XXXII

O primeiro sinal da aproximação a Shigatse surgiu numa curva, era uma longa arcada erguida à esquerda com uma sucessão de janelas sobre portões azuis. Tomás ia agora ao volante, Ariana a dormitar no seu ombro, quando se apercebeu que estava a entrar nos arredores da cidade e abrandou a marcha. Apareceram fileiras de pukhang, as casas tradicionais tibetanas feitas de adubo branco, com as suas típicas janelas negras e lungdas coloridas ao vento; as bandeiras de orações encontravam-se firmemente amarradas ao telhado escuro, na esperança de atraírem bom karma aos lares. Entraram numa avenida larga, flanqueada por postos de combustível da PetroChina e por muros vermelhos com entradas guardadas por sentinelas chinesas em sentido, tratava-se evidentemente dos quartéis das forças de ocupação. Árvores gadjan lançavam largas sombras sobre a estrada, aqui já asfaltada; viam-se poucos automóveis, mas havia muitas bicicletas a circular e alguns caminhões descarregavam nos passeios.

A iraniana despertou e ficaram ambos a observar a urbe que se espraiava pelo vale. Chegaram a um semáforo e, pela largura da avenida e o aspecto inestético das construções, perceberam que se encontravam na zona chinesa da cidade, feita de blocos e mais igual a outras cidades. Pararam junto a um aglomerado de chineses e Ariana baixou o vidro.

"Hotel Orchard?", perguntou Tomás, esticando-se quase por cima de Ariana.

"Uh?", respondeu um chinês.

Era evidente que não percebia a pergunta. Mais valia o recém-chegado concentrar-se na palavra-chave.

"Hotel?"

235


O homem falou num imperceptível mandarim e apontou para diante. Tomás agradeceu e o jipe arrancou na direcção indicada. Acabaram efectivamente por dar com um hotel, mas não era o Orchard. Ariana saiu e foi pedir direcções na recepção.

Percorreram as ruas largas da parte chinesa de Shigatse rumo ao ponto que lhes fora indicado. Chegaram ao cruzamento e voltaram à esquerda; as ruas tornaram-se aqui mais estreitas, era evidente que tinham acabado de penetrar no bairro tibetano.

Um monte coroado por ruínas envoltas em andaimes assinalava o Shigatse Dzong, o velho forte da cidade, uma estrutura que apresentava visíveis semelhanças com o magnífico Potala, embora mais pequena e reduzida a destroços pelos ventos destruidores da repressão chinesa.

Na esquina viraram de novo à esquerda, passaram por uma rua deslavada e, ao fundo, viram uma fachada ricamente ornamentada, néons brancos no topo a anunciar que aquele era o Tibet Gang-Gyan Shigatse Orchard Hotel. O seu destino.

Estacionaram diante do hotel e penetraram no lobby. O átrio era dominado por uma enorme mesa central, coberta por coloridos dragões; à esquerda encontrava-se uma banca envidraçada para venda de souvenirs e à direita estendiam-se confortáveis sofás negros.

Um rapaz tibetano, a pele trigueira por causa do sol, sorriu-lhes do balcão da recepção quando os dois entraram.

"Tashi deleh", cumprimentou.

Tomás devolveu o cumprimento com uma vênia com a cabeça.

"Tashi deleh", disse. Fez um esforço para se recordar das instruções que Jinpa lhe dera no Potala. "Uh... quero falar com o bodhisattva Tenzing Thubten."

O rapaz fez um ar atônito.

"Tenzing?"

"Sim", assentiu Tomás. "Preciso que Tenzing me mostre o caminho."

O tibetano pareceu um pouco hesitante. Olhou em redor, voltou a fixar os olhos escuros em Tomás, mirou fugazmente Ariana e, tendo-se aparentemente decidido, fez-lhes sinal para se sentarem nos sofás do salão. Depois saiu à pressa do hotel e Tomás viu-o atravessar a rua e a pequena praceta ajardinada do outro lado.


