— Malditos insetos! — Levantou os olhos para o céu, calculando a hora, um tanto nervosamente. — Não acha que está na hora de irmos andando?
— Ainda não. São só 4:15. A melhor hora para nós é logo antes do alvorecer. Se esperarmos mais uns dez minutos, estaremos em posição com tempo de sobra. — Abriu um sorriso. — Da primeira vez que atravessei a cerca também fiquei ansioso e com medo. Quando voltei, tive que ficar esperando junto da cerca. Tive que esperar meia hora, ou mais, até o caminho ficar desimpedido. Jesus! Suei frio! — Abanou as mãos, afastando os insetos. — Malditos insetos.
Ficaram sentados durante algum tempo, escutando õ movimento constante da floresta. Fileiras de vaga-lumes formavam retalhos brilhantes nas pequenas poças de chuva ao lado do caminho.
— Igualzinho à Broadway à noite — falou o Rei.
— Vi um filme chamado Times Square. História sobre jornais. Deixe ver. Acho que era com o Cagney.
— Não me lembro desse. Mas a Broadway tem que ser vista pessoalmente. É como se fosse de dia, no meio da noite. Cartazes imensos a gás neon e luzes por todo o canto.
— É lá que você mora? Em Nova York?
— Não. Estive lá umas duas vezes. Já estive em toda a parte.
— Onde mora?
— Meu pai não tem pouso certo — respondeu o Rei, dando de ombros.
— No que ele trabalha?
— Boa pergunta. Um pouco nisso, um pouco naquilo. Vive bêbado, a maior parte do tempo.
— Ah! Deve ser uma dureza.
— É duro para um garoto.
— Tem mais família?
— Minha mãe morreu, quando eu tinha três anos. Não tenho irmãs nem irmãos. Meu pai me criou. É um vagabundo, mas me ensinou muitas coisas sobre a vida. Número um, a pobreza é uma doença. Número dois, o dinheiro é tudo. Número três, não importa como você o obtenha, contanto que o obtenha.
— Sabe, nunca pensei muito em dinheiro. Suponho que, nas Forças Armadas... bem, sempre há um cheque mensal de pagamento, sempre há um certo padrão de vida, portanto o dinheiro não conta muito.
— Quanto seu pai ganha?
— Não sei ao certo. Suponho que umas seiscentas libras por ano.
— Jesus. É só dois mil e quatrocentos dólares. Ora, eu ganho mil e trezentos como Cabo. Pois sim, quem iria trabalhar por esse salário de nada!
— Talvez seja diferente nos Estados Unidos. Mas na Inglaterra, dá para se viver direitinho. Claro que nosso carro é bem antigo, mas isso não tem importância, e quando você se reforma, recebe uma aposentadoria.
— De quanto?
— Cerca de metade do soldo.
— Para mim, isso não é nada. Não entendo por que as pessoas entram para as Forças Armadas. Talvez porque sejam um fracasso como gente.
O Rei viu o corpo de Peter Marlowe enrijecer ligeiramente.
— Claro — acrescentou, rapidamente — não me estou referindo à Inglaterra. Falava dos Estados Unidos.
— A vida militar é boa... para um homem. Dinheiro suficiente... uma vida emocionante em todas as partes do mundo. A vida social é boa. Além disso, bem, um oficial sempre tem muito prestígio. — Peter Marlowe acrescentou, quase como se pedisse desculpas. — Sabe, a tradição, e tudo o mais.
— Vai continuar a ser militar depois da guerra?
— Claro.
— Na minha opinião — falou o Rei, pautando os dentes com uma lasquinha de casca de árvore — é fácil demais. Não vejo emoção nem futuro em receber ordens de uns tipos que são, na maioria, uns vagabundos. Pelo menos, é o que me parece. E que diabo, não lhe pagam nada. Ora, Pete, você deveria dar uma olhada nos Estados Unidos. Não há nada igual no mundo. Lugar nenhum. Cada um por si, e cada um é tão bom quanto o vizinho. E só o que você tem que fazer é descobrir um macete e se tornar melhor do que o vizinho. Isso é que é emocionante.
