, Blakely. Sabe o que vou fazer? Vou sair daqui e ir contando a todo mundo que encontrar pelo caminho sobre você, a todo mundo... e vou mostrar-lhes este peso, e antes de poder dar queixa ao Coronel Smedly-Taylor, você será feito em pedaços. — Grey dirigiu-se para a porta. ‘

— Espere, senhor — falou Blakely, com voz entrecortada. — Vou contar-lhe. Não fui eu, foi o Coronel. Foi ele que me obrigou a fazer isso; pegou-me surripiando um tiquinho de arroz e jurou que me denunciaria se eu não o ajudasse...

— Cale-se, seu idiota! — exclamou Jones. Depois, num tom de voz mais calmo, disse para Grey. — Este idiota está querendo envolver-me. Nunca soube de nada...

— Não ligue para o que ele diz, senhor — interrompeu Blakely, quase balbuciando. — Sempre pesa o arroz pessoalmente. Sempre. E tem a chave do cofre em que guarda os pesos. O senhor mesmo sabe como ele faz tudo sozinho. E qualquer um que lide com os pesos tem que olhar para a base, de vez em quando. Não importa que os furos estejam bem camuflados, não dá para deixar de notá-los. E isso já vem acontecendo há um ano, ou mais.

— Cale-se, Blakely! — berrou Jones. — Cale-se. Silêncio.

— Coronel, há quanto tempo esses pesos vêm sendo usados? — perguntou Grey, em seguida.

— Não sei.

— Um ano? Dois anos?

— Porra, como vou saber? Se os pesos estão viciados, não tenho nada a ver com isso.

— Mas o senhor tem a chave e os mantém trancados?

— É, mas isso não quer dizer...

— Já olhou alguma vez para a base dos pesos?

— Não, mas...

— Isso é um tanto estranho, não acha? — continuou Grey, implacável.

— Não é, não, e não vou ser interrogado por...

— É melhor que esteja dizendo a verdade, para seu próprio bem.

— Está-me ameaçando, Tenente? Vou levá-lo à corte marcial...

— Duvido, Coronel. Estou aqui legalmente e os pesos foram adulterados, não foram?

— Escute aqui, Grey...

— Não foram? — Grey levou o peso para perto do rosto exangue de Jones, que não tinha mais ar de garoto.

— Eu... suponho... que sim — respondeu Jones — mas isso não significa...

— Significa que Blakely ou você é o responsável. Quem sabe os dois. Sã”o os dois únicos que têm acesso a este lugar. Os pesos estão marcando menos, e um de vocês, ou ambos, estão ficando com a ração extra.

— Não fui eu, senhor — choramingou Blakely. — Só recebo meio quilo em cada dez...

— Mentiroso! — berrou Jones.

— Não sou, não. Disse ao senhor mais de mil vezes que nos íamos dar mal. — Virou-se para Grey, torcendo as mãos. — Por favor, senhor, por favor, não diga nada. Os homens nos fariam em pedaços.

— Seu filho da mãe, espero que façam. — Grey estava contente de ter encontrado os pesos falsos. Sim, estava muito contente. Jones pegou sua caixa de cigarros e começou a preparar um.

— Quer um? — ofereceu, o rosto de garoto flácido e estranhamente doentio, sorrindo especulativamente.

— Não, obrigado. — Há quatro dias Grey não punha um cigarro na boca,’ e estava com muita vontade.

— Podemos dar um jeito nisso — falou Jones, com o jeito de garoto e a boa educação retornando. — Talvez alguém tenha adulterado os pesos. Mas a quantidade é insignificante. Posso facilmente arranjar outros pesos, certos...

— Então admite que estes são viciados?

— Grey, estou só dizendo... — Jones se interrompeu. — Saia, Blakely. Espere lá fora.

Imediatamente, Blakely voltou-se para a porta.

— Fique onde está, Blakely — disse Grey. A seguir, voltou a olhar para Jones, com ar respeitoso. — Não há necessidade de ele sair, há, senhor?

Jones examinou-o em meio à fumaça, depois falou:

— Não. As paredes não têm ouvidos. Muito bem. Receberá meio quilo de arroz por semana.

— Só isso?

— Digamos um quilo por semana, e meio quilo de peixe seco. Uma vez por semana.

— Nada de açúcar? Nem de ovos?

— Esses vão para o hospital, sabe disso.

Jones ficou esperando, Grey ficou esperando, e Blakely soluçava, atrás. Então, Grey começou a se retirar, guardando o peso no bolso.

— Grey, espere um minuto. — Jones apanhou dois ovos, oferecendo-os a ele. — Tome, vai ganhar um por semana, junto com o resto das provisões. E um pouco de açúcar.

— Vou dizer-lhe o que vou fazer, Coronel. Vou direto ao Coronel Smedly-Taylor, contar-lhe o que me falou e mostrar-lhe os pesos... e se houver um grupo de linchamento, e espero que haja, vou estar lá também, e vou empurrá-los para dentro das fossas, mas não muito depressa, porque quero vê-los morrer. Quero ouvi-los gritar, e vê-los morrer, por um longo tempo. Vocês dois.

E então saiu da choça para o Sol, e o calor do dia o atingiu e a dor rasgou-lhe as entranhas. Mas forçou-se a andar e começou a descer o morro devagar.

Jones e Blakely, parados à porta da choça de provisões, acompanharam sua trajetória. E ambos estavam apavorados.

— Ah, Jesus, senhor, o que vai acontecer? — choramingava Blakely. — Vão nos enforcar...

Jones puxou-o com violência para dentro da choça, bateu a porta e deu-lhe um bofetão, com as costas da mio.

— Cale a boca!

Blakely balbuciava, largado no chão, com as lágrimas correndo pelo rosto, e Jones levantou-o com brutalidade, dando-lhe novo bofetão.

— Não me bata, não tem o direito de me...

— Cale-se e escute. — Jones sacudiu-o de novo. — Escute, seu maldito. Já lhe disse mil vezes para usar os pesos verdadeiros no dia de inspeção de Grey, seu incompetente dos diabos. Pare de choramingar e escute. Primeiro, tem que negar o que foi dito. Está entendendo? Não fiz nenhuma oferta para Grey, entendeu?

— Mas, senhor...

— Tem que negar, entendeu?

— Sim, senhor.

— Ótimo. Ambos negaremos, e se você ficar firme, tirarei a gente dessa confusão.

— Será que pode? Será que pode, senhor?

— Posso, se você negar. Segundo, não sabe nada dos pesos, e nem eu. Compreendeu?

— Mas nós somos os únicos...

— Compreendeu?

— Sim, senhor.

— Terceiro. Nada aconteceu aqui, exceto que Grey descobriu os falsos pesos e você e eu ficamos tão espantados quanto ele. Compreendeu?

— Mas...

— Agora, conte-me o que se passou. Que merda, conte! — berrou Jones, debruçando-se sobre ele.

— Nós... estávamos acabando a verificação, e então... Grey caiu sobre a balança e os pesos foram derrubados e... e então descobrimos que os pesos eram falsos. Certo, senhor?

— O que aconteceu depois?

— Bem, senhor. — Blakely pensou por um momento, depois seu rosto se iluminou. — Grey nos perguntou sobre os pesos, e eu nunca percebera que eram falsos, e o senhor ficou igualmente surpreso. Depois, o Grey foi embora.

Jones ofereceu-lhe um pouco de fumo.

— Esqueceu o que Grey disse? Não se lembra? Ele disse: “Se me derem um pouco de arroz por fora, meio quilo por semana, e um ovo ou dois, não apresentarei queixa.” E então mandei que ele fosse para o diabo, que eu mesmo relataria o caso dos pesos falsos, e daria queixa dele, também, e eu estava desnorteado de preocupação com os pesos falsos. Como teriam chegado aqui? Quem seria o cafajeste?

Os olhinhos de Blakely ficaram cheios de admiração.

— É, sim, senhor, lembro-me claramente. Ele pediu meio quilo de arroz e um ou dois ovos. Exatamente como o senhor contou.

— Então não se esqueça, seu cretino! Se você tivesse usado os pesos certos e ficado de boca calada, não estaríamos nesta situação. Não me falhe de novo, ou ponho a culpa em você. Será sua palavra contra a minha.

— Não falharei, senhor, prometo...

