XL

Abandonaram a Biblioteca Joanina lado a lado. A noite caíra sobre Coimbra e uma aragem fresca soprava baixo pelo quase deserto Pátio das Escolas. Tomás estacou num degrau e olhou para o relógio da torre; eram já nove da noite. Havia muito tempo que não comia, mas a angústia de saber que só dispunha de mais onze horas para resolver o enigma roubava-lhe o apetite. É certo que Luís Rocha já lhe desvendara uma significativa parte do mistério, mas faltava-lhe o derradeiro pormenor. A cifra que continha a fórmula de Deus.

"Diga-me uma coisa", murmurou Tomás. "Não faz idéia do que consiste a última mensagem cifrada por Einstein, pois não?"

O físico olhou-o de modo estranho.

"Venha comigo", disse, fazendo um gesto com a mão para o seguir.

Luís Rocha desceu os degraus e virou à esquerda, com Tomás no encalço.

Caminharam até à porta seguinte, no edifício situado ao lado da biblioteca. O

historiador cruzou o magnífico portal que decorava a porta e, quase sem querer, decerto por deformação de historiador, identificou-lhe logo o estilo manuelino.

"Isto é uma igreja?", interrogou-se.

"É a Capela de São Miguel", revelou o seu anfitrião, arrastando-o para o interior.

"Começou a ser erguida no século XVI."

As paredes apresentavam-se cobertas de azulejos azulados e o teto mostrava-se ricamente ornamentado com as armas de Portugal, mas o que dominava a capela era o soberbo órgão barroco incrustado na parede, à direita; tratava-se de um instrumento belíssimo, trabalhado ao pormenor, com anjos sentados no topo a soprar trompetes.

"Por que me trouxe aqui?", quis saber Tomás.

O físico sentou-se na ponta de um banco forrado a couro e sorriu.

"Não acha que faz sentido estarmos na casa de Deus quando estamos a falar de Deus?"

"Mas o Deus que você me apresentou não é o Deus da Bíblia", observou o historiador, fazendo um sinal com a cabeça para a imagem de Cristo crucificado sobre o altar.

320


"Eu apresentei-lhe Deus, meu caro", retorquiu Luís Rocha. "O resto são detalhes, não acha?"

"Se você o diz..."

"Uns chamam-lhe Deus, outros chamam-lhe Yeovah, outros Allah, outros Brahman, outros Dharmakaya, outros Tao." Colocou a palma da mão ao peito. "Nós, os cientistas, chamamos-lhe universo. Diferentes nomes, diferentes atributos, a mesma essência."

"Estou a ver", comentou o historiador. "Mas isso não resolve o meu problema, pois não?"

"Qual é o seu problema?"

"Em que consiste a última mensagem cifrada por Einstein?"

Luís Rocha deslizou na bancada e fez sinal a Tomás, que permanecia de pé, para se sentar ao seu lado. O historiador fez-lhe a vontade, apesar da angústia que lhe roía a paciência.

"Conhece as matriuskas?", perguntou o físico.

"Quem?"

"As matriuskas."

"São aquelas bonecas russas, não são?"

"Sim. Quando se abre uma, há sempre outra por dentro." Sorriu. "Tal como uma matriuska, a descoberta da segunda via resolveu um enigma, mas revelou um outro.

Se Deus existe e concebeu o universo com uma afinação tal que determinou a nossa criação, tal parece indiciar que a nossa existência é o objetivo do universo, não é verdade?"

"É lógico."

"Mas isso não faz sentido, pois não?"

"Acha que não?", admirou-se Tomás. "Para mim faz todo o sentido."

"Faz sentido porque é uma constatação reconfortante", argumentou Luís Rocha.

"Afinal de contas, a ciência sempre nos disse que nós não passávamos de uma insignificância à escala do universo, absolutamente irrelevantes na imensidão da existência, não é? Havia físicos que até defendiam que a vida pouco mais era do que uma farsa e que a nossa presença não possuía qualquer utilidade."

"Pelos vistos estavam enganados."

