VII

O edifício era um bloco compacto de cimento, um monstro escondido por um muro alto, no topo do qual assentava uma coroa de arame farpado, e decorado por acácias frondosas, numa ruela oculta de Teerã. O motorista baixou o vidro da janela do carro e falou em parsi com o guarda; o homem armado espreitou para o banco de trás da viatura, os olhos dançando por momentos entre Ariana e Tomás, e regressou ao casinhoto. A cancela foi levantada e o automóvel estacionou junto a uns arbustos.

"É aqui que você trabalha?", perguntou Tomás, avaliando o edifício cinzento.

"Sim", disse a iraniana. "É o Ministério da Ciência, Pesquisa e Tecnologia."

A primeira preocupação foi a de registar o visitante, atribuindo-lhe um cartão que lhe permitia frequentar o ministério durante um mês. O processo revelou-se moroso na secretaria, onde o pessoal, sempre sorrindo e manifestando uma simpatia e cerimônia que chegava a roçar o absurdo, o obrigou a preencher sucessivos formulários.

Já com o cartão na mão, Tomás foi levado ao segundo andar e apresentado ao director do departamento de projetos especiais, um homem baixo e magro, de pequenos olhos escuros e barba grisalha pontiaguda.

"Este é agha Mozaffar Jalili", disse Ariana. "Está a trabalhar comigo neste... uh...

projeto."

"Sob bekbeir", cumprimentou o iraniano, sorridente.

"Bom dia", devolveu Tomás. "É o senhor que está encarregado do projeto?"

O homem fez um gesto vago com a mão.

"Formalmente, sim." Olhou de relance para Ariana. "Mas, na prática, é a khanom Pakravan quem está a conduzir os trabalhos. Ela tem... uh... qualificações especiais e eu limito-me a prestar-lhe toda a assistência logística. O senhor ministro considera este projeto de grande valor científico, sabe? De modo que determinou que os trabalhos devem prosseguir sem demora, sob a direção da khanom Pakravan."

O português olhou para os dois.

"Muito bem. Então vamos a isso, não é?"

"Quer começar já?", perguntou Ariana. "Não prefere tomar um chay primeiro?"


67


"Não, não", devolveu ele, esfregando as mãos. "Já comi no hotel. Agora é hora de trabalhar. Mal posso esperar para pôr os olhos no documento."

"Muito bem", disse a iraniana. "Vamos a isso."

Subiram os três ao terceiro andar e entraram numa sala espaçosa, com uma mesa longa no centro e seis cadeiras. As paredes apresentavam-se cobertas de armários com dossiers e dois vasos de

plantas emprestavam cor ao local. Tomás e Jalili sentaram-se à mesa, o iraniano envolvido numa conversa de circunstância, enquanto Ariana se ausentou. Pelo canto do olho, o português apercebeu-se de que ela entrou no gabinete seguinte, onde permaneceu alguns minutos. Reapareceu com uma caixa na mão e depositou-a sobre a mesa.

"Aqui está", anunciou.

Tomás estudou a caixa. Era de cartão reforçado, com aspecto gasto e usado, um lacinho roxo a selar a entrada.

"Posso ver?"

"Com certeza", disse ela, desfazendo o lacinho. Abriu a caixa e tirou do interior um manuscrito amarelecido, de poucas páginas, que colocou diante de Tomás. "Aqui está."

O historiador sentiu o cheiro adocicado do papel velho. A primeira página, uma folha quadriculada cuja fotocópia já tinha visto no Cairo, apresentava o título datilografado em letra de máquina antiga e um poema.


DIE GOTTESFORMEL


Terra if fin

De terrors tigbt

Sabbath fore

Christ nite


A. Einstein


Por baixo, o rabisco com o nome gatafunhado de Albert Einstein.

"Hmm", murmurou o historiador. "Que poema é este?"

Ariana encolheu os ombros.

"Não sei."

"Não foi saber?"

"Fui. Consultamos a Faculdade de Letras da Universidade de Teerã e conversamos com vários professores de literatura inglesa, incluindo peritos em poesia, mas ninguém reconheceu o poema."

