XXIII

Quando Tomás acordou, ouviu ressoar pela casa o tilintar metálico de talheres a tocarem em louça e de pratos a embaterem noutros pratos. Levantou-se da cama, foi ao quarto de banho, despachou-se em cinco minutos e convergiu de roupão para a 166


cozinha; deparou com a mãe sentada na mesinha da copa, com um copo de leite quente na mão e duas torradas num prato.

"Bom dia, Tomás", cumprimentou a mãe, acenando com uma torrada. "És servido?"

"Uh... sim. Tem sumo de laranja?"

A senhora levantou-se do seu lugar e espreitou o frigorífico. Pegou num invólucro cor de laranja e analisou a data impressa junto à abertura.

"Olha, filho, acho que está fora do prazo. Tenho de ir comprar mais."

"E fruta? Não tem fruta?"

Graça apontou para o cesto colorido assente no balcão, ao lado do frigorífico.

"Tens bananas, maçãs e tangerinas." Voltou a espreitar o frigorífico. "E temos aqui lícheas em calda. O que preferes?"

Tomás colocou duas fatias de pão de forma na torradeira e pegou numa tangerina, que logo começou a descascar.

"Eu fico com a tangerina."

"Fazes muito bem. São docinhas, vêm do Algarve."

Com a tangerina já despida, Tomás sentou-se numa cadeira da copa e trincou um bago sumarento.

"O pai?"

"Ainda está a dormir. Tomou ontem uns comprimidos para não ser afetado pela tosse durante a noite, mas o problema é que acaba sempre por dormir mais do que devia."

"Pois, ele adormeceu cedo, não foi? A esta hora já devia estar em pé..."

"Ah, não te preocupes, ele já se levanta." A mãe tirou o avental e olhou em redor, como se estivesse a tentar organizar-se. "Olha, vamos fazer assim. Eu vou deixar tudo preparado para o pequeno-almoço dele, está bem? Tenho agora de ir ao supermercado buscar as coisas para o almoço, mas como tu ficas por aqui não há problema, não é verdade?"

"Sim, claro."

"Ele vai estar com uma fome de lobo. Ontem só comeu uma sopinha pelo jantar e, se bem o conheço, vai querer agora compensar."

"Faz ele bem."

"Portanto, quando o teu pai acordar, não te esqueças, é só aquecer-lhe o leite."

"Ele bebe o leite com quê?"

Graça pegou numa caixa dourada, com uma enorme ave pintada na cobertura.


"Flocos de aveia. Aqueces-lhe o leite e depois juntas o leite aos flocos de aveia num prato de sopa, está bem?"

Tomás pegou na caixa e pousou-a sobre a mesa.

"Vá lá descansada."


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O pai levou uma boa meia hora a aparecer na cozinha. Tal como a mulher previra, vinha cheio de fome e, conforme previamente combinado, Tomás preparou-lhe os flocos de aveia em leite quente. Quando o prato ficou pronto, sentaram-se os dois na mesa da copa a saborear o pequeno-almoço.

"Então mostra lá outra vez aquelas duas frases do Einstein", pediu Manuel, enquanto levava uma colher à boca.

Tomás foi ao quarto buscar a folha com a frase rabiscada e voltou para a cozinha.

"É isto", disse, sentando-se no seu lugar com a folha aberta na mão. "Sutil é o Senhor, mas malicioso Ele não é", leu de novo. "A Natureza esconde o seu segredo devido a sua essência majestosa, nunca por ardil." Olhou para o pai. "Na boca de um cientista, na sua opinião o que quer esta frase dizer?"

O matemático engoliu os flocos que se encontravam na colher.

"Einstein estava a referir-se a uma característica inerente ao universo, que é a forma como os mistérios mais profundos se mantêm habilidosamente ocultos. Por mais que tentemos chegar ao âmago de um enigma, descobrimos que existe sempre uma sutil barreira que nos impede de o desvendar completamente."

"Não estou a perceber..."

O pai girou a colher no ar.

"Olha, vou-te dar um exemplo", disse. "A questão do determinismo e da livre vontade. Este é um problema que tem atormentado a filosofia durante muito tempo, e que foi retomado pela física e pela matemática."

"Está a referir-se à questão de saber se nós tomamos decisões livres ou não?"


"Sim", assentiu. "O que te parece?"

"Bem, eu diria que somos livres, não é?" Tomás fez um gesto para a janela. "Por exemplo, eu vim aqui a Coimbra porque assim o decidi livremente." Apontou para o prato em cima da mesa. "O pai está a comer essa papa porque assim o quis."