"Pois", assentiu Luís Rocha. "Considerando que o universo foi incrivelmente afinado para criar vida e que isso não é nenhum acidente porque está determinado desde o início do tempo, sim, tenho

de concordar que os meus colegas estavam enganados. E, no entanto, a questão mantém-se: não faz sentido que a nossa existência seja o objetivo do universo."

"Mas por que diz isso?"

"Pela simples razão de que nós aparecemos numa fase relativamente inicial da vida do universo. Se fôssemos o objetivo, apareceríamos no fim, não é? Mas não aparecemos. Aparecemos pouco depois do início. Porquê?"

"Será que Deus estava com pressa em criar-nos?"

"Mas para quê? Para que nos divertíssemos? Para que pudéssemos passar o tempo a ver televisão? Para tomarmos uns copos numa esplanada? Para andarmos 321


sempre a falar de futebol e de mulheres? Para elas andarem a ler revistas cor-de-rosa e a ver telenovelas? Para quê?"

Tomás encolheu os ombros.

"Sei lá", exclamou. "Mas qual é a relevância dessa questão?"

Luís Rocha cravou os seus olhos castanhos nos verdes de Tomás.

"Porque esta é a questão resolvida pela última mensagem de Einstein."

"Como?"

"A cifra inserida por Einstein em A Fórmula de Deus resolve o problema do propósito da nossa existência."

Tomás meteu a mão ao bolso e retirou o papelinho dobrado que o acompanhava sempre.

Desdobrou a folha e releu a mensagem cifrada.


See sign

!ya ovqo

"Isto?"

"Sim."


"Você está-me a dizer que esta charada resolve o enigma da nossa existência?"

"Sim. Ela revela o objetivo da existência da vida."

O historiador voltou a analisar a mensagem.

"Mas como sabe você isso?"

"Foi o professor Siza que me disse."

"O professor Siza conhecia o segredo?"

"O professor Siza conhecia a pista para o segredo. Ele disse-me que Einstein lhe revelou que esta mensagem cifrada continha o endgame do universo."

"O endgame?"

"É uma expressão muito popular na América. Significa o objetivo final de um jogo."

Tomás abanou a cabeça, tentando entender o que lhe era revelado.

"Desculpe, não estou a perceber", exclamou. "Onde está a tentar chegar?"

O físico fez um gesto largo.

"Olhe para tudo o que nos rodeia", disse. "Aqui neste planeta há vida em toda a parte. Nas planícies e nas montanhas, nos mares e nos rios, entre as pedras e até debaixo da terra. Para onde nos viremos, vemos vida. E, no entanto, sabemos que tudo isto é efêmero, não é?"

"Claro, todos morremos."

"Não é isso o que eu estou a dizer", corrigiu Luís Rocha. "Quando eu digo que é tudo efêmero, o que eu quero dizer é que tudo isto está condenado a desaparecer. O

período em que a vida é possível no universo é muito limitado."

322


"O que quer dizer com isso?"

"O que eu quero dizer é que nada é eterno. O que eu quero dizer é que este período fértil em vida não passa de um pequeno episódio na história do universo."

"Um pequeno episódio? Não entendo..."

"Ouça, a vida na Terra depende da atividade do Sol, não é? Ora bem, o Sol não vai existir até à eternidade. Se fosse um homem, já teria mais de quarenta anos, o que significa que provavelmente já passou mais de metade da sua existência. Todos os dias a nossa estrela está a tornar-se mais luminosa, aquecendo gradualmente o planeta até acabar por destruir toda a biosfera, o que deverá acontecer dentro de mil milhões de anos. Como se isso não bastasse, daqui a quatro ou cinco mil milhões de anos todo o combustível que alimenta a atividade solar irá esgotar-se. O núcleo, num esforço desesperado para manter a produção de energia, deverá encolher-se até que os efeitos quânticos actuem para o estabilizar. Nessa altura, o Sol inchará tanto que se transformará numa estrela gigante vermelha, com a sua superfície a crescer até engolir os planetas interiores."