— Não acho que me adaptaria. Sei que não sou um cara talhado para ganhar dinheiro. Estarei melhor fazendo o que nasci para fazer.
— Bobagem. Só porque o seu velho é militar...
— Isso vem desde 1720. De pai para filho. É um bocado de tradição para tentar combater.
O Rei resmungou.
— É tempo pra burro! — Depois, acrescentou: — Só sei do meu pai e do pai dele. Antes disso... nada. Pelo menos, parece que meu pessoal veio do velho mundo lá por volta de 1880.
— Da Inglaterra?
— Porra, não. Acho que da Alemanha. Ou quem sabe da Europa Central. Quem está ligando? Sou americano, e é só isso que conta.
— Os Marlowes são militares, e fim de papo.
— Porra, não é não. A escolha é sua. Olhe só para você, agora. Está numa boa porque usa a cuca. Seria um grande negociante, se quisesse. Sabe falar como um nativo, certo? Preciso de sua cuca. Estou pagando por ela... e deixe de bancar o ofendido. É o estilo americano. A gente paga por aquilo que usa. Não tem nada a ver com nossa amizade. Nada. Se não lhe pagasse, eu seria um safado.
— Está errado. A gente não precisa ser pago para ajudar um pouco.
— Porra, mas como está precisando aprender as coisas! Gostaria de levá-lo para os Estados Unidos, para ser caixeiro viajante. Com este sotaque inglês fajuto iria deixar as mulheres malucas. Faturaria adoidado. Daríamos roupas íntimas femininas para você vender.
— Santo Deus. — Peter sorriu com ele, mas havia um toque de horror no sorriso. — Mais fácil eu voar do que tentar vender alguma coisa.
— Mas você voa.
— Quero dizer, sem avião.
— Claro, estava brincando. O Rei olhou para o relógio.
— O tempo passa devagar, quando a gente está esperando.
— Há horas que acho que nunca vamos sair desse buraco fedorento.
— Qual é, o Tio Sam está botando os amarelos para correr. Não vai demorar muito. E se demorar, qual é o galho? Estamos numa boa, meu chapa. É só o que importa. — O Rei olhou para o relógio. — Melhor a gente dar no pé.
— Como?
— Ir andando.
— Oh! — Peter Marlowe se levantou. — Vá em frente, Macduff! — exclamou, feliz.
— Hem?
— Só um ditado. Quer dizer “Vamos dar no pé”.
Felizes porque eram amigos de novo, entraram selva adentro. Cruzar a estrada foi fácil. Agora que haviam passado a área patrulhada pelo guarda errante, seguiram uma trilha curta e logo estavam a uns 400 metros da cerca. O Rei ia na frente, calmo e confiante. Somente as nuvens de vaga-lumes e mosquitos tornavam desagradável a caminhada.
— Jesus. Mas os insetos estão uma coisa!
— É. Por minha vontade, fritava-os todos — sussurrou Peter Marlowe.
Foi então que viram a baioneta apontando para eles, e pararam de chofre.
O japonês estava sentado, encostado a uma árvore, de olhos fixos neles, um sorriso assustador distendendo as suas feições, e com o fuzil apoiado nos joelhos.
Os pensamentos deles foram idênticos: Santo Cristo! Utram Road! Estou morto. Matar!
O Rei foi o primeiro a reagir. Saltou sobre o guarda e arrancou-lhe o fuzil com baioneta, rolando para longe dele, depois pôs-se de pé, erguendo alto o cano do fuzil para enfiá-lo na cara do homem. Peter Marlowe já mergulhava para agarrar o guarda pela garganta. Um sexto sentido alertou-o, e suas mãos em forma de garra desviaram-se da garganta, e ele foi de encontro à árvore.
— Afaste-se dele! — Peter Marlowe se pôs de pé, agarrou o Rei e arrastou-o de lá.
O guarda não se mexera. Exibia no rosto o mesmo sorriso malévolo, de olhos arregalados.
— Mas que diabo! — exclamou o Rei, ofegante, em pânico, com o fuzil ainda erguido sobre a cabeça.