— De qualquer modo, é a nossa palavra contra a de Grey. Portanto, não há com que se preocupar. Se você ficar de cabeça fria e não esquecer!

— Não vou esquecer, senhor, não vou.

— Ótimo.

Jones trancou o cofre e a porta da frente da cabana e foi embora.

Jones é vivo, Blakely tentou convencer-se, vai-nos tirar dessa. Agora que o choque de ter sido descoberto diminuíra, estava-se sentindo mais seguro. É, e o Jones vai ter que salvar o próprio pescoço para salvar o meu. É, Blakely, meu velho, você também é esperto, esperto o bastante para se certificar de que tem como enrascá-lo, se tentar atraiçoá-lo.

O Coronel Smedly-Taylor inspecionou o peso, minuciosamente.

— Espantoso! — exclamou. — Não posso acreditar. — Ergueu os olhos, vivamente. — Está falando sério, quando diz que o Tenente-Coronel Jones ofereceu-lhe subornai Com provisões do campo?

— Sim, senhor. Foi exatamente como lhe contei.

Smedly-Taylor sentou-se na cama, no pequeno bangalô, e enxugou o suor, pois estava quente e abafado.

— Não acredito — repetiu, balançando a cabeça.

— Eles dois eram os únicos que tinham acesso aos pesos...

— Eu sei. Não é que duvide de sua palavra, Grey, é só que, bem, é tão incrível.

Smedly-Taylor ficou calado durante longo tempo, e Grey esperou pacientemente.

— Grey. — O Coronel ainda examinava o peso e o furinho enquanto falava. — Preciso pensar no que vou fazer quanto a isso. A... história... toda é um perigo. Não deve mencionar isso a ninguém, ninguém, está-me ouvindo?

— Sim, senhor.

— Meu Deus, se é como você diz, bem, esses homens seriam massacrados. — Smedly-Taylor sacudiu a cabeça de novo. — Que dois homens... que o Tenente-Coronel Jones pudesse... as rações do campo. E todos os pesos são falsos?

— Sim, senhor.

— Quanto acha que pesam a menos, no todo?

— Não sei, mas calculo uma libra em cada quatrocentas libras. Imagino que estivessem ficando com cerca de dois quilos de arroz por dia. Sem contar o peixe seco ou os ovos. Talvez haja outros envolvidos nisso... teria que haver. Não podiam cozinhar o arroz sem perceber. Provavelmente uma das cozinhas também está metida nisso.

— Meu Deus! — Smedly-Taylor levantou-se e começou a andar de um lado para outro. — Obrigado, Grey, fez um belo trabalho. Providenciarei para que conste de sua folha de serviços. — Estendeu a mão. — Um belo trabalho, Grey.

Grey apertou a mão, com firmeza.

— Obrigado, senhor. Só lamento não ter descoberto antes.

— Não diga uma só palavra a ninguém. É uma ordem!

— Compreendo. — Bateu continência e saiu, com os pés mal tocando o solo.

Imagine só o Smedly-Taylor dizendo: “Providenciarei para que conste de sua folha de serviços!” Quem sabe o promoveriam, pensou Grey, com súbita esperança. Houvera algumas promoções no campo, e para ele seria uma boa o posto mais alto. Capitão Grey... como soava bem. Capitão Grey!

A tarde agora se arrastava. Sem trabalho, era difícil para Peter Marlowe manter os homens em pé. Então, organizou grupos de pilhagem, e ficava a toda hora trocando os vigias, pois Torusumi dormia de novo. O calor estava bárbaro, o ar seco, e todos xingavam o Sol e rezavam pela chegada da noite.

Finalmente, Torusumi acordou, fez suas necessidades na vegetação rasteira, pegou o fuzil e começou a andar para cima e para baixo, a fim de afastar o sono. Berrou com alguns dos homens que cochilavam e gritou para Peter Marlowe:

— Suplico-vos que mandeis esses porcos circularem e trabalharem, ou ao menos fazei com que pareça que estão trabalhando.

Peter Marlowe se aproximou:

— Lamento muito que estejais aborrecido. — A seguir, virou-se para o Sargento. — Pelo amor de Deus, você sabia que tinha que ficar de olho nele.

Mande esses malditos idiotas se levantarem e cavarem um buraco ou derrubarem aquela árvore ou cortarem umas folhas de palmeira, seu cretino!

O Sargento pediu muitas desculpas, e num instantinho tinha botado os homens para circular, fingindo que estavam ocupados. Sabiam fazê-lo com arte, a essa altura.

Algumas cascas de coco foram mudadas de lugar, algumas folhas empilhadas, alguns cortes de serrote feitos nas árvores. Se trabalhassem à mesma velocidade, dia após dia, bem, logo toda a área estaria limpa e plana.

O Sargento voltou, cansadamente, para junto de Peter Marlowe.

— Estão todos o mais ocupado possível, senhor.

— Ótimo. Agora não vai demorar muito.

— Escute, senhor, será que... será que faria uma coisa... para mim?

— O quê?

— Bem, é o seguinte. Já que... bem, o senhor... — Enxugou a boca num trapo que carregava para secar o suor, encabulado. Mas a oportunidade era boa demais para se perder. — Olhe para isso. — Mostrou a Peter Marlowe uma caneta-tinteiro. — Quer ver se o amarelo quer comprá-la?

— Está querendo que eu a venda para você? — perguntou Peter Marlowe, boquiaberto.

— Sim, senhor. Bem... é que... como o senhor é amigo do Rei, achei que... talvez o senhor soubesse como cuidar disso.

— É proibido vender para os guardas, é contra as ordens deles e as nossas.

— Ah, qual é, senhor, pode confiar em mim. Ora, o senhor e o Rei...

— O que é que tem, eu e o Rei?

— Nada, senhor — respondeu o Sargento, cautelosamente. Qual é a desse sacana? Quem está tentando tapear? — Só pensei que poderia ajudar-me. E à minha unidade, é claro.

Peter Marlowe olhou para o Sargento e para a caneta e se perguntou por que tinha ficado tão brabo. Afinal de contas, tinha vendido para o Rei — ou, pelo menos, tentado vender para o Rei — e na verdade era amigo do Rei. E não havia nada de mal nisso. Se não fosse pelo Rei, jamais teriam conseguido a área das árvores. O mais provável é que estivesse de queixo quebrado ou, no mínimo, de cara esbofeteada. Portanto, deveria mesmo preservar a reputação do Rei. Sem ele, não teriam conseguido os cocos.

— Quanto quer por ela?

O Sargento abriu um sorriso.

— Bem, não é uma Parker, mas tem pena de ouro. — Tirou a tampa e mostrou-a. — Portanto, deve valer alguma coisa. Quem sabe o senhor poderia ver o que ele daria.

— Ele vai querer saber quanto você está pedindo. Vou falar com ele, mas dê um preço.

— Se o senhor pudesse arranjar-me... sessenta e cinco dólares, ficaria feliz.

— Será que vale tanto?

— Acho que sim.

A caneta tinha mesmo pena de ouro e uma marca de 14 quilates, e pelo que Peter Marlowe podia ver, era artigo genuíno. Não como a outra caneta.

— Onde a arranjou?

— É minha, senhor. Estava guardando-a para um dia de chuva, e tem chovido muito ultimamente.

Peter Marlowe fez um gesto breve de cabeça. Acreditava no sujeito.

— Muito bem, verei o que posso fazer. Fique de olho nos homens, e ponha alguém de vigia.

— Não se preocupe, senhor. Os sacanas não vão nem piscar o olho. Peter Marlowe encontrou Torusumi encostado numa árvore baixa, em que se enroscava uma trepadeira.

— Tabe — cumprimentou.

— Tabe. — Torusumi lançou um olhar para o relógio, depois bocejou. — Podemos partir dentro de uma hora. Ainda não está na hora. — Tirou o quepe e enxugou o suor do rosto e do pescoço. — Este calor nojento e esta ilha nojenta!

— É. — Peter Marlowe tentou fazer com que as palavras soassem importantes, como se fosse o Rei falando, e não ele. — Um dos homens tem uma caneta que gostaria de vender. Ocorreu-me que, vós, como amigo, poderíeis querer comprá-la.

— Astaghfaru ‘llah! É uma Parker?

— Não. — Peter Marlowe pegou a caneta e tirou a tampa e deixou o Sol refletir-se na pena. — Mas tem pena de ouro.

