XLIII

O ribombar longínquo dos trovões anunciava a lenta aproximação da chuva.

Tomás olhou para o céu e contemplou os estratos densos que se amontoavam a baixa altitude, sombrios na base, luminosos no topo; mas tão vastos que pareciam uma cobertura, um enorme e opaco teto que deslizava rente ao solo e por toda a região lançava uma penumbra triste, triste e cinzenta.

O céu preparava-se para chorar.


"Pater noster, qui es in caelis,

Sanctificetur nomen tuum,

Adveniat regnum tuum,

Fiat voluntas tua

Sicut in caelo et in terra."


Os ciprestes, altos e esguios, abanavam ao vento e Tomás estreitou a mãe junto a si quando ouviu o padre, terminada a homilia final, fazer o sinal-da-cruz e entoar o pai-nosso em latim, a voz cavada, profunda. Dona Graça chorava baixo, um lenço rendilhado colado ao nariz, e o filho teve o cuidado de a manter colada ao seu corpo, como se assim lhe dissesse que ficasse descansada, que nada temesse, que ele a protegeria.

O caixão do pai, a madeira de nogueira envernizada brilhando à luz tênue da manhã, encontrava-se pousado sobre a terra úmida, junto à cova aberta no chão, e uma pequena multidão de familiares, amigos, conhecidos ou simples alunos e ex-alunos aglomerava-se em redor, numa formação compacta, escutando em silêncio as palavras solenes entoadas pelo capelão da universidade no cemitério da Conchada.


"Panem nostrum super sub stantialem da nobis hodie; Et dimitte nobis debita nostra,

Sicut et nos dimíttimus debitóribus nostris;

Et ne inducas nos in tentationem,

Sed libera nos a malo.

Amen."


Um murmúrio ergueu-se na multidão, confirmando aquele amen final, e o padre benzeu o caixão. Os coveiros colocaram-se em posição, ergueram o féretro e desceram-no devagar para a cova. O pranto da mãe tornou-se mais convulsivo e o próprio Tomás 342


teve dificuldade em controlar as emoções. Viu o pai ser engolido por aquele terrível buraco escuro e nesse instante foi assaltado pela imagem do homem sábio, reservado, fechado no seu escritório a resolver os enigmas do universo, tão grande em vida e agora tão reduzido a nada.

A nada.

Sempre lhe disseram que um homem só se torna homem quando o pai morre; mas Tomás não se sentia mais homem porque o pai ia a enterrar. Ao ver as primeiras pazadas de terra tombar sobre o esquife sentiu-se pequeno, uma criança perdida num mundo hostil, abandonada pelo seu protetor, desamparada do aconchego do homem que sempre olhara como quem olha para uma montanha.

Filas de pessoas vieram apertar-lhe a mão. Vinham trajadas de escuro, o olhar pesado, despenteadas pelo vento agreste, soltando palavras de circunstância, dizendo coisas ponderadas, encorajando-o a ter coragem. Conhecia alguns rostos, eram primos e tios que vieram de longe, ou colegas do pai na universidade; mas a maioria não, tratava-se de gente que nunca vira antes e que viera simplesmente para se despedir do velho professor de matemática.


A saída do cemitério viu a longa limusina negra com a matrícula diplomática estacionada no passeio. Procurou em redor e deparou com homens de escuro, de ridículos óculos de sol naquele dia sombrio, aglomerados em torno de um banco de jardim, de aspecto folgado. Os homens viram-no e endireitaram-se, talvez por respeito, talvez porque se preparassem para algo. Uma figura vestida de azul, de corpo esguio e olhar hipnotizante, destacou-se de entre eles e foi para essa figura de fêmea que a atenção de Tomás se desviou, atraído para aqueles olhos melífluos com a mesma força que um metal é atraído para um íman.

Ariana.

Aproximaram-se devagar e abraçaram-se com força. Tomás acariciou-lhe o cabelo negro, afagou-lhe a pele delicada, beijou-lhe a bochecha fofa e os lábios úmidos, sentiu-lhe as lágrimas quentes colarem-se-lhe ao rosto. Ouviu-a gemer e suspirar, estreitou-a para si e aqueceu-se no calor do seu corpo trêmulo, o volume dos seios comprimiu-se-lhe no peito, as mãos afagaram-lhe as costas e os dedos mergulharam-lhe pelo cabelo.