"Estranho." Voltou as páginas e analisou os rabiscos escrevinhados a tinta permanente negra, por vezes intercalados por equações. Página atrás de página, 68


sempre os mesmos gatafunhos e mais equações. Eram vinte e duas páginas, todas numeradas no canto superior direito. Depois de as folhear com vagar e em silêncio, Tomás realinhou-as em bloco e mirou Ariana. "É isto tudo?"

"Sim."

"E onde está a parte que precisa de ser decifrada?"

"É a última folha."

O português tirou a folha que se encontrava no final do manuscrito e estudou-a com curiosidade. Tinha os mesmos rabiscos em alemão, mas terminava com umas palavras enigmáticas.


See sign

!ya ovqo


"Não percebo esta caligrafia", queixou-se Tomás. "O que está aqui escrito?"

"Bem, pela nossa análise caligráfica parece ser !ya e ovqo."

"Hmm", murmurou. "Sim, parece isso..."

"E, em cima, a expressão see sign."

"Mas isso é inglês."

"Sem dúvida."

O historiador fez um ar admirado.

"O que vos leva então a pensar que se trata de uma cifra em português?"

"A caligrafia."

"O que tem ela?"

"Não é de Einstein. Ora repare."

Ariana indicou com o dedo as linhas em alemão e as linhas em inglês, comparando-as.

"De fato", concordou Tomás. "Parecem redigidas por mão diferente. Mas não vejo nada aqui a sugerir mão portuguesa."

"É mão portuguesa."

"Como sabe?"

"Einstein trabalhou neste documento com um físico português que estava a estagiar no Institute for Advanced Study. Já comparamos essas palavras com a caligrafia do estagiário e a conclusão foi positiva. Quem redigiu essa frase enigmática foi, sem dúvida, o português."

Tomás mirou a iraniana. Era evidente que o português se tratava do professor Augusto Siza, mas até que ponto estaria ela disposta a falar do cientista desaparecido?

"Por que não entram em contato com esse português?", perguntou o historiador, fingindo desconhecer o assunto. "Se ele era jovem nessa altura, provavelmente ainda estará vivo."

Um rubor de atrapalhação encheu o rosto de Ariana.

"Esse português está... uh... indisponível."

69


Ah, pensou Tomás. Estás a esconder algo.

"Como assim, indisponível?"

Jalili interveio em socorro de Ariana. O pequeno iraniano agitou a mão, num gesto impaciente.

"Não interessa, professor. O fato é que não temos acesso a esse seu compatriota e precisamos de perceber o que quer isto dizer." Olhou de relance para a folha. "O

senhor acha que consegue decifrar essa trapalhada?"

Tomás voltou a passar os olhos pela charada, pensativo.

"Preciso que me arranje uma tradução completa do texto em alemão", pediu o historiador.

"A tradução completa do manuscrito?"

"Sim, tudo."

"Não pode ser", disse Jalili.

"Perdão?"

"Não lhe posso arranjar a tradução do texto em alemão. Está absolutamente fora de questão."

"Porquê?"

"Porque tudo isto é confidencial", exclamou o iraniano, pegando no manuscrito e arrumando-o na caixa. "Apenas lhe foi mostrado para que o senhor sentisse algum contacto com o trabalho original. Vou-lhe escrever num papel a charada e terá que fazer todo o seu trabalho com base nesse papel."

"Mas porquê?"

"Porque este documento é confidencial, já lhe disse."

"Mas como posso eu decifrar a charada se não conhecer o texto anterior? Pode muito bem acontecer que o texto em alemão encerre o segredo da charada, não é?"

"Lamento, mas são as nossas ordens", insistiu Jalili. Olhou para a última página e copiou a charada de letras para uma folha A4 lisa. "Esta folha vai ser doravante o seu material de trabalho."

"Não sei se, nestas condições, consigo fazer o meu trabalho."

"Conseguirá." Soergueu o sobrolho. "Aliás, nem tem outro remédio. Por ordens do senhor ministro, o senhor só será autorizado a sair do Irã quando completar a decifração."

"O quê?"

"Lamento, mas são as nossas ordens. A República Islâmica está-lhe a pagar bem para decifrar este trecho e deu-lhe acesso a um documento confidencial muito valioso.