"Que horror!"

"Pois é", disse o físico. "Mas é melhor ir-se habituando à idéia. Isto vai ficar muito pouco agradável, sabe? A própria Terra acabará por ser engolida pelo Sol, mergulhando naquela fornalha infernal. E, quando todo o combustível solar for consumido, a pressão interna entrará em colapso e o Sol encolherá até ficar reduzido ao atual tamanho da Terra, arrefecendo como uma anã negra. O mesmo processo ocorrerá nas estrelas que se encontram no céu. Uma a uma, todas incharão e todas morrerão, umas encolhendo até se tornarem anãs, outras explodindo em supernovas."

"Mas podem nascer novas estrelas, não é?"

"Vão nascer novas estrelas. O problema é que já nascem cada vez menos estrelas, porque os elementos que as formam estão a desaparecer, ou seja, o hidrogênio primordial está a esgotar-se e os gases começaram a dissipar-se. O pior é que, daqui a alguns milhares de milhões de anos, deixarão de nascer estrelas. Só haverá funerais galácticos. Com a gradual morte das estrelas, as galáxias vão-se tornando cada vez mais escuras até que, um dia, se apagarão todas e o universo se transformará num imenso cemitério, cheio de buracos negros. Mas mesmo os buracos negros irão desaparecer, com o total regresso da matéria à forma de energia. Numa fase muito adiantada, apenas restará radiação."

"Puxa", exclamou Tomás, uma expressão sombria no rosto. "O futuro adivinha-se negro."

"Muito negro", concordou Luís Rocha. "O que levanta um grande problema ao Princípio Antrópico, não acha?"

"Claro. Se o universo está destinado a morrer dessa forma, qual o objetivo da vida? Por que razão Deus afinou a criação do universo para permitir o nascimento da vida se planejava destruí-la logo a seguir? Qual o propósito de tudo isto?"

"Foi justamente isso o que pensou o professor Siza. Para quê criar a vida se a idéia é destruí-la logo a seguir? Para quê tanto trabalho se o seu produto é tão efémero? Qual é, afinal, o endgame?'"

"Pois, esse é um problema sem solução, não é?"

"Não", disse o físico. "Pelo contrário, tem solução."

Tomás arregalou os olhos.

"O quê?", admirou-se. "Tem solução?"

323


"Sim, o professor Siza encontrou a solução."

"Então conte lá isso, homem", exclamou o historiador, impaciente. "Não me mantenha assim em suspenso!"

"Chama-se o Princípio Antrópico Final e nasce da constatação de que não faz sentido estar tudo organizado de modo a fazer aparecer vida para depois se deixar que ela desapareça dessa maneira. O Princípio Antrópico Final postula que o universo se encontra afinado para provocar o nascimento da vida. Mas não é uma vida qualquer.

É a vida inteligente. E, após ter aparecido, a vida inteligente jamais desaparecerá."

O historiador ergueu uma sobrancelha, mantendo a outra cerrada, numa expressão incrédula.

"A vida inteligente jamais desaparecerá?"

"Sim."

"Mas... mas como é isso possível? Não foi você que acabou de dizer que a Terra vai ser destruída?"

"Sim, claro. Isso é inevitável."

"Então como é possível que ela nunca desapareça?"

"Teremos de sair da Terra, está visto."

"Sair da Terra?" Tomás riu-se. "Desculpe lá, mas isto já começa a parecer má ficção científica."

"Acha que sim? E, no entanto, alguns cientistas começam a encarar seriamente esse cenário, sabia?"

O sorriso do historiador desfez-se.

"A sério?"

"Claro. A Terra não tem futuro, vai ser destruída."

"E vamos para onde?"

"Ora! Vamos para outras estrelas, claro."

Tomás abanou a cabeça, baralhado.

"Desculpe, mas, mesmo que assim seja, o que resolve isso?"

"Bem... parece-me óbvio, não é? Se formos para as estrelas, escaparemos à inevitável destruição da Terra."

