XXIX

Uma chuva fina e pertinaz cobria Lhasa, lançando uma neblina pardacenta sobre a capital tibetana, quando Tomás Noronha iniciou a lenta ascensão ao promontório que se erguia acima do casario raso. Caminhando com concentrado vagar, sempre a controlar o ritmo da respiração e das batidas cardíacas, escalou os degraus em Z até atingir o nível dos telhados do Shöl. Parou então, ergueu a cabeça e contemplou o magnífico palácio que o aguardava.

O Potala repousava majestosamente sobre a pedra escarpada, a longa fachada branca a abraçar a rocha escura, o centro avermelhado erguendo-se como a torre de um castelo, as ranhuras das janelas espreitando a cidade que despertava no sopé.

Todo o palácio parecia um grandioso farol, uma imensa fortaleza alteada sobre Lhasa, vigilante e protectora, erguendo-se com silenciosa imponência por entre as brumas para guiar o espírito do Tibete. Bandeiras coloridas de orações flutuavam ao vento, o pano batendo com força. Ofegante, o coração saltitando de cansaço e excitação, inclinou-se sobre o muro e admirou a cidade que se espraiava pelo planalto, encaixada por entre as montanhas, como se cada casa fosse um súbdito prostrado diante da divindade que o observava do Potala.

Puro.

Tudo dali parecia sereno, transparente, elevado. Puro. Nunca como naquele lugar experimentou a sensação de se encontrar algures entre o céu e a terra, flutuando sobre a neblina com o espírito livre, emergindo da massa dos homens para tocar Deus, 213


sentindo a eternidade comprimida num segundo, o efémero estendendo-se pelo infinito, o princípio do Ômega e o fim do Alfa, a luz e as trevas, o universo num sopro, a impressão de que a vida tem um sentido místico, de que há um mistério que se esconde para lá do que é visível, um enigma gravado em letra antiga num código hermético, um velho som que se pressente mas não se escuta.

O segredo do mundo.

Mas um vento gelado, que soprava forte e agreste nas alturas, logo arrefeceu a chama do arcano que lhe ardia no peito e obrigou-o a apressar o passo na direcção das entranhas escurecidas do palácio adormecido. Atingiu o Deyang Shar, o grande pátio externo do Potala, e escalou a escadaria até entrar no Palácio Branco, a antiga zona residencial do Dalai-Lama. Mergulhou no calor dos andares superiores e sentiu uma aura de mistério encher aquele lugar.

Os compartimentos sombrios, iluminados por frágeis lâmpadas penduradas no teto ou pelas cortinas amareladas que tapavam as janelas, pareciam ocultar um tesouro perdido, de que uma ínfima parte se vislumbrava por entre os cânticos que ecoavam pelos corredores; eram os monges que recitavam os textos sagrados. Apenas o som de sinos a badalarem à distância quebrou o murmúrio ondulado da suave declamação dos mantras, o ooooooom primordial a reverberar pelo palácio como um rumorejo dos deuses. O ar apresentava-se impregnado com o odor forte a manteiga de iaque, o desagradável aroma rançoso misturado com o delicioso cheiro a incenso. Lá fora, o sopro do vento deve ter aberto uma nesga no manto de nuvens que toldava o céu, porque raios quentes de sol brotaram nesse instante por entre os reposteiros fulvos e invadiram o interior do palácio, projectando bizarros focos de luz nos cantos ensombrados, o fio violáceo e branco do fumo do incenso erguendo-se como espíritos fugidios que se esfumavam no ar.

Um monge jovem, calvo e coberto por um manto rubro, apareceu no corredor e logo Tomás o interpelou.


"Tashi deleh", cumprimentou o estrangeiro.

"Tashi deleb", respondeu o monge, fazendo uma vénia curta.

Tomás esboçou uma expressão interrogativa.

"Arya Lokeshvara?"

O tibetano fez sinal para Tomás o seguir. Subiram ao Palácio Vermelho e calcorrearam os corredores pintados de laranja; entraram nas arcadas superiores, sustentadas por pilares cobertos por panos vermelhos e protegidas por uma varanda que dava para os telhados dourados. Após contornar duas esquinas, o monge apontou para uma pequena capela escondida num canto do palácio, as escadarias da entrada iluminadas por uma surpreendente nesga de sol que se abria no teto.

