XXXVIII

O aroma quente e perfumado invadiu a entrada da biblioteca logo que Luís Rocha apareceu com a bandeja. Chamou Tomás para o cubículo escondido à esquerda, logo depois da entrada, e convergiu apressadamente para o apertado compartimento com ar de quem estava a fazer uma tropelia. Pousou a bandeja numa mesinha e, logo que o visitante se acomodou naquele espaço estreito, pegou numa chávena fumegante, o vapor a emergir do líquido cremoso e encorpado, refletindo uma cor de noz levemente avermelhada, e sorriu.

"Sai um expresso", disse, estendendo a chávena a Tomás. "Quer açúcar?"

"Sim."

Tomás pegou num saquinho e despejou-o na chávena quente, mexendo o café logo a seguir.

"Se o director da biblioteca nos vê, mata-nos", comentou o físico com um riso baixo, depois de espreitar lá para fora para se assegurar de que não tinham sido vistos.

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Tomás analisou o cubículo desarrumado onde se haviam escondido.

"É por isso que viemos para aqui, é?"

"Sim", confirmou o anfitrião, o ar conspirativo. "Neste cantinho estamos mais à vontade."

"Não era melhor irmos para uma esplanada lá fora?"

"Não, aqui escondidos estamos bem. Ninguém nos vai encontrar." Inalou o aroma que se desprendia com o vapor. "Sabe, a verdade é que não consigo passar sem um café nestas ocasiões. Não há nada melhor do que um expressozinho antes de uma conversa complexa. Ajuda-me a concentrar nas ideias."

"A nossa conversa vai ser complexa?"

"Entender o que tenho para dizer não será complexo", disse Luís. "O que é complexo é fazer com que tudo isto não pareça complexo, percebe?" Piscou o olho.

"Isso é que é complexo!"

"A simplicidade é complexa."

"Mais do que as pessoas imaginam. Passei toda a investigação a engolir expressos, o que julga você? Era eu com os expressos e o professor Siza com um café frio que aprendeu a fazer em Itália, uma coisa gelada com natas batidas à superfície.

Chamava-lhe granita di caffé."

"Isso é um café frappé, não é?"

"Sim, ele tinha a mania de beber aquela porcaria." Estremeceu. "No Inverno esse café frio fazia-me cá uma confusão... mas, enfim, gostos não se discutem, não é verdade?"

"É evidente."

Beberam um trago do expresso. Tinha um sabor forte, muito característico, com o líquido cremoso a deixar um agradável travo prolongado na boca.

Luís Rocha pousou a sua chávena na bandeja e concentrou-se no que tinha para dizer.

"Bem, vamos a isto", exclamou, preparando-se para começar. "Já percebi que o amigo tibetano do professor Siza lhe explicou o que se passou em Princeton em 1951, não é?"

"Sim, ele contou-me tudo."

"Portanto, você já sabe a história do primeiro-ministro de Israel, o desafio que ele fez a Einstein, a elaboração d'A Fórmula de Deus e o requisito de se arranjar uma segunda via científica antes de se tornar público o manuscrito. Nada disto é novidade para si, pois não?"

"Não. Tudo isso já eu sei."

"Muito bem", suspirou. "O que se passou foi que o professor Siza levou muito a peito o projeto de Einstein e resolveu dedicar a sua vida a tentar resolver esse mistério. Seria possível arranjar uma segunda via que provasse cientificamente a existência de Deus? Era esse, sem tirar nem pôr, o desafio que tinha diante de si."


"E como é que ele o enfrentou?"

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"Bem, a primeira coisa que teve de fazer foi definir o objeto de estudo. O que é Deus? Quando falamos de Deus, estamos a falar exatamente do quê? Do Deus descrito pela Bíblia?"

"Suponho que sim..."

"Mas o Deus descrito pela Bíblia, como lhe expliquei há duas semanas, é absurdo." Ergueu-se e saiu do cubículo. Dirigiu-se a uma prateleira ali perto, pegou num enorme volume soberbamente encadernado e voltou ao esconderijo, sentando-se com a obra aberta no regaço. "Ora deixe cá ver", disse, folheando as páginas iniciais até localizar o trecho que procurava. "Aqui está. Logo no início do Antigo Testamento está escrito que Deus quis dar ao homem uma auxiliar e, então, fez o seguinte: «após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse.» Depois a Bíblia acrescenta: «contudo, não encontrou para ele uma auxiliar adequada. Então, o Senhor Deus adormeceu profundamente o homem e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma das suas costelas, cujo lugar preencheu de carne. Da costela que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher»." Ergueu a cabeça. "Não vê nada de estranho neste relato?"