"E o que nos adianta isso? Não são as estrelas que também vão desaparecer? Não são as galáxias que também se vão apagar? Não é o universo que também vai morrer?

Mesmo que consigamos escapar da Terra, estaremos apenas a adiar o inevitável, não lhe parece? Nessas circunstâncias, como é possível postular que a vida inteligente jamais desaparecerá?"

Luís Rocha percorreu com os olhos o altar maneirista da capela, mas a mente encontrava-se bem longe dali, mergulhada algures nos labirintos do pensamento.

"O estudo da sobrevivência e do comportamento da vida no futuro longínquo constituiu-se recentemente como um novo ramo da física", disse, a voz assumindo o tom neutral característico das exposições acadêmicas. "Sabe, as investigações em torno desta questão começaram com a publicação em 1979 de um artigo assinado por Freeman Dyson com o título Time witbout end: Physics and Biology in an Open Universe. Dyson esboçou aí um primeiro esquema, muito incompleto, que viria a ser reformulado por outros cientistas que se interessaram pela mesma questão, 324


designadamente Steve Frautschi, o qual publicou um outro texto científico sobre o mesmo assunto na revista Science em 1982. Sucederam-se novos estudos em torno deste problema, todos eles assentes inteiramente nas leis da física e na teoria dos computadores."

Tomás manteve uma expressão perplexa.

"Acho tudo isso extraordinário", comentou. "Não fazia a mínima idéia de que tinha aparecido um novo ramo da física dedicado à sobrevivência da vida no futuro longínquo. Se quer que lhe diga, nem vejo como tal seja possível, considerando o assustador cenário que você traçou sobre a inevitável morte das estrelas e das galáxias. Como é possível que a vida sobreviva nessas condições?"

"Quer que eu lhe explique?"

"Faça o favor. Sou todo ouvidos."

"Olhe, vou-lhe dar apenas as linhas gerais, está certo? Os pormenores são demasiado técnicos e parecem-me desnecessários nesta nossa conversa."

"Tudo bem."

"A primeira fase já está a decorrer. Trata-se do desenvolvimento da inteligência artificial. É verdade que a nossa civilização dá ainda os primeiros passos na tecnologia dos computadores, mas a evolução está a ser muito rápida e é possível que, um dia, sejamos capazes de desenvolver tecnologia tão ou mais inteligente do que nós. Aliás, à atual taxa de evolução, os cálculos mostram que os computadores atingirão o nível humano de processamento de informação e capacidade de integração de dados no prazo de um século ou pouco mais. Quando chegar o dia em que atingirem o nosso nível, os computadores adquirirão consciência, conforme, de resto, sugere o teste Turing, não sei se já ouviu falar."

"O meu pai já me mencionou, sim."

"Ora bem, os engenheiros prevêem que, para além de podermos vir a desenvolver computadores tão inteligentes como nós, poderemos também desenvolver robôs que sejam construtores universais. Sabe o que são construtores universais, não sabe?"


"Uh... não."

"Os construtores universais são engenhos que podem construir tudo o que possa ser construído. Por exemplo, uma máquina de uma fábrica de automóveis não é um construtor universal, uma vez que só sabe construir automóveis. Mas os seres humanos são construtores universais, dado que têm a habilidade de construir tudo o que possa ser construído. Ora, os cientistas dão como adquirido que é possível conceber uma máquina que seja um construtor universal. O matemático Von Neumann já mostrou como esses construtores podem ser criados e a NASA diz que é possível fabricá-los em algumas dezenas de anos, desde que haja financiamentos para isso, claro."

"Mas qual a utilidade desses... construtores universais? Servem para nos poupar trabalho, é?"

Luís Rocha fez uma curta pausa, para efeitos dramáticos.

"Servem para garantir a sobrevivência da civilização."

O seu interlocutor cerrou as sobrancelhas, surpreendido.

"Ah é?"

