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5hl6m

Na semi-alvorada, um jipe com dois mecânicos de macacão dobrou o portão 16, na extremidade leste do terminal, e parou perto do principal trem de aterrissagem do Yankee 2. A escada ainda estava no lugar, e a porta principal, levemente entreaberta. Os mecânicos, ambos chineses, saltaram, e um deles começou a inspecionar o trem de aterrissagem de oito rodas, enquanto o outro, com o mesmo cuidado, inspecionava o trem de aterrissagem do nariz do avião. Metodicamente, examinaram os pneus, as rodas e depois o acoplamento hidráulico dos freios. Então espiaram para dentro dos vãos de aterrissagem. Ambos usavam lanternas elétricas. O mecânico no trem de aterrissagem principal pegou uma chave de parafuso e subiu numa das rodas para olhar mais de perto, com a cabeça e os ombros agora bem enfiados no bojo do avião. Depois de um momento, chamou, em cantonense:

— Ayeeyah! Ei, Lim, dê uma olhada nisso.

O outro homem se aproximou e olhou para cima, o suor manchando o macacão branco.

— Estão aí ou não? Não dá para eu ver daqui.

— Irmão, enfie o pau na boca e desça pela privada para os esgotos. Claro que estão aqui. Estamos ricos. Vamos comer arroz para sempre! Mas fique quieto, para não acordar os demônios estrangeiros cagados aí em cima! Tome...

O homem entregou a Lim um pacote comprido, envolto em lona, e ele o guardou rápida e silenciosamente no jipe. Depois outro, e mais outro, menor, os dois homens nervosos e suando, trabalhando depressa, e em silêncio.

Outro pacote. E outro...

E então Lim viu o jipe da polícia dobrar a esquina e simultaneamente outros homens uniformizados saírem aos montes do portão 16, entre eles muitos europeus.

— Fomos traídos — exclamou, ofegante, enquanto corria, numa fuga desesperada para a liberdade. O jipe interceptou-o facilmente, e ele parou, tremendo de terror reprimido. Depois, cuspiu, praguejou e retraiu-se.

O outro homem pulara para o chão imediatamente e saltara para o assento do motorista do jipe. Antes que pudesse girar a chave na ignição, foi dominado e algemado.

— Então, seu safado — sibilou o sargento Lee —, aonde pensa que vai?

— A lugar nenhum, seu guarda, foi ele, aquele lá, aquele filho da puta, seu guarda, jurou que cortaria a minha garganta se não o ajudasse. Não sei de nada, juro sobre o túmulo da minha mãe!

— Seu sacana mentiroso, você nunca teve mãe. Vai passar cinqüenta anos na cadeia, se não falar!

— Seu guarda, juro por todos os deu...

— Mijo nas suas mentiras, seu cara de bosta. Quem está lhe pagando por esse serviço?

Armstrong cruzava devagarinho a pista do aeroporto, o gosto doce e enjoativo do golpe mortal na boca.

— Então — falou em inglês —, o que temos aqui, sargento? — Fora uma longa noite de vigília, e estava cansado e com a barba por fazer, e sem nenhuma disposição de ouvir os choramingos e protestos de inocência do mecânico. Portanto, falou suavemente, num perfeito cantonense de sarjeta: — Mais uma só palavra sua, por mais insignificante que seja, seu fornecedor de bosta leprosa, e mandarei meus homens saltarem sobre o seu Saco Secreto.

O homem ficou mudo.

— Ótimo. Como se chama?

— Tan Shu Ta, senhor.

— Mentiroso! Como se chama o seu amigo?

— Lim Ta-cheung, mas não é meu amigo, senhor, não o conhecia antes de hoje de manhã.

— Mentiroso! Quem pagou a vocês para fazerem isso?

— Não sei quem pagou a ele, senhor. Sabe, ele jurou que cortaria...

— Mentiroso! Sua boca está tão cheia de bosta que deve ser o deus da bosta em pessoa. O que há nesses embrulhos?

— Não sei. Juro pelo túmulo dos meus ancestr...

— Mentiroso! — disse Armstrong, sabendo que as mentiras eram inevitáveis.

Seu primeiro instrutor na polícia, calejado no trato com os chineses, lhe dissera:

— O chinês não é igual à gente. Ah, não quero dizer que seja feito de outro jeito... só que é diferente. Mente para os tiras o tempo todo, até ficar roxo, e quando a gente agarra um bandido, agindo limpamente, mesmo assim ele ainda mente e é escorregadio como um pau-de-sebo num monte de merda. Ele é diferente. Veja só os seus nomes. Cada chinês tem quatro nomes diferentes, um quando nasce, outro na puberdade, outro quando fica adulto, e um que escolhe para si mesmo, e eles se esquecem de um deles, ou acrescentam outro por dá cá aquela palha. E os nomes deles... pela madrugada! Os chineses se chamam de Lao-tsi-sing — os Cem Nomes Antigos. Há apenas cem sobrenomes básicos em toda a China, e desses há vinte Yus, oito Yens, dez Wus, e sabe lá Deus quanto Pings, Lis, Lees, Chens, Chins, Chings, Wongs e Fus, e cada um deles é pronunciado de cinco modos diferentes, portanto, sabe-se lá quem é quem!