Tomás encolheu os ombros.

"Quer dizer... uh... é um relato bíblico, não é?"

"Mas não é Deus que é suposto ser onisciente? Não saberia Ele de antemão que nenhum dos animais dava uma auxiliar adequada? Por que razão esteve Deus à espera de ver que nome dava o homem aos animais? Sendo omnisciente, não conseguiria Ele saber isso previamente?" Folheou mais umas páginas. "E agora repare aqui no que aconteceu quando Deus decidiu provocar o dilúvio:

«O Senhor arrependeu-Se de ter criado o homem sobre a terra»." Voltou a fixar Tomás nos olhos. "O Senhor arrependeu-se? Mais uma vez, não era Ele omnisciente?

Não podia Ele ter visto antecipadamente que o homem se iria corromper? Sendo perfeito e todo-poderoso, não faria sentido que Deus tudo previsse em tempo útil? Que história é esta de Deus estar a emendar os Seus erros? Mas afinal Deus comete erros, é?"

"Pois..."

"Isto para não falar, claro, no velho paradoxo de Deus ser onipotente e bom, mas deixar que o mal grasse por toda a parte. Então se Ele é bom e tem poder de impor o bem, por que razão deixa que o mal exista? Se Ele é perfeito, por que razão fez o homem tão imperfeito?" Fechou o volume e pousou-o no chão. "Tudo isto deixou Einstein convencido de que Deus, a existir, não é o Deus da Bíblia. É uma entidade onisciente e inteligente, a força por detrás do universo, o grande arquiteto de tudo, mas não a figura antropomórfica, paternal e moral da Bíblia. Essa convicção de Einstein foi assimilada pelo professor Siza."

"Portanto, isso quer dizer que o professor não foi à procura do Deus da Bíblia..."

"Não, não foi. Aliás, ele sempre achou que o grande fracasso dos teólogos em demonstrar cientificamente a existência de Deus se deve à sua obsessão em exigir que essa demonstração envolva o Deus da Bíblia. Ora, o Deus da Bíblia contém demasiadas incoerências, não é crível que Ele exista. Deus não é uma figura protectora que passa a vida preocupado com o que os homens fazem. Esse Deus é uma criação humana, um conceito que inventamos para nos sentirmos mais seguros, mais protegidos, mais confortados. Diga lá se não é agradável ter um pai sempre a tutelar-nos?"

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"Mas... e a prova da criação do universo em seis dias, feita no manuscrito de Einstein? Não acha que isso confirma a Bíblia?"

"Esse é um elemento muito importante", reconheceu Luís Rocha. "Como lhe disse, Einstein estava convencido de que o Deus da Bíblia não existia. Mas o que se passou foi que, ao mesmo tempo, concluiu que havia verdades profundas misteriosamente escondidas no Antigo Testamento."

"Qual é a explicação para esse fato?"


"Não há explicação. A realidade é que, por algum motivo desconhecido, os textos antigos encerram segredos ocultos. Por exemplo, descobriu-se agora existir uma estranha correlação entre verdades cabalísticas, relacionadas com a interpretação do Antigo Testamento, e as mais avançadas teorias da física."

"Como assim?"

"Olhe, uma das mais promissoras candidatas à Teoria de Tudo é a Teoria das Cordas. É um pouco complicado explicá-la, mas as suas equações prevêem que a matéria básica é formada por cordas que vibram, existentes num espaço de vinte e seis dimensões para as micropartículas de energia, designadas bosões, e dez dimensões para as outras micropartículas, os fermiões. Tal como a força forte e a força fraca permaneceram circunscritas ao microcosmos depois do Big Bang, os físicos acreditam que vinte e duas dimensões permaneceram igualmente circunscritas ao microcosmos após a criação do universo. Por algum motivo, apenas a gravidade e a força eletromagnética estenderam uma influência visível ao macrocosmos e o mesmo aconteceu com apenas quatro dimensões espaço-temporais. É por isso que nos parece que o universo tem três dimensões espaciais e uma temporal. São essas que afectam o nosso mundo visível, mas há vinte e duas outras que permanecem invisíveis no microcosmos,

capazes

apenas

de

influenciarem

o

comportamento

das

micropartículas."