325


"Ouça, não se esqueça de que a Terra está condenada a morrer. Dentro de mil milhões de anos, o aumento da atividade solar destruirá toda a biosfera. O Princípio Antrópico Final estabelece que, uma vez tendo aparecido, a inteligência jamais desaparecerá do universo. Assim sendo, a inteligência na Terra não tem alternativa: terá de abandonar o berço e espalhar-se pelas estrelas. Os instrumentos desse processo são os computadores e os construtores universais. Parece inevitável que, algures no futuro, os seres humanos terão de enviar construtores universais computadorizados para as estrelas mais próximas. Esses construtores universais terão instruções específicas para colonizarem os sistemas solares que encontrarem e construírem aí novos construtores universais, os quais, por sua vez, serão enviados para as estrelas seguintes, num processo em crescimento exponencial. Isto principiará naturalmente com a exploração das estrelas que nos são mais próximas, como Próxima Centauri e Alfa Centauri, e estender-se-á gradualmente às estrelas seguintes, designadamente Tau Ceti, Epsilon Eridani, Procyon e Sirius numa segunda fase."

"Isso é possível?"

"Alguns cientistas dizem que sim. O processo levará muito tempo, claro. Uns milhares de anos. Mas, se isso é muito tempo à escala humana, não o é à escala universal."

"E quanto custa uma coisa dessas? Imagino que seja uma fortuna..."

"Oh, nem por isso", exclamou o físico. "Os custos são relativamente baixos, sabe?

É que basta construir quatro ou cinco destes construtores universais, não é preciso mais. Repare, uma vez chegado a um sistema solar, o construtor universal irá procurar planetas ou asteróides onde poderá extrair os metais e toda a matéria-prima de que necessitar. O robô começará a colonizar esse sistema e a povoá-lo com vida artificial pré-programada por nós ou até com vida humana, uma vez que é possível dar-lhes o nosso código genético para reprodução sempre que as condições encontradas forem adequadas. Para além disso, o robô terá também a missão de fabricar novos construtores universais, que enviará para as estrelas seguintes. A medida que avança, o processo de colonização das estrelas ir-se-á acelerando porque cada vez haverá mais e mais construtores universais. Mesmo que a civilização original desapareça, devido a um qualquer cataclismo, esta civilização continuará a espalhar-se autonomamente pela galáxia, graças aos construtores universais e ao seu programa automático de colonização."

"Mas, afinal, qual o objetivo de tudo isso?"

"Bem, o primeiro objetivo será o de explorar, não é? Queremos saber coisas sobre o universo, um pouco como as explorações que fazemos na Lua e nos planetas do sistema solar. Depois, à medida que a habitabilidade na Terra se tornar mais difícil, a prioridade será encontrar planetas para onde se possa transferir a vida."

"Transferir a vida? Assim como se fosse uma espécie de Arca de Noé galáctica?"

"Isso."


Tomás remexeu-se no banco da capela.

"Ouça lá, não acha que tudo isto assume uns ares assim de... de ficção científica muito fantasiada?"

"Sim, admito que sim. É normal que, agora, tudo pareça uma fantasia. Mas, quando as coisas se tornarem graves cá na Terra, com o aumento da atividade solar e a degradação da biosfera, garanto-lhe que, nessa altura, o problema vai começar a ser 326


encarado muito a sério, ouviu? O que nos parece hoje ficção científica tornar-se-á amanhã realidade."

O historiador ponderou a idéia.

"Sim, talvez tenha razão."

"Com a proliferação exponencial dos construtores universais, toda a nossa galáxia acabará por ser colonizada. De um pequeno planeta da periferia, a inteligência espalhar-se-á pela Via Láctea."

"E assim a vida escapará à inevitável destruição da Terra."

"Eu não disse isso. Disse que a inteligência se espalhará pela galáxia."

"Não é a mesma coisa?"