Um monge veio à porta do hotel, trazido pelo recepcionista, e curvou-se numa vénia diante dos desconhecidos. Trocaram os habituais tashi deleh, desejando-se mutuamente boa sorte, e o tibetano deu-lhes indicação para o seguirem. Dirigiram-se para uma enorme estrutura religiosa que se erguia, esplendorosa, mesmo em frente, no sopé de um monte esverdeado; o complexo branco e avermelhado apresentava belíssimos telhados dourados, as pontas curvadas para cima à maneira dos pagodes, as janelas negras contemplando sobranceiramente a cidade.

"Gompa?", perguntou Tomás, usando a palavra mosteiro, que memorizara em Lhasa, enquanto apontava para o edifício.

"La ong", assentiu o monge, ajeitando os tradicionais panos púrpura que lhe cobriam o corpo. "Tashilhunpo gompa."

"Tashilhunpo", disse Ariana. "É o mosteiro de Tashilhunpo."

"Conheces?"


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"Já ouvi falar neste mosteiro, sim. Parece que é aqui que está enterrado o primeiro Dalai-Lama."

"Ah, sim?"

"E é também o mosteiro que alberga o Panchen Lama."

"Quem é esse?"

"O Panchen Lama? É a segunda figura mais importante do budismo, só suplantada pelo Dalai-Lama. Acho que panchen significa grande mestre. Os chineses têm usado o Panchen Lama para desafiar a autoridade do Dalai-Lama, mas sem grande sucesso. Dizem que o Panchen Lama acaba sempre por virar antichinês."

O sol batia forte e o ar era seco. Um desagradável fedor a lixo e a urina pairava pelas ruas, mas, à vista do portão do mosteiro, o odor fétido foi substituído pelo aroma perfumado a incenso. Cruzaram a entrada e deram consigo num grande pátio com vista para todo o mosteiro; dali tornava-se claro que se encontravam diante de um gigantesco e esplêndido complexo, todo o perímetro cercado por um longo muro. Na base da elevação sobre a qual assentava Tashilhunpo aglomeravam-se edifícios brancos, claramente uma área residencial monástica, e em cima erguiam-se construções avermelhadas cobertas pelos vistosos telhados dourados.

Tomás e Ariana seguiram o monge, escalando uma tranquila ruela de pedra que ascendia pela encosta. O tibetano galgou rápido o chão inclinado, mas os dois visitantes depressa tiveram de parar, arfantes, à sombra de uma garbosa árvore yonboh. Shigatse ficava ainda mais alto do que Lhasa e o ar rarefeito da altitude escasseava-lhes nos pulmões.

"Fala inglês?", perguntou Tomás, dirigindo-se ao monge que o aguardava uns metros mais adiante, sorridente e expectante.

O tibetano aproximou-se.

"Um pouco."

"Vamos encontrar-nos com um bodhisattva", observou o historiador. Arfou um pouco, ainda a recuperar o fôlego. "O que é um bodhisattva exatamente?"

"É uma espécie de Buda."

"Uma espécie de Buda? O que quer dizer com isso?"

"É alguém que atingiu a iluminação mas saiu do nirvana para ajudar os outros seres humanos.

É um santo, um homem que recusou a salvação para si enquanto não se salvarem os outros."

O monge deu meia-volta e arrastou-os para o topo do complexo. Chegaram a um caminho que percorria lateralmente uma estrutura de edifícios avermelhados, e o tibetano virou à esquerda, subindo umas escadas de pedra preta e mergulhando num bloco rubro. Os visitantes foram atrás, sempre ofegantes, e penetraram no mesmo local; atravessaram um alpendre escuro e desembocaram num pátio tranquilo, onde monges se afadigavam em torno de uma vasilha de gordura gemada. Era o átrio do templo de Maitreya.