— Então vai ser difícil identificar um suspeito, senhor?

— Nota 10, jovem Armstrong! Nota 10, meu rapaz. Você pode ter cinqüenta Lis, cinqüenta Changs e quatrocentos Wongs, e um não ser aparentado com o outro. Pela madrugada! Este é o problema, aqui em Hong Kong.

Armstrong deu um suspiro. Depois de dezoito anos, os nomes chineses eram tão confusos como nunca. E ainda por cima, todos eles pareciam ter um apelido pelo qual eram conhecidos.

— Como se chama? — perguntou de novo, e não se incomodou de esperar a resposta. — Mentiroso! Sargento! Desembrulhe um desses pacotes! Deixe ver o que contém.

O sargento Lee afastou o último envoltório. Dentro dele havia um M14, um rifle automático do exército dos Estados Unidos. Novo e bem lubrificado.

— Por causa disso, seu maldito filho da mama esquerda de uma puta — rosnou Armstrong —, você uivará durante cinqüenta anos!

O homem fitava a arma, apalermado, com cara de besta. Depois, soltou um gemido baixo.

— Fodam-se todos os deuses, não sabia que eram armas.

— Ah, sabia, sim! — disse Armstrong. — Sargento, bote este pedaço de bosta no camburão e fiche-o como contrabandista de armas.

O homem foi levado dali, com brutalidade. Um dos jovens policiais chineses estava desembrulhando outro pacote. Era pequeno e quadrado.

— Espere! — ordenou Armstrong em inglês. O policial e todos os outros que o ouviram ficaram imóveis. — Um deles pode conter uma bomba. Afastem-se todos do jipe! — Suando, o homem fez o que lhe mandaram. — Sargento, mande buscar os encarregados da remoção de bombas. Não há mais pressa.

— Sim, senhor.

O sargento Lee dirigiu-se ao intercomunicador no camburão da polícia.

Armstrong foi para baixo do avião e espiou para dentro do vão do trem de aterrissagem principal. Não dava para enxergar nada de estranho. Então, subiu numa das rodas.

— Santo Deus! — exclamou. Cinco prateleiras estavam firmemente presas a cada lado do tabique. Uma delas estava quase vazia, as outras, ainda cheias. Pelo tamanho e formato dos pacotes, julgava que fossem mais M14 e caixas de munição... ou granadas.

— Alguma coisa aí em cima, senhor? — perguntou o inspetor Thomas. Era um jovem inglês que estava há três anos na força policial.

— Dê uma olhada! Mas não toque em nada.

— Santo Deus! Há o bastante para algumas brigadas de choque!

— É. Mas quem seriam os revoltosos?

— Comunas?

— Ou nacionalistas... ou bandidos. Esses...

— Mas que diabo está acontecendo aí embaixo? Armstrong reconheceu a voz de Linc Bartlett. Fechou a cara e saltou para o chão, com Thomas logo atrás. Dirigiu-se para a ponta da escada.

— É o que eu também gostaria de saber, Sr. Bartlett — falou, secamente.

Bartlett estava parado na porta principal do avião, com Svensen ao lado. Ambos estavam de pijama e robe, e com cara de sono.

— Gostaria que desse uma olhada nisso.

Armstrong apontou para o rifle, agora parcialmente escondido no jipe.

Bartlett desceu as escadas imediatamente, com Svensen atrás.

— No quê?

— Queira fazer a gentileza de esperar no avião, Sr. Svensen.

Svensen ia responder, mas parou. Depois olhou para Bartlett, que balançou a cabeça.

— Prepare um café, sim, Sven?

— Claro, Linc.

— Bem, que história é essa, superintendente?

— Veja! — apontou Armstrong.

— É um M14. — Os olhos de Bartlett se estreitaram. — E daí?

— E daí que parece que seu avião está transportando armas.

— Não é possível.

— Acabamos de pegar dois homens descarregando. Lá está um dos sacanas — Armstrong apontou para o mecânico algemado, esperando de cara fechada ao lado do jipe —, e o outro está no camburão. Queira fazer a gentileza de olhar para o vão do trem de aterrissagem principal, senhor.

— Claro. Onde?

— Vai ter que trepar na roda.

Bartlett obedeceu. Armstrong e o inspetor Thomas anotaram o lugar exato onde ele pôs as mãos, para identificação de digitais. Bartlett ficou olhando estupefato para as prateleiras.