Compreenderá naturalmente que a confidencialidade tem um preço. Se o senhor sair do Irã sem completar o trabalho, cria-se um problema de segurança nacional, uma vez que o trecho em questão poderá ser decifrado lá fora e nós, que temos o documento original, permaneceremos sem compreender esta peça-chave." O rosto crispado distendeu-se um pouco e Jalili sorriu, esforçando-se por ser amável e dissipar a tensão súbita. "De qualquer modo, não vejo razões para que não conclua com sucesso a

sua missão. Nós ficaremos com a tradução completa e o senhor irá para casa um pouco mais rico."

70


O português trocou de olhar com Ariana. A mulher fez um gesto de impotência, nada daquilo dependia dela. Percebendo que não dispunha de alternativas, Tomás virou-se para Jalili e suspirou, resignado.

"Muito bem", disse. "Mas já que vou fazer isto, é melhor fazer o trabalho completo, não é?"

O iraniano hesitou, sem perceber esta observação.

"Onde quer chegar?"

Tomás apontou para o manuscrito, já arrumado dentro da caixa de cartão.

"Quero chegar a essa primeira página. Será que também me pode copiar, se faz favor?"

"Copiar a primeira página?"

"Sim. Ela não esconde nenhum segredo terrível, pois não?"

"Não, tem apenas o título do manuscrito, o poema e a assinatura de Einstein."

"Então copie-me isso."

"Mas porquê?"

"Por causa desse poema, claro."

"O que tem o poema?"

"Ora! Não é evidente?"

"Não. O que tem ele?"

"O poema, meu caro, é outra charada."


O resto da manhã foi passado a tentar decifrar as duas charadas, mas sem sucesso. Tomás partiu sempre do princípio de que a segunda ocultava uma mensagem em português e imaginava que a referência see sign, a anteceder a algaraviada, era uma qualquer pista, mas não conseguia perceber qual. Já o poema lhe parecia remeter para uma mensagem em inglês, embora igualmente aqui os seus esforços esbarrassem numa opaca barreira de incompreensibilidade.


À hora do almoço, Tomás e Ariana foram a um restaurante ali perto comer um makhsus kebab, confeccionado com carne de carneiro picada.

"Peço desculpa pela forma como o agba Jalili falou consigo", disse ela, depois do empregado ter trazido a comida. "Os iranianos são habitualmente muito educados, mas este problema é de extrema sensibilidade. O manuscrito de Einstein tem prioridade e confidencialidade máxima, pelo que não podemos correr riscos. A sua estada no Irã enquanto decorre o trabalho de decifração constitui uma questão de segurança nacional."

"Eu não me importo de aqui ficar algum tempo", respondeu Tomás, enquanto mastigava um pedaço de kebab. "Desde que você esteja sempre por perto, claro."

Ariana baixou os olhos e sorriu levemente.

"Espero que isso queira dizer que apenas precisa da minha assistência científica."

"Ah, sim", exclamou o português com ar peremptório. "É apenas isso que espero de si." Fez uma expressão inocente. "Apenas assistência científica, nada mais."

A iraniana inclinou a cabeça.

71


"Por que será que não acredito em si?"

"Não faço a mínima ideia", riu-se ele.

"Vai-se portar bem, não vai?"

"Vou, vou."

"Por favor, Tomás", implorou ela. "Não se esqueça de que isto não é o Ocidente, está bem? Este é um país especial, onde as pessoas não se podem dar a certas liberdades. Não me vai embaraçar, pois não?"

O português fez uma expressão conformada.

"Pronto, já percebi", disse. "Nada farei que a atrapalhe, fique descansada."

"Ainda bem."

Tomás mirou o que restava do kebab na mão. O sentido da conversa dera-lhe o pretexto que precisava para fazer o que tinha a fazer.


"Depois do almoço, vou passear", anunciou.

"Ah, sim? Onde quer que o leve?"

"Não, você não vem. Se andar sempre comigo, isso poderá gerar alguns comentários desagradáveis para si. Afinal de contas, e como você diz, este é um país especial, não é?"

"Sim, tem razão", admitiu Ariana. "Vou ver se lhe arranjo um guia."

"Não preciso de guia."

"Claro que precisa. Como é que se vai orientar por..."

"Não preciso de guia", repetiu Tomás, mais enfático.