Torusumi examinou-a. Ficou desapontado por não ser uma Parker, mas isso seria pedir demais. Especialmente no campo de pouso. Uma Parker seria negociada pessoalmente pelo Rei.

— Não vale muito — disse.

— Claro. Se não quereis levá-la em consideração... — Peter Marlowe voltou a botar a caneta no bolso.

— Posso levá-la em consideração. Quem sabe poderemos passar a hora que falta, levando em consideração este artigo sem valor. — Deu de ombros. — Valeria apenas setenta e cinco dólares.

Peter Marlowe ficou espantado de que o primeiro lance fosse tão alto. O Sargento nem tem idéia do seu valor. Deus, como gostaria de saber quanto realmente vale.

E assim, ficaram sentados pechinchando. Torusumi ficou zangado e Peter Marlowe fez pé firme, e finalmente chegaram a um acordo: 120 dólares e um maço de Kooas.

Torusumi levantou-se e bocejou de novo.

— Está na hora de ir. — Sorriu. — O Rei é um bom mestre. Da próxima vez em que o vir, dir-lhe-ei como vos aproveitastes da minha amizade, endurecendo tanto o negócio. — Sacudiu a cabeça, com autopiedade fingida. — Um preço desses por uma caneta tio insignificante! O Rei certamente se rirá de mim. Diga-lhe, suplico-vos, que estarei de guarda de hoje a sete dias. Quem sabe poderá arranjar-me um relógio. Mas um que preste... desta vez!

Peter Marlowe ficou satisfeito por ter feito, direitinho, sua primeira transação de verdade, pelo que lhe parecia um preço justo. Mas estava num dilema. Se desse todo o dinheiro ao Sargento, o Rei ficaria muito chateado. Aquilo arruinaria a estrutura de preços que o Rei construíra com tanto cuidado. E Torusumi não deixaria de mencionar ao Rei a venda da caneta, e o preço. Contudo, se desse ao Sargento apenas o que ele pedira, e ficasse com o resto, não seria trapacear? Ou seria apenas um bom “negócio”? Na realidade, o Sargento pedira apenas 65 dólares, e isso é o que deveria receber. E Peter Marlowe devia muito dinheiro ao Rei!

Gostaria de nunca ter-se metido nesse negócio cretino. Agora, estava preso em sua própria armadilha. O seu problema, Peter, é que se acha importante demais. Se tivesse dito não ao Sargento, não estaria agora nesta fria. O que vai fazer? Seja lá o que for, está errado!

Voltou andando devagar, pensando. O Sargento já pusera os homens em forma, e afastou Peter para um lado, ansiosamente.

— Estão prontos, senhor. E já verifiquei as ferramentas. — Abaixou a voz. — Ele comprou?

— Comprou. — E então Peter Marlowe tomou sua decisão. Botou a mão no bolso e deu ao Sargento um maço de notas. — Pronto, eis aí: sessenta e cinco dólares.

— Mas o senhor é um grã-fino muito legal! — Tirou do maço uma nota de cinco dólares e ofereceu-a a Peter. — Devo-lhe um dólar e meio.

— Não me deve nada.

— Dez por cento são seus. É justo, e me dá prazer pagá-los. Vou dar-lhe o dólar e meio que falta logo que tiver trocado.

Peter Marlowe empurrou a nota de volta.

— Não — disse, sentindo-se culpado, de repente. — Fique com ela.

— Eu insisto — disse o Sargento, devolvendo-lhe a nota.

— Olhe, Sargento...

— Pelo menos aceite os cinco. Iria sentir-me muito mal, senhor, se não os aceitasse. Muito mal. Nem sei como lhe agradecer.

Enquanto voltavam para o campo de pouso, Peter Marlowe não abriu a boca. Sentia-se sujo, com aquele maço de notas monstruoso no bolso, mas ao mesmo tempo sabia que devia dinheiro ao Rei, e estava feliz por ter aquele dinheiro, que lhe permitiria comprar coisas, extras para a unidade. O único motivo pelo qual o Sargento o procurara era porque conhecia o Rei, e o Rei, não o Sargento, era seu amigo. Ainda estava remoendo aquela situação terrível, quando voltou para sua choça.

— Grey quer vê-lo, Peter — avisou Ewart.

— Para quê?

— Sei lá, Peterzinho. Mas parecia puto da vida com alguma coisa.

A mente cansada de Peter Marlowe adaptou-se ao novo perigo. Tinha que ser algo a ver com o Rei. Grey significava encrenca. Agora, pense, pense, Peter. A aldeia? O relógio? O diamante? Ó, meu Deus... a caneta? Não, isso é besteira. Ainda não dá para ele saber disso. Devo ir procurar o Rei? Talvez saiba do que se trata. É perigoso. Quem sabe foi por isso que Grey falou com o Ewart, para me forçar a cometer um erro. Devia saber que eu estava num grupo de trabalho.

Não há por que ir como um cordeiro para o matadouro todo sujo e encalorado. Primeiro uma chuveirada, depois uma caminhada tranqüila até a choça da cadeia. Vou com calma.

E assim, foi para o chuveiro. Johnny Hawldns estava sob um dos jatos.

— Alô, Peter — cumprimentou Hawkins.

Um sentimento de culpa repentino fez o rosto de Peter Marlowe enrubescer.

— Alô, Johnny. — Hawkins parecia doente. — Escute, Johnny, fiquei muito chateado com...

— Não quero falar nisso — disse Hawkins. — Agradeceria se nunca mais tocasse no assunto.

Será que ele sabe, Peter Marlowe se perguntou, estarrecido, que sou um dos que... comeram?... Mesmo agora... e fora apenas ontem?... o súbito pensamento foi revoltante: canibalismo. Não pode saber, caso contrário teria tentado matar-me. Sei que, se estivesse na pele dele, é o que faria. Será que faria mesmo?

Meu Deus, a que estado chegamos. Tudo que parece errado é certo, e vice-versa. É demais para se compreender. Demais mesmo. Merda de mundo cretino. E os 60 dólares e o maço de Kooas a que fiz jus, e ao mesmo tempo roubei... ou ganhei... o que foi? Devo devolvê-los? Isso seria erradíssimo.

— Marlowe!

Virou-se e viu Grey de pé ao lado do chuveiro, com ar malévolo.

— Disseram-lhe que se apresentasse a mim ao voltar!

— Disseram-me que queria ver-me. Logo que acabasse o banho, ia...

— Deixei ordens para que se apresentasse a mim imediatamente. — Havia um sorrizinho no rosto de Grey. — Mas não faz mal. Está sob prisão domiciliar.

Fez-se silêncio nos chuveiros, e todos os oficiais estavam prestando atenção.

— Por que motivo?

Grey adorou a súbita preocupação que o outro deixou transparecer.

— Por desobedecer ordens.

— Que ordens?

— Sabe tão bem quanto eu. — Isso mesmo, sue frio! Sua consciência culpada vai incomodá-lo um pouco... se é que tem consciência, o que duvido.

— Apresente-se ao Coronel Smedly-Taylor depois do jantar. E vá vestido como oficial, não feito uma piranha!

Peter Marlowe desligou o chuveiro, enfiou-se no sarongue, deu o nó com uma torção habilidosa, cônscio dos olhares curiosos dos demais oficiais. Sua mente estava em tumulto, perguntando-se qual seria o problema, mas tentou disfarçar a ansiedade que sentia. Para que dar essa satisfação a Grey?

— Você é mesmo muito mal-educado, Grey. Muito chato — falou.

— Aprendi bastante hoje sobre berço e educação, seu cafajeste — disse Grey. — Ainda bem que não pertenço à sua classe nojenta, seu sacana safado. Todos uns canalhas, vigaristas, ladrões...

— Pela última vez, Grey, cale o bico, ou juro por Deus que o calo por você.

Grey tentou controlar-se. Queria enfrentar este homem, aqui e agora. Podia derrotá-lo, sabia que podia. A qualquer hora. Com ou sem disenteria.

— Se conseguirmos sair dessa joça com vida, vou procurar você. Será a primeira coisa que vou fazer. A primeira.

— Será um prazer. Mas até lá, se me insultar de novo, vou dar-lhe uma surra. Peter Marlowe virou-se para os outros oficiais. — Todos me ouviram. Eu lhe estou avisando. Não vou agüentar xingamentos deste macaco de classe inferior. — Virou-se, violentamente, para Grey. — Trate de ficar longe de mim.