O tibetano fez-lhes sinal para entrarem num pequeno compartimento sombrio, à direita, apenas iluminado por velas e pela luz difusa que penetrava por uma discreta janelinha. Tudo ali tinha um ar austero, quase primitivo. Cheirava a uma mistura de manteiga de iaque e incenso, um odor que competia com o aroma doce e perfumado de uma nuvem cinzenta, era o fumo libertado pelo carvão que ardia num antiquado fogão 237


de ferro. A chama amarela do fogão lambia uma velha chaleira negra, lançando clarões quentes e tremelicantes sobre as sombras do cubículo, como se pulsasse de vida.

Os dois sentaram-se em bancos cobertos por tapetes thangka vermelhos e viram o monge pegar no bule pousado sobre o fogão, encher duas chávenas e estendê-las em direção a si.

“Cha she rognang."

Era chá de manteiga de iaque.

"Obrigado", disse Tomás, disfarçando um esgar de repulsa perante a perspectiva de ter de beber aquela mistela gordurosa. Olhou para Ariana. "Como é que se diz obrigado em tibetano?"

"Thu djitchi."

"Isso." Fez uma vênia na direção do monge. "Thu djitchi.'"

O monge sorriu e esboçou um gesto com as palmas das mãos, pedindo-lhes para aguardarem.

"Gong da", disse, antes de desaparecer.


Não se passaram sequer vinte minutos.

O monge que os viera acolher reapareceu na salinha, mas trazia alguém consigo.

Era um outro monge, muito magro e pequeno, dobrado pela idade, que caminhava com dificuldade, apoiado num cajado e com o ombro direito nu. O primeiro ajudou o mais velho a acomodar-se numa enorme almofada. Trocaram algumas palavras em tibetano, ao fim das quais o primeiro curvou-se numa vênia e retirou-se.

Fez-se silêncio.

Apenas se ouviam os pássaros a chilrear pelo pátio, lá fora, e o carvão a estalar suavemente no fogão de ferro. Tomás e Ariana observaram o recém-chegado, mirrado sobre a grande almofada. O velho monge ajeitou o pano do tasen púrpura que o cobria e endireitou-se; os olhos desfocaram-se e perderam-se num ponto infinito, como se se alheasse do mundo que o rodeava.

Silêncio.

O budista parecia ignorar a presença dos dois forasteiros. Talvez estivesse em meditação, talvez tivesse mergulhado num transe. Fosse como fosse, o ancião nada dizia, limitava-se apenas a permanecer ali. Tomás e Ariana entreolharam-se, baralhados e divertidos, sem saber se deveriam falar, se o tibetano entrara ali por engano, se aquele era algum costume local ou se porventura estaria cego. Por via das dúvidas mantiveram-se em silêncio e aguardaram o desenrolar dos acontecimentos.

O mutismo prolongou-se por dez tranquilos minutos.

O velho monge permanecia quieto, os olhos congelados, a respiração pausada; até que, sem que nada o parecesse justificar, estremeceu e ganhou vida.

"Eu sou o bodhisattva Tenzing Thubten", anunciou com uma voz afável. Falava um inglês surpreendentemente perfeito, com um acentuado sotaque britânico. "Ouvi dizer que me procuravam para vos mostrar o caminho."

Tomás quase suspirou de alívio. Ali estava enfim, diante de si, Tenzing Thubten, o remetente do enigmático postal que encontrara em casa do professor Siza. Era este talvez o homem que lhe podia dar as respostas que procurava, que lhe podia 238


solucionar os segredos levantados pela sua busca, ou, quem sabe, que lhe podia até acrescentar mais alguns enigmas aos muitos mistérios que já o apoquentavam.

"Eu sou Tomás Noronha, professor de História da Universidade Nova de Lisboa."

Fez um gesto em direcção a Ariana. "Esta é Ariana Pakravan, física nuclear no Ministério da Ciência, em Teerã." Curvou a cabeça. "Muito obrigado por nos receber.

Fizemos um longo caminho para aqui estar."