"Tive saudades tuas", murmurou ele.

"E eu tuas", retorquiu ela, a voz num sopro. "Muitas."

"Estás bem?"

"Sim, estou bem, estou bem."

"Trataram-te bem?"

"Sim." Ela afastou o rosto e olhou-o, apreensiva. "E tu? Como te sentes?"

"Estou bem, não te preocupes."

Tomás sentiu vultos moverem-se em redor, mas não se importou. Naquele instante apenas lhe interessava Ariana, a Ariana que ele finalmente estreitava entre os braços, a Ariana com quem partilhava lágrimas de sal e beijos de chocolate, a Ariana que lhe tremia nos braços, que estremecia de saudade e de emoção.

"Hi, Tomás", disse uma voz familiar. "Desculpe interromper o reencontro."


Era Greg.

343


"Olá."

"Lamento a morte do seu pai... enfim, as circunstâncias não são fáceis, mas temos um trabalho a fazer, não é?"

Tomás desprendeu-se de Ariana, mas não estendeu a mão ao americano; achava que nada tinha para lhe agradecer nem nada o obrigava a ser delicado depois de tudo o que se passara.

"Sim."

"Como deve calcular, eu corri um grande risco em cancelar o vôo da CIA para Islamabad. Quando você me telefonou com a notícia, já íamos para o aeroporto e tive algum trabalho em convencer Langley de que, se você realmente tinha cumprido a sua parte do negócio, só nos restava cumprir a nossa."

"Do que está você à espera agora?", perguntou Tomás com secura. "Que eu lhe agradeça?"

"Não, não estou à espera de tal coisa", disse Greg, mantendo o ar profissional.

"Estou à espera que você me mostre qual a mensagem que Einstein escondeu no manuscrito. O próprio mister Bellamy já me ligou duas vezes para saber a resposta."

As primeiras bátegas começaram a cair; primeiro tímidas, depois insistentes.

Tomás olhou em redor, como se procurasse algo. Encontravam-se perto do portão do cemitério e mantinha-se ali ainda muita gente que viera do funeral, a maior parte a abrir com fragor os guarda-chuvas negros e a dispersar-se apressadamente pelo passeio.

"Ouça, não haverá por aqui um lugar discreto onde nos possamos sentar?"

O americano apontou para o enorme Cadillac da sua embaixada, estacionado alguns metros adiante.

"Vamos para ali."


A limusine era espaçosa, com bancos a toda a largura do interior e o centro ocupado por uma pequena mesinha. Tomás e Ariana sentaram-se lado a lado, as costas voltadas para a longa janela lateral por onde as gotas deslizavam como lágrimas perdidas, deixando no vidro um rasto serpenteado. Greg ajeitou-se junto a eles e fechou a porta. Lá fora ficaram os restantes americanos, presumivelmente todos eles seguranças, entregues às bátegas gordas que jorravam do céu em fúria.

"Whiskey?", perguntou o adido da embaixada, levantando uma tampa e revelando um pequeno bar.

"Não, obrigado."

Um estrelejar saracoteado entoava no tejadilho da limusine, era a chuva que caía forte e tamborilava com fragor ao longo do Cadillac. Os dois amantes aconchegaram-se um ao outro, sentindo o calor dos corpos e o conforto do abrigo.

Greg serviu-se de whiskey americano on the rocks e voltou-se para o historiador.

"Então? Onde está a mensagem?"

Tomás mergulhou a mão no bolso do casaco e tirou a folha amarrotada, que exibiu ao adido.

"Está aqui."

Greg espreitou a folha e viu a charada.

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"Desculpe, mas o que é isto?"

"É a mensagem cifrada."

"Isso já eu percebi. Mas onde está a mensagem decifrada?"

Tomás apontou para a primeira linha.

"Está a ver este see sign?"

"Sim."

"E um anagrama. Mudando a ordem das letras, descobrimos que see sign se transforma em Gênesis. Ou seja, o que Einstein quis aqui dizer foi: see the sign in Gênesis. Isto é: vejam o sinal no Gênesis."