"Bem... uh... há o problema da segurança, percebe? A sua segurança é da nossa responsabilidade, precisamos que alguém o acompanhe para zelar por si."

"Que disparate! Eu sei muito bem cuidar de mim."

Ariana olhou-o, desconcertada.

"Ouça, eu vou-lhe arranjar um guia na mesma."

"Não quero, já disse."

Ela ficou um instante calada, como se estivesse a pensar. Baixou então a cabeça e inclinou-se para o seu convidado.

"Não o posso deixar assim sozinho, não entende?", sussurrou muito rapidamente.

"Se você sair sem eu dizer nada a ninguém, posso ser punida." A voz adotou um tom de imploração sedutora. "Deixe-me arranjar-lhe um guia, por favor. Se você depois o despistar, problema do guia, já não tenho nada a ver com isso, não é?" Arregalou muito os olhos melados, em busca de assentimento. "Está de acordo?"

Tomás fitou-a por um momento e acabou por balançar afirmativamente a cabeça.

"Está bem", aceitou. "Chame lá o gorila."


O gorila era um homem baixo e largo, com barba rala forte e sobrancelhas negras carregadas, todo vestido de escuro e com ar de agente de segurança.

"Saiam", saudou o guia que Ariana lhe apresentou. "Haletun chetor e?"

72


"Ele pergunta se está tudo bem."

"Está, diga-lhe que está tudo bem."

"Khubam", disse ela ao guia.

O homem bateu com o dedo no peito.

"Esmam Rabim e", anunciou, sempre de olhos cravados no historiador. "Rahim."

Tomás percebeu.

"Rahim?" Foi a vez de ser o português a bater no peito. "Eu sou Tomás. Tomás."

"Ah, Tomás", sorriu ele. "Az ashnayitun kbosbbakhtam."

O historiador fez um sorriso amarelo e mirou a iraniana pelo canto do olho.

"Isto promete", disse entre dentes. "Sinto-me como o Tarzan a conversar com a Jane." Fez uma careta. "Me Tomás, you Rahim."

Ariana riu-se.

"Vão-se entender lindamente, vai ver."

“Só se você aceitar ser a minha Jane..."

A iraniana olhou em redor, para se certificar de que ninguém o tinha escutado.

"Vá, não comece", pediu, atrapalhada. "Onde quer que ele o leve?"

"Ao bazar. Apetece-me passear e fazer umas compras."

Rahim recebeu as indicações e entraram ambos num Toyota negro, um carro do ministério colocado à disposição do português para as suas voltinhas nessa tarde. O

automóvel mergulhou no caótico trânsito de Teerão e convergiu em direcção ao sul da cidade; à medida que progrediam, a construção ia-se tornando pior, tudo parecia ainda mais congestionado, desordenado e degradado do que no resto da vasta urbe de catorze milhões de habitantes.

O motorista foi sempre tagarelando em parsi, enquanto Tomás assentia distraidamente, nada compreendendo e nada querendo compreender, os olhos perdidos no confuso e poluído emaranhado de ruas e casas, a mente a congeminar como se iria livrar do seu palrador guia-motorista-protetor-vigilante. A determinado ponto, seguiam por uma alameda, Rahim apontou para uns comerciantes e disse mais qualquer coisa em parsi, a expressão bazaris algures lá no meio. Alertado por essa palavra, como se uma sineta de alarme lhe tivesse soado aos ouvidos, Tomás procurou freneticamente indicações e apercebeu-se de uma tabuleta a referir que aquela era a Avenida Khordad. Conhecia-a do mapa que estudara atentamente na noite anterior, pelo que nem hesitou. Num gesto brusco abriu a porta do carro e saltou para o meio da avenida, desencadeando um tropel de travagens e buzinadelas.

"Bye-bye!", disse, acenando de fugida ao estupefato Rahim, que permanecia agarrado ao volante, de boca aberta, a ver o português volatilizar-se diante de si.

O motorista despertou da breve letargia provocada pela surpresa e parou o carro em plena Khordad, atirando-se também cá para fora, sempre a gritar em parsi; mas, por essa altura, já o seu cliente se embrenhara na multidão e tinha desaparecido na teia de ruelas que marcava o princípio do grande bazar de Teerã.


Загрузка...