O monge curvou os lábios.

"Vieram-me ver para que eu vos ilumine?"

"Uh... de certo modo, sim."

"Serei um bom médico para os doentes e sofredores. Conduzirei ao caminho correcto aqueles que se extraviaram. Serei uma luz brilhante para os que estão na noite escura e farei com que os pobres e indigentes descubram tesouros escondidos", entoou. "Assim reza o Avatamsaka sutra." Ergueu a mão. "Bem-vindos a Shigatse, viajantes na noite escura."

"É nosso prazer estar aqui."

Tenzing apontou para Tomás.

"Você disse que é de Lisboa?"

"Sim."

"É português?"

"Sou."

"Hmm", murmurou. "Foram portugueses os primeiros ocidentais a chegar ao coração do Tibete."

"Perdão?", admirou-se Tomás.

"Eram dois padres jesuítas", disse Tenzing. "O padre Andrade e o padre Marques ouviram rumores da existência de uma seita cristã num vale perdido do Tibete.

Disfarçaram-se de peregrinos hindus, atravessaram a índia e chegaram a Tsaparang, uma fortaleza erguida no centro do reino Guge, no vale Garuda. Construíram uma igreja e estabeleceram o primeiro contacto entre o Ocidente e o Tibete."

"Quando foi isso?"

"Em 1624." Fez uma vénia. "Bem-vindo, peregrino português. Se não vens disfarçado de hindu, qual a igreja que nos trazes desta vez?"

Tomás sorriu.

"Não lhe trago nenhuma igreja. Apenas umas perguntas."

"Procuras o caminho?"

"Procuro o caminho de um homem chamado Augusto Siza."

Tenzing reagiu com bonomia ao nome.

"O jesuíta."

"Não, não", disse Tomás, abanando a cabeça. "Ele não era jesuíta. Nem sequer religioso. Era professor de Física na Universidade de Coimbra."

"Eu chamava-lhe o jesuíta", disse Tenzing, como se nem tivesse escutado aquela retificação.

Riu-se. "Ele não gostava, claro. Mas eu não o fazia por mal. Chamava-lhe o jesuíta em homenagem aos seus antepassados que há quatrocentos anos vieram até 239


aqui, ao reino Guge. Mas era também uma piada, relacionada com o trabalho em que ambos andamos metidos."

"Qual trabalho?"

O bodhisattva baixou a cabeça.

"Não lhe posso dizer."

"Porquê?"

"Porque ficou acordado que seria ele a fazer o anúncio."

Tomás e Ariana entreolharam-se. O historiador respirou fundo e mirou o velho tibetano.

"Tenho uma má notícia para lhe dar", disse. "Receio bem que o professor Augusto Siza tenha falecido."

Tenzing permaneceu hirto.

"Era um bom amigo", suspirou, como se a informação não o chocasse. "Desejo-lhe felicidades para a nova vida."


"A nova vida?"

"Reencarnará lama, de certeza. Será um homem bom e sábio, respeitado por todos os que o vierem a conhecer." Ajeitou o manto púrpura que o cobria. "Muitos de nós somos acossados pela duhkha, pela frustração e pela dor que nos traz a vida, mantendo-nos agarrados às ilusões criadas pela maya. Mas tudo isso é avidya, é a ignorância acima da qual precisamos de nos erguer. Se o fizermos, libertar-nos-emos do karma que nos acorrenta." Fez uma pausa. "Eu e o jesuíta caminhamos juntos durante algum tempo, como companheiros de viagem que decidem descobrir-se um ao outro. Mas

depois chegámos a uma bifurcação, eu escolhi um caminho e ele escolheu outro.

Os nossos trilhos tornaram-se diferentes, é verdade, mas o destino permaneceu sempre o mesmo."

"E qual é esse destino?"