— Saia daí! Depressa, pelo amor de Deus! — Peter Marlowe arrancou o fuzil das mãos do Rei, e jogou-o ao lado do japonês morto. Foi então que o Rei viu a cobra no colo do homem.
— Meu Deus — falou o americano com voz rouca, acercando-se para olhar mais de perto. Peter Marlowe agarrou-o, desesperadamente.
— Saia daí! Fuja, pelo amor de Deus!
Desatou a correr, para longe das árvores, metendo-se pela vegetação rasteira, atabalhoadamente. O Rei corria atrás dele, e só pararam quando chegaram à clareira.
— Ficou maluco? — O Rei fez uma careta, com o peito doendo. — Era só uma bosta de uma cobra!
— Era uma cobra-voadora — explicou Peter Marlowe, com a respiração dificultosa. — Vivem nas árvores. Morte instantânea, meu velho. Elas sobem nas árvores, depois achatam os corpos e descem em espiral para o chão, caindo sobre as vítimas. Havia uma no colo e outra debaixo dele. Era certo haver mais delas, porque estão sempre em ninhadas.
— Santo Deus!
— Na verdade, meu velho, devemos estar agradecidos àquelas nojentas — falou Peter Marlowe, tentando acalmar a respiração. — Aquele amarelo ainda estava quente. Não estava morto há mais de dois minutos. Ele nos teria pegado, se não fosse pelas cobras. E devemos agradecer a Deus por nossa discussão. Foi ela que deu tempo para as cobras agirem. Jamais estaremos tão perto do desastre! Da morte! Jamais!
— Nunca mais quero ver um japonês dos infernos com uma baioneta dos infernos apontando para mim no meio da noite outra vez. Vamos. É melhor sairmos daqui.
Quando chegaram perto da cerca, acomodaram-se para esperar. Ainda não podiam dar sua corrida para a cerca. Gente demais por lá. Sempre havia gente andando a esmo, zumbis andando pelo campo, os insones e os quase adormecidos.
Era bom descansar, e ambos sentiam os joelhos trêmulos e estavam gratos por se acharem novamente vivos.
Puxa, mas que noite, pensou o Rei. Se não fosse pelo Pete, eu tinha ido para o beleléu. Ia botar o pé no colo do japonês enquanto arriava o fuzil na cara dele. Meu pé estava a 15 centímetros do colo. Cobras! Odeio cobras! Filhas da puta! E enquanto o Rei se acalmava, o apreço que sentia por Peter Marlowe aumentava.
— Essa foi a segunda vez que salvou meu pescoço — murmurou.
— Foi você que chegou no fuzil primeiro. Se o japonês não estivesse morto, você o teria matado. Eu fui lento.
— Ei, mas eu estava na frente. — O Rei se deteve, depois sorriu. — Ei, Peter, fazemos uma bela dupla. Com a sua pinta e a minha inteligência, até que nos saímos bem.
Peter Marlowe começou a rir. Tentou parar, e rolou pelo chão. O riso abafado e as lágrimas que escorriam por seu rosto contagiaram o Rei, que também se contorceu de rir. Finalmente, Peter Marlowe falou, com voz entre-cortada:
— Pelo amor de Deus, cale a boca.
— Foi você quem começou.
— Eu, não.
— Claro que foi, você disse, disse... — Mas o Rei não conseguia continuar. Enxugou as lágrimas. — Viu aquele japonês? O filho da puta estava sentado feito uma besta...
— Olhe!
O riso deles sumiu.
Do outro lado da cerca, Grey passeava pelo campo. Viram quando parou diante da choça americana. Viram-no esperar nas sombras, depois olhar para o outro lado da cerca, quase que diretamente para eles.
— Acha que ele sabe? — sussurrou Peter Marlowe.
— Não sei. Mas a gente não pode arriscar-se a entrar durante algum tempo, de jeito nenhum. Vamos esperar.