"Isso é possível?"

"A matemática indica que sim", assentiu o físico. "Mas, agora, diga-me. Você está familiarizado com a Cabala?"

"Sim, claro. Sou historiador, especialista em línguas antigas e criptanalista. Logo, tenho obrigação de conhecer a Cabala, não é? Além do mais, andei nos últimos anos a aprender hebraico e aramaico, de modo que este é um terreno em que me sinto à vontade."

"Ainda bem, porque assim poderá entender melhor a relação entre uma das mais avançadas teorias da física, a Teoria das Cordas, e a Cabala."

Tomás fez um ar intrigado.

"A relação entre a física e a Cabala? Está a falar de quê?"

O físico sorriu.

"Professor, suponho que saiba o que é a Arvore da Vida..."

"Com certeza", devolveu o historiador. "A Árvore da Vida é a estrutura cabalística que explica o ato de nascimento do universo, a unidade elementar da Criação, a menor partícula indivisível contendo os elementos do todo. É constituída por dez sephirot, ou seja, dez emanações manifestadas por Deus na Criação. Cada um dos dez sephirot corresponde a um atributo divino."

"Repita lá, quantos sephirot tem a Árvore da Vida?"

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"Dez."

"Muito bem", exclamou, satisfeito. "Presumo que saiba também o que é a guematria."

"Claro", disse Tomás, sempre muito confiante nesta área. "É uma técnica cabalística que obtém o valor numérico das palavras da Bíblia através da correspondência entre as letras do alfabeto hebraico e os algarismos. Dizem os cabalistas que Deus criou o universo com números e palavras e que cada número e cada palavra contém um mistério e uma revelação. Por exemplo, a primeira palavra do Antigo Testamento é bereshith, que significa no princípio. Ora, se dividirmos bereshith em duas palavras fica bere, ou criou, e shith, seis. A Criação durou seis dias. Está a ver? Esta é uma forma de guematria. A primeira palavra do Antigo Testamento contém em si os seis dias da Criação. Outra forma de guematria é a pura contagem das letras.

Diz o Gênesis que Abraão levou 318 servos para uma batalha. Mas o valor numérico do nome do seu servo Eliezer, descobriram os cabalistas, é 318, o que quer dizer que Abraão só levou consigo o seu único servo."

"Já vi que está dentro do assunto", observou Luís Rocha. "Então diga-me lá agora qual é a guematria do maior nome de Deus?"

"Bem... uh... o maior nome de Deus é... uh... Yodhey Vavhey. Mas confesso que não sei qual a guematria a que corresponde este nome. Teria de fazer as contas..."

"A guematria do maior nome de Deus é vinte e seis." Inclinou a cabeça. "Quantas letras tem o alfabeto hebraico?"

"Vinte e duas."

"E agora uma última pergunta", disse o físico. "Segundo os cabalistas, quantos são os caminhos da sabedoria percorridos por Deus para criar o universo?"

"Trinta e seis. Os caminhos percorridos por Deus para criar o universo correspondem à ligação dos dez sephirot da Árvore da Vida com as vinte e duas letras do alfabeto hebraico, a que se acrescentam mais quatro caminhos."

Luís Rocha sorriu.

"Reparou nestas coincidências todas?"

"Quais coincidências?"

"Dez sephirot cabalísticos para criar o universo, dez dimensões nas cordas dos fermiões para criar a matéria", disse, erguendo um dedo. Acrescentou um segundo dedo. "Vinte e seis é a guematria do maior nome de Deus, vinte e seis são as dimensões nas cordas dos bosões para criar a matéria." Veio o terceiro dedo. "Vinte e duas letras do alfabeto hebraico, vinte e duas as dimensões que permanecem ocultas no microcosmos." Agora o quarto. "Trinta e seis caminhos percorridos por Deus para criar o universo, trinta e seis é a soma das dimensões nas quais vibram os bosões e os fermiões." Piscou o olho, como uma criança que descobriu a chave do quarto dos brinquedos. "Será coincidência?"