— Como posso, se você infringe a lei?

— Que lei?

— Esteja na cabana do Coronel Smedly-Taylor depois do jantar. E mais uma coisa... está sob prisão domiciliar até a hora de se apresentar ao Coronel.

— Grey se afastou. A maior parte de sua euforia desaparecera. Era burrice xingar Marlowe. Burrice, quando não havia necessidade.


18

Quando Peter Marlowe chegou diante do bangalô do Coronel Smedly-Taylor, Grey já estava lá.

— Vou avisar ao Coronel que chegou — disse Grey.

— Quanta gentileza. — Peter Marlowe sentia-se pouco à vontade. O boné da Força Aérea que pedira emprestado o incomodava. A camisa puída mas

limpa que usava o incomodava. Os sarongues são muito mais confortáveis, pensou, e mais sensatos. E ao pensar em sarongues pensou no dia seguinte. Era o dia da troca do dinheiro. Pelo diamante. Amanhã, Shagata deveria trazer o dinheiro, e depois, dentro de três dias, a volta à aldeia. E talvez Sulina... Você é um idiota de estar pensando nela. Trate de ficar atento e alerta, vai precisar estar de posse de todas as suas faculdades.

— Muito bem, Marlowe. Sentido — ordenou Grey.

Peter Marlowe ficou em posição de sentido e começou a marchar para dentro dos aposentos do Coronel, da forma mais militarmente correta possível. Ao passar por Grey, sussurrou “Vá tomar no cu”, e sentiu-se um pouco melhor, e logo chegou diante do Coronel. Bateu uma continência perfeita, e olhou fixamente por cima do Coronel.

Sentado atrás de uma mesa tosca, com a bengala militar sobre a mesa, Smedly-Taylor ergueu os olhos frios para Peter Marlowe, e devolveu o cumprimento, formalmente. Orgulhava-se da maneira como cuidava da disciplina no campo. Tudo o que fazia era estritamente militar, segundo os regulamentos.

Examinou o rapaz diante de si, que se mantinha ereto. Pelo menos isto depõe a seu favor, pensou. Ficou calado por algum tempo, como era hábito seu. Aquilo sempre descontrolava o acusado. Finalmente, falou:

— E então, Capitão-Aviador Marlowe? O que tem a dizer em sua defesa?

— Nada, senhor. Não sei do que me acusam.

O Coronel Smedly-Taylor olhou para Grey, surpreso, depois voltou a olhar para Peter Marlowe, de testa franzida.

— Talvez infrinja tantas regras, que custe a lembrar-se delas. Esteve na cadeia ontem. Isso é contra as ordens. Não estava usando braçadeira. Isso é contra as ordens.

Peter Marlowe sentiu-se aliviado. Era apenas a cadeia. Mas, espere um minuto... e quanto à comida?

— Então — continuou o Coronel, secamente — esteve ou não esteve?

— Sim, senhor.

— Sabia que estava infringindo duas ordens?

— Sim, senhor.

— Por que entrou na cadeia?

— Fui só visitar alguns homens.

— É? — O Coronel esperou, depois disse, causticamente: — Só visitar alguns homens?

Peter Marlowe ficou calado, esperando. E a pergunta veio.

— O americano também estava na cadeia; você estava com ele?

— Durante algum tempo. Isso não é proibido, senhor. Mas desobedeci... às duas outras ordens.

— O que vocês estavam aprontando, desta vez?

— Nada, senhor.

— Então admite que vocês dois costumam aprontar, de vez em quando? Peter Marlowe ficou furioso consigo mesmo por não ter pensando antes de responder, sabendo que com este homem, um excelente homem, estava em desvantagem.

— Não, senhor. — Fitou o Coronel, mas ficou calado. Uma regra. Quando se está diante de uma autoridade, só se diz “não, senhor”, “sim, senhor”, e se fala a verdade. Era uma regra inviolável que os oficiais sempre diziam a verdade, e cá estava ele, contrariando toda a tradição familiar, contrariando tudo que sabia ser correto, contando mentiras e meias verdades. Isso era muito errado. Era mesmo?

Agora, o Coronel Smedly-Taylor começou a fazer o jogo que já fizera tantas vezes antes. Para ele, era fácil brincar com um homem e depois massacrá-lo, se estivesse com vontade.

— Escute, Marlowe — falou, tomando um ar paternal — comunicaram-me que você vem-se envolvendo com elementos indesejáveis. Seria aconselhável que considerasse sua posição como oficial e cavalheiro. Agora, quanto a essa associação com o americano. Ele lida com o mercado negro. Ainda não foi pegado com a mão na massa, mas nós sabemos, e portanto você deve saber. Aconselho-o a acabar com essa associação. Não posso mandar que o faça, é claro, mas lhe estou aconselhando que o faça.

Peter Marlowe ficou calado, sangrando por dentro. O que o Coronel dizia era verdade, e no entanto o Rei era seu amigo, e este amigo estava alimentando e ajudando tanto a ele quanto à sua unidade. E era um homem excelente, excelente.

Peter Marlowe sentia vontade de dizer: “Está errado, e não me importo. Gosto dele e é um bom homem e nos divertimos juntos, e rimos à grande”, e ao mesmo tempo queria admitir as vendas e admitir a aldeia, e admitir o diamante, e admitir a venda de hoje. Mas Peter Marlowe podia enxergar o Rei atrás das grades, sem sua imponência. Portanto, forçou-se a não confessar.

Smedly-Taylor podia facilmente detectar o tumulto no jovem à sua frente. Seria tão simples para ele dizer:

“Espere lá fora, Grey.” E depois: “Escute, meu filho, entendo o seu problema. Meu Deus, tenho bancado o pai de um regimento desde que me entendo por gente. Conheço o problema... não quer dedurar seu amigo. Muito elogiável. Mas é oficial de carreira, oficial hereditário... pense em sua família e nas gerações de oficiais que serviram à pátria. Pense neles. A sua honra está em jogo. Tem que dizer a verdade, é o regulamento.” E depois o seu pequeno suspiro, praticado há mais de uma geração, e em seguida: “Vamos esquecer essa bobagem de infração de regras por ter entrado na cadeia. Eu mesmo já o fiz, diversas vezes. Mas se quiser abrir-se comigo...”, e deixaria as palavras no ar, com a quantidade exata de gravidade, e lá viriam os segredos do Rei, e este seria posto na cadeia do campo... mas com que finalidade?

No momento, o Coronel tinha uma preocupação bem maior... os pesos. Esta sim, podia ser uma catástrofe de proporções infinitas.

O Coronel Smedly-Taylor sabia que conseguiria obter a informação que quisesse desse garoto, quando lhe desse na telha... conhecia os homens muito bem. Sabia que era um comandante esperto... seria de admirar que nato fosse, depois de tanto tempo! E a primeira regra era manter o respeito dos seus oficiais, tratá-los com brandura até que realmente saíssem da linha, depois devorar um deles implacavelmente, como exemplo para os outros. Mas era preciso escolher a hora certa, o crime certo, e o oficial certo.

— Muito bem, Marlowe — falou, com firmeza. — Vou multá-lo em um mês de soldo. Não anotarei nada em sua folha de serviço, e não falaremos mais no assunto. Porém, não infrinja mais nenhuma regra.

— Obrigado, senhor. — Peter Marlowe bateu continência e foi embora, satisfeito porque a entrevista terminara. Estivera bem perto de contar tudo. O Coronel era um homem bom e generoso, e tinha a reputação de ser muito justo.

— Sua consciência o está incomodando? — perguntou Grey do lado de fora da cabana, notando o suor de Peter Marlowe. Este nem deu resposta. Ainda estava perturbado, e imensamente aliviado por ter escapado.

— Grey! — chamou o Coronel. — Quer vir até aqui um momento?

— Sim, senhor. — Grey olhou para Peter Marlowe pela última vez. Um mês de soldo! Não era muito, considerando-se que o Coronel o tinha nas mãos. Grey ficou surpreso, e até um tanto irritado, de Marlowe ter escapado daquela com tanta facilidade. Mas, ao mesmo tempo, já tinha visto Smedly-Taylor agir antes. E sabia que o Coronel era tenaz como um buldogue, que sabia como manobrar os homens. Devia ter um plano, para deixar Marlowe safar-se daquela maneira.