— Puta que o pariu! Se houver mais dessas, é um verdadeiro arsenal.

— É. Por favor, não toque em nada.

Bartlett examinou as prateleiras, depois saltou para o chão, agora totalmente desperto.

— Este não é um simples contrabandozinho. Aquelas prateleiras foram feitas sob medida.

— É. Não faz objeção a que revistemos o avião?

— Não. Claro que não.

— Pode ir, inspetor — falou Armstrong, imediatamente. — E faça uma inspeção muitíssimo cuidadosa. Agora, Sr. Bartlett, se quiser fazer a gentileza de explicar...

— Não contrabandeio armas, superintendente. Não creio que meu comandante o faça... ou Bill O'Rourke. Ou Svensen.

— E quanto à srta. Tcholok?

— Ora, faça-me o favor! Armstrong falou, com voz gélida:

— Este é um assunto muito sério, Sr. Bartlett. Seu avião está sob custódia, e sem aprovação da polícia, até ordem posterior, nem o senhor nem membro algum da sua tripulação poderão sair da colônia durante nossas investigações. Bem, e quanto à srta. Tcholok?

— É impossível, totalmente impossível, que Casey esteja envolvida de alguma maneira com armas, contrabando de armas ou qualquer outro tipo de contrabando. Impossível. — Bartlett parecia lastimar aquilo tudo, mas não tinha medo algum. — O mesmo se aplica ao resto de nós. — Sua voz tornou-se mais cortante. — O senhor foi avisado, não foi?

— Quanto tempo pararam em Honolulu?

— Uma ou duas horas, só para reabastecer, não me lembro ao certo. — Bartlett pensou por um momento. — Jannelli saltou, mas sempre salta. Essas prateleiras não podiam ter sido carregadas em uma hora e pouco.

— Tem certeza?

— Não, mas apostaria que isso foi feito antes de sairmos dos Estados Unidos. Embora não tenha a menor idéia de quando, onde, por quê e por quem. O senhor tem?

— Ainda não. — Armstrong observava-o atentamente. — Quem sabe gostaria de voltar ao seu gabinete, Sr. Bartlett. Poderíamos tomar lá o seu depoimento.

— Claro. — Bartlett olhou para o relógio. Eram cinco horas e quarenta e três minutos. — Façamos isso agora, depois tenho que dar alguns telefonemas. Ainda não estamos ligados ao seu sistema. Há algum telefone local ali? — perguntou, apontando para o terminal.

— Há. Naturalmente, preferimos interrogar o comandante Jannelli e o Sr. O'Rourke antes do senhor... se não se importa. Onde estão hospedados?

— No Victoria and Albert.

— Sargento Lee!

— Pronto, senhor.

— Pode ir indo para o QG.

— Sim, senhor.

— Também gostaríamos de falar com a srta. Tcholok primeiro. Novamente, se o senhor não se importar.

Bartlett subia as escadas, com Armstrong ao lado. Finalmente, falou:

— Está certo. Desde que o senhor o faça pessoalmente, e não antes das sete e quarenta e cinco. Ela tem trabalhado demais, tem um dia pesado pela frente, e não quero que seja incomodada desnecessariamente.

Entraram no avião. Sven esperava ao lado da copa, vestido normalmente, e muito perturbado. Policiais uniformizados e à paisana estavam por todo canto, revistando diligentemente.

— Sven, e aquele café?

Bartlett foi na frente, cruzando a ante-sala e entrando no seu escritório-gabinete. A porta central da popa, no final do corredor, estava aberta. Armstrong pôde ver parte da suíte principal, com sua cama tamanho extragrande. O inspetor Thomas vasculhava algumas gavetas.

— Merda! — resmungou Bartlett.

— Lamento — disse Armstrong —, mas é necessário.

— O que não quer dizer que eu tenha que gostar, superintendente. Jamais gostei de estranhos metendo o nariz na minha vida privada.

— É, concordo. — O superintendente fez sinal para um dos oficiais à paisana. — Sung!

— Sim, senhor.

— Anote aqui, por favor.

— Um minuto, vamos poupar tempo — falou Bartlett. Virou-se para um amontoado de aparelhos eletrônicos e apertou dois interruptores. Um gravador com dois cassetes começou a funcionar. Ele enfiou um microfone na tomada e colocou-o na mesa. — Haverá duas fitas, uma para o senhor, outra para mim. Depois que seu funcionário a transcrever, se quiser a minha assinatura, estarei às ordens.

— Obrigado.

— Bem, vamos começar.

Armstrong ficou constrangido, de repente.

— Queira por favor dizer-me o que sabe sobre o carregamento ilegal encontrado no vão do trem de aterrissagem principal de seu aeroplano, Sr. Bartlett.

Bartlett repetiu que não sabia de nada.