O bodhisattva respirou fundo. Cerrou os olhos, adoptando a postura de meditação. Era como se ponderasse o que fazer; como se elevasse a sua consciência até à sunyata, o grande vazio; como se fundisse o seu ser com a eterna Dhartnakaya e procurasse aí a resposta ao seu dilema. Poderia contar tudo ou deveria manter-se calado? Será que o espírito do seu velho amigo, o homem a quem chamava o jesuíta, viria em seu socorro para o guiar?

Abriu os olhos com a decisão tomada.

"Eu nasci em 1930 em Lhasa, filho de uma família nobre. O meu primeiro nome foi Dhargey Dolma, que significa o Progresso com a deusa Dolma dos Sete Olhos. Os meus pais deram-me este nome porque acreditavam que o desenvolvimento era o caminho do Tibete e que era preciso estar atento à mudança, estar atento com sete olhos. Quando eu tinha quatro anos, no entanto, mandaram-me para o mosteiro de Rongbuk, no sopé do Chomo-langma, a grande montanha a que nós chamamos Deusa Mãe do Universo." Fitou Tomás. "Vocês chamam-lhe Evereste." Retomou a pose anterior. "Tornei-me profundamente religioso quando tomei contacto com os monges de Rongbuk. A tradição budista estabelece que todas as coisas existem por causa de um nome e de um pensamento, nada existe por si. Em conformidade, mudei de nome para me tornar outra pessoa. Aos seis anos, passei a chamar-me Tenzing Thubten, ou 240


o Protector do Dharma que segue o Caminho do Buda. Por essa altura, o Tibete estava a abrir-se ao Ocidente, uma evolução que era do agrado da minha família. Quando atingi os dez anos, em 1940, os meus pais chamaram-me a Lhasa para assistir à cerimónia que entronou o décimo quarto Dalai-Lama, Tenzing Gyatso, aquele que ainda nos guia e em quem me inspirei para o meu novo nome. Logo a seguir fui mandado para uma escola inglesa em Darjeeling, como era costume entre as famílias de alta sociedade do Tibete."

"O senhor estudou numa escola inglesa?"

O bodbisattva assentiu com a cabeça.

"Durante muitos anos, meu amigo."

"Daí o seu inglês tão... uh... tão britânico. Calculo que tenha achado tudo um pouco diferente..."

"Muito diferente", confirmou Tenzing. "O tipo de disciplina era diferente e os rituais também.

Mas a principal diferença radicava na metodologia. Quando se trata de analisar uma questão, há todo um universo a separar-nos. Descobri que vocês, os ocidentais, gostam de dividir um problema em vários problemas menores, gostam de o separar e isolar para melhor o analisar. É um método que tem as suas virtudes, não o nego, mas possui um defeito terrível."

"Qual é?"

"Cria a impressão de que a realidade é fragmentada. Foi isso o que eu descobri em Darjeeling com os vossos professores. Para vocês, uma coisa é a matemática, outra a química, outra a física, outra o inglês, outra o desporto, outra a filosofia, outra a botânica. Na vossa maneira de pensar, todas as coisas são separadas." Abanou a cabeça. "Isso é uma ilusão, claro. A natureza das coisas está na sunyata, o grande vazio, e está também na Dharmakaya, o Corpo do Ser. A Dbarmakaya encontra-se em todas as coisas materiais do universo e reflecte-se na mente humana como bodhi, a sabedoria iluminada. O Avatamsaka sutra, que é o texto fundamental do budismo mabayana, assenta na idéia de que a Dbarmakaya está em tudo. Todas as coisas e todos os acontecimentos encontram-se relacionados, unidos por fios invisíveis. Mais do que isso, todas as coisas e todos os acontecimentos são a manifestação da mesma unidade." Pausa. "Tudo é um."

"O senhor foi então confrontado com dois mundos totalmente diferentes."

"Totalmente diferentes", concordou o bodhisattva. "Um que tudo fragmenta, outro que tudo une."

"Deu-se mal em Darjeeling?"