Grey desviou-se de Peter Marlowe e entrou de novo no bangalô.

— Hã... feche a porta, Grey.

— Sim, senhor.

Quando estavam sozinhos, o Coronel Smedly-Taylor disse:

— Já falei com o Tenente-Coronel Jones e o Sargento-Intendente Blakely.

— Sim, senhor? — Agora, sim, estamos fazendo progressos!

— Dispensei-os de suas funções, a partir do dia de hoje — continuou o Coronel, brincando com o peso.

O sorriso de Grey era amplo.

— Sim, senhor. — E agora, quando seria a corte marcial, e como seria feita... seria sob segredo de justiça, e os dois seriam rebaixados? Logo todo o mundo no campo saberia que ele, Grey, os pegara em flagrante, na sua traição; ele, Grey, era um anjo da guarda, e meu Deus, que maravilha seria.

— E vamos esquecer o assunto — concluiu o Coronel. O sorriso de Grey desapareceu.

— Como?

— É, resolvi esquecer o assunto. E você também vai esquecer. Repito minha ordem. Não diga uma palavra dessa história a ninguém, e trate de esquecê-la.

Grey ficou tão pasmo que se deixou cair sentado na cama, fitando o Coronel.

— Mas não podemos fazer isso, senhor! — explodiu. — Nós o pegamos em flagrante. Roubando a comida do campo. A sua comida e a minha comida. E tentaram subornar-me. Subornar-me! — Sua voz tornou-se histérica. — Santo Deus, eu os peguei, são ladrões, merecem ser enforcados e esquartejados!

— É verdade. — O Coronel Smedly-Taylor sacudiu a cabeça, solenemente. — Mas acho que, em face das circunstâncias, esta é a decisão mais sensata.

Grey se pôs de pé, num salto.

— Não pode fazer isso! — berrou. — Não pode deixar que saiam impunes! Não pode...

— Não me diga o que posso ou não posso fazer!

— Desculpe — falou Grey, lutando para controlar-se. — Mas, senhor, esses homens são ladrões. Peguei-os com a mão na massa. O senhor está com o peso.

— Resolvi que não se fala mais no assunto. — A voz dele era calma. — Caso encerrado.

Grey descontrolou-se completamente.

— Por Deus, mas não está encerrado! Não deixarei que seja encerrado! Aqueles filhos da mãe estavam comendo enquanto passávamos fome! Merecem ser feitos em pedaços! E insisto...

— Cale-se Grey! — A voz de Smedly-Taylor abafou a histeria. — Não pode insistir coisa nenhuma. Caso encerrado. — Smedly-Taylor suspirou pesadamente, apanhou um pedaço de papel e disse: — Esta é a sua folha de serviço. Hoje lhe acrescentei algo. Vou ler para você: “Recomendo vivamente o Tenente Grey pelo seu trabalho como Chefe da Polícia Militar do Campo. Sua atuação é, sem dúvida alguma, excelente. Gostaria de recomendar que fosse promovido a Capitão.” — Ergueu os olhos do papel. — Pretendo enviar isso ainda hoje ao Comandante do Campo, e recomendar que sua promoção se torne efetiva a partir da data de hoje. — Sorriu. — Como sabe, ele tem autoridade para promovê-lo. Parabéns, Capitão Grey. O senhor merece. — E estendeu a mão para Grey.

Mas Grey não a aceitou. Simplesmente olhou para ela, e para o papel, e então entendeu.

— Ora, seu filho da mãe nojento! Está tentando comprar-me. Não presta, igual a... talvez também venha comendo o arroz. Ora, seu merda, seu merda sujo, nojento...

— Cale a boca, seu subalterno metido a besta! Fique em posição de sentido! Mandei ficar em posição de sentido!

— Você está metido na tramóia com eles, e não vou deixar que nenhum de vocês se safe dessa — berrou Grey, arrancando o peso de cima da mesa e recuando: — Ainda não posso provar nada contra você, mas tenho prova contra eles. Este peso...

— O que há com o peso, Grey?

Grey levou uma eternidade para baixar os olhos para o peso. A base não tinha uma só marca.

— Perguntei: “O que há com o peso?” — Pobre idiota, pensou Smedly-Taylor desdenhosamente, ao ver Grey procurar o furinho. Mas que tolo! Poderia arrasá-lo, sem o menor esforço.

— Não foi este o peso que lhe entreguei — dizia Grey, com voz abafada. — Não é o mesmo. Não é o mesmo.

— Está enganado. É o mesmo. — O Coronel estava bem calmo, agora. Continuou, com voz gentil e solícita. — Bem, Grey, você é moço. Creio que vai querer continuar no Exército, depois que a guerra acabar. Isso é bom. Sempre podemos aproveitar oficiais inteligentes e trabalhadores. A vida militar é maravilhosa. Sem dúvida. E o Coronel Samson estava-me dizendo que o tem em alta conta. Como sabe, ele é amigo meu. Estou certo de que posso convencê-lo a apoiar minha recomendação para que lhe seja dada uma comissão permanente. Você está apenas extenuado, o que não é de admirar. Estamos vivendo uma época terrível. Acho que é melhor esquecermos o assunto. Seria desaconselhável envolver o campo num escândalo. Muito desaconselhável. Estou certo de que compreende a sabedoria de agirmos assim.

Ficou à espera, desprezando Grey. Na hora exata (pois era um perito) perguntou:

— Quer que envie ao Comandante do Campo a recomendação para sua promoção a Capitão?

Grey virou-se devagar para o documento, olhando-o com horror. Sabia que o Coronel podia dar e tomar, e como podia dar e tomar, também podia massacrar. Grey sabia que estava derrotado. Derrotado. Tentou falar, mas seu sofrimento era tão imenso que não conseguiu. Fez um aceno de cabeça, e ouviu Smedly-Taylor dizer:

— Ótimo, pode dar como certa sua promoção a Capitão. Estou convencido de que a minha recomendação e a do Coronel Samson influirão tremendamente para que lhe seja dada uma comissão permanente, depois da guerra.

Sentiu que havia saído do bangalô do Coronel, e que estava subindo a escada que levava à choça da cadeia e dispensando o PM, e pouco se lhe dava que o homem estivesse olhando para ele como se fosse maluco. Então, ficou sozinho na choça da cadeia. Fechou a porta e se sentou na beira da cama dentro da cela, e todo seu sofrimento veio à tona, e ele chorou.

Destruído.

Destroçado.

As lágrimas molhavam-lhe as mãos e o rosto. Seu espírito rodopiava aterrorizado, equilibrando-se no limiar do desconhecido, depois caiu na eternidade...

Quando Grey voltou a si, estava deitado numa maça que dois PMs carregavam. O Dr. Kennedy ia à frente da maça. Grey sabia que estava morrendo, mas não se importava. Foi então que viu o Rei, de pé ao lado da trilha, olhando para ele.

Grey notou os sapatos engraxados, o vinco da calça, o Kooa comprado pronto, a fisionomia bem alimentada. E lembrou-se de que tinha um serviço a fazer. Ainda não podia morrer. Ainda não. Não, enquanto o Rei estava bem vincado e engraxado e bem alimentado. Não com o diamante para ser negociado. Por Deus, não!

— É melhor acabarmos o jogo nesta rodada — dizia o Coronel Smedly-Taylor. — Não podemos perder o show.

— Mal posso esperar para ver o Sean — disse Jones, ajeitando suas cartas. Abriu a rodada, com ar satisfeito: — Dois ouros.

— Tem uma sorte dos diabos — disse Sellars, vivamente. — Duas espadas.

— Passo.

— Nem sempre uma sorte, dos diabos, parceiro — disse Smedly-Taylor, com um sorriso seco. Seus olhos de granito fixaram-se em Jones. — Foi bem burro, hoje.

— Foi azar, só isso.

— Não há desculpa para o azar — disse Smedly-Taylor, examinando suas cartas. — Deveria ter verificado. Foi incompetência não verificar.

— Já pedi desculpas. Pensa que não sei que foi burrice? Nunca mais agirei assim. Nunca. Jamais tinha entrado em pânico antes.