"Não necessariamente. A natureza só consegue criar a inteligência através de circunstâncias excepcionais envolvendo os átomos de carbono, a cuja complexa organização nós designamos vida. Mas o carbono só é predominante em estado sólido numa estreita faixa térmica. Nós, seres humanos, estamos a desenvolver uma certa forma de vida através de outros átomos, como o silício, por exemplo. O que os construtores universais vão espalhar pela galáxia será a inteligência artificial contida nos chips dos seus computadores. Não é certo que a vida baseada nos átomos de carbono seja capaz de sobreviver a viagens de milhares de anos entre as estrelas. É

possível que isso se faça, não digo que não, mas tal está longe de ser certo, está a perceber? O que temos a certeza, no entanto, é que a inteligência artificial será capaz de o fazer."

"Mas o que você me está a dizer é que a vida está condenada a extinguir-se..."


"Tudo depende do que se define por vida, claro. A vida baseada no átomo de carbono está condenada a extinguir-se, sobre isso não restam quaisquer dúvidas.

Mesmo que se consiga fazer essa tal Arca de Noé galáctica e levar a vida tal como a conhecemos para um planeta de Próxima Centauri, por exemplo, o fato é que, um dia, todas as estrelas vão desaparecer, não é? Ora, sem estrelas, a vida baseada no átomo de carbono não é possível."

"Mas isso não é igualmente válido para a inteligência artificial?"

"Não necessariamente. A inteligência artificial não necessita de estrelas para funcionar. Necessita de fontes de energia, como é evidente, mas essas fontes não têm de ser necessariamente as estrelas. Pode ser a força forte contida no núcleo de um átomo, por exemplo. Repare, a inteligência pode encolher-se para espaços muito pequenos, através do recurso à nanotecnologia, e aí precisará de muito menos energia para se manter em funcionamento. Nesse sentido, e se definirmos a vida como um processo complexo de processamento de informação, a vida continuará. A diferença é que o hardware deixa de ser o corpo biológico e passam a ser os chips. Mas, se formos a ver bem, o que faz a vida não é o hardware, pois não? É o software. Eu posso continuar a existir, não num corpo orgânico feito de carbono, mas num corpo metálico, por exemplo. Se já há pessoas que vivem com pernas e coração artificial, por que não se poderá viver com um corpo todo artificial? Se se transferir toda a minha memória e todos os meus processos cognitivos para um computador e me derem umas câmaras para ver o que se passa em redor e um altifalante para falar, eu continuarei a sentir-me eu. Num corpo diferente, é certo, mas serei eu na mesma. Se formos a ver bem, a minha consciência é uma espécie de programa de computador e nada impede que esse programa continue a existir caso eu consiga criar um hardware adequado onde o inserir."

327


O historiador fez uma careta incrédula.

"Mas, ouça lá, acha que isso é mesmo possível?"


"Claro que é. Repare, esta questão está já a ser estudada por físicos, matemáticos e engenheiros, o que pensa você? E o fato é que eles já concluíram que, por muito extraordinário que tudo isto possa parecer agora, é perfeitamente possível de colocar em prática. Ora, sendo possível, não é difícil de concluir que será colocado em prática." Enfatizou a palavra será. "O postulado do Princípio Antrópico Final assim o exige, para garantir a sobrevivência da inteligência no universo."

"É incrível", exclamou Tomás. "E o que acontecerá quando, mesmo no final, a matéria estiver a desaparecer, convertendo-se em energia?"

O físico mirou o seu interlocutor.

"Bem, nós temos aqui duas situações. Ou o universo acaba no Big Freeze ou acaba no Big Crunch. Para já, o universo parece estar a expandir-se mesmo perto do ponto crítico, o que nos impede de ter a certeza sobre qual o seu destino. Mas, apesar de se ter constatado que a expansão do universo está em aceleração, o professor Siza acreditava que os princípios que observamos em toda a natureza apontam para um cenário de Big Crunch."

"Ah, sim? Porquê?"

"Por duas razões. Em primeiro lugar, porque a aceleração da expansão do universo tem obrigatoriamente de acabar."

"Como sabe isso?"

"Por uma razão muito simples. Há galáxias que se afastam de nós a noventa e cinco por cento da velocidade da luz. Se a aceleração continuasse para sempre, haveria um momento em que a velocidade de expansão seria superior à velocidade da luz, não é? Ora, isso não pode ser. Portanto, a expansão do universo vai ter de abrandar, não há alternativa."