"Bem... uh... isso é realmente surpreendente."

"O que Einstein constatou é que os textos sagrados contêm verdades científicas profundas, impossíveis de conhecer no seu tempo. E não é só na Bíblia, sabe? Os textos hindus, os textos budistas, os textos taoístas, todos eles encerram verdades eternas, aquele tipo de verdades que só agora a ciência começa a desvendar. A questão é: como é que os sábios antigos tiveram acesso a essas verdades?"

Fez-se uma pausa.

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"E qual é a resposta?"


"Não sei. Ninguém sabe. Pode ser tudo coincidência, claro. Afinal de contas, o ser humano gosta de encontrar padrões em tudo, não é? Mas pode ser também que, tal como as micropartículas da experiência Aspect não passam de imanências de um único real, as verdades científicas contidas nas sagradas escrituras constituam imanências desse mesmo real único. É como se os sábios antigos tivessem sido inspirados por algo profundo, eterno, onipresente mas invisível."

"Estou a ver..."

"Tudo isto para lhe dizer que, embora Einstein e o professor Siza não acreditassem no Deus da Bíblia, achavam ambos que, em determinados aspectos e sob determinadas formas, as sagradas escrituras misteriosamente ocultavam verdades profundas."

Beberam mais um trago do expresso.

"De qualquer modo, e apesar dessas estranhas coincidências, o Deus que o professor Siza procurou não foi o Deus da Bíblia..."

"É isso", assentiu Luís Rocha. "Não foi o Deus da Bíblia. Foi algo de diferente. O

professor Siza foi à procura de uma força criadora, inteligente e consciente, mas não necessariamente moral, nem boa, nem má." Suspirou. "Assim delimitado o campo de investigação, redefinindo-se o objeto de estudo, houve que proceder a uma segunda definição: o que é isso de provar a existência de Deus?"

O físico deixou a pergunta no ar.

"Está-me a perguntar a mim?", quis saber Tomás, hesitante, sem saber se a pergunta era meramente retórica ou para ser de fato respondida.

"Sim, claro. O que é isso de provar a existência de Deus?"

"Bem... uh... não sei, confesso que não sei."

"Será arranjar um telescópio tão poderoso que nos permitirá ver Deus, com as suas grandes barbas de patriarca, a brincar com estrelas? Será desenvolver uma equação matemática que contenha o ADN de Deus? Mas afinal o que é isso de provar a existência de Deus?"

"É uma boa pergunta, sem dúvida", considerou Tomás. "Qual a resposta?"


Luís Rocha exibiu três dedos.

"A resposta assenta em três pontos", disse. "Primeiro, Deus é sutil. Através da Teoria do Caos, dos teoremas da Incompletude e do Princípio da Incerteza ficámos a perceber que o Criador ocultou a Sua assinatura, escondeu-se por detrás de um fino véu engenhosamente concebido para O tornar invisível. Isso, como é bom de ver, dificulta seriamente a tarefa de provar a Sua existência." Traçou o segundo dedo.

"Segundo, Deus não é inteligível através da observação. Quer isto dizer que não é possível provar a Sua existência por intermédio de um telescópio ou de um microscópio."

"E por que não?", interrompeu Tomás.

"Ora, por vários motivos", retorquiu o físico. "Repare, imagine que o universo é Deus, como defendia Einstein. Como observá-Lo na sua totalidade? O professor Siza chegou à conclusão de que os físicos e os matemáticos estavam a observar o universo um pouco como um engenheiro olha para um televisor. Imagine que se pergunta a um 301


engenheiro: o que é a televisão? O engenheiro põe-se a observar um televisor, abre-o todo e depois diz que a televisão são fios e esquemas elétricos estruturados de uma determinada maneira." Apontou para Tomás. "Mas eu pergunto-lhe a si: acha que isso dá uma resposta completa à questão de saber o que é a televisão?"

"Uh... dá uma resposta de engenheiro, acho eu."