"O sinal no Gênesis? Qual sinal?"

O criptanalista estreitou os lábios.

"Pois, esse é o problema. Qual sinal?" Apontou para o !ya ovqo da segunda linha.

"Esta sequência final deverá dar a resposta a essa pergunta. Não se trata de um anagrama, mas de uma cifra de substituição, o que complica muito mais as coisas porque precisamos de uma chave para a decifrar. Disseram-me que a chave era o nome de Einstein, o que pressupunha uma cifra do estilo da cifra de César. Mas as minhas tentativas para quebrar esta charada, usando uma cifra de César com o nome de Einstein, resultaram infrutíferas."

"E qual foi a tentativa que resultou?"

Tomás fez um ar embaraçado.

"Bem... uh... nenhuma resultou."

"Perdão?"

"Nenhuma resultou."

Greg esboçou uma expressão perplexa.

"Desculpe, mas está a brincar comigo ou quê? Você ainda não quebrou a cifra?"

"Não."

Um rubor de irritação cresceu no rosto do americano.

"Damn it, Tomás! O que me disse você ao telefone, uh? Não foi que tinha conseguido? Uh? Não foi que tinha adquirido a chave?"

"Foi."

"E então? O que estou eu aqui a fazer?"

Tomás sorriu pela primeira vez nesse dia, intimamente satisfeito por ter enervado o seu interlocutor.

"Você está aqui para assistir à quebra da cifra."

Greg pestanejou, baralhado.

"Desculpe, não estou a entender."

"Ouça, eu já adquiri a chave, fique descansado. O problema é que, com a morte do meu pai, não tive ainda tempo nem disposição para quebrar a cifra, percebeu?"

"Ah... okay."

"Vamos decifrá-la agora, está bem?"

"All right."

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Tomás tirou um envelope do bolso. Era um sobrescrito velho, amarelado pelo tempo, com um lacre quebrado numa das faces. Meteu os dedos no interior e extraiu uma pequena folha igualmente envelhecida. Um lado da folha tinha a referência Die Gottesformel com a assinatura de Einstein por baixo, e o verso apresentava uma sequência de letras rabiscadas a tinta permanente.

"O que é isto?", perguntou Greg com uma careta.

"É a chave."

"A chave da cifra?"

"Sim." Endireitou-se. "Pelos vistos o que aconteceu foi que Einstein entregou ao professor Siza o manuscrito intitulado Die Gottesformel, com a garantia de que o seu pupilo apenas o tornaria público se conseguisse uma segunda via científica que provasse a existência de Deus. Como é natural, o autor das teorias da Relatividade não se queria cobrir de ridículo, não é? Ele precisava de uma confirmação para o que tinha descoberto na análise relativística dos seis dias da Criação." Apontou para a folha amachucada com as duas linhas cifradas. "Como precaução adicional, cifrou a fórmula de Deus. O problema é que a cifra era complexa e ele receou que nunca viesse a ser quebrada. Colocou então a chave num envelope e lacrou-o, entregando-o ao professor Siza com a garantia de que só o abriria quando descobrisse a segunda via."

Acenou com a nota agora retirada do sobrescrito lacrado. "Ora, os tipos do Hezbollah que raptaram o professor e levaram o manuscrito para Teerã desconheciam, como é natural, a existência deste envelope. O colaborador do professor Siza, o professor Luís Rocha, também desconhecia a história por detrás deste sobrescrito, mas sabia que o seu tutor o considerava muito valioso e, com medo que os assaltantes voltassem para o buscar, entregou-o ao meu pai."

"O seu pai tinha isso?"

"Sim, só me apercebi disso na nossa última conversa. O meu pai era muito amigo do professor Siza, de quem foi colega na Universidade de Coimbra, e o professor Luís Rocha achou que, nas mãos do meu pai, o envelope lacrado ficaria em segurança."

"E o seu pai sabia o que isso era?"

"Não, não fazia a mínima idéia. Como é... uh... como era um homem muito curioso, deslacrou o envelope e espreitou o interior." Exibiu a face da folha com a assinatura de Einstein. "Percebeu que se tratava de algo escrito pela mão de Einstein, conforme o prova esta assinatura, mas pensou que não passava de uma mera relíquia, nada de importante."