"Kale shu", despediu-se o jovem monge, antes de desaparecer.

A pequena capela Arya Lokeshvara, embora apertada, era alta e apresentava-se cheia de estátuas. Uma neblina de incenso enchia o ar à luz amarelada das velas de manteiga de iaque e apenas um monge se encontrava lá dentro, sentado em meditação, o corpo voltado para as estátuas contidas numa vitrina, diante das íngremes escadinhas de entrada. Tomás olhou em redor, para as arcadas, e procurou sinais de alguém à sua espera, teve mesmo a esperança de ser interpelado por uma pessoa escondida na sombra e que se identificasse como sendo Tenzing Thubten. Mas ninguém apareceu. Permaneceu ali longos minutos, parado, mirando a luz 214


tremelicante das velas, sentindo o cheiro de manteiga e incenso, ouvindo os mantras recitados por vozes longínquas.

Ao fim de vinte minutos começou a sentir-se inquieto, a mente assaltada por angustiadas dúvidas. Teriam os monges considerado suspeito o seu inquérito? Será que tinha sido tão desastrado que afugentara a caça? O que faria se todas as portas se lhe fechassem? Como poderia retomar a investigação?

"Kbyerang kusu depo yinpe?"

Tomás estremeceu e olhou na direção de onde tinha vindo a voz. Era o monge que se encontrava sentado dentro da capela, as costas voltadas para si.

"Perdão?"

"Perguntei-lhe se o seu corpo se encontra bem. É a nossa maneira de cumprimentar um amigo."

Tomás subiu hesitantemente as escadinhas, entrou na capela, contornou o tibetano e reconheceu o monge com quem falara na véspera no templo de Jokhang.

"Jinpa Khadroma?"

O monge gordo virou o rosto, mirou-o e sorriu com bonomia, parecia um Buda vivo.

"Surpreendido por me ver?"

"Bem... enfim... não...", titubeou Tomás. "Quer dizer, sim. Não deveria ser Tenzing Thubten a estar aqui?"

Jinpa abanou a cabeça.

"O Tenzing não pode vir ter consigo. Estivemos a verificar as suas credenciais, no entanto, e parece-nos que não há problemas em possibilitar um encontro. Mas terá de ser você a ir ter com ele."

"Tudo bem", assentiu o historiador. "Diga-me onde."

O monge voltou a cabeça para a frente, fechou os olhos e respirou fundo.

"O senhor é um homem religioso, professor Noronha?"

Tomás observou-o, um pouco frustrado por Jinpa não lhe dizer imediatamente onde poderia encontrar o homem que procurava. Mas tinha consciência de que os ritmos eram aqui diferentes e deixou-se guiar pela pergunta do monge.

"Nem por isso."

"Não acredita na existência de algo que nos transcende?"

"Bem... talvez, não sei. Digamos que estou à procura."

"O que procura?"

"A verdade, suponho eu."

"Julguei que procurava Tenzing."

Tomás riu-se.

"Também", disse. "Talvez ele saiba a verdade."

Jinpa voltou a respirar fundo.


215


"Esta capela é a mais sagrada das capelas do Potala. Remonta a um palácio que aqui foi construído no século VII, sobre o qual o Potala foi erguido." Pausa. "O senhor não sente aqui a presença de Dbarmakaya?”

"Quem?"

Com os olhos fechados e a pose estática, o monge parecia mergulhado em meditação.

"O que sabe o senhor sobre o budismo?"

"Nada."

Fez-se mais um silêncio, apenas quebrado pelos cânticos longínquos das recitações dos textos sagrados.

"Há mais de dois mil e quinhentos anos nasceu no Nepal um homem chamado Siddharta Gautama, um príncipe pertencente a uma casta nobre e que vivia num palácio. Ao constatar, porém, que para lá do palácio a vida era feita de sofrimento, Siddharta abandonou tudo e foi para a Índia viver numa floresta como um asceta, dilacerado por uma pergunta: para quê viver quando tudo é dor? Durante sete anos deambulou pela floresta em busca da resposta a essa pergunta. Cinco ascetas convenceram-no a jejuar, por acreditarem que a renúncia às necessidades do corpo criaria a energia espiritual que os conduziria à iluminação.

