VIII

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Um labirinto de ruas estreitas, becos e lojas de todas as espécies assinalava o coração comercial da capital do Irã. O bazar revelou-se uma cidade dentro de uma cidade, as ruelas a abrirem-se por vezes em praças e pracetas, as pequenas lojas intercaladas por mesquitas, bancos, pensões e até um quartel de bombeiros. Um teto semitransparente cobria o emaranhado de artérias, lançando uma protetora sombra sobre o velho mercado. Uma densa corrente humana apinhava-se por aquela rede labiríntica, mas, apesar de se aglomerarem ali tantas pessoas, todas caminhando ao passo lento de

quem sabe que o dia é para ser fruído, uma frescura aprazível enchia os corredores, cada canto perfumado por um odor característico.

Numa ruela dominada por lojinhas de especiarias, onde os aromáticos produtos coloridos se encontravam expostos ao ar livre, Tomás pôs a mão no bolso e retirou o papel que escrevinhara com a indicação do nome que procurava.


"Salam", disse a um comerciante. "Zamyad Shirazi?"

"Shirazi?"

"Bale."

Uma algaraviada em parsi jorrou da boca do homem e o português procurou concentrar-se nos gestos da mão, que lhe indicavam para seguir em frente e, algures sobre o mar de cabeças lá ao fundo, virar à esquerda. Agradeceu as indicações e avançou pela rua das especiarias até apanhar a perpendicular à esquerda. Meteu pela rua dos cobres e voltou a pedir informações, tendo a sua rota sido corrigida.

Chegou por fim à rua dos tapetes. Quando voltou a perguntar por Zamyad Shirazi, um comerciante indicou-lhe, com profusos gestos e muito parsi, a loja que se encontrava dez metros à frente. Avançou uns passos e parou diante do seu destino.

Tal como as restantes lojas da rua, aquele estabelecimento tinha a porta coberta por tapetes persas e rolos de tapetes amontoados junto à entrada. Depois de se certificar de que ninguém por entre aquele aglomerado de gente o seguira, Tomás deu um passo em frente e penetrou na sombra.


O interior era escuro, iluminado por lâmpadas amareladas, e no ar flutuavam películas de pó e pairava um cheiro seco e penetrante, parecia naftalina. Sentiu uma comichão no nariz e espirrou ruidosamente. Os tapetes persas enchiam todo o espaço, incluindo as paredes e o tecto; via-se tapeçaria de diversas cores e de todos os géneros, incluindo os clássicos mian farsb, kellegi e kenareb, com os mais variados motivos, mas os dominantes revelavam-se os geométricos, os de arabescos e uns, mais trabalhados, mostrando cenas de jardins e arranjos de flores, sobretudo crisântemos, rosas e lótus.

"Khosh amadinl Kbosh amadin!", saudou um homem anafado, que se aproximava a passos largos e de braços abertos, um sorriso acolhedor aberto nos lábios. "Bem-vindo à minha humilde loja. Aceita um chay?"

"Não, obrigado."

"Oh, por favor! Temos um maravilhoso chay, vai ver."

"Agradeço-lhe, mas não quero. Almocei há pouco."

"Oh! Se acabou de almoçar, ainda melhor! Um chay é perfeito para a digestão.

Perfeito." Fez um gesto largo com os braços, abarcando toda a loja. "Enquanto o bebe, pode ir apreciando os meus magníficos tapetes." Assentou a mão gorda nos que 74


estavam mais próximos. "Ora veja, tenho aqui lindíssimos tapetes gul-i-bulbul, de Qom, com belos desenhos de pássaros e flores. Excelentes! Excelentes!" Apontou para a direita. "Tenho ali também sajadeh curdos, provenientes expressamente de Bijar para a minha loja. Um enorme exclusivo." Inclinou-se para o cliente, adotando o ar de quem guardava lá ao fundo da loja um valioso tesouro. "E se gosta do grande poema Sbahnamab, então vai ficar embasbacado com..."

"Zamyad Shirazi?", interrompeu Tomás. "O senhor é Zamyad Shirazi?"

O homem curvou-se numa leve vênia.

"Para o servir, excelência". Arregalou os olhos. "Se procura um tapete parsi, venha à loja do Shirazi!" Sorriu, muito satisfeito com a ingênua rima que inventara para promover a loja. "Em que o posso ajudar?"