"I see."

"Foi por um mero acidente que ele me mencionou isto, resolvendo assim o mistério."

"Por mero acidente?", perguntou Greg. "Isso existe?"

Tomás sorriu.

"Tem razão, não há acidentes. Estava predestinado, não é?"

O americano bebeu um trago de whiskey.

"Okay, nice story", exclamou. "E agora?"

"E agora vamos decifrar a mensagem."

"Great”

Tomás apontou para a palavra no topo da folha com a chave.

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"Está a ver este nome?"

"Alberti?"

"Sim."

"O que tem ele?"

"É uma idéia inteligente, sabe? Einstein brincou aqui com o seu nome próprio, Albert. Um leigo que veja isto pensa que se trata de uma mera referência italianizada ao seu nome, mas um criptanalista logo percebe que está perante algo bem diferente."

"Ah, sim? O quê?"

"Leon Battista Alberti era um polímata florentino do século XV. Foi uma destacada figura do Renascimento italiano, uma espécie de Leonardo da Vinci em escala pequena, está a ver? Era filósofo, compositor, poeta, arquiteto e pintor, autor da primeira análise científica da perspectiva, mas também de um tratado, veja só, sobre a mosca doméstica." Sorriu. "Foi ele quem concebeu a primeira Fonte Trevi de Roma."

Greg abanou a cabeça e curvou os lábios.

"Nunca ouvi falar."

"Não é importante", disse o criptanalista com um gesto vago. "Um dia, Alberti andava a passear pelos jardins do Vaticano quando encontrou um seu amigo que trabalhava para o Papa. A conversa informal abordou alguns pontos interessantes da criptografia e encorajou Alberti a preparar um ensaio sobre o assunto. Entusiasmado, Alberti propôs uma nova forma de cifra. A sua idéia era utilizar dois alfabetos de cifra, cada letra alternando entre um e outro alfabeto, de modo a confundir os criptanalistas. Foi uma idéia genial, uma vez que implicava que a mesma letra do texto simples não aparecia necessariamente como a mesma letra no alfabeto da cifra, o que dificultava a decifração."

"Não estou a perceber."

Tomás ajeitou a folha com a chave e apontou para as linhas com os alfabetos.

"É fácil", disse. "Na primeira linha encontra-se o alfabeto simples, não é? As duas linhas de baixo são as dos alfabetos de cifra. Imagine que eu quero escrever aacc. A letra do primeiro alfabeto de cifra correspondente ao a é o f e ao c é o b, não é? E no segundo alfabeto de cifra são, respectivamente, as letras g e x. Então, a mensagem aacc, quando cifrada através deste sistema, fica fgbx, está a ver? Alternando-se a mensagem original entre os dois alfabetos, não há repetição de letras, o que dificulta a decifração."

"Ah, entendi."

"O que Einstein nos deu foi a informação de que tinha usado uma cifra de Alberti e mostrou-nos quais as duas sequências corretas dos alfabetos de cifra."

Greg apontou para a segunda linha da mensagem cifrada.

"Se utilizarmos esse método, saberemos qual a mensagem ocultada por este !ya ovqo?"

"Sim, em princípio sim."

"Então do que estamos à espera? Let's do it, pal!"

Tomás pegou na caneta e comparou cada letra aos alfabetos de cifra.

"Ora bem, vamos lá a ver o que significa este !ya ovqo." Suspirou. "O y do primeiro alfabeto de cifra corresponde a um i e o a no segundo alfabeto de cifra 347


corresponde a um l." Rabiscou as letras. "Hmm... o o dá r e o v dá s. O q é um v e o o é um b."

A frase emergiu no papel.

!il rrsvb


"Não estou a perceber", disse Greg, carregando as sobrancelhas. "Il rsvb”? Mas o que é isto?"

"É a mensagem original cifrada por Einstein", explicou Tomás.

O americano ergueu os olhos e mirou-o com uma expressão interrogativa.

"Mas isto não significa nada..."

"Pois não."

"E então?"