Siddharta jejuou tanto que ficou esquelético e o umbigo tocou-lhe na coluna vertebral.

No final, constatou que o esforço de nada servira e concluiu que o corpo necessita de energia para alimentar a mente na sua busca. Decidiu, por isso, abandonar os caminhos extremos. Para ele, o verdadeiro caminho não era o da luxúria dos palácios nem o da mortificação dos ascetas, onde se encontram os dois extremos. Escolheu antes o caminho do meio, o do equilíbrio. Um dia, após banhar-se no rio e comer um arroz-doce, sentou-se em meditação debaixo de uma figueira, uma Árvore da Iluminação a que chamamos Bodhi, e jurou que não sairia dali enquanto não atingisse a iluminação. Após quarenta e nove dias de meditação, chegou a noite em que alcançou finalmente a clarificação

final de todas as suas dúvidas. Ele despertou por completo. Siddharta tornou-se Buda, o Iluminado."

"Mas ele despertou de quê?"

"Despertou do sonho da vida." Jinpa abriu os olhos, como se também ele tivesse acordado. "Enfim iluminado, o Buda expressou o caminho para o despertar através das Quatro Nobres Verdades. A Primeira é a constatação de que a condição humana é sofrimento. Esse sofrimento

emerge da Segunda Nobre Verdade, que é a nossa dificuldade em encarar um fato básico da vida, o de que tudo é transitório. Todas as coisas nascem e morrem, disse o Buda. Nós sofremos porque nos agarramos ao sonho da vida, às ilusões dos sentidos, à fantasia de que é possível manter tudo como está, e não aceitamos que o mundo é um rio que passa. É esse o nosso karma. Vivemos na convicção de que somos seres individuais, quando na verdade fazemos parte de um todo indivisível."

"E é possível romper essa... uh... ilusão?"

"Sim. A Terceira Nobre Verdade estabelece justamente que é possível quebrar o ciclo do sofrimento, é possível libertarmo-nos do karma e atingir um estado de total libertação, de iluminação, de despertar. O nirvana. É aqui que a ilusão da individualidade se desfaz e nasce a constatação de que tudo é uno e que nós fazemos parte do uno." Suspirou. "A Quarta Nobre Verdade é o óctuplo caminho sagrado 216


destinado à supressão da dor, à fusão com o uno e à elevação ao nirvana. É o caminho para nos tornarmos Buda."

"E qual é esse caminho?", quis saber Tomás.

Jinpa voltou a fechar os olhos, como se regressasse à meditação.

"É o caminho de Shigatse", limitou-se a dizer.

"Como?"

"É o caminho de Shigatse."

"Shigatse?"

"Em Shigatse existe um pequeno hotel. Dirija-se a ele e diga que deseja que o bodbisattva Tenzing Thubten lhe mostre o caminho."

Tomás ficou um instante paralisado, atordoado com a forma súbita e inesperada como o monge mudara o rumo da conversa e regressara ao ponto inicial. Logo reagiu, porém; tirou o bloco de notas e rabiscou as instruções.

"Que Tenzing... me mostre... o caminho", soletrou enquanto escrevinhava com a língua presa no canto da boca.

"Não escreva." Jinpa tocou com o dedo na cabeça. "Memorize."

O visitante mostrou-se de novo momentaneamente desconcertado com a ordem, mas, obediente, acabou por arrancar a folha do bloco, amarrotá-la e atirá-la para um cesto.

"Hmm...", murmurou, esforçando-se por decorar os pormenores. "Shigatse, é?"

"Sim."

"E o que faço lá?"

"Vá para o hotel."

"Qual hotel?"

"O Gang Gyal Utsi."

"Como? Gang quê?"

"Gang Gyal Utsi. Mas os ocidentais dão-lhe outro nome."

"Outro nome?"

"Hotel Orchard."


Desceu infindáveis degraus inclinados a pique, por longas escadarias mal iluminadas rasgadas no edifício como poços sombrios, passou pelo grande salão onde se encontrava o trono do sexto Dalai-Lama e, ignorando as estátuas e as capelas que ornavam o local, abandonou apressadamente o Potala.