— Não creio que ninguém da minha tripulação ou do meu pessoal esteja envolvido, de forma alguma. Nenhum deles jamais esteve envolvido com a lei, ao que eu saiba. E eu saberia.

— Há quanto tempo o comandante Jannelli está com o senhor?

— Há quatro anos, O'Rourke, há dois. Svensen, desde que adquiri o avião, em 58.

— E a srta. Tcholok?

Depois de uma pausa, Bartlett disse:

— Seis... quase sete anos.

— Ela é uma importante executiva de sua companhia?

— É. Muito importante.

— Isso é incomum, não, Sr. Bartlett?

— É. Mas não tem nada a ver com o problema atual.

— O senhor é proprietário deste aparelho?

— A minha companhia é que é. Indústrias Par-Con S.A.

— Tem inimigos... alguém que gostaria de deixá-lo numa séria enrascada?

Bartlett riu.

— Será que um cachorro tem pulgas? Não se chega a chefe de uma companhia de meio bilhão de dólares fazendo amigos.

— Nenhum inimigo em especial?

— Diga-me o senhor. Contrabando de armas é uma operação especial... isso não pode deixar de ter sido feito por um profissional.

— Quem sabia do seu plano de vôo para Hong Kong?

— A visita já está marcada há uns dois meses. Minha diretoria sabia. E minha equipe de planejamento. — Bartlett franziu o cenho. — Não era nenhum segredo. Não havia motivo para tal. — Depois, acrescentou: — É claro que a Struan sabia... exatamente. Há pelo menos duas semanas. Na verdade, confirmamos a data no dia 12 por telex, junto com as horas previstas para a partida e para a chegada. Eu queria vir antes, mas Dunross disse que segunda-feira, dia 19, seria melhor para ele, e 19 é hoje. Por que não o interroga?

— É o que farei, Sr. Bartlett. Obrigado, senhor. No momento, é o suficiente.

— Também tenho umas perguntas, superintendente, se não se importa. Qual a penalidade para o contrabando de armas?

— Dez anos, sem condicional.

— Qual o valor desse carregamento?

— Não tem preço, para o comprador certo, porque nenhuma arma, absolutamente nenhuma, está ao alcance de pessoa alguma.

— Quem é o comprador certo?

— Qualquer um que queira começar um levante, uma insurreição, ou cometer assassinato em massa, assalto a bancos, ou algum crime de grande porte.

— Comunistas?

Armstrong sorriu e sacudiu a cabeça.

— Não precisam atirar em nós para tomar a colônia, ou contrabandear M14... têm armas de sobra nas mãos.

— Nacionalistas? Gente de Chang Kai-chek?

— O governo americano lhes fornece em quantidade todo tipo de armamentos, Sr. Bartlett. Não é? Portanto, também não precisam contrabandear desse jeito.

— Uma guerra de quadrilhas, talvez?

— Santo Deus, Sr. Bartlett, nossas quadrilhas não atiram umas nas outras. Nossas quadrilhas, chamamo-las de tríades, nossas tríades acertam suas diferenças de modo chinês sensato e civilizado, com facas, machados, pedaços de ferro e telefonemas anônimos para a polícia.

— Aposto que foi alguém da Struan. É aí que encontrará a resposta a este enigma.

— Talvez. — Armstrong riu de modo estranho, depois repetiu: — Talvez. Agora, se me dá licença...

— Claro.

Bartlett desligou o gravador, tirou de lá os dois cassetes e entregou um deles ao outro homem.

— Obrigado, Sr. Bartlett.

— Quanto tempo ainda vai durar esta revista?

— Depende. Talve2 uma hora. Pode ser que tragamos alguns peritos. Tentaremos tornar tudo o mais fácil possível. Vai sair do avião antes do almoço?

— Vou.

— Se quiser se comunicar, por favor entre em contato com meu gabinete. O número é 88-7733. Por enquanto, haverá aqui uma guarda policial permanente. Vai ficar no Vic?

— Vou. Estou livre agora para ir à cidade, fazer o que quiser?

— Está sim, senhor, desde que não deixe a colônia, durante as nossas investigações.

Bartlett abriu um sorriso.

— Já tinha entendido bem claramente o recado.

Armstrong se foi. Bartlett tomou banho, vestiu-se e esperou até que todos os policiais se houvessem retirado, exceto o que vigiava a escada. Depois, voltou para o seu gabinete e fechou a porta. Agora, totalmente só, deu uma olhada no relógio. Eram sete e trinta e sete. Foi até o centro de comunicações, ligou dois interruptores de microfone e apertou o botão de transmissão.

Daí a um momento, ouviu o ruído de estática, e a voz sonolenta de Casey:

— Sim, Linc?

— Jerônimo — disse ele, claramente, ao microfone. Fez-se uma longa pausa.

— Saquei — disse ela. O alto-falante emudeceu.


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