"E então, temos de prosseguir a decifração, não acha?"

"Prosseguir a decifração? Como assim? Isto não está decifrado?"

"É evidente que não", exclamou Tomás. "Como você constatou, il rsvb não significa nada. O que quer dizer que apenas cumprimos um passo da decifração."

"Há mais passos, é?"

"Claro que há." Apontou para a última palavra rabiscada por baixo das linhas com os alfabetos. "Está a ver este nome aqui?"

"Sim. O que tem?"

"Consegue ler?"

Greg inclinou-se sobre o papel.

"At... uh... atbart?"

"Atbash."

"Atbask", repetiu o americano. "O que é isso?"

"O atbask é uma forma tradicional de cifra de substituição hebraica, utilizada para ocultar significados no Antigo Testamento. A idéia é pegar numa letra que está, por exemplo, a três lugares do início do alfabeto e substituí-la pela letra correspondente a três lugares do fim do alfabeto. Assim o c torna-se x, não é? A terceira letra a contar do princípio é substituída pela terceira do fim, e assim sucessivamente."

"Estou a entender."

"Há vários exemplos de atbasb no Antigo Testamento. Em Jeremias aparece por vezes a palavra chechac, começando por duas letras hebraicas shin e por um kaph.

Ora, o shin é a penúltima letra do alfabeto hebraico. Substituindo-a pela segunda do alfabeto ficamos com beth. Kaph é a décima segunda letra a contar do fim, pelo que vamos substituí-la pela décima segunda letra a contar do princípio, o lamed. Portanto, o shinshinkaph, que dá chechac, torna-se beth-beth-lamed. Babel. Chechac quer dizer Babel. Entendeu?"

"Sim, é engenhoso."

"Engenhoso e simples."

"Einstein utilizou atbash nesta sua cifra?"

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"É o que diz a anotação, não é? Repare. Alberti significa, como é óbvio, a cifra de Alberti, com os correspondentes alfabetos de cifra. Atbash significa que temos agora de procurar as letras simétricas correspondentes a il rsvb, não é?"

"Parece lógico", concordou Greg. "Vamos a isso?"

Tomás cravou os olhos na anotação com !il rsvb e contou a posição de cada letra no alfabeto.

"Ora, o i é a nona do princípio. A nona do fim é... uh... o r. O l é a décima segunda do princípio, o que corresponde a... a... ao o. O r dá... dá i, o s... uh... dá h, o v dá... dá e e o b remete para o... o y."

Apresentou o resultado.


!ro ihey


"O que é isto?", perguntou Greg. "Ro ihey? O que significa isso?"

O criptanalista estreitou os olhos e estudou a mensagem, intrigado.

"Realmente... uh..." gaguejou, mordendo o lábio inferior. "Não sei... não sei o que seja."

"Será uma língua estranha?"

A sugestão fez Tomás arregalar os olhos.

"Pois é óbvio que é", exclamou. "Se é um sinal do Gênesis, tem de ser em hebraico, não é?"

"E você sabe hebraico?"

"Estou a aprender", disse. "Mas já sei o suficiente para perceber que o hebraico se lê da direita para a esquerda e não da esquerda para a direita." Pegou na caneta.

"Espere aí, vou pôr à nossa maneira."

Inverteu a sequência das letras.


Yehi or!


"Yehi or!", leu Greg. "O que quer dizer isso?"

Tomás empalideceu.

"Meu Deus! Meu Deus!"

"O que foi?"

"Yehi or! Não está a perceber? Yehi or!"

"Mas o que é isso?"

"See sign Gênesis. Yehi or!" Bateu com o indicador na frase rabiscada no papel.

"É este o sinal do Gênesis. Yehi or!"

"Sim, mas o que significa yehi or?"

Tomás olhou para Greg e para Ariana, estupefacto, embasbacado, digerindo a enormidade do que acabara de lhe ser revelado, invadido por um tropel de imagens e sons e palavras e pensamentos que, naquele instante, como que coreografados em 349


súbita sincronia, como uma sublime melodia que emerge da orquestra mais caótica, se encaixaram uns nos outros e extraíram da treva a verdade mais profunda.

Om.