Tomás era um homem com uma missão. Trazia memorizado o ponto de encontro para a conversa com o tibetano que, acreditava, o poderia elucidar sobre os mistérios em torno do desaparecimento do professor Siza e do segredo que envolvia o velho manuscrito de Einstein. Sentia-se à beira de deslindar o enigma e mal conseguia reprimir a excitação que lhe fervia no corpo e lhe revigorava a alma. Desceu com imprudente pressa por um trilho de terra até à Bei Jin Guilan, a cabeça inclinada para a frente, os olhos fixos no chão, a mente a vaguear pelas perspectivas que se lhe abriam, completamente alheio ao mundo a pulsar em redor de si.


217


Não se apercebeu, por isso, de uma carrinha negra que parou ao lado do passeio, nem viu os dois homens saltarem do interior e dirigirem-se a si com furtiva intenção.

Um movimento brusco trouxe-o de volta à realidade.

"Mas o que..."

Alguém lhe torceu brutalmente o braço, forçando-o a dobrar o corpo e a soltar um urro de dor.

"Entre aqui", ordenou uma voz desconhecida num inglês com forte sotaque estranho.

Atarantado, sem perceber o que se passava, quase como se vivesse um sonho irreal, viu a porta da carrinha abrir-se e sentiu-se voar para o seu interior.

"Larguem-me! O que é isto? Larguem-me!"

Recebeu uma pancada na nuca e viu tudo escuro. A imagem seguinte que registou foi a do seu nariz comprimir-se contra o banco traseiro da viatura, os solavancos e o som do motor em aceleração a indicarem-lhe que se encontrava na carrinha e que era levado por desconhecidos.

"Então?", perguntou uma voz. "Está calmo?"


Deitado de barriga para baixo no banco, os braços algemados atrás das costas, Tomás voltou a cabeça e viu um homem de bigode preto a sorrir-lhe ao lado. Tinha ar de ser proveniente do Médio Oriente, a tez levemente morena.

"O que é isto? Para onde me levam?"

O homem manteve o sorriso.

"Calma. Já vai descobrir."

"Quem é você?"

O desconhecido inclinou-se para Tomás.

"Não se lembra de mim?"

O historiador tentou destrinçar traços familiares naquele rosto, mas nada registou.

"Não."


O homem soltou uma gargalhada.

"É natural", exclamou. "Quando falamos, você tinha os olhos vendados. Mas não reconhece a minha voz?"

Tomás arregalou os olhos. Não havia dúvida, concluiu agora, horrorizado. Aquele desconhecido era um iraniano. E dos menos simpáticos.

"Não."

"O meu nome é Salman Kazemi e sou coronel do VEVAK, o Ministério das Informações e Segurança da República Islâmica do Irão", apresentou-se. "Se bem se recorda, tivemos uma vez uma conversa bem animada na cadeia de Evin. Lembra-se?"

Tomás lembrava-se. Era o interrogador da polícia secreta, aquele que o esbofeteara e que lhe apagara um cigarro no pescoço.

"O que está você aqui a fazer?"

218


"Vim à sua procura."

"Mas o que me quer você?"

Kazemi abriu as mãos grossas.

"O mesmo de sempre."

"O quê? Não me diga que está aqui porque ainda quer saber o que fazia eu no Ministério da Ciência à noite?"

O coronel soltou uma gargalhada.

"Isso já nós percebemos há muito tempo, caro professor. Você pensa que somos parvos ou

quê?"

"Então o que quer saber?"

"O mesmo de sempre, já lhe disse."

"O quê?"

"Queremos saber o segredo do manuscrito de Einstein."

Vencendo o medo, Tomás conseguiu esboçar um esgar de desprezo.

"Você não tem capacidade intelectual para perceber esse segredo. O que aquele documento revela está para além da sua compreensão."

Kazemi sorriu de novo.

"Talvez você tenha razão", admitiu. "Mas existe entre nós quem esteja habilitado a perceber tudo."

"Entre vocês? Duvido."

Tomás viu o coronel fazer um sinal para a frente e, pela primeira vez, percebeu que, para além do condutor, havia uma outra pessoa sentada no banco dianteiro.

Focou a atenção nessa pessoa e reconheceu, surpreendido, os cabelos negros, as linhas delicadas no rosto, os lábios sensuais, os olhos melados que o fitavam com uma indisfarçável e irreprimível ponta de tristeza.

"Ariana."


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