Esperaram. O céu começou a clarear. Grey permaneceu nas sombras, olhando para a choça americana, depois correndo os olhos pelo campo. O Rei sabia que, de onde se encontrava, Grey podia ver sua cama. Sabia que Grey podia ver que não se encontrava nela. Mas as cobertas estavam dobradas, e ele podia estar andando pelo campo, juntamente com os outros insones. Não havia lei que proibisse a gente de não ficar na cama. Mas ande logo, se mande daí, Grey, porra.
— Teremos que sair logo daqui — disse o Rei. — A luz está contra nós.
— Que tal em algum outro lugar?
— Ele consegue enxergar toda a cerca, até lá o canto.
— Acha que alguém abriu o bico?
— Pode ser. Quem sabe seria só uma coincidência. — O Rei mordeu o lábio, com raiva.
— Que tal a área das latrinas?
— Arriscado demais.
Esperaram. Depois, viram Grey olhar mais uma vez sobre a cerca, na direção deles, e em seguida se afastar. Ficaram olhando para ele até que dobrou o muro da cadeia.
— Pode ser golpe — disse o Rei. — Espere mais uns dois minutos.
Os segundos eram como horas, enquanto o céu clareava e as sombras começavam a se dissolver. Agora não havia ninguém perto da cerca, ninguém à vista.
— É agora ou nunca, vamos.
Correram para a cerca; em questão de segundos passavam por baixo dela e caiam na vala.
— Vá para a choça, Rajá. Eu espero.
— Certo.
Apesar do seu tamanho, o Rei se movia com leveza, e percorreu rapidamente a distância que o separava de sua choça. Peter Marlowe saiu da vala. Algo lhe disse para sentar na beirada, olhando sobre a cerca para fora do campo. E então, com o canto dos olhos, viu Grey dobrar a esquina e parar. Soube imediatamente que fora visto.
— Marlowe.
— Oh, alô, Grey. Também não está conseguindo dormir? — perguntou, espreguiçando-se.
— Há quanto tempo está aqui?
— Alguns minutos. Cansei de andar, então me sentei.
— Onde está o seu amigo?
— Quem?
— O americano — falou Grey, com escárnio.
— Não sei. Imagino que dormindo.
Grey olhou para o seu traje à moda chinesa. A túnica estava rasgada nos ombros, e molhada de suor. Havia lama e pedaços de folhas em sua barriga e joelhos. Uma risca de lama no rosto.
— Como ficou tão sujo? E por que está suando tanto? O que andou aprontando?
— Estou sujo porque... não há nenhum mal num pouco de sujeira honesta. Na verdade — disse Peter Marlowe, enquanto se levantava e passava a mão nos joelhos e nos fundilhos — não há nada como um pouco de sujeira para fazer um homem se sentir limpo quando toma banho. E estou suando porque você está suando. Sabe, os trópicos... o calor, e tudo o mais!
— O que tem no bolso?
— Só porque você é um boboca desconfiado isso não quer dizer que todo o mundo esteja carregando contrabando. Não há lei que proíba uma pessoa de andar pelo campo, se não puder dormir.
— É verdade — replicou Grey — mas há uma lei que proíbe andar do lado de fora do campo.
Peter Marlowe olhou para ele com ar de indiferença, sem se sentir nem um pouco indiferente, tentando perceber que diabo Grey queria dizer com aquilo. Será que sabia?
— Só mesmo um idiota tentaria uma coisa dessas.
— É verdade. — Grey olhou para ele longa e duramente. Depois, girou nos calcanhares e se afastou.
Peter Marlowe ficou olhando enquanto ele se afastava. A seguir, virou-se e caminhou na direção oposta, sem olhar para a choça americana. Naquele dia, Mac deveria sair do hospital. Peter Marlowe sorriu, pensando no presente de boas-vindas que esperava Mac.
Da segurança de sua cama, o Rei viu Peter Marlowe se afastar. A seguir, fitou Grey, o inimigo, ereto e malévolo à luz crescente do dia.
Magro feito um esqueleto, calça esfarrapada, toscos tamancos nativos, sem camisa, braçadeira, boina puída. Um raio de Sol brilhou sobre o emblema da Divisão Blindada na boina, transformando-o de nada em ouro derretido.
O quanto você sabe, Grey, seu filho da puta?, perguntou-se o Rei.