O om primordial que criou o universo ressoou-lhe na memória pelo coro cavado dos monges tibetanos. Foi ao som penetrante do mantra fundador que se lembrou do permanente bailado de nascimento e morte, de criação e destruição, a divina coreografia incorporada na eterna dança de Shiva; e foi ainda com aquela sílaba sagrada a ecoar-lhe na mente que compreendeu o segredo da Criação, o enigma por detrás do Alfa e para além do Ômega, a equação que faz do universo o universo, o misterioso desígnio de Deus, o surpreendente objetivo da vida, o software inscrito no hardware do cosmos.

O endgame da existência.

Diante de si, rabiscada a caneta, inscrevia-se a fórmula que rompe a não-existência e tudo cria.


Tudo, incluindo o Criador.

"Tomás", insistiu o americano, impaciente, quase abanando o seu interlocutor. "O

que diabo significa yehi or?"

O criptanalista olhou para ele e para Ariana, olhou-os com espanto e maravilha, olhou-os como se tivesse despertado de um longo transe e, num sopro tênue, quase temeroso, nomeou enfim a equação mágica, o enunciado a que a inteligência que se espalhar pelo universo terá um dia de recorrer para escapar ao cataclismo do fim dos tempos e começar tudo de novo.

A fórmula de Deus.

"Faça-se luz!"

O rosto de Greg permaneceu inexpressivo, como uma janela fechada que esconde o brilho do dia para lá dela, como uma tela branca que espera o pincel colorido que lhe dará vida.

"Faça-se luz?", murmurou por fim. "Não estou a perceber..."

Tomás inclinou-se para a frente, aproximando o seu rosto excitado da face opaca do americano.

"É esta a prova bíblica da existência de Deus. Faça-se luz!"

O seu interlocutor abanou a cabeça, ainda sem nada compreender.

"Desculpe, mas isso não faz qualquer sentido. Como é que esta expressão prova a existência de Deus?"

O criptanalista suspirou, impaciente.

"Ouça, Greg. A expressão em si não prova a existência de Deus. Ela tem de ser interpretada no contexto das descobertas feitas no campo da ciência, está a perceber?

É essa a verdadeira razão pela qual Einstein não quis divulgar o seu manuscrito. Ele sabia que este enunciado bíblico não chegava, era necessária confirmação científica."

Recostou-se no assento e arregalou os olhos, num crescente empolgamento. "Essa confirmação já surgiu. Entende? Essa confirmação já surgiu e mostra que a Bíblia, por mais incrível que pareça, encerra verdades científicas profundas. E é nesse sentido que a expressão faça-se luz! prova a existência de Deus."

"Desculpe, mas continuo sem ver essa prova. Explique lá isso melhor."

350


"Muito bem", exclamou Tomás, massageando o rosto com a ponta dos dedos enquanto reordenava os pensamentos. Inspirou fundo e fitou o seu interlocutor. "A Bíblia diz que o universo começou com uma explosão de luz, não é verdade? Deus disse: faça-se luz! E a luz fez-se."

"Sim."

"Einstein intuiu que este enunciado bíblico era verdadeiro. Anos depois da sua morte, a descoberta da radiação cósmica de fundo veio provar que a hipótese do Big Bang era correta. O universo nasceu de fato de uma espécie de explosão inicial, o que significa que afinal a Bíblia tinha razão: tudo começou quando a luz se fez."

"Sim."

"A questão que se coloca agora é a de determinar quem é a entidade que obrigou a luz a fazer-se."

"Está a falar de Deus..."

"Chame-lhe Deus se quiser, o nome não interessa. O que interessa é o seguinte: o universo começou com o Big Bang e vai acabar com o Big Freeze ou com o Big Crunch. Einstein suspeitava que será com o Big Crunch."

"Que é o Big Bang ao contrário."

"Exato", confirmou Tomás. Voltou a inclinar-se para a frente, irrequieto de excitação. "Agora preste atenção a isto. A revelação do Princípio Antrópico, associada à descoberta de que tudo está determinado desde o início dos tempos, demonstra que sempre houve uma intenção de criar a humanidade. O mistério é saber porquê. Por que razão se criou a humanidade? Qual o seu desígnio? Por que raio andamos aqui?