"É isso, dá uma resposta de engenheiro. Mas a televisão, sendo fios e circuitos eléctricos, é muito mais do que isso, não é? A televisão transmite programas de informação e entretenimento, tem um impacto psicológico junto de cada pessoa, permite a transmissão de mensagens, produz vastos efeitos sociológicos na sociedade, tem dimensão política e cultural, enfim... é uma coisa muito mais vasta do que a mera descrição das suas componentes tecnológicas."

"Está a colocar aquele problema de que já me tinha falado, o hardware e o software?"

"Nem mais", concordou Luís Rocha. "A perspectiva reducionista, que se centra no hardware, e a perspectiva semântica, inserida no software. Os físicos e os matemáticos olham para o universo como um engenheiro olha para um televisor ou para um computador. Apenas vêem os átomos e a matéria, as forças e as leis que as regem, e tudo isso, se formos a ver bem, não passa de hardware. Mas qual é a mensagem deste enorme televisor? Qual é o programa deste gigantesco computador? O professor Siza concluiu que o universo tem um programa, dispõe de um software, possui uma dimensão que está muito para além da soma das suas componentes. Ou seja, o universo é muito mais do que o hardware que o constitui. É um gigantesco programa de software. O hardware apenas existe para viabilizar esse programa."

"Como um ser humano", observou Tomás.

"Exato. Um ser humano é feito de células e tecidos e órgãos e sangue e nervos.

Isso é o hardware. Mas o ser humano é muito mais do que isso. É uma estrutura complexa que possui consciência, que ri, que chora, que pensa, que sofre, que canta, que sonha e que deseja. Ou seja, somos muito, muito mais do que a mera soma das partes que nos constituem. O nosso corpo é o hardware por onde passa o software da nossa consciência." Fez um gesto largo com os braços. "Assim é também a realidade mais profunda da existência. O universo é o hardware por onde passa o software de Deus."

"É uma idéia arrojada", considerou Tomás. "Mas tem a sua lógica."

"O que nos remete para o problema do infinito", exclamou o físico. "Repare, se o universo é o hardware de Deus, isso coloca várias questões curiosas, já viu? Por exemplo, uma vez que nós, seres humanos, fazemos parte do universo, isso significa que nós somos parte do hardware, não é? Mas, será que somos também, nós próprios, um universo? Será que o universo é alguém imensamente grande, tão grande que não o vemos, tão grande que se torna invisível? Alguém tão grande para nós como tão grandes somos nós para as nossas células? Será que estamos para o universo como os nossos neurônios estão para nós? Será que somos o universo dos neurônios e somos os neurônios de alguém muito maior? Será que o universo é uma entidade orgânica e nós não passamos das suas células minúsculas? Seremos nós o Deus das nossas células e nós as células de Deus?"

Ficaram ambos um longo momento a digerir aquelas interrogações.

"O que acha você?", quis saber Tomás.

"Acho que o problema do infinito é tramado", devolveu Luís Rocha. "Sabe, nós, os físicos, andamos à procura de partículas fundamentais, mas sempre que as encontramos acabamos por descobrir que elas são, afinal, compostas por partículas 302


mais pequenas. Primeiro pensava-se que o átomo era a partícula fundamental. Depois descobriu-se que o átomo era constituído por partículas mais pequenas, os protões, os neutrões e os electrões. Julgou-se então que essas é que eram as partículas fundamentais. Mas descobriu-se afinal que os protões e os neutrões são formados por outras micropartículas mais pequenas, os quarks. E há quem pense que os quarks são formados por novas micropartículas ainda mais pequenas e as mais pequenas por outras mais pequenas. O microcosmos é infinitamente pequeno."

"Como o Paradoxo de Zenão", comentou Tomás, com um sorriso. "Tudo é divisível pela metade."

"Exato", concordou o físico. "E, pela mesma razão, tudo é multiplicável pelo dobro. Por exemplo, o nosso universo é enorme, não é? Mas as últimas teorias cosmológicas admitem a possibilidade de este ser apenas um entre bilhões de universos. O nosso universo nasceu, está a crescer e, conforme o demonstra a segunda lei da termodinâmica, irá morrer. Ao lado dele existirão muitos outros iguais.

É como se o nosso universo não passasse de uma bolha de espuma num oceano imenso, ao lado de imensas outras bolhas de espuma iguais." Fez uma pausa.

"Chamam-lhe o meta-universo."