"Hmm", assentiu Tomás. "Mas isso não significa obrigatoriamente inversão de expansão para retração."

"Pois não", concordou o físico. "Mas significa que a aceleração é uma fase que terá de acabar. Daí à retração é um passo, cuja probabilidade decorre de uma constatação simples." Pigarreou. "Repare, se há coisa que nós estamos a verificar sempre que analisamos um sistema é que tudo tem um início e um fim. Mais importante ainda, tudo o que nasce acaba por morrer. As plantas nascem e morrem, os animais nascem e morrem, os ecossistemas nascem e morrem, os planetas nascem e morrem, as estrelas nascem e morrem, as galáxias nascem e morrem. Ora, nós sabemos que o espaço e o tempo nasceram, não é? Nasceram no Big Bang. Assim sendo, e seguindo o princípio de que tudo o que nasce acaba por morrer, também o espaço e o tempo terão de morrer. Porém, o Big Freeze estabelece que, tendo o espaço e o tempo nascido, nunca morrerão, o que viola esse princípio universal. Consequentemente, o Big Crunch é o destino mais provável do universo, uma vez que respeita o princípio de que tudo o que nasce acaba por morrer."

"Estou a perceber", murmurou Tomás. "Isso quer dizer que haverá um momento em que a matéria começa a recuar, é?"

"Não, não. O professor Siza achava que ela não vai recuar."

"Então o que irá acontecer?"

328


"Como já lhe expliquei, os cientistas acreditam que o universo poderá ser esférico, finito mas sem limites. Se nós conseguíssemos viajar sempre numa determinada direção, provavelmente acabaríamos de volta ao ponto de partida."

"Seríamos uma espécie de Fernão de Magalhães cósmicos."

"Exato. Ora, como as teorias da Relatividade mostram que o espaço e o tempo são diferentes manifestações da mesma coisa, o professor Siza acreditava que, de certo modo, também o tempo é esférico."

"O tempo é esférico? Não estou a perceber..."

"Imagine o seguinte", disse Luís Rocha, simulando uma esfera com as mãos.

"Imagine que o tempo é o planeta Terra e que o Big Bang se situa no pólo Norte.

Consegue imaginar isso?"

"Sim."

"Imagine que há vários navios que se encontram todos juntos no pólo Norte, o ponto do Big Bang. Um chama-se Via Láctea, outro chama-se Andrômeda, outro chama-se Galáxia M87. De repente, os navios põem-se a viajar todos para sul em direções diferentes. O que é que acontece?"

"Bem... uh... começam a afastar-se uns dos outros."

"Exato. Como a Terra é esférica e os navios estão a afastar-se do pólo Norte, isso significa que se estão a distanciar uns dos outros. Os navios afastam-se tanto que, a certa altura, deixam de se ver uns aos outros, não é?"

"Sim."

"O afastamento continua até chegarem ao equador, o ponto de apogeu. Mas, depois do equador, e porque a Terra é esférica, o espaço começa a encolher e os navios começam a aproximar-se uns dos outros. Até que, já perto do pólo Sul, se voltam a avistar."

"Exato."

"E colidem todos no pólo Sul."

Tomás riu-se.

"Se não tiverem cuidado."

"O professor Siza acreditava que o universo é assim. O espaço-tempo é esférico.

Neste momento, e devido ao Big Bang e à expansão possivelmente esférica do espaço e do tempo, a matéria está a afastar-se. As galáxias vão ficando mais distantes umas das outras, até se distanciarem tanto que deixarão de se ver. Ao mesmo tempo vão morrendo aos poucos, transformando-se em matéria inerte. O frio será generalizado.

Mas haverá um momento em que, após o apogeu da expansão, o tempo e o espaço começarão a encolher. Isso fará aumentar a temperatura da mesma maneira que um gás em retração aquece. O encolher do espaço-tempo acabará com uma brutal colisão final no pólo Sul do universo, uma espécie de Big Bang ao contrário. O Big Crunch."