Por que motivo fomos criados?"

"Mistérios insondáveis..."

"Talvez não sejam tão insondáveis quanto isso."

"O que quer você dizer? Há resposta para essas perguntas?"

"Claro que há." Acenou com a folha rabiscada, a linha yehi or! claramente visível sobre o papel. "A resposta está inscrita aqui na fórmula de Deus. Faça-se luz! Einstein concluiu que a humanidade não é o endgame do universo, mas um instrumento para se alcançar o endgame."

"Um instrumento? Não estou a entender."

"Repare na história do universo. A energia gera matéria, a matéria gera vida, a vida gera inteligência." Pausa. "E a inteligência? O que vai ela gerar?"

"Não faço a menor idéia."

"Ao identificar o faça-se luz! com a fórmula divina, Einstein foi o primeiro a responder essa pergunta."

"Ah, sim? E o que concluiu ele?"

"Deus."

"Como?"

"A inteligência gera Deus."

Greg contraiu as sobrancelhas e abanou a cabeça.

"Não sei se estou a acompanhar o seu raciocínio..."

351


"É muito simples", murmurou Tomás. "A humanidade foi criada para desenvolver uma inteligência ainda mais sofisticada do que a biológica. A inteligência artificial. Os computadores. Daqui a centenas de anos, os computadores serão mais inteligentes do que o homem e, dentro de milhões de anos, estarão habilitados a escapar às alterações cósmicas que ditarão o fim da vida biológica. Os seres vivos baseados no átomo de carbono não serão viáveis daqui a muitos milhões de anos, quando as condições cósmicas se alterarem, mas os seres vivos baseados noutros átomos poderão sê-lo. São os computadores. Eles vão espalhar-se pelos quatro cantos do universo e, colocados em rede daqui a milhares de milhões de anos, tornar-se-ão uma única entidade, onisciente e onipresente. Nascerá o grande computador universal. O

problema é que a sua sobrevivência será ameaçada pelo Big Crunch, não é? O grande computador universal ver-se-á então colocado perante este problema: como escapar ao fim do universo? A resposta vai emergir de forma terrível." Fez uma pausa. "Não há escapatória, o fim é inexorável."

"Então acaba-se tudo."


Tomás sorriu, malicioso.

"Não exatamente. Há uma maneira de o grande computador universal garantir que voltará a existir."

O criptanalista fez uma pausa, como se quisesse criar suspense.

"Qual?", quis saber o americano.

"O grande computador universal terá de controlar ao pormenor a forma como o Big Crunch irá ocorrer. Terá de controlar tudo segundo uma fórmula que lhe permita recriar o mesmo universo depois do Big Crunch, de modo a que tudo possa voltar a existir. Tudo, incluindo ele próprio."

"Recriar tudo?"

"Sim. O grande computador universal vai desaparecer com o Big Crunch, mas, entretanto, conceberá uma fórmula que lhe permitirá reaparecer no novo universo.

Essa fórmula implicará uma distribuição da energia com um rigor e afinação tais que, evoluindo depois de modo determinista segundo leis e constantes com valores devidamente definidos, permitirá que reapareça no novo universo a matéria, depois a vida e finalmente a inteligência, aplicando assim de novo o Princípio Antrópico."

"E que fórmula será essa?"

Tomás encolheu os ombros.

"Não sabemos, é algo de tão complexo que só uma superinteligência a poderá conceber. Mas a fórmula vai existir e a sua concepção está metaforicamente inscrita na Bíblia."

"Faça-se luz!", sussurrou Greg, os olhos azuis cintilando.

"Nem mais." Tomás sorriu. "Faça-se luz!" Inclinou a cabeça. "A fórmula de Deus."

"Espere um momento", cortou o americano, erguendo as mãos como quem pede um intervalo. "Você está a insinuar que Deus é um computador?"

"Toda a inteligência é computadorizada", devolveu o criptanalista num tom condescendente. "Isso foi uma coisa que eu aprendi com os físicos e os matemáticos."

Bateu com o dedo na testa. "Inteligência é computação. Os seres humanos, por exemplo, são uma espécie de computadores biológicos. Uma formiga é um computador biológico simples, nós somos mais complexos. Só isso."