Tomás observou-o com atenção, procurando avaliar o efeito das suas palavras no comerciante.

"É um prazer estar no Irã", disse.

O sorriso desfez-se e o homem fitou-o com algum alarme.

"Como?"

"É um prazer estar no Irã."

"O senhor vem fazer muitas compras?"

Tomás sorriu. Era a contra-senha.

"Chamo-me Tomás", apresentou-se, estendendo a mão. "Disseram-me para vir aqui."

De olhar aflito, Zamyad Shirazi cumprimentou-o apressadamente e foi espreitar à entrada, para se certificar de que não havia movimentos suspeitos na rua. Mais tranquilizado, fechou a porta da loja e, com gestos furtivos, fez sinal ao visitante para o seguir. Penetraram no estabelecimento escuro e foram desembocar num estreito armazém, atafulhado de tapetes. Subiram umas escadas em caracol e o comerciante mandou-o entrar numa pequena salinha.

"Espere aqui, por favor", disse-lhe.

Tomás acomodou-se num sofá e aguardou. Ouviu Shirazi afastar-se e, após um curto silêncio, apercebeu-se do som de um antiquado aparelho de telefone a ser discado. Escutou de imediato a voz distante do anfitrião a falar com alguém em parsi, respeitando pequenas pausas para ouvir o que lhe diziam do outro lado. A conversa durou apenas uns breves momentos. Depois de uma rápida troca de palavras, o comerciante desligou e Tomás apercebeu-se dos passos a aproximarem-se, até que viu o rosto bolachudo de Shirazi a espreitar pela porta da salinha.

"Já aí vêm", disse o comerciante.

O homem gordo afastou-se, voltando pelo mesmo caminho por onde ambos vieram. Tomás manteve-se sentado no sofá, de perna cruzada, à espera de novidades.


O iraniano parecia um lutador de boxe. Era um indivíduo alto, corpulento, de grandes arcadas supraciliares e bigode preto farfalhudo, abundantes pêlos negros a emergirem-lhe do colarinho desapertado e das orelhas pequenas. Entrou na salinha a destilar energia, todo ele despachado, com ar de quem não tinha tempo a perder.

"Professor Noronha?", perguntou, estendendo o braço peludo e musculado.

"Sim, sou eu."

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Apertaram as mãos.

"Muito prazer. O meu nome é Golbahar Bagheri. Sou o seu contacto aqui em Teerã."

"Como está?"

"Certificou-se de que não foi seguido?"

"Sim, julgo ter despistado o meu guia ainda fora do bazar."

"Excelente, excelente", disse o homenzarrão, esfregando as mãos. "Langley pediu-me para lhes enviar um relatório ainda hoje. Quais são as novidades? Viu o documento?"

"Sim, vi. Foi esta manhã."

"É genuíno?"

Tomás encolheu os ombros.

"Isso não sei. A verdade é que tinha um ar envelhecido, as páginas já se apresentavam amareladas e encontrava-se dactilografado na capa e manuscrito no resto. Um rabisco na primeira página parecia ser a assinatura de Einstein.

Presumivelmente, todas as linhas do documento foram igualmente escritas pela mão dele, com excepção de uma mensagem cifrada no fim. Os iranianos acham que esta mensagem cifrada foi redigida pelo punho do professor Siza."

Bagheri sacou um bloco de notas do bolso e pôs-se a escrevinhar com frenesim.

"Tudo manuscrito, uh?"

"Sim. Com exceção da primeira página, claro."

"Hmm-hmm..." Gatafunhou mais um pouco no bloco. "Tinha a assinatura de Einstein?"

"Assim parecia. E os iranianos disseram ter confirmado isso com testes de caligrafia."

"Eles revelaram onde esteve guardado o manuscrito todo este tempo?"

"Não."

Mais notas.

"E o conteúdo?"

"Quase tudo em alemão. Na primeira página vem o título, Die Gottesformel, depois um poema, cuja origem e sentido os iranianos não conseguiram determinar, e, por baixo, o que parece ser a assinatura de Einstein."

Ainda mais notas.

"Hmm-hmm", voltou Bagheri a murmurar enquanto escrevinhava, a língua rosada espreitando pelos lábios. "E o resto?"