"Pelo contrário. O pensamento ocidental foi uma revelação. Eu, que antes chorava por estar fora do Tibete, agora abraçava a nova maneira de pensar. Ainda por cima porque atingi a excelência em duas disciplinas, a matemática e a física. Tornei-me o melhor aluno da escola inglesa, melhor que qualquer inglês ou indiano."

"Ficou em Darjeeling até quando?"

"Até atingir os dezessete anos."

"Foi nessa altura que voltou para o Tibete?"

"Sim. Em 1947, justamente no ano em que os britânicos saíram da Índia, regressei a Lhasa. Usava agora gravata e tive enorme dificuldade em adaptar-me à vida no Tibete. Aquilo que antes me parecia tão acolhedor como o útero da mãe, 241


afigurava-se-me agora um lugar atrasado, tacanho, provinciano. A única coisa que me fascinava era a mística, era a sensação intelectual de levitar, era o espírito budista de busca da essência da verdade." Ajeitou-se melhor sobre a almofada gigante. "Dois anos depois de chegar ao Tibete ocorreu um acontecimento na China que viria a ter repercussões profundas nas nossas vidas. Os comunistas assumiram o poder em Pequim. O governo tibetano expulsou todos os chineses do país, mas os meus pais viram mais longe. Eram pessoas informadas e conheciam os desígnios de Mao Tsé-

Tung sobre o Tibete. Decidiram, por isso, mandar-me outra vez para a Índia. Mas a Índia já não era a mesma Índia e, através de antigos professores de Darjeeling que conheciam bem os meus dotes na matemática e na física, acabei por ser recomendado para um estágio na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque."

"O senhor foi de Lhasa para Nova Iorque?"

"Imagine", sorriu Tenzing. "Da Cidade Proibida até à Grande Maçã, do Potala até ao Empire State Building." Riu-se. "Foi um choque. Num instante estava a passear pelo Barkhor, no momento seguinte encontrava-me no meio de Times Square."

"Que tal a Universidade de Colúmbia?"

"Estive lá pouco tempo. Apenas uns seis meses."

"Tão pouco?"

"Sim. Um dos meus professores tinha estado envolvido no Projeto Manhattan, o programa militar que juntara os maiores físicos do Ocidente para fabricar a primeira bomba atômica. Aliás, o projeto chamava-se Manhattan justamente porque começou a ser desenvolvido na Universidade de Colúmbia, em Manhattan."

"Não sabia."

"Pois o meu professor, como catedrático de Física em Colúmbia, esteve empenhado nesse programa. Quando me conheceu ficou de tal modo impressionado com as minhas capacidades que resolveu recomendar-me ao seu mentor, um homem muito famoso."

"Quem?", perguntou Tomás.

"Albert Einstein", disse Tenzing muito devagar, sabendo que ninguém permanecia indiferente a este nome. "Einstein trabalhava então no Institute for Advanced Study, em Princeton, e era um

grande admirador de alguns aspectos da cultura oriental, como o confuncionismo. Estávamos em 1950 e, nessa altura, decorriam acontecimentos muito graves no Tibete. Pequim anunciou logo em Janeiro que iria libertar o nosso país e, ato contínuo, as forças chinesas invadiram toda a região do Kham, atingindo o rio Iangtzé. Era o princípio do fim da nossa independência. Simpatizando com a causa tibetana, Einstein acolheu-me de braços abertos. Eu era muito novo, claro, tinha apenas vinte anos, e o meu novo mestre resolveu pôr-me a trabalhar com um outro estagiário, um rapaz um ano mais velho do que eu." O bodhisattva arqueou as sobrancelhas brancas. "Presumo que calcule de quem se tratava."

"O professor Siza."

"Na altura não era ainda professor. Era apenas o Augusto. Simpatizamos logo e, como eu conhecia a história dos primeiros exploradores europeus do Tibete serem os jesuítas portugueses, logo alcunhei o meu novo amigo de o Jesuita. Riu-se com gosto, quase como uma criança. "Ah, havia de ver a cara que ele fazia! Até espumava!