352


"Essa definição parece-me um pouco forte..."

Tomás encolheu os ombros.

"Ouça, se isso o incomoda não lhe chamemos grande computador universal, está bem? Chamemos-lhe... sei lá, chamemos-lhe... uh... inteligência criadora, grande arquiteto, entidade superior, o que você quiser. Não interessa o nome. O que interessa é que é essa inteligência que está na raiz de tudo."

"Estou a ver."

"Einstein concluiu que o universo existe para criar a inteligência que irá gerar o próximo universo. É esse o software do universo, é esse o endgame da existência.

Faça-se luz! é a metáfora bíblica para a fórmula da criação do universo, a fórmula que o grande computador universal irá enunciar quando ocorrer o Big Crunch, a fórmula que provocará um novo Big Bang e tudo irá recriar. Tudo, incluindo Deus. O objetivo último do universo é recriar Deus e nós não passamos de um instrumento desse ato."

Os olhos do americano dançaram entre Tomás e Ariana. Olhou para o rascunho que o criptanalista segurava com intensidade entre os dedos e compreendeu enfim o derradeiro segredo de Einstein — a revelação da existência de Deus, do propósito do universo, do desígnio da humanidade.

"Isso é... é incrível."

Tomás não respondeu. Abriu a porta do carro e espreitou para a rua. Já não chovia; uma aragem fresca acariciou-lhe o rosto, era leve e pura, quase perfumada de tão límpida. Pequenas poças de água espalhavam-se pelo passeio e pela estrada, cristalinas, refletindo como espelhos o céu denso, era como se a chuva tudo tivesse lavado. A manhã pintava-se de azul, serena e melancólica, respirando ao ritmo das bátegas de água que pingavam grossas das folhas e tombavam no solo húmido com estalidos molhados, quase musicais. A luz do sol espraiava-se com bonomia, filtrada suavemente pelas nuvens que se afastavam lá em cima, umas carregadas e pachorrentas, outras pálidas e ligeiras.

O historiador endireitou-se cá fora, deu a mão a Ariana e ajudou-a a sair. Os seguranças americanos, que se tinham refugiado por baixo de um carvalho frondoso e ainda lacrimejante, aproximaram-se e interrogaram Greg com os olhos, como se pedissem instruções. O adido fez-lhes um sinal silencioso com a cabeça, estava tudo bem, e os homens descontraíram.

Antes de se afastar, Tomás voltou-se para a porta da limusina e encarou Greg uma derradeira vez.

"É estranho como durante tanto tempo a humanidade em geral intuiu a verdade intrínseca por detrás do universo", comentou. "Já reparou nisso?"

"O que quer você dizer?"

"Antes de morrer, o meu pai contou-me que os hindus consideram que tudo é cíclico. O universo nasce, vive, morre, entra na não-existência e volta a nascer, num ciclo infinito, num eterno retorno a que chamam a noite e o dia de Brahman. A história hindu da criação do mundo é a do ato pelo qual Deus se torna o mundo, o qual se torna Deus."

"Espantoso."

Tomás sorriu.

"É, não é?" Respirou fundo. "Ele recitou-me também um interessante aforismo de Lao Tzu, um poema taoísta que encerra o segredo do universo. Quer ouvir?"

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“Sim.”

Um súbito sopro de vento agitou os carvalhos, agreste e violento, arrancando folhas e vergastando os vultos sombrios que rodeavam a limusina molhada. Parecia agora que o céu uivava, ululando de modo quase sinistro, como se tentasse romper a doce brandura que se instalara depois da chuva, como se ameaçasse desencadear um novo e punitivo dilúvio, como se clamasse vingança por ver arrancado ali o seu mistério mais profundo.

Mas Tomás não se intimidou e recitou o poema como se ainda o escutasse dos lábios trêmulos do pai; recitou-o com fervor, com paixão, com a intensidade de quem sabe que encontrou o caminho e que percorrê-lo é o seu destino.


"No fim do silêncio está a resposta,

No fim dos nossos dias está a morte.

No fim da nossa vida, um novo início."


Um novo início.


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