— Dois sem trunfos. — Smedly-Taylor sorriu. Depois, virou-se novamente para Jones. — Já recomendei ao Samson que o substituísse... você está precisando de um “descanso”. Isso vai tirar o Grey da pista... ah, sim, e o Sargento Donovan será o Sargento-Intendente de Samson. — Deu uma risada curta. — É uma pena termos que mudar o sistema, mas não faz mal. Teremos apenas que nos certificar de que Grey esteja ocupado nos dias em que os pesos falsos forem utilizados. — Voltou os olhos para Sellars. — Isso será responsabilidade sua.

— Pois não.

— Oh, a propósito, multei o Marlowe em um mês de soldo. Ele está numa das suas choças, não é?

— Está — disse Sellars.

— Fui tolerante com ele, mas é um bom homem, vem de boa família... não como aquele cafajeste de classe inferior, o Grey. Meu Deus, mas que audácia... imaginar que eu vá recomendá-lo para uma comissão permanente. Ele é o tipo de ralé de que não precisamos no Exército Regular. Meu Deus, não! Aquele só receberá comissão permanente passando por cima do meu cadáver.

— Concordo inteiramente — disse Sellars, com cara de nojo. — Mas quanto ao Marlowe, devia tê-lo multado em três meses de soldo. Pode muito bem passar sem o dinheiro. Aquele maldito americano tem o campo inteiro nas mãos.

— Por enquanto. — Smedly-Taylor resmungou e examinou as cartas, mais uma vez, tentando encobrir o escorregão.

— Descobriu alguma coisa contra ele? — perguntou Jones, especulativamente. A seguir, acrescentou: — Três ouros.

— Que droga! — exclamou Sellars. — Quatro espadas.

— Passo.

— Seis espadas — disse Smedly-Taylor.

— Tem mesmo alguma coisa para enrascar o americano? — perguntou Jones de novo.

O Coronel Smedly-Taylor manteve a fisionomia inexpressiva. Sabia da história do anel de diamantes, e ouvira contar que já se fechara negócio, e que o anel em breve trocaria de mãos. E quando o dinheiro estivesse no campo, bem, já bolara um plano, um plano bom, seguro, particular, para botar a mão no dinheiro. Portanto; apenas resmungou, deu um dos seus sorrisos secos e falou, displiscentemente.

— Se tivesse, não lhes contaria. Não merecem confiança. Quando Smedly-Taylor sorriu, todos sorriram, aliviados.

Peter Marlowe e Larkin juntaram-se ao fluxo de homens que se dirigiam para o teatro ao ar livre.

As luzes do palco já estavam acesas, e a Lua iluminava a noite. Totalmente lotado, o teatro abrigava 2.000 pessoas. As cadeiras, que partiam de junto do palco, abrindo-se em leque, eram tábuas sobre tocos de coqueiro. Cada espetáculo era repetido durante cinco noites, para que todos no campo pudessem assistir a ele ao menos uma vez. Os lugares eram sorteados, e sempre disputadíssimos.

A maior parte das filas já estava superlotada. Exceto pelas filas da frente, onde se sentavam os oficiais. Estes sempre se sentavam na frente dos soldados, e chegavam depois destes. Apenas os americanos não seguiam este costume.

— Ei, vocês dois — chamou o Rei. — Querem sentar com a gente? — Ele tinha um lugar privilegiado, junto ao corredor.

— Bem, eu gostaria, mas sabe como é... — disse Peter Marlowe, constrangido.

— Está legal. Até logo mais.

Peter Marlowe lançou um olhar para Larkin e soube que ele também estava achando que era errado não sentar junto dos amigos, se a gente estava com vontade... e, ao mesmo tempo, era errado sentar ali.

— Ha... quer sentar aqui, Coronel? — perguntou, jogando a responsabilidade da decisão sobre Larkin, e odiando-se por agir assim.

— Por que não? — disse Larkin.

Sentaram-se, profundamente encabulados, cônscios de sua deserção e dos olhares atônitos.

— Ei, Coronel! — Brough debruçou-se para ele, com um sorriso vincando o rosto. — Vão-lhe arrancar o couro. Mau para disciplina, e coisa e tal.

— Se quero sentar-me aqui, sento-me aqui. — Mas Larkin já estava desejando não ter concordado tão prontamente.

— Como vão as coisas, Peter? — perguntou o Rei.

— Bem, obrigado. — Peter Marlowe tentou superar o mal-estar que sentia. Achava que todo o mundo estava olhando para ele. Ainda não tinha contado ao Rei que vendera a caneta, por ter sido chamado à presença do Smedly-Taylor, nem que quase se atracara com Grey...

— Boa-noite, Marlowe.

Levantou os olhos e crispou-se todo ao ver o Coronel Smedly-Taylor passar, com olhar gélido.

— Boa-noite, senhor — respondeu, debilmente. Ó, meu Deus, pensou, agora estou ferrado.

Houve uma súbita aceleração do entusiasmo geral, quando o Comandante do Campo desceu o corredor e sentou-se na primeira fila. As luzes se apagaram. Abriu-se o pano. No palco achava-se a orquestra de cinco instrumentos do campo, e no centro do palco encontrava-se seu regente, Phil.

Aplausos.

— Boa-noite — começou Phil. — Hoje vamos apresentar uma nova peça de Frank Parrish chamada Triângulo, que se passa na Londres de antes da guerra, estrelada por Frank Parrish, Brod Rodrick, e o primeiro e único Sean Jennison...

Vivas alucinados. Assobios. Apupos. Gritos de “Cadê o Sean?” e “Que guerra?” e “Boa e velha Inglaterra!” e “Andem logo com isso” e “Queremos Sean!”

Phil fez um floreio com a batuta, e a abertura começou.

Agora que o espetáculo já tivera início, Peter Marlowe descontraiu-se um pouco.

E então, aconteceu. De repente, Dino apareceu ao lado do Rei, murmurando urgentemente ao seu ouvido.

— Onde? — disse o Rei. Peter Marlowe pôde ouvi-lo. Depois: — Certo, Dino. Volte logo para a choça.

O Rei inclinou-se para perto de Peter Marlowe.

— Temos que ir, Peter. — O rosto dele estava tenso, a voz não passava de um sussurro. — Um certo cara quer-nos ver.

— Ó, meu Deus! Shagata! E agora?

— Não podemos simplesmente levantar e ir embora — disse Peter Marlowe, contrafeito.

— Não podemos, uma ova. Estamos os dois com disenteria. Vamos. — O Rei já estava descendo o corredor.

Dolorosamente cônscio dos olhares espantados, Peter Marlowe saiu atrás dele.

Encontraram Shagata nas sombras, atrás do palco. Também estava nervoso.

— Suplico-vos que perdoeis a minha indelicadeza ao mandar chamar-vos tão repentinamente, mas temos encrenca. Um dos juncos do nosso amigo mútuo foi interceptado, e ele no momento está sendo interrogado pela polícia peçonhenta, acusado de contrabando. — Shagata sentia-se perdido sem seu fuzil, e sabia que, se fosse apanhado no campo sem estar de serviço, seria colocado na caixa sem janelas por três semanas. — Ocorreu-me que, se nosso amigo for interrogado brutalmente, poderá implicar-nos.

— Santo Deus! — exclamou o Rei. Com mãos trêmulas aceitou um Kooa, e os três se aprofundaram nas sombras.

— Pensei que, como sois um homem de experiência — continuou Shagata, falando de roldão — poderíeis ter um plano com o qual nós nos conseguiríamos salvar.

— Pode esperar sentado! — exclamou o Rei. Seus pensamentos fervilhavam, e a resposta era sempre a mesma: esperar e suar frio. — Peter. Pergunte a ele se Cheng San estava no junco, quando este foi apreendido.

— Ele diz que não. — O Rei suspirou.

— Então pode ser que Cheng San consiga safar-se. — Pensou de novo, depois falou: — Não podemos fazer porra nenhuma, só esperar. Diga-lhe para não entrar em pânico. Tem que dar um jeito de saber se Cheng San falou. Precisa avisar-nos se o raio do negócio foi descoberto.

Peter Marlowe traduziu.

Shagata aspirou o ar por entre os dentes.