"Achas que sim? Achas que estas decisões foram mesmo livres?"

"Quer dizer... uh... acho que sim, claro."

"Não terás vindo a Coimbra por estares condicionado psicologicamente pelo fato de eu estar doente? Não estarei eu a comer esta papa por estar condicionado fisiologicamente a ela ou por me encontrar influenciado por um qualquer anúncio televisivo sem que disso tenha consciência? Hã?" Balançou as sobrancelhas para cima e para baixo, a enfatizar o que acabara de dizer. "Até que ponto somos mesmo livres?

Não se estará a dar o caso de tomarmos decisões que parecem ser livres mas que, se formos a analisar a sua origem profunda, são condicionadas por um número sem fim de fatores, de cuja existência muitas vezes nem nos apercebemos? Será que a livre vontade não passa afinal de uma ilusão? Será que está tudo determinado, apesar de não termos consciência disso?"

Tomás remexeu-se na cadeira.

"Já percebi que essas perguntas trazem água no bico", observou, desconfiado.

"Qual é a resposta

da ciência? Somos livres ou não?"

"Essa é a grande dúvida", sorriu o pai, com malícia. "Se não me engano, o primeiro grande defensor do determinismo foi um grego chamado Leucipo. Ele afirmou 168


que nada acontece por acaso e tudo tem uma causa. Platão e Aristóteles, no entanto, pensavam de outra maneira e deixaram espaço aberto à livre vontade, um ponto de vista que a Igreja adoptou. Convinha-lhe, não é? Se o homem tinha livre vontade, Deus ficava desresponsabilizado de todo o mal que ocorria no mundo. Durante séculos prevaleceu assim a ideia de que os seres humanos dispõem de livre vontade. Só com Newton e o avanço da ciência é que o determinismo foi recuperado, ao ponto de um dos mais importantes físicos do século XVIII, o marquês Pierre de Laplace, ter feito uma importante constatação. Ele observou que o universo obedece a leis fundamentais e previu que, se conhecermos essas leis e se soubermos a posição, a velocidade e a direção de cada objeto e de cada partícula existente no universo, seremos capazes de conhecer todo o passado e todo o futuro, uma vez que tudo já se encontra determinado. Chama-se a isso o Demônio de Laplace. Tudo está determinado."

"Hmm", murmurou Tomás. "E o que diz a ciência moderna?"

"Einstein concordava com este ponto de vista e as teorias da Relatividade foram construídas segundo o princípio de que o universo é determinista. Mas a coisa complicou-se quando apareceu a Teoria Quântica, que veio trazer uma visão indeterminista ao mundo dos átomos. A formulação do indeterminismo quântico deve-se a Heisenberg, que, em 1927, constatou que não é possível determinar ao mesmo tempo, e de forma rigorosa, a velocidade e a posição de uma micropartícula. Nasceu assim o Princípio da Incerteza, que veio..."

"Já ouvi falar nisso", cortou Tomás, recordando a explicação que Ariana lhe tinha dado em Teerã. "O comportamento dos grandes objectos é determinista, o comportamento dos pequenos é indeterminista."

Manuel ficou um instante a mirar o filho.

"Caramba", exclamou. "Nunca imaginei que estivesses dentro do assunto."

"Sim, explicaram-me isso há pouco tempo. Não é esse o problema que lançou a busca de uma Teoria de Tudo, capaz de conciliar essas contradições?"

"Exato", confirmou o matemático. "É esse, hoje em dia, o grande sonho da física.

Os cientistas estão à procura de uma grande teoria que, entre outras questões, una a Relatividade e a Teoria Quântica e resolva o problema do determinismo ou indeterminismo do universo." Tossiu. "Mas é fundamental notar uma coisa. O

Princípio da Incerteza diz que não é possível determinar com exatidão o comportamento de uma partícula devido à presença do observador. Ao longo dos anos, este problema alimentou conversas entre mim e o professor Siza... aquele que desapareceu, sabes?"

"Sim."

"O que se passou foi que o Princípio da Incerteza, que é verdadeiro, provocou o que nós sempre achamos ser um chorrilho de disparates, com alguns físicos a dizerem que uma partícula só decide em que sítio se encontra quando aparece um observador."

"Também já ouvi falar nisso", disse Tomás. "É aquela história de que, se se puser um electrão numa caixa e se separarmos essa caixa em duas partes, o electrão está nas duas ao mesmo tempo e só quando alguém abrir uma das partes é que o electrão decide onde vai ficar..."