"O resto eram vinte e tal páginas redigidas em alemão a tinta permanente negra.

Tinha um texto corrido e muitas equações estranhas, daquelas que se vêem numa aula de matemática na universidade, sabe?"

"O que dizia o texto?"

"Não sei. Embora eu perceba os rudimentos de alemão, os meus conhecimentos não me permitem entender o que se encontrava ali escrito. Além disso, aquilo está redigido à mão, é de difícil leitura. Por outro lado, a verdade é que eles não me 76


deixaram lê-lo, nem sequer aceitaram dizer qual o tema do manuscrito. Alegaram segurança nacional."

Bagheri parou de garatujar e fitou-o por momentos.

"Segurança nacional, uh?"

"Sim, foi o que eles disseram."

O iraniano voltou a escrevinhar no bloco de notas, sempre frenético.

"Não deu para perceber quaisquer pormenores do tipo de engenho nuclear descrito?"

"Não."

"Nem se envolvia urânio ou plutônio?”

"Nem isso."

"Quando voltar lá, pode ao menos verificar essa informação?"

"Ouça, eles não me vão deixar ver novamente o manuscrito. Mostraram-me apenas uma vez para eu ter uma idéia geral do que se tratava, mas disseram-me que, por motivos de segurança nacional, já não o poderei consultar de novo."

Bagheri voltou a imobilizar-se para mirar o seu interlocutor.

"Nem mais uma vez?"

"Nem mais uma única vez."

"Então como é que eles querem que você faça o seu trabalho?"

"Copiaram-me a parte cifrada para um papel. Terei de trabalhar a partir daí."

"Copiaram-lhe a parte cifrada, é?"

"Sim. É um trecho manuscrito na última página. E tenho também o poema da primeira. Quer ver?"

"Sim, sim. Mostre lá."

Tomás tirou do bolso uma folha dobrada em quatro. Abriu-a e revelou as linhas que Jalili copiara a caneta preta a partir do original de Einstein.


"Está aqui."


Terra if fin

De terrors tight

Sabbath fore

Christ nite


See sign

!ya ovqo


"O que é isto?"

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"O poema é a primeira parte, a mensagem cifrada é a segunda."

O iraniano pegou na folha e copiou o texto para o bloco de notas.

"Mais nada?"

"Mais nada."

"E o professor Siza? Falaram nele?"

"Nada. Apenas deram a entender que ele não estava acessível."

"O que quer isso dizer?"

"Não faço idéia. Eles mostraram-se muito desconfortáveis nessa parte e recusaram-se a elaborar.

Quer que lhes pergunte novamente?"

Bagheri abanou a cabeça enquanto escrevia.

"Não, é melhor não. Isso iria levantar suspeitas desnecessárias. Se eles não querem falar do assunto, não vão falar, não é?"

"Também acho."

O enorme iraniano terminou os seus apontamentos, guardou o bloco e cravou os olhos no visitante.

"Bem, eu agora vou transmitir tudo isto a Langley." Consultou o relógio. "A esta hora é madrugada lá. Eles só vão ver o relatório de manhã, noite nossa, e ainda vão ter de o analisar. Presumo que só pelo final da nossa manhã eu terei uma resposta com instruções." Suspirou. "Vamos fazer assim. Amanhã, pelas três da tarde, dirija-se ao bell boy do hotel e diga-lhe que está à espera do táxi do Babak. Entendeu? O táxi do Babak."

Foi a vez de Tomás anotar.

"Babak, é? Às três da tarde?"

"Sim." Ergueu-se, dando a reunião por concluída. "E tenha cuidado."

"Com quê?"

"Com a polícia secreta. Se for apanhado, está tramado."

Tomás fez um sorriso amarelo.

"É, posso ficar muito tempo a ver o sol aos quadradinhos."

Bagheri soltou uma gargalhada.

"Qual sol aos quadradinhos?" Abanou a cabeça. "Se o apanharem, vão torturá-lo até confessar tudo, o que pensa você? Vai cantar que nem um canário! E sabe o que lhe acontecerá depois disso, não sabe?"

"Não."

O iraniano da CIA colou o indicador à testa.

"Bang! Levará um tiro na cabeça."


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