— Estou impressionado ao vos ver tão calmos, enquanto tremo de medo, pois, se for apanhado, estarei com sorte se for logo fuzilado. Farei o que mandastes. Se fordes apanhados, suplico-vos que tenteis não me envolver. Tentarei fazer o mesmo. — Virou a cabeça bruscamente, ao ouvir um assobio baixo de alerta. — Tenho que vos deixar. Se tudo correr bem, continuaremos, com o plano. — Enfiou apressadamente o maço de Kooas na mão de Peter Marlowe.

— Não sei de vós e vossos deuses, mas eu certamente pedirei aos meus, longamente, pelo nosso bem comum. — E depois partiu.

— E se Cheng San der com a língua nos dentes? — perguntou Peter Marlowe, com um doloroso nó na boca do estômago. — O que podemos fazer?

— Tentar fugir. — O Rei acendeu outro cigano com mãos trêmulas, e encostou-se na parede lateral do teatro, metendo-se bem dentro das sombras.

— É melhor do que Utram Road.

Atrás deles, a abertura musical terminou sob uma chuva de aplausos, vivas e risadas. Mas eles não escutaram coisa alguma.

Rodrick estava nas coxias, fechando a cara para o pessoal que armava o cenário para a peça, correndo atrás deles, apressando-os.

— Major! — Mike veio correndo para junto dele. — Sean está tendo um chilique. Está-se acabando de chorar!

— Mas pelo amor de Deus! O que aconteceu? Estava tudo bem faz um minuto — explodiu Rodrick.

— Não sei ao certo — respondeu Mike, mal-humorado.

Rodrick praguejou de novo, saindo às pressas. Bateu, ansiosamente, à porta do camarim.

— Sean, sou eu. Posso entrar? Soluços abafados vinham lá de dentro.

— Não. Vá embora. Não vou entrar em cena. Não posso.

— Sean. Está tudo bem. Você está apenas esgotado, só isso. Olhe...

— Vá embora e me deixe em paz — berrava Sean, histericamente, através da porta. — Não vou entrar em cena!

Rodrick tentou abrir a porta, mas estava trancada. Voltou correndo para o palco.

— Frank!

— O que é? — Frank, coberto de suor, estava encarapitado numa escada, irritado, consertando uma luz que se recusava a funcionar.

— Desça daí! Preciso falar com...

— Ora, pela madrugada, não está vendo que estou ocupado? Faça você mesmo, seja lá o que for — explodiu. — Será que tenho que fazer tudo? Ainda tenho que me vestir, e nem me maquiei! — Ergueu os olhos novamente para a passagem estreita acima do palco. — Tente os outros grupos de chaves, Duncan. Vamos, homem, mexa-se.

Do outro lado do pano, Rodrick já podia ouvir o coro cada vez maior de assobios impacientes. O que faço agora?, perguntou-se, desesperadamente. Começou a voltar para o camarim.

Foi então que viu Peter Marlowe e o Rei junto à porta lateral. Desceu correndo a escada.

— Marlowe! Tem que me ajudar!

— O que foi?

— É o Sean, está tendo um chilique — falou Rodrick, ofegante. — Recusa-se a entrar em cena. Quer dar uma palavrinha com ele? Por favor. Não consigo nada dele. Por favor. Fale com ele, sim?

— Mas...

— Não vai demorar um segundo — interrompeu Rodrick. — Você é a minha última esperança. Por favor. Há semanas que ando preocupado com Sean. Seu papel já é bem difícil para uma mulher representar, que dirá... — Deteve-se, depois continuou, debilmente: — Por favor, Marlowe, temo por ele. Você nos prestaria a todos um grande serviço.

— Está bem — disse Peter Marlowe, hesitante.

— Nem sei como lhe agradecer, meu velho. — Rodrick enxugou a testa e foi abrindo caminho por entre o pandemônio até os fundos do teatro, Peter Marlowe seguindo-o, relutante. O Rei ia junto, distraído, ainda se concentrando em como, onde e quando tentar a fuga. Ficaram parados no pequeno corredor. Constrangido, Peter Marlowe bateu à porta.

— Sou eu, Peter. Posso entrar, Sean?

Sean ouviu-o em meio à névoa de terror que o envolvia, com a cabeça largada em cima dos braços, diante da penteadeira.

— Sou eu, Peter. Posso entrar?

Sean levantou-se, as lágrimas manchando a maquiagem, e destrancou a porta. Peter Marlowe entrou, hesitante, no camarim. Sean fechou a porta.

— Ah, Peter, não posso entrar em cena. Não agüento mais, cheguei ao fim — dizia Sean, desolado. — Não posso fingir mais, não dá mais. Estou perdido, perdido, Deus me ajude! — Enterrou o rosto nas mãos. — O que vou fazer? Não dá mais para agüentar. Não sou nada. Nada!

— Tudo bem, Sean, amigão — dizia Peter Marlowe, cheio de pena. — Não precisa preocupar-se. Você é muito importante. A pessoa mais importante do campo, se quer saber a verdade.

— Queria estar morto.

— Isso é fácil demais.

Sean virou-se e olhou para ele.

— Olhe para mim, pelo amor Deus! O que sou? Em nome de Deus, o que sou?

Mesmo a contragosto, Peter Marlowe só podia enxergar uma moça, uma moça num tormento patético. E a moça usava saia branca e saltos altos, e suas longas pernas estavam envoltas em meias de seda, e por baixo de sua blusa notava-se o contorno dos seios.

— Você é uma mulher, Sean — disse, igualmente desolado. — Sabe lá Deus como... ou por quê... mas é.

E então o terror, o tormento e o ódio de si mesmo abandonaram Sean.

— Obrigado, Peter — falou Sean. — Obrigado de todo o coração. Houve uma tênue batida na porta.

— Começamos daqui a dois minutos — chamou Frank, ansioso, do outro lado. — Posso entrar?

— Só um segundo. — Sean foi até a penteadeira, secou as manchas de lágrimas, refez a maquiagem e fitou seu reflexo no espelho. — Pode entrar, Frank.

Ao ver Sean, Frank ficou sem fôlego, como sempre.

— Está uma beleza! — exclamou. — Tudo bem?

— Tudo. Acho que banquei o idiota. Desculpe.

— É só excesso de trabalho — disse Frank, disfarçando a preocupação. Lançou um olhar para Peter Marlowe. — Alô, prazer em vê-lo.

— Obrigado.

— É melhor ir aprontar-se, Frank — disse Sean. — Já estou bem, agora.

Frank sentiu aquele sorriso feminino, bem dentro de si, e automaticamente caiu no esquema que ele e Rodrick tinham criado há três anos, e do qual se arrependiam amargamente, desde então.

— Vai sair-se maravilhosamente, Betty — falou, abraçando Sean. — Estou orgulhoso de você.

Mas agora, ao contrário das outras inúmeras vezes, subitamente eles eram homem e mulher, e Sean relaxou o corpo contra o dele, necessitando-o com cada molécula do seu ser. E Frank o percebeu.

— Vamos entrar em cena daqui a um minuto — gaguejou, abalado pela força inesperada dos seus próprios desejos. — Tenho... tenho que ir aprontar-me. — E foi embora.

— Bem, acho melhor voltar para o meu lugar — disse Peter Marlowe, profundamente perturbado. Pressentira, mais do que vira, a fagulha entre os outros dois.

— Sim — replicou Sean, mas mal notava Peter Marlowe.

Uma última espiada na maquiagem e depois Sean esperava sua deixa, nas coxias. O êxtase aterrorizado de costume. Depois, Sean pisou no palco e tornou-se. Os vivas, o assombro e a lúxuria derramavam-se sobre ela... olhos seguiam-na enquanto se sentava e cruzava as pernas, enquanto ela andava e falava... olhos que a buscavam, que a tocavam, que a devoravam. Juntos, ela e os olhos tornaram-se um só.

— Major — quis saber Peter Marlowe, enquanto ele, o Rei e Rodrick assistiam à peça das coxias — que história é essa de Betty?

— Ah, é parte de toda a sujeira — replicou Rodrick, com ar infeliz. — Este é o nome do personagem que Sean representa esta semana. Nós... Franke eu... sempre chamamos Sean pelo nome do seu personagem.

— Por quê? — quis saber o Rei.

— Para ajudá-lo. Ajudá-lo a entrar na pele do personagem. — Rodrick voltou a olhar para o palco, esperando sua deixa. — Tudo começou como um jogo — explicou, amargamente — agora é uma piada maldita. Nós criamos aquele... aquela mulher... Deus tenha piedade de nós.