Contra-atacou e chamou-me monge careca, mas isso para mim não era problema, pois eu fui mesmo um monge em Rongbuk, não é?"

242


"E o que faziam os dois?"

"Oh, muita coisa." Voltou a rir-se. "Mas a maior parte eram disparates e tropelias.

Olhe, uma vez pintamos um bigodinho à Hitler no retrato do Mahatma Gandhi que Einstein tinha no primeiro andar da sua casa, em Mercer Street. Ui! O velho ficou furioso, até os cabelos se lhe puseram de pé! Vocês haviam de ver..."

"Mas vocês os dois não trabalhavam?"

"Claro que trabalhávamos. Einstein estava nessa altura envolvido num trabalho muito complicado e ambicioso. Ele queria desenvolver a Teoria de Tudo, uma teoria que reduzisse a uma única fórmula a explicação da força da gravidade e da força eletromagnética. Era uma espécie de grande teoria do universo."

"Sim, já sei", disse Tomás. "Einstein dedicou os seus últimos anos de vida a esse projeto."

"E arrastou-nos nesse trabalho. Pôs-me a mim e ao Augusto a testar formulações diferentes. Andamos um ano nisso, até que, em 1951, Einstein chamou-nos ao seu gabinete e tirou-nos do projeto."

"Ah, sim? Porquê?"

"Ele tinha uma outra coisa para nos dar. Uma ou duas semanas antes, não sei exatamente quando, Einstein tinha recebido em sua casa uma importante visita. Era o primeiro-ministro de Israel. Durante a conversa, o primeiro-ministro fez-lhe um desafio de grande importância. De início, Einstein mostrou-se relutante em corresponder a esse desafio, mas, ao fim de alguns dias, foi ganhando entusiasmo e decidiu envolver-nos no trabalho. Tirou-nos do projeto da Teoria de Tudo e colocou-nos no novo projecto, uma coisa muito usb-ush, muito confidencial, muito secreta."

Tomás e Ariana inclinaram-se para a frente, ansiosos por saberem do que se tratava.

"Que... que projeto era esse?"

"Einstein deu-lhe um nome de código", revelou Tenzing. "Chamou-lhe A Fórmula de Deus.'"

Fez-se um silêncio profundo na pequena sala.

"E em que consistia esse projecto?", perguntou Ariana, falando pela primeira vez.

O bodhisattva remexeu-se na almofada, colocou a mão na região lombar, contorceu-se e esboçou um esgar de dor. Olhou em redor do compartimento escurecido, apenas iluminado pelas velas de manteiga de iaque e pela chama amarela do fogão, e respirou fundo.

"Não estão cansados de estar aqui fechados?"

Os dois visitantes iam sofrendo um ataque de nervos. Ansiavam pela resposta, desesperavam pelo desvendar do mistério, sufocavam com a angústia da espera pela revelação; tinham atingido o ponto mais importante da busca, diante de si sentava-se o homem que aparentemente dispunha de todas as respostas, a conversa chegara ao momento-chave, ao instante crucial. E o que fazia Tenzing? Queixava-se de estar há muito tempo fechado naquele quarto.

"Em que consistia o projeto?", insistiu Ariana, exasperada e impaciente.

O bodhisattva esboçou um gesto sereno.

"A montanha é a montanha e o caminho o mesmo de sempre", entoou, pousando a palma da mão no peito. "O que realmente mudou foi o meu coração."

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Fez-se um silêncio confuso.

"O que quer isso dizer?"

"Este quarto escuro é o mesmo quarto escuro e a verdade a mesma de sempre.

Mas o meu coração cansou-se de aqui estar." Fez um movimento majestoso na direção da porta. "Vamos lá para fora."

"Para onde?"

"Para a luz", disse Tenzing. "Iluminar-vos-ei o caminho num caminho iluminado."


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