"E é possível a vida sobreviver a isso?"

"A vida biológica, assente no átomo de carbono?" Abanou a cabeça. "Não. Essa vida desaparecerá muito antes disso, já lhe disse. Mas o postulado do Princípio Antrópico Final estabelece que a inteligência sobreviverá ao longo da história do universo."

"Mas como?"

329


"Espalhando-se pelo universo de tal modo que assumirá o controle de todo o processo."

Tomás riu-se de novo.

"Você deve estar a brincar."

"Estou a falar a sério. Muitos físicos acreditam que isto é possível e alguns até já demonstraram como."

"Ouça, você acredita mesmo que a inteligência vinda de uma coisa tão minúscula como a Terra pode assumir o controle de uma coisa tão imensa como o universo?"

"Isso não é tão incrível como pode parecer à primeira vista", argumentou Luís Rocha. "Não se esqueça do que diz a Teoria do Caos. Se uma borboleta pode afetar o clima do planeta, por que não poderá a inteligência afetar o universo?"

"Estamos a falar de coisas diferentes..."

"Estaremos?", interrogou-se o físico. "Tem a certeza?"

"Bem... uh... acho que sim. Apesar de tudo, o universo é muito maior do que a Terra, ou não é?"

"Mas o princípio é o mesmo. Repare, quando a vida apareceu na Terra, há mais de quatro mil milhões de anos, alguma vez alguém diria que aquelas moléculas minúsculas e insignificantes iriam evoluir tanto que acabariam um dia por assumir o controle de todo o planeta? Claro que não. Isso, se fosse dito naquela altura, seria risível. E, no entanto, cá estamos nós a discutir hoje os efeitos da ação humana na Terra. Dizer que a vida tomou o controle do nosso planeta é, nos tempos que correm, uma perfeita banalidade. Ora, se, partindo de umas meras moléculas, ao fim de mais de quatro mil milhões de anos a vida tomou conta da Terra ao ponto de influenciar a sua evolução, o que impede que, daqui a quarenta mil milhões de anos, a inteligência tome conta de toda a galáxia ao ponto de também influenciar a sua evolução?"

"Hmm... estou a perceber..."

"Os mecanismos através dos quais esse controle é exercido são explicados por vários estudos científicos, os principais conduzidos por Tipler e Barrow, e não vale a pena eu entrar aqui em pormenores sobre a física e a matemática que envolve esse processo. O essencial, no entanto, é que o professor Siza estava convencido de que o postulado do Princípio Antrópico Final é verdadeiro. Ou seja, tendo aparecido no universo, a inteligência jamais desaparecerá. Se, para sobreviver, a inteligência tiver de controlar a matéria e as forças do universo, controlá-las-á."

"E é esse o propósito do universo? Permitir que a inteligência apareça?"

"Não sei se é esse o propósito do universo. Sei, no entanto, que a vida não é o objetivo, mas um passo necessário para permitir o aparecimento da inteligência."

"Estou a ver", suspirou Tomás, absorto nas implicações desta idéia. "Isso é... é incrível."

"É, não é?"

O historiador recostou-se na cadeira, contemplativo, mergulhado num espantado raciocínio. Mas o turbilhão de pensamentos logo foi assaltado por uma irrequieta dúvida e Tomás, emergindo da abstração, voltou-se para o seu interlocutor com o rosto contraído numa careta pensativa.

"Ouça lá, diz você que, uma vez tendo aparecido, a inteligência jamais desaparecerá, não é?"

330


"Sim, é o que prevê o Princípio Antrópico Final."

"Mas como poderá a inteligência sobreviver ao Big Crunch? Como poderá ela sobreviver ao fim do universo?"

Luís Rocha sorriu.

"A resposta a essa pergunta, meu caro, está inserida na última cifra deixada por Einstein."

"A que está no manuscrito?"

"Sim. É essa fórmula que revela o endgame do universo."


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