— Por quê? — perguntou Peter Marlowe, devagar.

— Bem, você lembra como era duro em Java. — Rodrick olhou para o Rei. — Como era ator antes da guerra, deram-me a incumbência de começar a fazer teatro no campo. — Deixou o olhar voltar para o palco, para Frank e Sean. Havia algo estranho hoje com aqueles dois, pensou. Examinou suas atuações criticamente, e viu que estavam inspirados. — Frank era o único outro profissional no campo, portanto começamos a organizar a montagem de espetáculos. Quando chegou a hora de escolher os atores para os papéis, é claro que alguém tinha que fazer os papéis femininos. Ninguém quis ser voluntário, então as autoridades designaram dois ou três. Um deles era Sean. Ele se opôs violentamente à idéia, mas sabe como os oficiais superiores são teimosos. “Alguém tem que bancar a garota, pelo amor de Deus”, disseram-lhe. “Você é moço o bastante para se sair bem. Só faz a barba uma vez por semana. E é só vestir umas roupas durante pouco mais de uma hora. Pense no que isso fará ao moral de todos.” E não importa o quanto Sean esbravejasse, xingasse e suplicasse, não mudaram de idéia. Sean pediu-me que não o aceitasse. Bem, não é negócio trabalhar com atores que não querem cooperar, portanto tentei fazer com que o deixassem sair da companhia.

“Escutem — disse eu às autoridades — representar é um grande esforço psicológico...

“— Besteira! — disseram. — O que pode haver de mal nisso?

“— O fato de estar fazendo papel de mulher poderá afetá-lo. Se tiver a mínima inclinação para...

“— Quanta bobagem — disseram. — Vocês, gente de teatro, parece que têm idéia fixa de perversão. O Sargento Jennison? Impossível! Não há nada de errado com ele! Um piloto de caça danado de bom! Agora, escute aqui, Major. Assunto encerrado. Tem ordens de aceitá-lo e ele tem ordem de trabalhar!

“E assim Frank e eu tentamos acalmar Sean, mas ele jurava que ia ser a pior atriz do mundo, que ia fazer tudo para ser despedido depois da primeira atuação desastrosa. Dissemos a ele que para nós, tanto se nos dava. Sua primeira atuação foi terrível. Mas depois disso, não pareceu odiar tanto o trabalho. Para surpresa sua, até parecia gostar. Então, pusemos mãos à obra, de verdade. Era bom ter algo para fazer... ajudava a não pensar na merda da comida e na merda do campo. Ensinamos-lhe como uma mulher fala, anda, senta-se, fuma, bebe e se veste, e até mesmo como pensa. E então, para ajudá-lo a se adaptar melhor, começamos a brincar de faz-de-conta. Sempre que estávamos no teatro, nós nos levantávamos quando ele entrava, oferecíamos-lhe uma cadeira, sabe como é, o tratávamos como se fosse mulher de verdade. A princípio era emocionante, tentar manter a ilusão, não deixar nunca que Sean fosse visto vestindo-se ou despindo-se, fazer tudo para que as roupas dele sempre ocultassem, mas também insinuassem bastante. Conseguimos até uma permissão especial para que tivesse um quarto só para ele, com o seu próprio chuveiro.

“E então, de repente, não precisou mais que o ajudássemos. Tinha virado uma mulher o mais completa possível, no palco.

“Mas, aos pouquinhos, a mulher começou a dominá-lo também fora de cena, só que não o percebemos. A esta altura, Sean já deixara crescer bastante o cabelo... as perucas que tínhamos não prestavam. E então, Sean começou a andar vestido de mulher o tempo todo. Certa noite, tentaram violentá-lo.

“Depois disso, Sean quase enlouqueceu. Tentou esmagar a mulher que havia dentro dele, mas não conseguiu. E então, tentou o suicídio. Claro que foi tudo abafado. Mas não ajudou Sean, apenas tornou as coisas piores, e ele nos amaldiçoou por tê-lo salvado.

“Alguns meses depois, nova tentativa de estupro. Depois disso, Sean enterrou totalmente o seu eu masculino.

— Não vou mais lutar — disse ele. — Vocês queriam que eu fosse uma mulher, agora eles acreditam que sou. Pois bem, serei mulher. Dentro de mim, já me sinto mulher, portanto não há mais necessidade de fingir. Sou mulher, e quero ser tratada como tal.

“Frank e eu tentamos dialogar com ele, mas estava fora do nosso alcance, Então, convencemo-nos de que era só temporário, que Sean voltaria ao normal depois. Sean era formidável para o moral dos homens, e sabíamos que jamais conseguiríamos alguém que fosse um décimo tão adequado quanto ele para fazer o papel feminino. Assim, demos de ombros e continuamos o jogo.

“Pobre Sean. É uma pessoa maravilhosa. Se não fosse por ele, Frank e eu já teríamos desistido há séculos.”

Houve uma tempestade de aplausos, quando Sean fez nova entrada, pelo lado oposto do palco.

— Não têm idéia de como os aplausos mexem com a gente — disse Rodrick, quase que consigo mesmo — os aplausos e a adoração. A não ser que tenham tido a experiência, pessoalmente. Lá, no palco. Não têm idéia. É fantasticamente excitante, é uma droga assustadora, aterradora, linda. E é sempre injetada no Sean... sempre. Junto com a luxúria... a sua, a minha, a de todos nós. — Rodrick enxugou o suor do rosto e das mãos. — Somos responsáveis, sem dúvida. Deus nos perdoe.

Surgiu a deixa dele, e Rodrick entrou no palco.

— Quer voltar para os nossos lugares? — perguntou Peter Marlowe ao Rei.

— Não. Vamos assistir daqui. Nunca estive nos bastidores antes. Sempre tive vontade devir aqui. — Será que Cheng San está abrindo o bico agora?, perguntou-se o Rei.

Mas ele sabia que não ganhava nada em se preocupar. Já tinham entrado naquela, e estava pronto... para o que desse e viesse.

Voltou a olhar para o palco. Seus olhos acompanhavam Rodrick, Frank e Sean. Inexoravelmente, seus olhos acompanhavam Sean. Cada movimento, cada gesto.

Todos fitavam Sean. Intoxicados.

E Sean e Frank, e os olhos tornaram-se um só, e a paixão tumultuada no palco entranhou-se nos atores e nos espectadores, pondo-os a nu.

Quando o pano caiu sobre a última cena, fez-se um silêncio total. Os espectadores estavam fascinados.

— Meu Deus! — exclamou Rodrick, assombrado. — Este é o maior elogio que nos podiam fazer. E vocês dois o merecem, estavam inspirados, verdadeiramente inspirados.

O pano começou a subir, e quando tinha subido totalmente, o silêncio terrível se desfez, e houve um coro de vivas, e foram chamados à cena 10 vezes, e mais vivas, e depois Sean ficou no palco sozinho, bebendo aquela adoração vital.

Na ovação continuada, Rodrick e Frank vieram à cena pela última vez para compartilhar do triunfo, dois criadores e uma criação, a bela garota que era o seu orgulho e o seu castigo.

A platéia foi deixando, em silêncio, o auditório. Cada homem pensava na sua casa, pensava nela, fechado na sua mágoa taciturna. O que ela estará fazendo, neste minuto?

Larkin fora o mais atingido. Por que, em nome de Deus, chamar a pequena de Betty? Por quê? E a minha Betty... está... estaria... será que neste momento está nos braços de outro?

E Mac. Estava louco de medo por Mem. Será que o navio afundara? Será que está viva? E meu filho, estará vivo? E Mem... estaria... será que neste momento... será? Faz tanto tempo, meu Deus, quanto tempo?

E Peter Marlowe. E quanto a N’ai, a incomparável? Meu amor, meu amor.

E todos eles.

Até mesmo o Rei. Perguntava-se com quem estaria... aquela visão de beleza que enxergara quando ainda era adolescente, sem rumo na vida... a garota que dissera, segurando um lenço perfumado junto do nariz, que a ralé branca cheirava pior do que a crioulada.

O Rei deu um sorriso sardônico. Aquela sim, era uma mulher e tanto, disse consigo mesmo, voltando a pensar em coisas mais importantes.

As luzes se apagaram no teatro, que estava vazio, exceto pelos dois no camarim isolado.


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