"Portanto, o universo é então infinito."

"É uma possibilidade. Mas não é a única."

"Existe outra?"

"Existe a possibilidade de o universo ser finito."

"O universo ser finito? Acha isso possível?"

"Ouça, é outra possibilidade."

"Mas como é isso possível? Se o universo for finito, o que há para além do seu limite?"

"A ser finito, não teria limite."

"Como assim? Não entendo..."

"É simples. Fernão de Magalhães começou a navegar para oeste, certo? Navegou, navegou, navegou e, surpresa, veio parar ao ponto de partida." Luís Rocha ergueu as mãos e rodou-as, como se segurasse uma bola. "Ou seja, ele provou que a Terra é finita, mas não tem limite. É possível que o universo também seja assim. Finito, mas sem limites."

"Estou a entender."

Os dois terminaram o café.

"Bem, tudo isto porque estava eu a dizer que a resposta à questão da prova da existência de Deus assenta em três pontos fundamentais. O primeiro é a constatação de que Deus é sutil e o segundo é a constatação de que não O podemos observar através de um telescópio ou de um microscópio." Ergueu um terceiro dedo. "Mas, apesar de todas as dificuldades, há uma maneira indireta de chegar à prova da existência de Deus."

"Então?"

"Através da busca de dois traços essenciais: a inteligência e a intenção. O

professor Siza determinou que, para sabermos se o universo foi criado por uma inteligência consciente, temos de dar resposta a uma pergunta fundamental: existe ou não inteligência e intenção na criação do universo?" Inclinou a cabeça. "Não basta que 303


a resposta seja afirmativa em relação a um destes pontos. Tem de ser afirmativa em relação aos dois, percebeu?"

Tomás fez uma careta pensativa.

"Não muito bem. Se se conseguir provar que há inteligência, não acha que isso basta?"

"Claro que não", devolveu Luís Rocha. "Olhando para a rotação da Terra em torno do Sol, parece-nos a nós evidente que há inteligência no movimento. Mas essa inteligência é intencional ou fortuita? É que, repare, pode ser tudo fruto do mero acaso, não pode? Se o universo for infinitamente grande, é inevitável que, num número infinito de situações diferentes, algumas exibam as características da nossa.

Portanto, se a inteligência das coisas for fortuita, não é possível vermos aí, com toda a certeza, a mão de Deus, pois não? Temos também de determinar se há intenção."

"Estou a perceber."

"O problema é que o conceito de intenção é muito difícil de concretizar. Qualquer professor aqui da Faculdade de Direito lhe dirá isso. Num processo em tribunal, uma das grandes dificuldades é justamente a de determinar a intenção do arguido quando cometeu determinado ato. O arguido matou uma pessoa, mas matou-a porque quis matar ou isso foi um acidente? O arguido sabe que matar com intenção é mais grave e, em geral, argumenta que matou mas não quis matar, tudo não passou de um terrível azar. A dificuldade é, pois, a de determinar a intenção do acto." Fez um gesto largo com os braços. "O mesmo se passa no universo. Olhando para tudo em nosso redor, podemos constatar que existe grande inteligência na concepção das coisas. Mas essa inteligência é fortuita ou existe uma intenção por detrás de tudo? A haver intenção, qual é essa intenção? E, elemento

crucial, existirá alguma maneira de, havendo intenção, demonstrar a sua existência?"

"A resposta não está naquela metáfora do relógio que você me explicou no outro dia?"

"Sim, o relógio de William Paley é um argumento poderosíssimo. Se encontrarmos no chão um relógio e o analisarmos, logo percebemos que ele foi concebido por um ser inteligente com uma intenção. Ora, se isso é válido para uma coisa tão simples como um mero relógio, por que não seria válido para uma coisa tão imensamente mais inteligente e complexa como é o universo?"

"Justamente. Isso não serve de prova?"

"É um poderoso indício de inteligência e intenção, mas não é prova."

"Então como é que se pode fazer a prova?"

Luís Rocha endireitou-se na cadeira.


"Foi Einstein quem deu a pista", disse.

"Qual pista?"

O físico levantou-se do seu lugar e convidou Tomás a segui-lo para fora daquele apertado compartimento.

"Venha daí", disse. "Vou-lhe mostrar a segunda via."


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