"Nem mais", confirmou o pai, impressionado com os conhecimentos que Tomás dispunha sobre física quântica. "Isso foi gozado por Einstein e por outros físicos, claro.

Eles recorreram a diversos exemplos para expor o absurdo dessa ideia, o mais famoso 169


dos quais é o do gato de Schrödinger." Tossiu. "Ora bem, Schrõdinger demonstrou que, a ser verdadeira a ideia de que uma partícula está

em dois sítios ao mesmo tempo, também um gato estaria vivo e morto ao mesmo tempo, o que é um absurdo."

"Sim,", concordou Tomás. "Mas, ó pai, não é essa mecânica quântica que, apesar de ser estranha e contra-intuitiva, bate certo com a matemática e a realidade?"

"Claro que bate certo", exclamou Manuel. "Mas a questão não é saber se bate certo, porque está visto que bate certo. A questão é saber se a interpretação está correcta."

"Como assim? Se bate certo é porque está correta."

O velho matemático sorriu.

"Aí é que entra a sutileza inerente ao universo", disse. "Repara, Heisenberg estabeleceu que não é possível determinar em simultâneo, e de modo exato, a posição e velocidade de uma partícula devido à influência do observador. Foi este enunciado que levou a que se afirmasse que o universo das micropartículas tem um comportamento indeterminista. É que não se consegue determinar o seu comportamento. Mas isso não quer dizer que o comportamento seja indeterminista, percebes?"

Tomás abanou a cabeça, desconcertado.

"Ai que trapalhada! Não percebo nada."

"Ouve, Tomás, toma atenção à sutileza. Heisenberg começou por estabelecer que a posição e velocidade de uma partícula não podem ser determinados em simultâneo e com exactidão devido à presença do observador. Repito, devido à presença do observador. Este é o ponto crucial. O Princípio da Incerteza jamais estabeleceu que o comportamento das micropartículas é indeterminista. O que se passa é que esse comportamento não pode ser determinado, devido à presença do observador e à sua interferência nas partículas observadas. Ou seja, as micropartículas têm um comportamento determinista, mas indeterminável. Entendeste?"

"Hmm..."

"É essa a sutileza." Levantou a mão. "Com uma subtileza adicional. É que o Princípio da Incerteza diz-nos também que jamais poderemos provar que o comportamento da matéria é determinista, uma vez que, quando o tentamos fazer, a interferência da observação impede-nos de obter essa prova."

"Entendi", murmurou Tomás. "Mas, então, por que razão esse debate existiu?"

O pai riu-se.

"Também a mim faço a mesma pergunta", disse. "Eu e o Siza sempre nos mostramos perplexos por ninguém perceber que isto era um problema de semântica, nascido da confusão entre a palavra indeterminista e a palavra indeterminável."

Levantou a mão. "Mas o essencial não é isso. O essencial é que, ao negar a possibilidade de algum dia podermos saber todo o futuro e o passado, o Princípio da Incerteza veio expor uma sutileza fundamental do universo. É como se o universo nos dissesse o seguinte: a história encontra-se determinada desde o nascer dos tempos, mas vocês jamais o poderão provar e jamais poderão conhecê-la com exatidão. É esta a sutileza. Através do Princípio da Incerteza, ficamos a saber que, embora esteja tudo determinado, a derradeira realidade é indeterminável. O universo ocultou o seu mistério por detrás desta sutileza."

Tomás releu a frase de Einstein.

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"Sutil é o Senhor, mas malicioso Ele não é", enunciou. "A Natureza esconde o seu segredo devido à sua essência majestosa, nunca por ardil." Ergueu a cabeça. "E esta parte de que Deus não é malicioso nem usa nenhum ardil?"

"É o que te tenho dito sempre", devolveu o pai. "O universo esconde o seu segredo, mas fá-lo devido à sua imensa complexidade."

"Entendi", confirmou Tomás. "No entanto, a indeterminabilidade do comportamento da matéria só se aplica ao universo atômico, não é?"

O matemático fez uma careta.

"Bem, a verdade é que essa subtileza existe a todos os níveis."

"Eu pensei que tinha dito que só havia indeterminabilidade quântica...", admirou-se Tomás.

"Quer dizer, isso é o que se pensava antigamente. Só que houve outras descobertas que foram feitas entretanto."

"Que descobertas?"

Manuel Noronha contemplou a cidade para além da janela, mas fê-lo com um olhar sonhador, como um pássaro fechado numa gaiola observa o céu para além das grades.

"Olha lá, e se fôssemos tomar um café ali à praça?"


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